Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ANA BARATA BRITO | ||
Descritores: | RECURSO PER SALTUM DESCONTO PENA SUSPENSA CÚMULO JURÍDICO MEDIDA DA PENA PENA ÚNICA | ||
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Data do Acordão: | 06/21/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário : | I - Justifica-se a redução da pena única (inicialmente fixada em 5 anos e 6 meses de prisão) para 5 anos de prisão suspensa na execução por cinco anos e condicionada ao pagamento, nesse período, da quantia devida ao Estado, a condenado por dois crimes de abuso de confiança fiscal e um crime de branqueamento, quando do contexto global dos factos resulta que a prática criminosa surgiu num período circunscrito no tempo, episódico na vida do arguido, pessoa familiar, profissional e socialmente enquadrada. II - As três penas que integram o cúmulo - 1.ª: pena de 3 anos de prisão pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal; 2.ª: pena de 3 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime de branqueamento de capitais (estas duas penas foram logo aglutinadas na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na execução, com subordinação ao pagamento ao Estado da quantia de 2.500.000,00 € (faseadamente em prestações); 3.ª: pena de 3 anos de prisão pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, suspensa na sua execução pelo período de cinco anos, na condição de pagamento nesse período do valor de € 48 000,00 (em duas prestações) - transitaram em julgado a 26-11-2020 e a 06-11-2020, tendo o arguido no decurso das execuções das penas parcelares procedido a pagamento de parte das quantias condicionantes das suspensões e não tendo ocorrido revogação das suspensões; acresce que todos os factos foram praticados há dezoito anos, não tendo o arguido, de sessenta anos de idade, antecedentes criminais anteriores ou posteriores aos factos. III - Considera-se, por tudo, mais adequada à ressocialização, satisfazendo ainda as exigências de prevenção geral, a pena de 5 anos de prisão suspensa por cinco anos, condicionada ao pagamento no mesmo período da quantia devida ao Estado de € 2 548000,00, condicionamento nos moldes que já vinham definidos nas penas parcelares de prisão suspensa e que o arguido, em recurso, não questionou nem adversariou. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça: 1. Relatório 1.1. No Processo Comum Colectivo n.º 200/04.4IDAVR.1, do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., foi proferido acórdão em que se procedeu “ao cúmulo jurídico das penas de prisão aplicadas nos processos nºs 200/04.4IDAVR e 200/04...., do Juízo Central Criminal-J... de ... do Tribunal Judicial da Comarca ...”, condenando-se o arguido AA na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão. Inconformado com o decidido, interpôs o arguido recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo: “A) Vem o presente recurso interposto do Acórdão proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de ..., em 30 de Janeiro de 2023, no âmbito do processo n.º 200/04...., que correu termos junto do Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., através do qual o Tribunal a quo procedeu ao cúmulo jurídico, decidindo condenar o Arguido na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão. B) O acórdão sob recurso procedeu ao cúmulo jurídico das penas determinadas, ao Arguido, no processo no âmbito dos processos 200/04.... e 200/04...., do Juízo Central Criminal – Juiz ..., de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro. C) Salvo o devido respeito, a decisão recorrida enferma de erro de julgamento de Direito, ao ter assim decidido, e com os fundamentos ali enunciados, razão pela qual deve a mesma ser revogada por esse Tribunal e substituída por outra que faça uma correcta interpretação do Direito aplicável. D) A decisão do cúmulo jurídico deve expressar todo um processo lógico-dedutivo conducente à determinação da pena única e, assim, para além de apresentar um resumo sucinto da factualidade integradora de cada um dos ilícitos típicos em concurso e das conexões materiais e temporais entre eles estabelecidas, deve proceder à descrição da personalidade unitária do Arguido. E) Atento o “deficit” de fundamentação, o Acórdão recorrido violou o disposto no n.º 1, do art.º 77.º, do CP e no n.º 2, do artigo 374.º, do CPP, padecendo, assim, da nulidade prevista no art.º 379.º, nº. 1, alínea a), deste último Diploma (CPP). F) A decisão referente a um concurso de crimes de conhecimento superveniente deverá ser elaborada, nos termos de qualquer outra Sentença (cfr. artigo 374.º, do CPP), já que, se por um lado, a lei não prevê nenhum desvio a esse regime geral, por outro lado, ainda, a punição do concurso superveniente não constitui uma operação aritmética, mas antes exige um julgamento (artigo 472.º, n.º 1 do CPP), destinado a avaliar, em conjunto, os factos, na sua globalidade, e a personalidade do agente, cfr. artigo 77.º, do CP. G) A explanação dos fundamentos que à luz da culpa e prevenção determinam o Tribunal à formação da pena conjunta deve ser particularmente exaustiva, de forma a permitir uma visão global, também, do percurso de vida subjacente ao itinerário criminoso do arguido. H) O acórdão recorrido não fundamentou suficientemente a determinação da pena conjunta, não assegurando, por isso, a controlabilidade e a racionalidade da medida da pena única de prisão imposta ao Recorrente, o que equivale a dizer que o mesmo padece, nesta parte, de deficiente fundamentação, consubstanciadora da nulidade prevista na al. a) do n.º 1 do art. 379.º, com referência ao art. 374.º, n.º 2, ambos CPP. I) Impunha-se que na determinação da pena do cúmulo, resultasse do acórdão recorrido um exame crítico de ponderação conjunta sobre a interligação entre os factos e a personalidade do Recorrente, por forma a valorar-se o ilícito global, considerando ainda as necessidades de prevenção geral e especial. J) No acórdão recorrido “(…) considera-se justo, adequado e proporcional aplicar uma pena dentro do primeiro terço da moldura, em concreto, a pena de 5 anos e 6 meses de prisão.” Ora, salvo o devido respeito, estamos perante mera afirmação genérica e conclusiva, desprovida de qualquer exame crítico, sendo que, da fundamentação não é possível extrair, em concreto, as características de personalidade do Arguido que determinaram o Tribunal a quo a optar, em concreto, por aquela pena única (de cinco anos e seis meses de prisão). K) O cúmulo jurídico não se basta com uma mera operação aritmética, do mesmo modo que não basta ordenar a elaboração de um relatório social e fazê-lo reflectir na matéria de facto dada como provada, sem que, da fundamentação conste uma suficiente e bastante apreciação sobre essa factualidade. L) O acórdão recorrido não integra a necessária avaliação da personalidade do Arguido, sendo, por isso, omisso quanto a um exame crítico de ponderação conjunta sobre a interligação entre os factos e a personalidade do Recorrente, de molde a ficar a saber-se, por exemplo, se o conjunto dos factos delituosos em concurso são expressão de uma inclinação criminosa ou apenas constituíram delitos ocasionais e, sem que se possam radicar na personalidade do Arguido. M) Como salientou Maia Gonçalves, in Código Penal Anotado e Comentado, 15.ª edição, pág. 277, “na fixação da pena correspondente ao concurso entra como factor a personalidade do agente, a qual deve ser objecto de especial fundamentação na sentença. Ela é mesmo o aglutinador da pena aplicável aos vários crimes e tem, por força das coisas, carácter unitário”.” N) Como referido, pelo STJ, no acórdão de 15 de Dezembro de 2011, proferido no processo n.º 41/10.0GOAZ.P2.S1 “As exigências de fundamentação colocam-se com maior acuidade nos casos de cúmulo por conhecimento superveniente e toda a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem sustentado a necessidade de maior rigor, de um especial cuidado na fundamentação nesses casos, quando está em causa a aplicação do artigo 78.º do Código Penal.” O) Pelo exposto, o acórdão recorrido padece de nulidade, por falta de fundamentação relevante para a determinação da pena única fixada, conforme prevista nas disposições conjugadas do n.º 2, do artigo 374.º e alínea a), do n.º 1, do artigo 379.º, ambos do CPP. Mas, vejamos, ainda, que: P) A previsão normativa do artigo 81.º, do CP, que estabelece os descontos equitativos, tem na sua ratio impedir situações, em que ad absurdum, o Arguido fosse sancionado duplamente por uma mesma conduta. Q) O desconto equitativo consubstancia um caso especial de determinação da pena, pelo que acompanhamos o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 9/2011, de 20 de Outubro, em que foi relatora a Senhora Juíza Conselheira Isabel Pais Martins (DR — 1.ª série, n.º 225, 23. nov. 2011, p. 5010 e ss, em particular, p. 5019) quando ali se decidiu que se justifica “plenamente o tratamento sistemático do instituto do desconto no quadro da determinação da pena porque o desconto transforma o quantum da pena a cumprir; embora a pena, na sua espécie e gravidade, esteja definitivamente fixada antes de o tribunal considerar a questão do desconto, o que é certo é que a gravidade da pena a cumprir é também determinada pela decisão da questão do desconto (…). Tudo leva, assim, a que o desconto — mesmo quando legalmente predeterminado — deva ser sempre mencionado na sentença condenatória (…).” R) In casu,“(…) não estamos perante um caso de revogação, dado que este apenas ocorre quando se verifique o incumprimento dos deveres e regras de conduta, ou a prática de crime após aquela decisão (o que nos presentes autos não aconteceu, pois todos os factos criminosos são praticados em momento anterior ao trânsito em julgado da decisão que aplicou a pena de substituição).” – cfr. acórdão proferido no processo n.º 2877.19.7T8PRT.P1.S1, em 23.01.2020. S) Preenchidos os requisitos legais, é possível a aplicação de um desconto equitativo (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, 1993, §§ 439 a 443, Nuno Brandão, Conhecimento superveniente do concurso e revogação de penas de substituição, RPCC, 15 (n.º 1), p. 132 (19), ac. STJ 14.01.2016), (art. 81.º CP). T) Considerando que o cumprimento das penas de prisão, suspensas na sua execução, aplicadas ao Recorrente: • No âmbito do processo n.º 200/04...., pena essa de 3 (três) anos cuja execução foi suspensa e cujo cumprimento se iniciou em 27.11.2020 – já que o trânsito ocorreu em 26.11.2020 – podemos concluir que o Recorrente cumpriu aquela pena de substituição durante, pelo menos até ao momento, 2 anos, 2 meses e 12 dias; • No processo n.º 200/04...., a pena, em cúmulo jurídico, de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses cuja execução foi suspensa, se iniciou em 06.11.2020 – uma vez que o trânsito em julgado ocorreu em 05/11/2020 – podemos concluir que o Recorrente cumpriu aquela pena de substituição durante, pelo menos até ao momento, 2 anos, 3 meses e 3 dias. U) No caso, não houve qualquer revogação (da suspensão da execução das penas), nos termos e para os efeitos previstos no artigo 56.º, do CP. V) O desconto equitativo, previsto no artigo 81.º, do CP, respeita a cada pena anterior e, nessa medida, deve ser imputado na nova pena única. W) Impunha-se ao Tribunal a quo ponderar se o cumprimento pelo Recorrente se mostra relevante ou não, e concluindo o Tribunal pela relevância, tinha que efectuar, em sede do acórdão cumulatório, o «desconto equitativo» (art. 81.º/2, CP), por ser esse o momento próprio para tal ponderação (já que se trata de um caso especial de determinação da pena). (Cfr. acórdão proferido em 09.02.2022, pelo STJ, no processo n.º 21461/21.9T8LSB.S1) X) O Acórdão sob recurso padece de nulidade, por omissão de pronúncia, acerca dos descontos equitativos, nos termos e para os efeitos previstos nas disposições conjugadas do artigo 81.º do CP e artigo 379.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2, do CPP. Y) Por outro lado, o cúmulo das penas agora efectuado reporta-se a crimes praticados há cerca de 18 (dezoito) anos, pelo que, também por esta via, o cúmulo apurado nos termos em que o foi se revela excessivo e desproporcionado. Z) O Tribunal a quo ao decidir nos termos em que o fez – maxime não procedendo aos descontos equitativos do lapso temporal já decorrido da suspensão das penas, cfr. artigo 81.º, do CP – proferiu uma decisão com efeitos gravemente lesivos para o Arguido, prejudicando-o na realização do cúmulo jurídico, o que, desde logo, contraria a ratio daquele instituto. AA) O Tribunal a quo dispunha de todos os elementos necessários para conhecer dos descontos equitativos. (Cfr. factualidade dada como provada no acórdão recorrido, maxime os pontos 1 e 2, nos quais constam identificadas, por exemplo, as penas parcelares que pelo decurso do tempo se encontram já parcialmente cumpridas, assim como as datas do trânsito daquelas decisões. Relevava, ainda, o cumprimento parcial das injunções, conforme ponto 31 da matéria de facto dada como provada) BB) O Recorrente cumpriu parcialmente com os termos que determinaram a suspensão das penas que lhe foram aplicadas nos autos em questão, tendo entregue, ao Estado, o valor de € 109.407,86 (cento e nove mil, quatrocentos e sete euros e oitenta e seis cêntimos) (cfr. ponto 31 dos factos dados como provados). CC) O cumprimento parcial das injunções deve-se a falta de meios económico-financeiros do Recorrente, como resulta de forma flagrante dos factos dados como provados no acórdão recorrido. Vide, a título meramente exemplificativo, os pontos 24, 25, 26 e 27 dos factos dados como provados. DD) O Recorrente não tem a possibilidade de vender a casa onde vive com a sua filha, dois netos e o genro, cfr. ponto 21 da matéria de facto dada como provada, já que se, por um lado, a mesma apresenta um considerável passivo resultante de crédito bancário – pago mensalmente, cfr. ponto 27 dos factos dados como provados, por outro lado, aquele imóvel tendo sido propriedade do Recorrente e da sua falecida mulher, integra hoje a herança titulada, também, pelos seus dois filhos, como decorre, mutatis mutandis do ponto 24 da matéria de facto dada como provada: “O arguido AA, há cerca de três anos, ficou viúvo e assim, os descendentes herdaram a quota empresarial correspondente”. EE) O “património societário” de que o Recorrente é proprietário foi objecto de partilha hereditária, na sequência da morte da mulher do Recorrente. (cfr. ponto 24 da matéria de facto dada como provada) FF) Na aferição da pena única, deveria ter relevado, também, a apreciação da culpa, designadamente quanto à falta de cumprimento integral das injunções que tinham sido impostas ao Recorrente, no que em concreto se reporta aos pagamentos fixados ao Estado. GG) No caso, não só o Recorrente não teve condições para cumprir, na totalidade, com os pagamentos que, por força das penas aplicadas (e agora objecto de cúmulo), deveria ter feito ao Estado, como, do mesmo modo, não se colocou voluntariamente na situação de não conseguir cumprir com a totalidade dos pagamentos. HH) O recurso ao «princípio da possibilidade» permite, aliás, ao Tribunal cingir o condicionamento da suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da parte do valor, que considere ser possível ao condenado satisfazer. Acresce que, II) Desde o trânsito em julgado das decisões que aplicaram as penas sub judice, o Recorrente não foi condenado pela prática de qualquer outro crime. (Cfr. ponto 32 da matéria de facto dada como provada) JJ) O Arguido é pessoa que familiar, profissional e socialmente se encontra enquadrada (como bem o atesta o relatório social elaborado). KK) Considerando os princípios da proporcionalidade ou da necessidade das penas importa concluir que a aplicação de uma pena de prisão de cinco anos e seis meses ao Recorrente – afastando-se a anterior suspensão da execução das penas – enquanto fundada em factos que se reportam aos anos de 2003 a 2005 – cfr. processos 200/04.... e 200/04.... – colide com os referidos princípios, ao determinar uma pena superior a cinco anos e que, nessa medida, bem se sabe, acarreta a preclusão do benefício da suspensão da sua execução, sem que o comportamento ulterior do arguido o justifique minimamente. LL) Cabia ao Tribunal a quo adequar as sanções aplicáveis à situação concreta do Recorrente, tendo em consideração uma correcta avaliação global dos factos e da personalidade deste e as exigências de prevenção geral e especial, pelo que, ao não tê-lo feito, violou a decisão recorrida os princípios da proporcionalidade e da necessidade das penas. MM) Considerou o Tribunal a quo que “(…) apesar do tempo decorrido desde a data dos factos que aqui assume pouca relevância considerando que tal deve ser ao percurso processual dos autos (…)”, NN) Ora, salvo o devido respeito, não se poderia discordar mais, já que o tempo decorrido desde os factos por cuja prática o Recorrente foi condenado apresenta toda a importância, até porque permite aferir se o Recorrente reincidiu na prática daqueles crimes ou de outros, se se encontra inserido social e profissionalmente, qual o seu histórico familiar, etc, tudo isto ao longo de dezoito anos. OO) Se entre a data dos factos por cuja prática o agente foi condenado, já decorreram mais de 18 anos – como é o caso que nos ocupa – esse é um lapso temporal que apresenta a maior importância num julgamento de cúmulo jurídico, já que contribuirá, também, para a apreciação daquela que se tem por necessidade de prevenção geral e especial, entre tantos outros parâmetros a considerar neste tipo de decisão (cfr. artigo 71.º, 77.º e 78.º, do CP). PP) A pena única de 5 anos e 6 meses mostra-se inadequada e desproporcionada, sendo mais adequada e proporcional a pena única de 5 anos, suspensa na sua execução por igual período e, caso assim se entenda, condicionada ao pagamento ao Estado de montante que se mostre adequado, considerando as condições económico – financeiras do Recorrente, de acordo com o «princípio da possibilidade». QQ) Salvo o devido respeito, não se alcança como possa o Tribunal a quo ter decidido que, no caso, “Entende-se, pois, que as exigências de prevenção especial são elevadas”, quando toda a factualidade naquele Acórdão aponta exactamente em sentido contrário. RR) Os factos a que se reportam as penas parcelares remontam aos anos de 2003/2005, ou seja, trata-se de factos praticados há, pelo menos, 18 (dezoito) anos, SS) Sendo que, o Recorrente não só não reincidiu na prática daqueles crimes, como não praticou outros, cfr. ponto 32 da matéria de facto dada como provada: “O arguido não tem averbadas no seu certificado de registo criminal outras condenações”, TT) Como trabalha até hoje na mesma área, como resulta do ponto 12 da matéria de facto dada como provada, quando ali se estabelece que “Desde há cerca de duas décadas, AA detém as empresas R S..., Lda. e R..., SA, que se dedicam ao comércio de produtos petrolíferos.” Mais, UU) Na sequência das penas parcelares, agora objecto de cúmulo jurídico, o Recorrente entregou praticamente € 110.000,00 (cento e dez mil euros), por forma a cumprir as injunções que lhe foram aplicadas, cfr. ponto 31 da matéria de facto dada como provada: “No âmbito da execução da pena aplicada no processo 200/04...., o arguido procedeu à entrega do valor de 109.407,86€.” VV) É possível supor que a pena de 5 anos e 6 meses apurada pelo Tribunal a quo, resultou de mera operação aritmética, em que se somou a pena parcelar mais elevada com 1/3 das duas restantes penas, de acordo com o princípio da exasperação. WW) A utilização daquela fórmula matemática viola, em nosso entender, a CRP, porquanto resulta de uma interpretação do artigo 77.º, do CP, contrária à CRP, em evidente violação, entre outros, do princípio da proporcionalidade. XX) Os princípios ínsitos no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, ou seja, os princípios da necessidade da pena e da proporcionalidade ou da proibição do excesso, resultam aqui violados. YY) A determinação da medida concreta da pena conjunta resulta dos critérios previstos no artigo 77.º, do CP, alheios a qualquer critério matemático. Vide acórdão do STJ, proferido em 27 de Janeiro de 2022, no âmbito do processo n.º 129/13.5TASEI.C1.S1. ZZ) O critério legal imposto ao julgador, no cúmulo jurídico, é aquele que encontra previsão no art.º 77º do CP. AAA) Assim, também por esta via, o acórdão recorrido padece de erro de Julgamento de Direito, por violação das disposições conjugadas dos artigos 71.º, 77.º e 78, do CP. BBB) Verifica-se, in casu, a inconstitucionalidade do artigo 77.º, do CP, na interpretação feita e aplicada pelo Tribunal a quo, no sentido de que o cúmulo jurídico obedece a mero cálculo aritmético, na medida em que se trata de uma norma que tem incidência directa na liberdade do Arguido, contendendo directamente com direitos, liberdades e garantias, pelo que a sua interpretação e aplicação está submetida aos princípios da tipicidade e da legalidade, previstos no artigo 29.º, da CRP e aos deveres de fundamentação previstos no art. 205.º, do mesmo Diploma. CCC) A interpretação, do artigo 77.º, do CP, feita pelo Tribunal a quo mostra-se inconstitucional por violação dos artigos 18.º, 20.º, 29.º, 30.º e 205.º, da CRP, na medida em que excede os critérios estabelecidos pelo legislador penal. DDD) Por todo o exposto, deve o acórdão recorrido ser declarado nulo, nos termos já aqui melhor identificados supra, ou, assim se não entendendo, deve aquela Decisão ser anulada e substituída por outra que faça uma correcta interpretação do Direito aplicável, designadamente, aplicando os descontos equitativos, previstos no artigo 81.º, do CP, a uma pena que, fixada de acordo com o princípio constitucional da proporcionalidade, não deverá exceder o limite temporal dos cinco anos, suspensa na sua execução por igual período de tempo e condicionada ao pagamento ao Estado de montante a fixar e que se mostre conforme às condições económico – financeiras do Recorrente, cfr. «princípio da possibilidade». III – Pedido: Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente, por provado e, em consequência, deve ser revogado o Acórdão que proferido em 30 de Janeiro de 2023 procedeu ao cúmulo jurídico, e substituído por outro que reduza a pena única a aplicar para período nunca superior a 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, e, assim se entendendo, sujeita à condição do pagamento ao Estado de montante a fixar, considerando a situação económico – financeira do Recorrente, tudo com as necessárias consequências legais.” O Ministério Público respondeu ao recurso, concluindo: “1. A determinação da pena do cúmulo exige um exame crítico de ponderação conjunta sobre a interligação entre os factos e a personalidade do condenado, de molde a valorar-se o ilícito global perpetrado, tendo-se ainda em conta as necessidades de prevenção geral e especial. 2. O julgamento do concurso de crimes constitui um novo julgamento destinado. 3. Do acórdão a quo consta quer a enumeração dos factos provados, quer a enumeração dessa matéria de facto, encontrando-se descrita toda a factualidade relevante para a valoração do ilícito global perpetrado pelo arguido. 4. Não é verdade que o Tribunal a quo não tenha efetuado uma avaliação da personalidade do arguido, aliás, no acórdão recorrido consta um exame crítico de ponderação conjunta sobre a interligação entre os factos e a personalidade do condenado 5. Não se está, assim, perante qualquer insuficiência de fundamentação de direito, uma vez que, o acórdão recorrido, na determinação da pena conjunta assegura a controlabilidade e a racionabilidade da medida da pena única de 5 anos e 6 meses imposta ao recorrente, não padecendo, por isso, de deficiente fundamentação. 6. O cúmulo deve incluir as penas de prisão suspensas na execução ainda não declaradas extintas pelo cumprimento. 7. A realização do cúmulo jurídico impõe a desconsideração de todas as penas substitutivas aplicadas nos crimes em concurso, atendendo-se unicamente às penas principais. 8. Apesar do arguido já ter cumprido parte da(s) pena(s) antes de aquela(s) ser(em) integrada(s) no cúmulo, certo é que este se encontrava sujeito ao cumprimento de injunções, que incumpriu, apenas tendo pago a quantia de € 109.407,86 quando já devia ter efetuado o pagamento de € 1.000.000,00. 9. A realidade é que as penas de prisão com execução suspensa parcialmente cumpridas, englobadas no acórdão cumulatório e aglutinadas na respetiva pena única, não implicaram um sacrifício para o arguido neste período temporal. 10. Nesta situação não seria equitativo aplicar qualquer desconto em função da suspensão. 11. Conforme consta do acórdão a quo, em termos de prevenção geral, para aferir da medida da pena, teve-se em conta que os crimes praticados pelo arguido são cada vez mais frequentes e que, por esse motivo, deve ser sublinhada, perante a sociedade, a validade da norma e do bem jurídico por ela protegido. 12. Já em termos de prevenção geral as exigências são elevadas, atento o incumprimento parcial das obrigações que ficaram subordinadas as suspensões das penas, apesar do arguido saber desde há muito da instauração dos autos, de manter a mesma atividade lucrativa por via da qual se apropriou das quantias do Estado e de ser proprietário societário e predial. 13. Quanto à medida da pena concretamente determinada, o Tribunal a quo não violou qualquer dos critérios previstos nos artigos 40.º, 70.º e 71.º, do Código Penal, na medida em que aplicou ao Recorrente a pena que considerou ajustada em função da culpa do mesmo e das exigências de prevenção, geral e especial, que o caso invoca (devidamente explanadas no acórdão recorrido) – in casu, pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão. 14. Entendemos, pelo exposto, não merecer a decisão “a quo”, agora posta em crise, qualquer censura, devendo o recurso improceder na totalidade.” Aquando da prolação do despacho de admissão do recurso interposto pelo arguido, o tribunal a quo proferiu nova decisão, da qual o arguido veio interpor novo recurso, concluindo desta feita: “A) Na motivação do recurso deduzido, em Fevereiro de 2023, relativamente ao acórdão proferido sobre o cúmulo jurídico, o Recorrente alegou (e, entende, demonstrou) nulidades que enfermam aquele acórdão, porquanto o mesmo padece de nulidade: (i) Por falta de fundamentação relevante para a determinação da pena única fixada, conforme prevista nas disposições conjugadas do n.º 2, do artigo 374.º e alínea a), do n.º 1, do artigo 379.º, ambos do CPP; (ii) Por omissão de pronúncia, acerca dos descontos equitativos, nos termos e para os efeitos previstos nas disposições conjugadas do artigo 81.º do Código Penal (CP) e artigo 379.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2, do CPP. B) O Tribunal a quo proferiu despacho, nos termos do artigo 414.º, n.º 4, do CPP, que se tem por “de sustentação” relativamente à primeira das nulidades (alínea i) supra)) e de reparação, considera-se, no que respeita à segunda nulidade invocada (alínea ii) supra)). C) Salvo o devido respeito, o despacho não é muito claro ou evidente no que se refere ao pretendido efeito “reparador”, muito embora e tanto quanto dali se extrai permita concluir que se trata, efectivamente, de reparação do acórdão. Se a respeito desta segunda nulidade se pode ler na decisão sub judice que “inexiste qualquer omissão de pronúncia na medida em que se entende que não há lugar à operação de desconto das penas suspensas em que o arguido foi condenado”, não é menos certo que se pode ler na parte final desse mesmo despacho “(…) que, fica, assim, suprida a eventual omissão de pronúncia que se encontrasse verificada”. D) No despacho recorrido o Tribunal a quo extravasou os termos prescritos na lei para o designado despacho de sustentação e/ou reparação (cfr. previsto no artigo 414.º, n.º 4, do CPP). E) O Tribunal a quo violou o princípio do esgotamento do poder jurisdicional, incorrendo em evidente excesso de pronúncia, o que determina a invalidade do despacho recorrido, nos termos do n.º 1, do artigo 122.º, do CPP. (vide acórdão proferido pelo STJ, em 25 de Junho de 2009, no âmbito do processo n.º 537/03.0PBVRL) F) O despacho de sustentação/reparação não se destina a produzir uma nova fundamentação sobre temas relativamente aos quais se verifica, inclusive, omissão de pronúncia no acórdão recorrido, como se entende, ocorreu no caso sob apreciação. G) O despacho de sustentação/reparação não consubstancia uma nova oportunidade para o Tribunal a quo acrescentar nova fundamentação à decisão. (Cfr. acórdão proferido pelo TRL, em 07/09/1998, no processo n.º 0035241) H) O Tribunal a quo pronunciou-se, pela primeira vez relativamente aos descontos equitativos, fundamentou e decidiu não serem aplicáveis, tudo em sede do despacho de sustentação/reparação. I) Salvo o devido respeito, o regime previsto nas disposições conjugadas do artigo 379.º, n.º 2 e artigo 414.º, n.º 4, do CPP, não consubstancia uma “carta em branco” para alterar a decisão sob recurso, por forma a “esvaziar” o recurso interposto, fundamentando a decisão recorrida a posteriori à medida do que foi alegado em sede recursiva. J) O despacho recorrido introduziu a apreciação de questões jurídicas novas, que não foram objecto de qualquer apreciação em sede da decisão recorrida, como o seja a matéria dos descontos a efectuar à pena. K) Salvo o devido respeito (como sempre), uma coisa é suprir uma deficiente fundamentação da decisão sob recurso, outra que se tem por diferente, é introduzir decisão completamente nova, no caso sobre os descontos a efectuar à pena. L) O despacho de reparação/sustentação não se destina, nem permite, produzir uma nova decisão. M) Nos casos em que as nulidades sejam arguidas em sede de recurso, apenas o Tribunal superior pode conhecer das mesmas (cfr. artigo 379.º, n.º 2, do CPP). N) No despacho sub judice, o Tribunal a quo decidiu que “(…) não deveria haver lugar a qualquer desconto por não se verificar o cumprimento das obrigações das penas suspensas e não serem procedentes as razões de tal falta, caso o tal fosse admissível”. O) Ora, também esta é uma apreciação que não pode ser feita num despacho de reparação, mas outrossim, apenas e tão só no acórdão que decidiu sobre o cúmulo jurídico. P) Não só se trata de matéria nova (já que não foi sujeita a qualquer aferição em sede do acórdão recorrido), como do mesmo modo, coloca o Recorrente numa posição de evidente desvantagem/desigualdade processual, porquanto não teve oportunidade de se pronunciar sobre tal entendimento em sede do recurso deduzido. Q) A situação é tanto mais enfática, quando, em momento anterior, aquele mesmo Tribunal a quo tinha decidido a esse mesmo respeito em sentido diametralmente oposto, como resulta evidente do despacho proferido em 06 de Janeiro de 2022, quando ali se entendeu que “(…) não há lugar a incidente de incumprimento da pena aplicada nos termos do artigo 55º do Código Penal em virtude do não cumprimento da entrega de valores monetários determinados no Acórdão por se afigurar que o arguido não dispõe de meios económicos para o fazer (….)”. (Cfr. Doc. n.º 1) R) Por toda esta ordem de razões, o Recorrente considera que resulta prejudicada a apreciação da nova argumentação e decisão expendida no despacho de sustentação/reparação, mantendo e reiterando o já alegado e (entende) demonstrado em sede do recurso por si deduzido relativamente ao acórdão do cúmulo jurídico.” O Ministério Público respondeu ao segundo recurso, remetendo para a resposta apresentada ao recurso anterior (recurso do acórdão cumulatório). Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu desenvolvido parecer, concluindo: “O recurso de 21.04.2023 (despacho de 10.03.2023), na parte em que impugna a “sustentação da decisão”, é legalmente inadmissível, por falta de decisão impugnável; É nulo o despacho em causa, por “reparar” o Acórdão recorrido, conhecendo da arguida (em recurso) nulidade de omissão de pronúncia (desconto equitativo), sendo que, declarada a nulidade, deverá, com todo o respeito, por opinião contrária, o vício em causa ser suprido neste Alto Tribunal, com decisão pela não aplicação do desconto. A medida da pena única foi fundamentada com suficiência; A pena única é justa e criteriosa; Não se revelaria justificada a suspensão da execução da pena de prisão objecto da condenação, Motivo por que o Ministério Público dá Parecer que: - Deve ser rejeitado o recurso de 21.04.2023, na parte em que impugna a “sustentação da decisão” (despacho de 10.03.2023); - Deve ser declarado nulo o despacho de 10.03.2023, devendo o vício de omissão de pronúncia ali conhecido ser suprido neste Alto Tribunal, com decisão pela não aplicação do “desconto equitativo”. - Deve o presente recurso ser julgado improcedente, sendo de manter os termos da decisão recorrida.” O arguido respondeu ao parecer, reiterando as razões dos recursos e acrescentando, designadamente: “(…) o despacho de sustentação/reparação consubstancia, necessariamente, uma decisão e que, nessa qualidade, se encontra sujeita ao escrutínio do recurso, por Tribunal Superior. (…) tratamos do cúmulo jurídico de crimes praticados há cerca de vinte anos, 18. Facto que, naturalmente, releva quando se trata de apreciar as exigências da prevenção especial e geral. 19. Sendo de realçar que, ao contrário do que parece resultar do parecer do MP, os crimes não foram cometidos em benefício (próprio) do Recorrente, mas outrossim da sociedade comercial Arguida nos autos. (…) o Recorrente não dispunha de outros meios senão aqueles que empregou para cumprir com as injunções que lhe foram impostas. 32. Sendo que, relativamente a uma das injunções foi cumprida na íntegra, porquanto, dentro do prazo fixado pelo Tribunal a quo, o Recorrente pagou 24.000,00 € (vinte e quatro mil euros), devidos ao Estado a título indemnizatório, 33. Os 24.000,00 € (vinte e quatro mil euros) foram pagos recentemente em 20 de Março de 2023. 34. O Recorrente cumpriu, pois, com o prazo judicialmente fixado, no processo 200/04..... (Cfr. Doc. n.º 2) 35. Assim sendo, como estamos em crer o é, não assiste razão ao MP quando refere que "O arguido praticamente não cumpriu as condições impostas para a anterior suspensão da execução das penas de prisão, embora releve dispor de rendimentos e património para o efeito". 36. Por todo o exposto, entende o Recorrente que o alegado e demonstrado no seu recurso não resulta prejudicado pela argumentação expendida no parecer do MP, razão, também, pela qual deve ser apreciado e proceder o recurso interposto. .” O processo foi aos vistos e teve lugar a conferência. 1.2. O acórdão recorrido, na parte que ora releva, tem o seguinte teor: “Factos provados 1. Por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 09.06.2020, transitado em julgado em 05.11.2020, no processo nº200/04...., do Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., foi decidido: i. Condenar o arguido pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal do artigo 105°, nos 2 e 4 do RGIT, na pena de 3 anos de prisão; ii. Condenar o arguido pela prática de um crime de branqueamento de capitais do artigo 368º-A, nºs 2 e 10 do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão; iii. Condenar o arguido, em cúmulo jurídico, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão. iv. Suspender a execução da pena pelo mesmo período de tempo – 4 anos e 6 meses – nos termos do art. 50.º n.°s 1 e 5 do Código Penal. v. Subordinar a suspensão de execução da pena, pelo mesmo período de tempo (4 anos e 6 meses), ao pagamento da quantia, ao Estado, no valor de 2.500.000,00€, faseadamente, em prestações, no valor cada uma de 500.000,00€, cuja primeira vence-se 12 meses após o trânsito em julgado da decisão e as subsequentes, respetivamente, aos 24, 36, 48 e, a última, aos, 54 meses (500.000,00 X 5 = 2.500.000,00€). Nestes autos resultou apurado, além do mais, que: “A sociedade arguida “T..., Lda.” foi constituída no dia 2 de Julho de 1998 pelos arguidos AA e BB, casados entre si e tinha a sua sede no Lugar ..., freguesia ..., concelho .... 2. A sociedade arguida teve como actividade até 19 de Dezembro de 2001 a de transportes de carga e produtos inflamáveis, passando a partir desta data a exercer a de transportes rodoviários de mercadorias por conta de outrem, comércio de combustíveis e lubrificantes, serviços conexos e aluguer de veículos pesados de mercadorias sem condutor. 3. Quando a sociedade foi constituída, foram nomeados como gerentes os dois sócios e aqui arguidos, AA e BB, bem como, o não sócio, CC, ficando ainda consignado no pacto social que a sociedade se obrigava com a assinatura conjunta de dois gerentes, sendo sempre obrigatória a do gerente e aqui arguido, AA. 4. Por escritura pública realizada em 13 de Julho de 2004 no ... Cartório Notarial ..., a arguida BB declarou renunciar à gerência. 5. Nessa mesma escritura foi nomeado gerente da sociedade DD, tendo ficado estipulado que a sociedade se obrigava pela assinatura de um gerente. 6. Na certidão de matrícula da sociedade arguida consta que o arguido AA renunciou à gerência em 8 de Julho de 2004. 7. No entanto, nos anos de 2003, 2004 e 2005, o arguido AA exerceu efectivamente e de facto, no dia a dia, as funções de gerente da sociedade arguida, mesmo após ter formalmente renunciado à mesma. 8. Assim, nos períodos considerados, como gerente que era, o arguido AA, administrava e representava a sociedade, nomeadamente, negociando e vendendo os serviços produzidos aos clientes, pagando os impostos da “T..., Lda..” ao Estado, o preço dos bens e serviços adquiridos por aquela aos respectivos fornecedores e entregando às Finanças as declarações de rendimentos da empresa para efeitos de IRC, bem como aos serviços do IVA, as declarações periódicas deste imposto. 9. Nos períodos supra mencionados, pelo exercício da referida actividade, a sociedade estava colectada na Repartição de Finanças ..., em Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (I.R.C.), no regime geral de tributação, e em Imposto Sobre o Valor Acrescentado (I.V.A.), no regime normal de periodicidade trimestral até 31 de Dezembro de 2004 e mensal, a partir 1 de Janeiro de 2005, pelo que estava obrigada a entregar ao Estado a declaração anual de rendimentos para efeitos de I.R.C. e as declarações trimestrais/mensais para efeitos de IVA, acompanhadas dos respectivos meios de pagamento do imposto apurado. 10. Pelos serviços que produzia no exercício da sua actividade económica, a primeira arguida e o arguido AA, actuando em nome e no interesse da primeira, estava obrigado a entregar aos serviços do IVA, trimestralmente, até ao dia 15 do segundo mês seguinte àquele a que respeitavam as operações (até 31 de Dezembro de 2004) e mensalmente, até ao dia 10 do segundo mês seguinte àquele a que respeitavam as operações (a partir de 1 de Janeiro de 2005), as declarações periódicas deste imposto. 11. Em cada declaração, fazia, desde logo, constar, o valor em dinheiro das vendas dos serviços produzidos pela sociedade aos seus vários clientes no trimestre ou mês, que era obtido pela soma dos valores titulados em cada factura, ou documento equivalente que a sociedade era obrigada a emitir sempre que vendia um bem. 12. Na declaração, constava, ainda, o valor do IVA que nesse trimestre ou mês a sociedade tinha liquidado aos seus clientes, resultante da soma do IVA constante de cada factura ou documento equivalente emitidos e que incidia sobre o valor de cada serviço vendido. 13. Juntamente com essas declarações trimestrais/mensais, a primeira arguida e o arguido AA, em nome e no interesse daquela estava ainda obrigado a enviar aos Serviços do I.V.A., o valor desse I.V.A. que estava obrigado a liquidar e que liquidava e recebia dos seus clientes sempre que vendia os serviços por si produzidos, depois de efectuado o apuramento a que se referem os arts. 19.º a 25.º e 71.º, do C.I.V.A., isto é, depois de deduzido ao IVA liquidado, o IVA dedutível. 14. Acontece, todavia, que relativamente à actividade desenvolvida no quarto trimestre de 2003, primeiro, segundo, terceiro e quarto trimestres de 2004 e nos meses de Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2005, a primeira arguida e o arguido AA, em nome e no interesse da primeira, vendeu serviços por si produzidos aos clientes da sociedade, emitiu as correspondentes facturas onde liquidou IVA que recebeu desses mesmos clientes, nesses períodos. 15. No entanto, embora nos períodos mencionados tivesse remetido aos serviços do IVA as declarações trimestrais/mensais deste imposto, não as fez acompanhar dos valores do IVA recebido e apurado, que estava obrigado a entregar ao Estado. 16. Assim, não entregou ao Estado, como devia, as seguintes quantias em dinheiro liquidadas e recebidas dos seus clientes, relativas aos períodos que igualmente se elencam: (…) 17. O arguido não entregou trimestral/mensalmente ao Estado as quantias de IVA supra mencionadas, não o tendo feito até aos dias quinze/dez do segundo mês seguinte àquele a que respeitavam as operações, nem nos 90 dias seguintes. 18. Foi cada um dos referidos montantes, num total de € 9.699.909,38, que a primeira arguida e o arguido AA, em nome e no interesse da primeira, efectivamente recebeu dos clientes da sociedade e deles se apropriou em proveito da mesma, não obstante saber que se tratavam de dívidas de IVA e que estava obrigado por lei a entregar essas quantias ao Estado. 19. Os arguidos foram notificados para procederem ao pagamento das quantias supra descriminadas, acrescidas de juros e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias, mas findo tal prazo, não pagou. 20. Em data anterior a 15.11.2006 o arguido procedeu ao pagamento do montante de imposto liquidado respeitante ao 4º trimestre de 2003. 21. Os arguidos agiram com a intenção de obter uma vantagem patrimonial indevida, bem sabendo que desse modo diminuíam, como diminuíram, as receitas fiscais do Estado nos montantes mencionados, num total de €9.699.909,38. 22. Agiram livre, deliberada e conscientemente, o arguido AA, sempre como gerente, no interesse e em nome da sociedade, a primeira arguida, bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei. 23. Em 13 de Julho de 2004, DD, outorgou um contrato de “cessão de quota, nomeação de gerente e alteração do pacto social” da sociedade T... no Cartório Notarial .... 24. Em 3 de Maio de 2005, DD, esteve presente no Cartório Notarial ..., para outorga de um contrato de “cessão de quota” da sociedade T..., em que era cessionário e os arguidos cedentes, a qual não se realizou por falta de acordo. 25. DD intentou contra os arguidos uma acção judicial que correu termos pelo ... juízo cível do Tribunal Judicial ... sob o nº5487/06...., onde se discutiu a cessão de quotas da T.... Do processo 371/06.... 26. A sociedade “T... LDA” foi constituída em 1998 pelos arguidos AA e BB, tendo sede no Lugar ..., em ..., .... 27. Por escritura de alteração parcial do contrato realizada em 14/07/2005, a sede social da T..., Lda. passou a ser Rua Professor ..., nº 99 B / Rua Professor .., nº 185, Edifício ..., Loja 3, Fração C, em .... 28. A sociedade arguida teve como objeto social, até 19 de Dezembro de 2001, a atividade de transportes de carga e produtos inflamáveis – dedicando-se ao transporte de combustíveis para os clientes da empresa dos pais do primeiro arguido, AA e EE, R..., C..., Lda., sociedade com o NIPC ..., que tinha como atividade a venda a retalho e por grosso de combustíveis. 29. A partir dessa data passou a exercer a atividade de transportes rodoviários de mercadorias, comércio de combustíveis e lubrificantes, serviços conexos e aluguer de veículos pesados de mercadorias sem condutor. 30. Quando a sociedade foi constituída foram nomeados como gerentes os dois sócios e aqui arguidos, AA e BB, bem como CC, ficando ainda consignado no pacto social que a sociedade se obrigava com a assinatura conjunta de dois gerentes, sendo sempre obrigatória a do gerente AA. 31. Por escritura pública realizada em 13 de Julho de 2004 no ... Cartório Notarial ..., a arguida BB declarou renunciar à gerência. Nessa mesma escritura foi nomeado gerente da sociedade DD, tendo ficado estipulado que a sociedade se obrigava pela assinatura de um gerente. 32. Da certidão de matrícula da sociedade arguida consta que o arguido AA renunciou à gerência em 8 de Julho de 2004. 33. Não obstante, foi o arguido AA quem, nos anos de 2003 a 2006, exerceu efectivamente e de facto as funções de gerência da sociedade arguida, mesmo após ter formalmente renunciado à mesma. 34. Ou seja, desde a sua constituição, foi o arguido, que sempre geriu de facto a referida sociedade, celebrando contratos, dando ordens e instruções aos trabalhadores e efectuando pagamentos, sendo quem detinha, de facto, desde essa data, todos os poderes de representação da mesma. 35. A sociedade “RS..., LDA” foi constituída em 2003 pelos arguidos AA e BB, tendo o seu contrato sido registado na Conservatória do Registo Comercial ... no dia 26/09/2003. 36. O seu objeto social consistia na realização de transportes rodoviários de mercadorias por conta de outrem, o comércio de combustíveis, o comércio de lubrificantes, assim como serviços conexos e bem assim o aluguer de veículos pesados de mercadorias sem condutor, tendo sede na Rua ..., no .... 37. O capital social de 250.000,00 foi dividido em duas quotas, de 125.000,00 € cada uma, uma pertencente a AA, e outra pertencente a BB, tendo ambos sido nomeados gerentes. 38. Cargo que, a partir 01/09/2005, passaram a partilhar com CC (não sócio), que por Escritura Pública lavrada no Cartório Notarial ..., sito na Rua Jornal ..., nº 5, em ..., foi designado como gerente, passando a forma de obrigar a sociedade a ser através da assinatura de dois gerentes. 39. Não obstante tal alteração social, foi o arguido AA, quem, nos anos de 2003 a 2006, sempre exerceu efetivamente as funções de gerência da sociedade RS.... 40. Ou seja, desde a sua constituição, foi o arguido, que sempre geriu de facto a referida sociedade, celebrando contratos, dando ordens e instruções aos trabalhadores e efetuando pagamentos, sendo quem detinha, desde essa data, todos os poderes de representação da mesma. 41. A sociedade “R..., LDA”, doravante R..., Lda., foi constituída 21/06/1991, encontrando-se registada na Conservatória do Registo Comercial ... desde essa data, tendo por objeto social o comércio a retalho de combustíveis, lubrificantes, estação de serviço, lavagem de automóveis e snack-bar. 42. O capital social de 1.000.000$00 encontrava-se dividido em duas quotas de 500.000$00, uma pertencente a AA e a outra pertencente a EE, pais do arguido AA, tendo ambos sido nomeados gerentes. 43. Em 11/12/1995 foi averbado um aumento do capital social para 50.000.000$00, o qual foi redenominado para euros em 28/12/2004 (249.398,94 €), ficando cada um dos sócios com uma quota de 124.699,47 €. 44. Em 04/06/2001 foi designado como gerente o arguido AA, sendo este quem, desde essa data, a passou a gerir de facto e de direito, nos exatos moldes em que o fazia em relação à T... e RS.... 45. Era o arguido AA que, pelo menos entre 2002 a 2006, decidiu de facto os destinos das três referidas sociedade. 46. Em Março de 2002, fruto da obtenção do Estatuto de Operador Registado no Âmbito dos Óleos Minerais na Alfândega de ..., previsto no artigo 28º do Código dos Impostos Especiais sobre o Consumo, a T... passou a comercializar em Portugal combustível adquirido em .... 47. O combustível adquirido pela T... aos fornecedores espanhóis, na qualidade de Operador Registado, beneficiava da isenção prevista no artigo 15º do Regime das Transmissões Intracomunitárias de Bens (RITI), não incluindo IVA no preço de custo, tributo que devia ser liquidado pela empresa no território nacional. 48. A partir do 3.º trimestre do ano de 2003 a sociedade T... deixou de cumprir com a entrega nos cofres das Finanças do IVA liquidado aos clientes, apesar de entregar, trimestralmente até ao final de 2004 e mensalmente no decurso do ano de 2005, as declarações referentes a autoliquidação desse tributo. 49. No triénio 2003-2005, os arguidos não entregaram ao Estado, conforme lhes competia, as quantias de IVA referentes à quase totalidade daquele imposto liquidado nas vendas, que se destinaram exclusivamente ao mercado nacional, apropriando-se de tais montantes, que ascenderam a pelo menos € 9.699.909,38. 50. A partir Janeiro de 2006 deixaram de cumprir a obrigação de declaração, o que originou que a Administração Fiscal procedesse à liquidação oficiosa do imposto para os meses de Janeiro e Fevereiro de 2006, apurando-se um montante em dívida que ascendia a 227.871,95 € (duzentos e vinte e sete mil, oitocentos e setenta e um euros e noventa e cinco cêntimos). 51. Atentos os valores de que se apropriaram, em data não concretamente apurada mas a partir de 2003, pouco depois do início de tais condutas apropriativas, os arguidos tiveram necessidade de urdir um plano que lhes permitisse dissimular a origem de tais (elevados) montantes de IVA não entregues ao Estado, ao mesmo tempo que lhes permitisse continuar a apropriar-se do IVA liquidado pelos clientes. 52. A execução conjunta desses propósitos passava por, acima de tudo, manter a T... no mercado enquanto revendedora de combustível, vendendo a baixo custo às sociedades R... e RS..., aproveitando-se do facto de aquela beneficiar, nas aquisições, da isenção prevista no artigo 15º do RITI, mesmo que o preço de revenda praticado implicasse a obtenção de resultados contabilísticos negativos por parte da T... – como veio a ocorrer do modo que se passará a descrever. 53. Até Julho de 2003, a sociedade T... apenas vendeu combustível à R..., Lda., sociedade essa que, por sua vez, procedeu à revenda do combustível a retalhistas (na sua maioria hipermercados) e a consumidores finais através dos postos de abastecimento que explorava, um em ... e outro em .... 54. No período compreendido entre Agosto de 2003 e Dezembro de 2004, a sociedade T... passou a vender diretamente aos retalhistas, prescindindo da intermediação da sociedade R..., Lda., continuando, contudo, a vender combustível a essa sociedade, que o revendia aos consumidores finais no posto que explorava em .... 55. A partir de Outubro de 2003, passou a vender também à sociedade RS..., que passou a partir dessa altura a explorar o posto de ... que era, até então, explorado pela sociedade R..., Lda. 56. A partir de Janeiro de 2005 e até ao cancelamento do Estatuto de Operador Registado no Âmbito dos Óleos Minerais, que ocorreu em Fevereiro de 2006, a sociedade T... passou a facturar a quase totalidade do combustível à sociedade RS..., Lda., que, por seu turno, o passou a revender, com margens de comercialização muito baixas, aos retalhistas (Hipermercados – Bombas de “linha branca”), com excepção do que vendia aos consumidores finais no referido posto de .... 57. A sociedade T... praticou margens brutas de comercialização de 2,64%, 3,18% e 2,20% nos exercícios de 2003, 2004 e 2005, respetivamente, margens muito reduzidas quando comparadas com o valor de 6,94% indicado pela Direcção-Geral dos Impostos enquanto valor médio apurado para o exercício de 2006 das empresas com o CAE 46711 – Comércio por Grosso de Produtos Petrolíferos. 58. Fruto das referidas margens de comercialização, a sociedade T... apurou resultados negativos, nos montantes de 397.159,65 €, 393.323,89 € e 138.493,54 nos exercícios de 2002, 2003 e 2004, respetivamente, não se tendo verificado o apuramento de Resultados para 2005 uma vez que o exercício não foi encerrado. 59. Assim, parte do IVA liquidado e não entregue nos cofres do Estado, num valor não concretamente determinado mas pelo menos equivalente aos referidos montantes (€ 397.159,65, € 393.323,89 e € 138.493,54), foi convertido nos resultados negativos averbados de 2002 a 2004. 60. Durante 2003 a 2005, o arguido fez relevar contabilisticamente o relacionamento da sociedade T... com os sócios na conta de sócio ... – AA. 61. Durante o referido período de tempo o arguido, sempre na execução daquele propósito de dissimular a origem dos montantes provindos do IVA liquidado, que não entregou ao Estado, procedeu a inúmeras operações de transferência das contas da sociedade para a referida conta de sócio titulada por AA. 62. Do cruzamento dos registos contabilísticos da sociedade com os movimentos bancários realizados – sendo apenas considerados os movimentos de montante superior a € 15.000,00 -, apurou-se a realização de um conjunto de movimentos, que se encontram explanados nos Mapas Anexos nº XVIII, XIX e XX do relatório pericial, referentes aos anos de 2003, 2004 e 2005, respetivamente, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido. 63. De acordo com o extrato da conta de sócio ... – AA relativo ao ano de 2003, constatou-se que a mesma apresentava um saldo de abertura devedor de 1.223.322,16€, ou seja, à data de 31/12/2002, o sócio era devedor dessa importância à sociedade T.... 64. No exercício de 2003, na conta 25511 – AA foram registados os movimentos seguintes: (…) Ou seja: 65. Ao longo do ano de 2003 foram relevados movimentos a débito (operações que elevam o montante em dívida por parte do sócio), no montante global de 2.044.375,54 €, repartido do seguinte modo: a) Depósitos de cheques emitidos por clientes da T..., Lda. e depositados em contas bancárias tituladas por AA: - 2 realizados na conta n.º ...16 do Banco 1..., no montante global de 36.345,37 €; - 2 realizados na conta n.º ...01 do Banco 2..., no montante global de 4.347,71 €; b) Depósito de Numerário, no valor de 1.289,36 €, entregue por um cliente da T..., Lda. e depositado na conta n.º ...16 do Banco 1..., titulada por AA; c) Pagamentos efetuados pela T..., Lda. por conta do sócio, no montante Operação Valor Saldo Inicial 1.223.322,16 Débitos Entregas efetuadas ao sócio de cheques emitidos/numerário entregue por clientes da T... 41.982,44 Pagamentos efetuados pela T... por conta do sócio 2.090,00 Despesas a suportar pela T... por conta do sócio relativas a Portagens 4.295,60 Transferências bancárias a débito da conta n.º ...78 s/Banco 1... a favor da conta n.º ...16 s/Banco 1... titulada por AA 1.746.007,50 Transferência bancária a débito da conta n.º ...78 s/Banco 1... a favor da conta n.º ...48 s/Banco 1..., titulada pela sociedade R S..., Lda. 250.000,00 Total Débitos 2.044.375,54 Créditos Entregas efetuadas por parte do sócio 150.572,57 Pagamentos efetuados pelo sócio por conta da T... 94.881,42 Transferências Bancárias a débito de contas tituladas por AA a favor de contas tituladas pela T... 578.938,53 Total Créditos 824.392,52 Saldo Final 2.443.305,18 global de 2.900,00€ por débito da conta da T... n.º ...78 do Banco 1...: d) Duas transferências bancárias, no valor global de 2.000,00 €; e) Cartão de crédito, no montante de 90,00 €; f) Contabilização de despesas a suportar pela T..., Lda. por conta do sócio relativas a portagens, no montante global de 4.295,60 €; g) Transferências bancárias a débito da conta n.º ...78 do Banco 1..., titulada pela T..., Lda., no montante global de 1.996.007,50 € a favor da conta n.º ...16 s/Banco 1..., titulada por AA, no montante global de 1.746.007,50 € (montante que inclui o valor de 7,50 € relativo a comissões bancárias); h) Uma a favor da conta n.º ...48 s/Banco 1..., titulada pela sociedade R S..., Lda., realizada no dia 18/08/2003, no montante de 250.000,00 € (movimento correspondente à realização do capital social da sociedade R S..., Lda., sendo que, no dia seguinte, foi realizada sobre essa conta uma transferência a débito de igual montante a favor da conta n.º ...16 s/Banco 1...). 66. Por sua vez, no decurso do ano de 2003 foram relevados movimentos a crédito (operações que diminuem o montante em dívida por parte do sócio), no montante global de 824.392,52 €. 67. Assim, em face dos movimentos referidos, à data de 31/12/2003, a conta de sócio 25511 – AA apresentava um saldo devedor de 2.443.305,18 €. 68. No exercício de 2004, na conta 25511 – AA foram registados os movimentos seguintes: Ou seja: 69. No ano de 2004 foram relevados movimentos a débito (operações que elevam o montante em dívida por parte do sócio), no montante global de 249.994,08 €, através dos seguintes movimentos: a) Entregas ao sócio AA de valores/numerário recebidos de clientes, no montante global de 45.568,00 €, sendo que, pelo menos, 44.568,00 € corresponderam a pagamentos efetuados pela sociedade R..., Lda. à T...; b) Pagamentos efetuados pela T... por conta do sócio, no montante global de 150.000,00€, correspondendo aos seguintes cheques: - Cheque n.º ...51,, no valor de 75.000,00 €, emitido ao portador e depositado em conta não identificada, domiciliada no BNC, sacado no dia 27/01/2004 sobre a conta n.º ...08 s/Banco 3..., titulada pela T..., Lda.; - Cheque n.º ...22,, no valor de 25.000,00 €, emitido ao portador e - depositado na conta n.º ...8, domiciliada no BNC, sacado no dia 18/02/2004 sobre a conta n.º ...08 s/Banco 3..., titulada pela T..., Lda.; Operação Valor Saldo Inicial 2.443.305,18 Débitos Entregas efetuadas ao sócio de cheques emitidos/numerário entregue por clientes da T... 45.568,00 Pagamentos efetuados pela T... por conta do sócio 150.000,00 Entrega ao Sócio (Cheque emitido s/conta n.º ...80 s/MG) 25.000,00 Transferências Bancárias a débito de contas tituladas pela T... a favor de contas tituladas por AA 18.841,74 Juros devedores pagos pela T... por conta de outrem 10.430,72 Despesa a suportar pela T... por conta do sócio 153,62 Total Débitos 249.994,08 Créditos Entregas efetuadas por parte do sócio (Numerário) 25.000,00 Pagamentos efetuados pelo sócio por conta da T... 1.443,00 Transferências Bancárias a débito de contas tituladas por AA a favor de contas tituladas pela T... 437.815,00 Total Créditos 464.258,00 Saldo Final 2.229.041,26 - Cheque n.º ...84,, no valor de 25.000,00 €, emitido ao portador e depositado na conta n.º ...8, domiciliada no BNC, sacado no dia 08/03/2004 sobre a conta n.º ...80 s/MG, titulada pela T..., Lda.; - Cheque n.º ...85,, no valor de 25.000,00 €, emitido ao portador e depositado em conta não identificada, domiciliada no BNC, sacado no dia 15/03/2004 sobre a conta n.º ...80 s/MG, titulada pela T..., Lda.; c) Foi entregue ao sócio o cheque n.º ...26,, no valor de 25.000,00 €, sacado no dia 05/05/2004 sobre a conta n.º ...80 do MG, titulada pela T..., Lda. e depositado na conta n.º ...16 s/Banco 1..., titulada por AA; d) Transferências bancárias a débito de contas tituladas pela T..., Lda., a favor de contas tituladas por AA, no montante global de 18.841,74 €: - Duas, no montante global de 3.840,24 €, a favor da conta n.º ...43 s/BNC, por débito da conta n.º ...91 s/BNC; - Uma, no montante de 15.001,50 € (montante que inclui o valor de 1,50 € relativo a comissões bancárias) a favor da conta n.º ...16 s/Banco 1..., por débito da conta n.º ...78 s/Banco 1...; e) Juros devedores debitados na conta bancária n.º ...91 s/BNC, no montante global de 10.430,72 €, que não eram da responsabilidade da T...; f) Contabilização de uma despesa a suportar pela T..., por conta do sócio, no valor de 153,62 € (valor relevado a crédito da conta de Fornecedores C/C ...04 - L... LDA). 70. Por sua vez, no mesmo exercício, foram relevados movimentos a crédito (operações que diminuem o montante em dívida por parte do sócio), no montante global de 464.258,00 €. Assim, em face dos movimentos referidos, à data de 31/12/2004, em face dos movimentos referidos nos parágrafos anteriores, a conta de sócio 25511 – AA apresentava um saldo devedor de 2.229.041,26 €. 71. No exercício de 2005, na conta 25.5.1.1 – AA foram relevados os movimentos apresentado no seguinte quadro: Ou seja: 72. Ao longo do ano de 2005 foram relevados movimentos a débito (operações que elevam o montante em dívida por parte do sócio), no montante global de 1.214,00 €, que corresponderam a: 1. Pagamentos efetuados pela T... por conta do sócio, relativos a: - Portagens, no montante global de 55,45 €; - Outros, no valor global de 15,95 €; 2. Contabilização de despesas a suportar pela T... por conta do sócio, no montante global de 1.142,60 €. 73. No decurso do ano de 2005 foram relevados movimentos a crédito (operações que diminuem o montante em dívida por parte do sócio), no montante global de 100.000,00€. 74. Assim, no final do exercício de 2005, a conta 25.5.1.1 – AA registava um saldo devedor no valor de 2.130.255,26 €. 75. Pela análise efetuada às contas bancárias tituladas quer pela T... quer por AA apurou-se, contudo, a existência de operações a debito e a crédito entre a sociedade T... e o sócio AA que não foram relevadas contabilisticamente na conta 25511 – AA. 76. Do cruzamento dos dados contabilísticos que se elencaram com os dados retirados dos extratos contas bancárias tituladas quer pela T... quer por AA, extrai-se, assim, a conclusão de que o valor final em dívida por parte do sócio seria reduzido de 2.130.255,26 € para 535.881,86 €, sendo este o valor no final do exercício de 2005 - valor que dessa forma foi convertido em vantagem patrimonial do sócio em relação à T.... 77. A sociedade T... foi fornecedora da R..., Lda., à qual vendia combustível pelo menos desde 2003 (vide ponto I. da acusação), e esta sociedade, por sua vez, procedia à revenda do combustível a retalhistas (na sua maioria hipermercados) e a consumidores finais através dos postos de abastecimento que explorava, um em ... e outro em ... (este ultimo até Outubro de 2003, data em que passou a ser explorado pela RS...). 78. De acordo com os registos relevados na sua contabilidade, a sociedade T..., Lda. teve, no período compreendido entre 01/01/2003 e 31/07/2003, como único cliente a sociedade R..., Lda. (com exceção da factura n.º ...27, emitida a favor da sociedade E.L...). 79. A faturação relacionada com a R..., Lda. era relevada a débito na conta corrente ...01 - R... Lda, a qual já apresentava, no início de 2003, um saldo devedor para com a T... de 802.143,85 €. 80. No ano de 2003, os valores registados no extrato contabilístico da conta ...01 - R... Lda, são passíveis de serem sintetizados do modo que se apresenta no quadro seguinte: Ou seja: 81. No final do exercício de 2003, a conta em análise apresentava um saldo devedor (à T...) de 1.113.525,81 €. 82. A partir dessa data, na contabilidade da sociedade T..., Lda. deixou de existir, no exercício de 2004 (e também no exercício de 2005), a discriminação dos movimentos contabilísticos por cliente, passando a ser usada uma única conta, denominada 21.1.1 - C/CORRENTES - MERCADO NACIONAL, onde passaram a ser registados todos os movimentos com os diversos clientes. 83. No extrato contabilístico da conta ...232 – T... LDA relativo ao ano de 2003 constavam os seguintes dados: 84. Conforme se constata da análise dos registos relativos a 2003 da contabilidade da sociedade R..., Lda. na conta Fornecedores C/C ... – T... LDA. e os registos da contabilidade da sociedade T... na conta de Clientes C/C ...001 - R... Lda, não há total coincidência dos movimentos: o valor em dívida à T... por parte da sociedade R..., Lda., relevado na sua contabilidade, no final do exercício de 2003, na conta de Fornecedores C/C ... – T... LDA, era de 1.000.797,63 €, enquanto que o valor evidenciado pela T..., Lda. na conta de Clientes C/C ...001 - R... Lda ascendia a 1.113.525,81 €. 85. A partir de 2003, deixou de existir na contabilidade da sociedade T..., Lda. a discriminação dos movimentos contabilísticos por cliente. 86. Assim sendo, tendo por base os registos contabilísticos relevados pela sociedade R..., Lda. na conta de Fornecedores C/C ... – T... LDA. no que concerne aos exercícios de 2004 e de 2005, sendo tal informação validada com outros elementos constantes dos autos, nomeadamente, listagens do programa informático de gestão comercial/faturação da sociedade T... e extratos bancários, foram apurados os seguintes dados. 87. As operações relevadas no ano de 2004, quer a débito da conta ...232 - T... LDA originaram que, no final desse exercício, a conta em análise apresentasse um saldo credor de 2.864.995,10 €. 88. Os valores registados, no ano de 2005, no extrato contabilístico da conta ...232 – T... LDA são passíveis de serem sintetizados da seguinte forma: Ou seja: 89. As operações relevadas no ano de 2005 a crédito e a débito da conta ...232 – T... LDA originaram que, no final desse exercício, a conta em análise apresentasse um saldo credor de 3.593.130,34 €. 90. No que respeita a 2006, pela análise do Balancete a 31/12/2006, constante de fls. 528 a 548 do Anexo 132-A do relatório pericial verificou-se que a conta de Fornecedores C/C ...823 – T... (conta renumerada, correspondente à ...232 – T... LDA), no final desse exercício, apresentava um saldo credor de 3.202.938,35 € – valor total da dívida da R... para com a T.... Assim: 91. No final dos exercícios 2003, 2004, 2005 e 2006, a dívida da R... para com a T... era de 1.000.797,63 € (considerando o valor relevado na contabilidade da R... na conta de Fornecedores C/C ...232 – T... LDA, não obstante o valor evidenciado pela T..., Lda. na conta de Clientes C/C ...001 - R... Lda ascender a 1.113.525,81 €) 2.864.995,10 €, 3.593.130,34 € e 3.202.938,35 €, respectivamente. 92. Pelo que, não obstante no final de 2002 a sociedade R... possuir para com a T... uma dívida que ascendia 724.422,57 €, esta continuou sempre a fornecer ininterruptamente nos anos seguintes, sem que nunca tenha encetado diligências para cobrar coercivamente, permitindo-se um aumento exponencial da dívida até final de 2006, data em que o valor ascendia a 3.202.938,35 €. 93. Apurou-se, então, que dos ganhos associados à apropriação do IVA por parte da T..., no montante da diferença entre 724.422,57€ e 3.202.938,35 €, parte foi canalizado por esta sociedade para a regularização da dívida que a R... tinha para com a sociedade Transportes .... 94. No período compreendido entre os exercícios de 2003 e 2005, a sociedade R..., Lda. evidenciou o seu envolvimento comercial com a sociedade TRANSPORTES ..., LDA., do ponto de vista contabilístico, nas seguintes contas: 1) Conta de Fornecedores C/C ...006 – TRANSPORTES..., LDA./ ...005 - TRANSPORTES ..., LDA; 2) Conta de Fornecedores Títulos a Pagar ...006 – Transportes ...; 3) Conta de Clientes C/C ...120 - TRANSPORTES ..., LDA. 95. Os saldos dessas contas evoluíram do modo que se apresenta no quadro seguinte: 96. No período compreendido entre o final do ano de 2002 e o final do ano de 2005, o balanço negativo que a sociedade R... registava para com a sociedade TRANSPORTES ..., LDA. foi reduzido exponencialmente, no montante global de 2.092.802,69 €. Com efeito: CONTA DE FORNECEDORES C/C ...006 – TRANSPORTES ..., LDA./...005 - TRANSPORTES ..., LDA. 97. Analisado o balancete da sociedade R..., Lda. à data de 31/12/2002 (constante de fls. 155 a 181 do Anexo 132-A, do relatório pericial, que se dá aqui por integralmente reproduzido), a sociedade R..., Lda. tinha uma dívida para com a sociedade TRANSPORTES ..., LDA. no montante de 5.779.814,57 €. 98. De acordo com o MAPA XXXVI do relatório pericial, no final do exercício de 2003 a conta de Fornecedores C/C ...006 – TRANSPORTES ..., LDA. apresentava um saldo credor de 5.008.318,58 €, o que significa que, nesse ano, o valor da dívida da sociedade R..., Lda. junto da sociedade TRANSPORTES ..., LDA. foi reduzido em 771.495,99 € face ao valor inicial. 99. De acordo com o mesmo MAPA XXXVI do mesmo relatório, no exercício de 2004, a dívida da sociedade R..., Lda. ao fornecedor TRANSPORTES ..., LDA., relevada a crédito da conta de Fornecedores C/C ...006 – TRANSPORTES ..., LDA., era, no final do ano de 2004, de apenas 122.308,58 €. 100. No exercício de 2005, a conta ...06 – TRANSPORTES ..., LDA. foi movimentada quer a débito quer a crédito pela importância de 571.741,80 €, pelo que, no final desse exercício, o saldo da mesma se manteve inalterado (credor na importância de 122.308,58 €). 101. De acordo com o Balancete reportado a Dezembro de 2006, constante de fls. 528 a 548 do Anexo 132-A do mesmo relatório, que se dá aqui por reproduzido, a conta do Fornecedor TRANSPORTES ..., LDA., entretanto redenominada de ...06 – TRANSPORTES ..., LDA. para ...005 - TRANSPORTES ..., LDA, não relevou qualquer movimento no decurso do ano de 2006, apresentando o mesmo saldo credor de 122.308,58 €. CONTA DE FORNECEDORES TÍTULOS A PAGAR ...006 – Transportes .../ ...01 - Transportes ... 102. No final do exercício de 2004, o valor em dívida relevado a crédito da conta ...006 – Transportes ..., ascendia a 4.288.063,50 €. 103. No exercício de 2005, a conta em análise apenas relevou movimentos a débito, no valor global de 571.741,80 €, referentes à transferência da dívida para a conta de Fornecedores C/C ...006 – TRANSPORTES ..., LDA., fazendo com que o montante em dívida por parte da sociedade R..., Lda. junto da sociedade TRANSPORTES ..., LDA., relevado na conta ...006 – Transportes ..., fosse reduzido para 3.716.321,70 €. 104. De acordo com o Balancete reportado a Dezembro de 2006, constante de fls. 528 a 548 do Anexo 132-A do relatório pericial, a conta do Fornecedor TRANSPORTES ..., LDA., entretanto redenominada de ...006 – Transportes ... para ...01 - Transportes ..., não relevou qualquer movimento no decurso do ano de 2006, apresentando o mesmo saldo credor de 3.716.321,70 €. CONTA DE CLIENTES C/C ...120 - TRANSPORTES ..., LDA./ ...69 - Transportes ... 105. De acordo com o ..., do extrato de conta de Clientes C/C ...120 - TRANSPORTES ..., LDA. não consta, no ano de 2003, nenhum movimento para além do de abertura, no valor de 2.403,15 €. 106. No final do exercício de 2004, o valor em dívida por parte do cliente, relevado a débito da conta ...120 - TRANSPORTES ..., LDA., ascendia a 55.665,70 €. 107. Ao longo do exercício de 2005, a débito da conta ...120 - TRANSPORTES ..., LDA. foi contabilizada a emissão de 25 faturas de venda de mercadorias, no valor global de 670.097,65 €. 108. Essas 25 facturas de venda correspondem às faturas de compra ao fornecedor T..., Lda., funcionando a sociedade R..., Lda. como intermediário em termos de faturação (conforme consta do MAPA XXXIX, que se dá aqui por integralmente reproduzido). 109. Assim, o combustível alienado à sociedade TRANSPORTES ..., LDA. no decurso do ano de 2005, pelo valor global de 560.226,83 € + IVA, totalizando 670.097,65 €, foi adquirido à sociedade T..., Lda. pelo montante global de 562.051,43 € + IVA, totalizando 672.245,32 €. 110. Ou seja, as vendas de mercadorias efetuadas pela sociedade R..., Lda. à sociedade TRANSPORTES ..., LDA. no decurso do ano de 2005 (todas elas adquiridas à sociedade T..., Lda.), originaram, em termos globais, o apuramento de uma margem de comercialização negativa em 1.824,60 € (-0,33% sobre o preço de aquisição). 111. A crédito da conta ...120 - TRANSPORTES ..., LDA. foram relevados movimentos de encontro de contas com a conta de Fornecedores C/C ...006 – TRANSPORTES ..., LDA., no valor global de 571.741,80 €. 112. Assim, no final do exercício de 2005, o valor em dívida por parte do cliente, relevado a débito da conta ...120 - TRANSPORTES ..., LDA., era de 154.021,55 €. 113. De acordo com o Balancete reportado a Dezembro de 2006, constante de fls. 528 a 548 do Anexo 132-A, a conta do Cliente TRANSPORTES ..., LDA., entretanto redenominada de ...120 - TRANSPORTES ..., LDA. para ...69 – Transportes ..., não relevou qualquer movimento no decurso do ano de 2006, apresentando o mesmo saldo devedor de 154.021,55 €. 114. Deste modo, a Sociedade R... conseguiu abater a divida que tinha para com esta sociedade no montante da diferença entre 5.777.411,42 e 3.684.608,73, em apenas 3 anos. 115. Ora, atendendo ao facto de que a sociedade R..., no início de 2003, se encontrava a debater com uma grave situação de falta de liquidez - patenteada na devolução de cheques emitidos à Transportes ... por falta de provisão -, é de concluir necessariamente que tais pagamentos só foram possíveis por força do não pagamento (que se expôs pormenorizadamente supra) à T.... 116. E, nessa medida, resulta necessariamente que parte dos ganhos associados à apropriação do IVA por parte da T... foi canalizado para a regularização da dívida que a R... tinha para com a sociedade Transportes .... 117. Sendo inclusive patente que o objetivo da manutenção das relações comerciais por parte da R... com a Transportes ... era o de, apenas, abater a dívida e não alcançar lucros, porquanto as vendas efetuadas pela primeira à segunda originaram, em termos globais, o apuramento de margens de comercialização reduzidas ou negativas sobre o preço de aquisição à T.... 118. Em síntese, parte dos ganhos associados à apropriação do IVA por parte da T..., no montante 2.092.802,69 €, foi canalizado por esta sociedade para a regularização da dívida que a R... tinha para com a sociedade Transportes ... e convertido em saldo devedor da R... para com a T.... 119. O contrato de constituição da sociedade T... foi registado na Conservatória do Registo Comercial ... no dia 10/07/1998, tendo sido nomeados gerentes os sócios AA e BB e, como não sócio, CC. 120. O capital social de 10.000.000$00, redenominado para euros em 28/12/2004 (49.879,78 €), encontrava-se dividido em duas quotas de 24.939,89 € cada, uma pertencente a AA e a outra pertencente à esposa BB. 121. Em 13/09/2004 foi averbada a transmissão da quota de 24.939,89 € a favor de DD, por cessão de BB (que cessou as funções de gerente, por renúncia, em 13/07/2004). 122. Nesse mesmo dia foi averbada a cessão de funções do gerente AA, por renúncia em 08/07/2004, assim como a designação do gerente DD (a partir de 13/07/2004). 123. Em 17/05/2007 foi registada a renúncia do gerente CC, com efeitos a partir de 15/04/2005, e em 13/09/2007 foi averbada a transmissão da quota de 24.939,89 € a favor de DD, por cessão de AA. 124. A Divisão de Prevenção e Inspeção Tributária da Direcção de Finanças de ..., em 5 de Abril de 2005, pela consulta do sistema informático da DGCI, constatou que a T..., Lda. tinha enviado as declarações de IVA trimestrais referentes ao terceiro trimestre de 2003 e seguintes, até ao último trimestre de 2004, sem os respetivos meios de pagamento. 125. A essa data corriam no Serviço de Finanças ... 1 diversos processos de execução fiscal relativos à T..., Lda., tendo já sido efetuadas penhoras de algumas viaturas e de um terreno situado na freguesia ..., concelho ..., bens insuficientes para o pagamento da totalidade da quantia em dívida. 126. Em 01/06/2005, constatando-se que a T..., à data de 31/05/2005, possuía créditos por cobrar que superavam os 5.000.000,00 €, respeitantes na sua maior parte aos clientes R..., Lda. (no valor de 2.589.540,16 €) e RS..., Lda. (no valor de 2.751.730,65 €), também geridas de facto (e de direito) por AA, o Serviço de Finanças ... executou a penhora desses créditos, realizada com base nos saldos em dívida reportados a 31/05/2005, constantes do programa informático de gestão comercial da T.... 127. Em 02/06/2005 foram penhoradas pelo Serviço de Finanças as contas bancárias conhecidas em nome da T..., Lda., de valor pouco superior a 100.000,00 €. 128. Face a tais penhoras, os arguidos tiveram necessidade de proceder à abertura de contas que passassem a funcionar como contas da sociedade, mas necessariamente em nome de terceiros, face às referidas penhoras. 129. Nessa sequência, pelos arguidos foram abertas em nome de DD as contas que abaixo se identificam: - Conta n.º ...55 s/MG, que registou o movimento de abertura no dia 9 de Junho de 2005; - Conta n.º ...00 s/Banco 3..., que registou o movimento de abertura no dia 9 de Junho de 2005. 130. Os movimentos bancários realizados sobre a conta bancária n.º ...55 s/MG no período compreendido entre 09/06/2005 e 01/04/2009 encontram-se sintetizados no MAPA LXXXVII, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido, tendo os movimentos a crédito totalizado a importância global de 16.300.957,13 € e os movimentos a débito ascendido a 16.300.925,12 €. 131. Tais operações relevadas na conta de DD são suscetíveis de ser sintetizadas conforme se apresenta no quadro seguinte (excluindo as operações de pequeno valor): 132. No MAPA LXXXIX, que se dá por integralmente reproduzido, encontram-se sintetizados os movimentos bancários realizados sobre a conta bancária n.º ...00 s/Banco 3..., no período compreendido entre 09/06/2005 e 17/05/2007, tendo os mesmos, quer a crédito quer a débito, totalizado a importância global de 946.260,64 €. 133. Da análise realizada aos extratos bancários das contas n.º ...55 s/MG e n.º ...00 s/Banco 3... e respetiva documentação de suporte, que supra se sintetizou, conclui-se necessariamente que as referidas contas passaram a refletir todas as operações da T..., sendo contas da sociedade, e não pessoais de DD, criadas por força (e logo após) a penhora das contas bancárias em nome da T... por parte do Serviço de Finanças, em 02/06/2005. 134. Porém, DD, cidadão de nacionalidade brasileira, não obstante figurar no pacto social da T... como gerente desde 13/07/2004, ser titular das referidas contas e a sua assinatura constar de diversos cheques, nunca teve qualquer função decisória relativamente aos destinos da empresa nem exerceu qualquer função efetiva de gerência, esta tendo sempre pertencido a AA este que, em representação da sociedade arguida, sempre a geriu e administrou, decidiu de facto da afetação dos meios financeiros ao cumprimento das respetivas obrigações correntes, designadamente do pagamento dos respetivos impostos sobre os rendimentos obtidos, da retenção e entrega ao Estado das quantias devidas, e bem assim, do preenchimento e entrega das respetivas declarações tributárias, bem como admissão e gestão dos funcionários e processamento dos respetivos salários. 135. Dos registos do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), consta que DD permaneceu apenas em território nacional de 25/04/2005 a 04/05/2005, de 08/06/2005 a 12/06/2005 e de 11/07/2005 a 17/07/2005, tendo entrado pelo Aeroporto ... e permanecido no Hotel .... 136. Não obstante, em seu nome foram realizadas inúmeras operações bancárias, das quais se destaca a realização de levantamento dos cheques constantes da Tabela seguinte: 137. Levantamentos que, da análise dos registos bancários, se podem explicar da forma que se segue: a) As seguintes operações a crédito: sustentaram a realização, no dia 25/07/2005, de uma transferência a favor de K... S.A. (fornecedor), no valor de 200.000,00 €, assim como o levantamento, no mesmo dia 25/07/2005, do cheque n.º ...83,, no montante de 30.000,00 €, constando a assinatura de DD no verso do cheque. b) no dia 24/08/2005, foram depositados os cheques nº ...47 e ...46, nos valores de, respetivamente, 227.593,47 € e 219.139,08 €, ambos sacados sobre a conta n.º ...87 s/MG, titulada pela R S..., Lda., depósitos esses que sustentaram a realização, no mesmo dia 24/08/2005, de uma transferência a favor de K... S.A., no valor de 200.000,00 €, assim como o levantamento, no dia 25/08/2005, do cheque n.º ...84,, no valor de 210.000,00 €, constando a assinatura de DD no verso do cheque; c) No dia 16/09/2005, foi depositado o cheque n.º ...60,, no valor de 198.495,70 €, sacado sobre a conta n.º ...87 s/MG, titulada pela R S..., Lda., o qual, em conjunto com o saldo da conta, sustentou a realização, no mesmo dia 16/09/2005, de uma transferência a favor da conta n.º ...70, domiciliada no Banco 4..., titulada pela T... (no documento remetido pelo Banco a designação do beneficiário é TDLda), no montante de 200.000,00 €, assim como o levantamento do cheque n.º ...85,, no valor de 50.000,00 €, constando a assinatura de DD no verso do cheque; d) No final de Outubro de 2005, foram realizados 3 depósitos de cheques sacados sobre a conta n.º ...87 s/MG, titulada pela R S..., Lda. os quais sustentaram a emissão, no dia 31/10/2005, de um cheque bancário, no valor de 529.853,53 €, a favor da Direção Geral do Tesouro, relativo ao pagamento do ISP liquidado à T... no mês de Setembro, assim como o levantamento, nesse mesmo dia, do cheque n.º ...80,, no valor de 50.000,00 €, constando a assinatura de DD no verso do cheque; e) No dia 30/11/2005, foram depositados os seguintes cheques, sacados sobre a conta n.º ...87 s/MG, titulada pela R S..., Lda., totalizando a importância de 875.845,85 €: Cheque n.º ...31,, no valor de 22.290,98 €; Cheque n.º ...32,, no valor de 214.003,96 €; Cheque n.º ...33,, no valor de 223.745,67 €; Cheque n.º ...34,, no valor de 215.805,24 €, movimentos que, em conjunto com o saldo credor que a conta apresentava, sustentaram a realização, no mesmo dia 30/11/2005, de uma transferência a favor da conta n.º ...70, domiciliada no Banco 4..., titulada pela T..., Lda. (no documento remetido pelo Banco a designação do beneficiário é TDLda), no montante de 200.000,00 €, assim como a emissão, nesse mesmo dia, de um cheque visado, no valor de 707.193,58 €, a favor da Direção Geral do Tesouro, relativo ao pagamento do ISP liquidado à T..., Lda. no mês de Outubro, bem como o levantamento, no dia 02/12/2005, do cheque n.º ...81,, no valor de 50.000,00 €, constando a assinatura de DD no verso do cheque; f) No dia 06/01/2006, foi depositado o cheque n.º ...66,, no valor de 217.275,44 €, sacado sobre a conta n.º ...87 s/MG, titulada pela R S..., Lda., o qual sustentou o levantamento, no mesmo dia 06/01/2006, do cheque n.º ...82,, no valor de 150.000,00 €, o qual terá sido efetuado por DD, constando a assinatura de DD no verso do cheque; g) No dia 16/01/2006, foi depositado o cheque n.º ...61,, no valor de 215.409,05 €, sacado sobre a conta n.º ...87 s/MG, titulada pela R S..., Lda., o qual sustentou o levantamento, no mesmo dia 16/01/2006, do cheque n.º ...77,, no valor de 200.000,00 €, constando a assinatura de DD no verso do cheque; h) No dia 20/02/2006, foi depositado o cheque n.º ...25,, no valor de 190.000,00 €, sacado sobre a conta n.º ...87 s/MG, titulada pela R S..., Lda., o qual, em conjunto com o saldo credor que a conta apresentava, sustentou a realização, no 21/02/2006, de uma transferência a favor da conta n.º ...70, domiciliada no Banco 4..., titulada pela T..., Lda. (no documento remetido pelo Banco a designação do beneficiário é TDLda), no montante de 100.000,00 €, bem como o levantamento do cheque n.º ...78,, no valor de 125.000,00 €, constando a assinatura de DD no verso do cheque; i) No dia 23/06/2006, foi realizado um depósito no valor de 17.473,34 €, correspondente ao cheque n.º ...68 s/MG, emitido por T - S. Distribuição, SA. à ordem da T..., lda. o qual sustentou o levantamento, no mesmo dia 23/06/2006, do cheque n.º ...79,, no valor de 17.500,00 €, constando a assinatura de DD no verso do cheque; 138. Não obstante dos referidos cheques constar a assinatura de DD, o mesmo nunca exerceu efetivamente qualquer cargo na T... nem nunca possuiu no seu âmbito qualquer poder decisório, sendo que tais levantamentos em numerário, que totalizaram a quantia de 882.500,00, foram realizados inclusive em datas nas quais o mesmo, segundo os registos do SEF, não se encontrava em Portugal. 139. Tais operações foram efetuadas ou ordenadas por quem exercia de facto a gerência da T..., o arguido AA, desconhecendo-se por completo o destino de tais fundos, uma vez que este não os fez relevar nos registos contabilísticos da T..., precisamente com o intuito de, prevalecendo-se da intermediação daquele terceiro dissimular a sua intervenção, apropriando-se de tal montante. 140. As contas n.º ...55 s/MG e n.º ...00 s/Banco 3... passaram então a refletir todas as operações da T..., sendo contas da sociedade, e não pessoais de DD, criadas por força (e logo após) a penhora das contas bancárias em nome da T... por parte do Serviço de Finanças, em 02/06/2005. 141. Através da análise da conta nº ...55 titulada por DD, constatou-se que foram realizadas, no período compreendido entre 30/8/2005 e 21/1/2008, um conjunto de transferências para a conta nº ...70 da T..., s/Banco 4..., em .... 142. Até finais de Agosto de 2005, os pagamentos aos fornecedores espanhóis K..., S.A e S..., S.A. eram realizados a partir dessa conta titulada por DD. 143. A partir de 30 de Agosto de 2005 os fundos que caíam na conta de DD passaram a ser transferidos para a conta ...70 s/Banco 4..., titulada pela T..., e os pagamentos aos referidos fornecedores espanhóis passaram a ser efetuados diretamente a partir desta última conta. 144. Constatou-se, porém, que no período analisado, e conforme já se enunciou supra no quadro identificativo dos movimentos bancários realizados sobre a conta bancária n.º ...55 s/MG, e que se encontram-se sintetizados no MAPA LXXXVII, foram realizadas transferências a favor da referida conta nº ...70 s/Banco 4... titulada pela T... que ascenderam a € 6.007.800,00, repartidas anualmente conforme se apresenta no quadro seguinte: 145. Foram ainda realizadas quatro transferências a débito da mesma conta – n.º ...55 s/MG, titulada por DD -, no valor total de € 495.550,00 -, conforme se apresenta no quadro seguinte: 146. Não obstante não se encontrar identificada a conta de destino destas transferências nos extratos bancários, em datas coincidentes ou próximas, idênticos montantes foram creditados na conta n.º ...70 s/Banco 4... titulada por AA, provenientes de contas da T..., atento o descritivo bancário, conforme se constata pela análise dos dois quadros seguintes, o que leva a concluir que terão sido transferências que foram igualmente creditadas na conta nº ...70 s/Banco 4... titulada pela T.... 147. Ora, tal montante - € 6.007.800,00 acrescido de 495.550,00 € – consubstanciou um valor substancialmente mais elevado do que aquele necessário para pagamento aos referidos fornecedores espanhóis, tendo gerado um excedente financeiro na referida conta da T.... 148. Tal excedente financeiro creditado na conta da T... possibilitou, como se passará a explicar, a realização de várias transferências da conta nº ...70 s/Banco 4... titulada pela T... para a conta n.º ...70 s/Banco 4..., titulada por AA. 149. Com base nos extratos bancários da conta n.º ...70 s/Banco 4..., titulada pela T..., para o período compreendido entre 15/07/2005 (data de abertura da conta) e 31/12/2006 (data até à qual foram obtidos os registos), foram construídos os MAPAS I e II, juntos aos presentes autos e que aqui se dão por reproduzidos. 150. Por sua vez, com base nos extratos bancários da conta n.º ...70 s/Banco 4..., em Euros, titulada por AA, referentes ao período compreendido entre 18/07/2005 (data de abertura da conta) e 06/05/2009 (data em que a conta terá sido encerrada), foram construídos os MAPAS III e IV. 151. Os referidos Mapas elencam todos os movimentos bancários registados nas referidas contas nos elencados períodos, e o resumo desses movimentos atendendo ao seu tipo. 152. Do cruzamento da informação obtida pela análise dos referidos Mapas resultam que foram realizados as seguintes operações: 1) Transferências a crédito para a conta de AA, ordenadas sobre a conta n.º ...70 s/Banco 4..., titulada pela T..., no valor de (2.550.870,00 €); e 2) Transferências a crédito a favor da conta titulada pela T..., Lda. (13.522,54 €), sobre contas tituladas por AA. 153. A análise desenvolvida permitiu determinar que, no período compreendido entre 18/07/2005 e 06/05/2009 a sociedade T..., Lda. ordenou um conjunto de transferências bancárias a favor da conta n.º ...70 s/Banco 4..., titulada por AA, no montante global de 2.550.870,00 €, tal como se ilustra no quadro seguinte. 154. Em sentido contrário também foram ordenadas duas transferências, no valor global de 13.522,54 €. A) Valor comprovadamente transferido da conta n.º ...70 s/Banco 4..., titulada pela T..., Lda.. B) Valor previsivelmente transferido da conta n.º ...70 s/Banco 4..., titulada pela T..., Lda.. (previsivelmente dado que apenas se obtiveram os extratos bancários da conta n.º ...70 s/Banco 4..., titulada pela T..., para o período compreendido entre 15/07/2005 e 31/12/2006, tendo a partir daí a analise versado apenas nos descritivos das transferências a crédito na conta AA – sendo certo que, atendendo aos referidos descritivos, sempre seriam transferências de contas tituladas pela T...). C) Valor comprovadamente transferido para a conta n.º ...70 s/Banco 4..., titulada pela T..., Lda.. D) Valor previsivelmente transferido para a conta n.º ...70 s/Banco 4..., titulada pela T... (previsivelmente dado que apenas se obtiveram os extratos bancários da conta n.º ...70 s/Banco 4..., titulada pela T..., para o período compreendido entre 15/07/2005 e 31/12/2006, tendo a analise a partir daí versado nos elementos referidos supra). 155. Os movimentos plasmados no quadro que antecede respeitam a fundos que foram creditados para a referida conta pessoal do arguido AA, sendo que parte dos montantes transferidos correspondiam a créditos que a T... possuía sobre a RS... e R.... Senão vejamos: 156. Do confronto do extrato bancário da conta n.º ...70 s/Banco 4..., titulada pela T..., que se obteve apenas para o período compreendido entre 15/07/2005 e 31/12/2006 (como se referiu supra (ponto V. da acusação), plasmados nos MAPAS I e II, e os extratos da conta n.º ...70 s/Banco 4..., titulada por AA, cujos registos abarcam um período mais alargado, de 18/07/2005 a 06/05/2009, plasmados nos MAPAS III e IV, conjugados com os registos das operações realizadas a partir de 01/01/2007 da conta n.º ...55 s/MG, titulada por DD, foi possível apurar a realização das transferências infra elencadas – relativamente às quais, em 2007 e 2008, existe inclusive uma coincidência temporal. A) Valor comprovadamente creditado na conta n.º ...70 s/Banco 4..., titulada pela T..., Lda.. B) Valor previsivelmente creditado na conta n.º ...70 s/Banco 4..., titulada pela T..., Lda. 157. Ou seja, no que respeita àqueles movimentos que se enunciaram, relativos a 2007 e 2008, plasmados nos dois quadros que antecedem, resulta, como se referiu, que corresponderam a fundos que foram creditados para a referida conta pessoal do arguido AA de que se referiam a pagamentos de créditos que a T... possuía sobre a RS... e R..., porquanto: a) depois de ter sido descontado, a 05/02/2007, o cheque no valor de € 219.433,30 emitido a .../.../2006 pela ... para pagamento à T..., e creditado na conta de FF, foi nesse mesmo dia efetuada uma transferência no valor de € 250.000.000,00 para a conta da T... e quatro dias depois essa importância foi creditada na conta do Banco 4... de AA; b) depois de ter sido descontado, em 21/01/2008, o cheque no valor de € 50.000,00 emitido pela R... para pagamento à T... e creditado na conta de DD do Banco 5..., foi nesse dia efetuada uma transferência no valor de 57.800,00 € para a conta da T... e, nesse mesmo dia, essa importância foi creditada na conta do Banco 4... por titulada AA; c) depois de ter sido descontado, em 09/09/2008, o cheque no valor de € 109.135,32 emitido pela RS... em 6/2/2006 para pagamento à T... e creditado na conta de DD do Banco 5..., foi nesse dia efetuada uma transferência no valor de 109.100,00€ para a conta da T... e, um dia depois, essa importância foi creditada na conta do Banco 4... titulada por AA; d) após ter sido descontado, em 10/09/2008, o cheque no valor de €104.970,40 emitido pela RS... em 03/02/2006 para pagamento à T... e creditado na conta de DD, foi nesse mesmo dia efetuada uma transferência no valor de €104.900.000,00 para a conta da T... no Banco 4... e imediatamente a seguir essa importância foi creditada na conta titulada por AA no Banco 4...; e) depois de ter sido descontado, em 16/09/2008, o cheque no valor de €219.433,30 emitido pela RS... em 20/01/2006 para pagamento à T... e creditado na conta de DD, foi nesse mesmo dia efetuada uma transferência no valor de € 219.430,00 para a conta da T... no Banco 4... e, um dia depois, creditada a quantia de €219.450,00 na conta de AA no Banco 4...; f) após ter sido descontado, em 23/09/2008, o cheque no valor de € 62.122,98 emitido pela RS... em 04/04/2006 para pagamento à T... e creditado na conta de DD, foi nesse mesmo dia efetuada uma transferência no valor de € 62.120,00 para a conta da T... no Banco 4... e logo a seguir essa importância foi creditada na conta de AA no Banco 4...; g) após ter sido descontado, em 12/09/2008, o cheque no valor de € 102.542.49, sacado em 30/01/2006 sobre a conta Banco 5... titulada pela RS... para pagamento à T..., foi nesse dia sido creditada na conta do Banco 4... da T... essa mesma importância, e quatro dias depois foi transferida para a conta titulada por AA no Banco 4... a quantia de € 102.600,00. 158. Sendo certo que, na data de tais transferências – 2007 e 2008 – a T... já não tinha qualquer atividade comercial, que terminou por força da cessação do Estatuto de Operador registado no Âmbito dos Óleos Minerais, que ocorreu em Fevereiro de 2006. Assim: 159. No período compreendido entre 18/07/2005 e 06/05/2009, o arguido AA, na qualidade de legal representante da T..., transferiu parte dos ganhos associados à apropriação do IVA para a conta n.º ...35 0001167270s/Banco 4..., titulada por AA, designadamente através de um conjunto de transferências bancárias a favor da referida conta, no montante global líquido de 2.537.347,46 €. 160. parte desse montante – 905.870,00 € - referia-se a pagamentos devidos pela RS... e R... à T..., tendo sido depositado na conta n.º ...70 s/Banco 4..., titulada por AA, através de uma sequência lógica de diversas transferências, coincidentes entre si quer temporalmente quer em termos de valor – das contas da RS... e R... para a conta de DD, da conta de DD para a conta da T..., e, por fim, da conta da T... para a conta de AA. 161. com as referidas condutas quiseram os arguidos dissimular a origem dos referidos fundos, canalizando-os para a conta pessoal do arguido, dessa forma se apropriando de parte do IVA total liquidado e não entregue nos cofres do Estado, num valor, como se referiu equivalente a 2.537.347,46 €. 162. Na conta n.º ...70 s/Banco 4..., titulada por AA, foram registados créditos, no montante global de 300.590,78 €, (constantes do Mapa II, de fls. 1515) referentes à liquidação/resgate do depósito a prazo n.º ...22, através das seguintes operações. 163. Acontece que tal deposito a prazo havia sido constituído/reforçado sempre a partir da conta n.º ...70 s/Banco 4..., titulada pela T..., Lda. (Mapa I de fls. 1512 a 1514) do modo que infra se expõe: 164. Assim sendo, em termos líquidos, o valor global que transitou da T... para a conta do arguido AA ascendeu a 2.837.938,24 € (2.537.347.46 € + 300.590,78 €), tendo sido este, assim, o destino final de parte dos ganhos associados à apropriação do IVA por parte da T.... 165. Os arguidos agiram sempre livre, deliberada e conscientemente, na qualidade de legais representantes das sociedades R..., RS... e GG, com o propósito concretizado, elaborado conjuntamente, de converterem e dissimularem os avultados montantes de IVA liquidado e não entregue ao Estado de que se foram apropriando, e, nessa medida, resultantes do cometimento de crimes fiscais por parte da sociedade T.... 166. Ao converterem parte do IVA liquidado e não entregue nos cofres do Estado, num valor não concretamente determinado mas pelo menos equivalente a 397.159,65 €, 393.323,89 € e 138.493,54 €, nos resultados negativos da T... averbados de 2002 a 2004; 167. ao criarem uma dívida por parte do sócio para com a T... pelo menos de 535.881,86 €; 168. ao canalizarem parte dos ganhos associados à apropriação do IVA por parte da T..., no montante de 2.092.802,69 €, para a regularização da dívida que a R... tinha para com a Transportes ... e, dessa forma, converterem tal valor em saldo devedor da R... para com a T...; 169. ao realizarem levantamentos em numerário que totalizaram a quantia de 882.500,00, prevalecendo-se da intermediação de um terceiro – DD; 170. ao transferirem parte dos ganhos associados à apropriação do IVA para a conta n.º ...70 s/Banco 4..., titulada por AA, no período compreendido entre 18/07/2005 e 06/05/2009, através de um conjunto de transferências bancárias, no montante global líquido de 2.537.347,46 €. 171. ao procederem ao resgate do depósito a prazo n.º ...22, que havia sido constituído/reforçado sempre a partir da conta n.º ...70 s/Banco 4..., titulada pela T..., transferindo o montante global de 300.590,78 € para a conta n.º ...70 s/Banco 4..., titulada por AA, 172. Os arguidos representaram e pretenderam dissimular e converter a origem ilícita de tais fundos, como efetivamente fizeram, bem sabendo que tais condutas consubstanciavam a reciclagem de vantagens provenientes de um crime de natureza fiscal por parte da T..., agindo com o intuito de lhes dar uma aparência de origem legal ou encobrir a sua origem. 173. Sabiam, ainda, que a sua conduta era proibida e punida por lei. (…)” 2. Por acórdão proferido em 09.06.2020, transitado em julgado em 26.11.2020, no processo nº200/04...., do Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., o arguido foi condenado pela prática de autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança dos artigos 105º, nºs 1, 4 e 5 do RGIT (Regime Geral das Infrações Tributárias, Lei nº 15/2001, de 05/06), na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de cinco anos, na condição de pagar nesse período, o valor de €48.000,00 (quarenta e oito mil euros) e respetivos acréscimos legais, sendo que metade do valor, ou seja, de €24.000,00 (vinte e quatro mil euros) deverá estar liquidado até metade do período de suspensão da execução da pena de prisão, ou seja dentro de dois anos e seis meses, após trânsito em julgado. Nestes autos resultou apurado que: “1. A sociedade arguida “T..., Lda.” foi constituída no dia 2 de Julho de 1998 pelos arguidos AA e BB, casados entre si e tinha a sua sede no Lugar ..., freguesia ..., concelho .... 2. A sociedade arguida teve como actividade até 19 de Dezembro de 2001 a de transportes de carga e produtos inflamáveis, passando a partir desta data a exercer a de transportes rodoviários de mercadorias por conta de outrem, comércio de combustíveis e lubrificantes, serviços conexos e aluguer de veículos pesados de mercadorias sem condutor. 3. Quando a sociedade foi constituída, foram nomeados como gerentes os dois sócios, AA e BB, bem como, o não sócio, CC, ficando ainda consignado no pacto social que a sociedade se obrigava com a assinatura conjunta de dois gerentes, sendo sempre obrigatória a do gerente e aqui arguido, AA. 4. Por escritura pública realizada em 13 de Julho de 2004 no ... Cartório Notarial ..., BB declarou renunciar à gerência. 5. Nessa mesma escritura foi nomeado gerente da sociedade DD, tendo ficado estipulado que a sociedade se obrigava pela assinatura de um gerente. Essa nomeação foi inscrita no registo comercial da sociedade. 6. Na certidão de matrícula da sociedade arguida consta que o arguido AA renunciou à gerência em 8 de Julho de 2004. 7. Nos anos de 2003 e pelo menos até 8 de Julho de 2004 o arguido AA exerceu efectivamente e de facto, no dia a dia, as funções de gerente da sociedade arguida. 8. Assim, nos períodos considerados, como gerente que era, o arguido AA, administrava e representava a sociedade, nomeadamente, negociando e vendendo os serviços produzidos aos clientes, pagando os impostos da “T..., Lda..” ao Estado, o preço dos bens e serviços adquiridos por aquela aos respectivos fornecedores e entregando às Finanças as declarações de rendimentos da empresa para efeitos de IRC, bem como aos serviços do IVA, as declarações periódicas deste imposto. 9. Nos períodos supra mencionados, pelo exercício da referida actividade, a sociedade estava colectada na Repartição de Finanças ..., em Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas (I.R.C.), no regime geral de tributação, e em Imposto Sobre o Valor Acrescentado (I.V.A.), no regime normal de periodicidade trimestral até 31 de Dezembro de 2004, pelo que estava obrigada a entregar ao Estado a declaração anual de rendimentos para efeitos de I.R.C. e as declarações trimestrais para efeitos de IVA, acompanhadas dos respectivos meios de pagamento do imposto apurado. 10. Pelos serviços que produzia no exercício da sua actividade económica, a primeira arguida e o arguido AA, actuando em nome e no interesse da primeira, estava obrigado a entregar aos serviços do IVA, trimestralmente, até ao dia 15 do segundo mês seguinte àquele a que respeitavam as operações (até 31 de Dezembro de 2004) e mensalmente, até ao dia 10 do segundo mês seguinte àquele a que respeitavam as operações (a partir de 1 de Janeiro de 2005), as declarações periódicas deste imposto. 11. Em cada declaração, fazia, desde logo, constar, o valor em dinheiro das vendas dos serviços produzidos pela sociedade aos seus vários clientes no trimestre ou mês, que era obtido pela soma dos valores titulados em cada factura, ou documento equivalente que a sociedade era obrigada a emitir sempre que vendia um bem. 12. Na declaração, constava, ainda, o valor do IVA que nesse trimestre a sociedade tinha liquidado aos seus clientes, resultante da soma do IVA constante de cada factura ou documento equivalente emitidos e que incidia sobre o valor de cada serviço vendido. 13. Juntamente com essas declarações trimestrais, a primeira arguida e o arguido AA, em nome e no interesse daquela estava ainda obrigado a enviar aos Serviços do I.V.A., o valor desse I.V.A. que estava obrigado a liquidar e que liquidava e recebia dos seus clientes sempre que vendia os serviços por si produzidos, depois de efectuado o apuramento a que se referem os arts. 19.º a 25.º e 71.º, do C.I.V.A., isto é, depois de deduzido ao IVA liquidado, o IVA dedutível. 14. Acontece, todavia, que relativamente à actividade desenvolvida no terceiro trimestre de 2003 a primeira arguida e o arguido AA, em nome e no interesse da primeira, vendeu serviços por si produzidos aos clientes da sociedade, emitiu as correspondentes facturas onde liquidou IVA que recebeu desses mesmos clientes, nesse período. 15. No entanto, embora no período mencionado tivesse remetido aos serviços do IVA as declarações trimestral deste imposto, não a fez acompanhar dos valores do IVA recebido e apurado, que estava obrigado a entregar ao Estado. 16. Assim, não entregou ao Estado, como devia, a seguinte quantia em dinheiro liquidada e recebida dos seus clientes, relativa ao seguinte período: Período de imposto / Valor em falta - € 2003 – 3ºT €1.493.013,64 17. O arguido não entregou ao Estado a quantia de IVA supra mencionada, não o tendo feito até aos dias quinze do segundo mês seguinte àquele a que respeitavam as operações, nem nos 90 dias seguintes. 18. Foi no montante de €1.493.013,64, que a primeira arguida e o arguido AA, em nome e no interesse da primeira, efectivamente recebeu dos clientes da sociedade e dele se apropriou em proveito da mesma, não obstante saber que se tratavam de dívidas de IVA e que estava obrigado por lei a entregar essa quantia ao Estado. 19. O arguido agiu com a intenção de obter uma vantagem patrimonial indevida, bem sabendo que desse modo diminuía, como diminui, as receitas fiscais do Estado nos montantes mencionados, num total de €1.493.013,64. 20. Agiu livre, deliberada e conscientemente, o arguido AA, sempre como gerente, no interesse e em nome da sociedade, a primeira arguida, bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei. 21. O arguido foi notificado para proceder ao pagamento da quantia supra descriminada, acrescidas de juros e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias, mas findo tal prazo, não pagou. Mais se provou que: 22. Referente ao 3.º trimestre de 2003 foi entregue, em sede de execução, fiscal e tendo decorrido mais de 90 dias sobre o prazo legal da sua entrega voluntária, o valor de 217.984,27€, estando ainda em falta o montante de 1.275.029,37€, correspondente a IVA recebido e não entregue nos Cofres do Estado. (…)” 3. O percurso de vida do arguido AA ficou marcado pelas vivências da emigração, com a família de origem, tendo nascido em ... e também vivido na .... 4. Na adolescência, mudou-se definitivamente para Portugal. 5. Frequentou, durante dois anos, o ensino universitário, na Faculdade de ... e desistiu do mesmo com o propósito de alcançar maior independência financeira. 6. Trabalhou durante alguns anos na indústria corticeira e posteriormente no negócio da família de origem, no ramo de padaria/pastelaria. 7. Nos finais dos anos noventa contraiu matrimónio e enveredou no ramo petrolífero, negócio iniciado precedentemente pelo seu pai. 8. O arguido e o cônjuge foram sócios-gerentes da empresa T..., Lda., aberta em 1999. 9. A empresa era operadora e permitia a importação de combustível. 10. Em 2004, o cônjuge vendeu a sua quota e o arguido passou a gerência àquele comprador para evitar viagens ao ..., país de origem desse mesmo. 11. Tal empresa terá encerrado ao público entre 2010 e 2011. 12. Desde há cerca de duas décadas, AA detém as empresas R S..., Lda. e R..., SA, que se dedicam ao comércio de produtos petrolíferos. 13. Neste âmbito, também possui postos de abastecimento de combustíveis abertos ao público, em vários pontos do país. 14. A sede localiza-se em ... . 15. O arguido AA dedica o seu quotidiano a esta atividade, como sócio-gerente, sobretudo de segunda a sexta-feira das 9h às 17h, actividade que considera prazerosa. 16. O arguido AA reside na Rua ..., ..., ... ..., há cerca de 14 anos. 17. Trata-se de uma zona residencial, na zona limítrofe da cidade ..., pacata e não associada a problemáticas de exclusão social ou marginalidade. 18. A habitação corresponde a uma moradia que aparenta grandes dimensões e sinais externos de opulência. 19. Neste meio de residência, é identificado como morador com comportamento ajustado e não existe alarme social pela sua presença. 20. É associado ao seu ramo de negócio e a anteriores problemas de natureza fiscal. 21. O arguido integra o agregado familiar constituído pela filha, genro e dois netos com 3 e 1 ano. 22. A filha é ... e o genro também está laboralmente ativo. 23. O arguido tem ainda outro filho, também adulto, que é jogador profissional de ... e está autonomizado. 24. O arguido AA, há cerca de três anos, ficou viúvo e assim, os descendentes herdaram a quota empresarial correspondente. 25. O arguido AA aduz rendimentos anuais de 46.719.22€ (valor em 2021). 26. Recebe 448,67€ de pensão de sobrevivência. 27. O arguido suporta sozinho os gastos domésticos, mormente cerca de 1000€/mês de amortização bancária e cerca de 250€/mês de serviços de água, gás e eletricidade. 28. O arguido vivencia o presente contacto com o sistema de justiça penal de forma ambivalente, entre o otimismo pelo eventual desfecho dos autos e o receio pelas possíveis consequências, em concreto uma eventual medida privativa da liberdade. 29. Pese embora o arguido apresente boas relações familiares, estes não têm conhecimento actualizado acerca do processo em apreço. 30. Em abstrato, o arguido AA revela consciência do desvalor dos factos dos presentes autos, reconhecendo a existência de lesados e dos prejuízos para os mesmos e para a sociedade em geral. 31. No âmbito da execução da pena aplicada no processo 200/04...., o arguido procedeu à entrega do valor de 109.407,86€. 32. O arguido não tem averbadas no seu certificado de registo criminal outras condenações. – Motivação da decisão da matéria de facto Os factos provados relativos às condenações sofridas pelo arguido resultam da sentença proferida nos autos principais, do teor das certidões judiciais das decisões referidas em 1 e 2 dos factos provados e do teor do Certificado de Registo Criminal. Consideraram-se ainda quanto às condições pessoais, o relatório social elaborado pela Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais, cujas conclusões se encontram devidamente fundamentadas, bem como, se encontram indicados os meios utilizados para a sua elaboração, devidamente conjugadas com as declarações do arguido que confirmou o seu teor. Relativamente à entrega dos valores teve-se a baixa da conta com a ref.ª ...86, de 13.01.2023, dos autos principais. B - DE DIREITO Dada a factualidade supra exposta, cumpre analisar se os requisitos para a punição do concurso de crimes prevista nos artigos 77º e 78º do Código Penal se encontram reunidos. Dispõe-se no artigo 77º do Código Penal que: “1 — Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. 2 — A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. 3 — Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores. 4 — As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.” Todavia, pode acontecer que posteriormente à condenação de um crime surge o conhecimento de que o arguido praticou anteriormente outro crime. Nestes casos, estatui-se no artigo 78º, nº1 do Código Penal, sob a epígrafe “Conhecimento superveniente do concurso”, que: “1 — Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes.” Nos termos do nº2, do mesmo preceito legal o disposto no número anterior só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado. O tribunal competente para a realização do cúmulo é, nos termos do artigo 471º do Código de Processo Penal, conforme os casos, o tribunal colectivo ou o tribunal singular, sendo territorialmente competente aquele que proferiu a última condenação. O momento decisivo para a existência de um concurso de penas é o do trânsito em julgado da condenação por qualquer dos crimes. Vejamos, no caso em espécie, se existem penas que possam ser objecto de uma pena única. No que se refere aos factos que foram objecto da condenação referida em 2), verifica-se que os mesmos foram praticados no terceiro trimestre de 2003, ou seja, antes da condenação identificada em 1) proferida em 09.06.2020 e transitada em julgado em 05.11.2020, o que importa a conclusão de que se encontram reunidos os pressupostos para a punição do concurso de penas referido nos artigos 77º e 78º do Código Penal. Com efeito, pese embora os factos tivessem sido objeto dos mesmos autos e tivesse sido ordenada a separação de processos em virtude de impugnação judicial pendente nos tribunais administrativos e fiscais, nada obsta a que se considerem os factos objeto da segunda condenação, pois que só com o trânsito em julgado da sentença proferida em sede impugnação é que se tornou definitiva a situação tributária de que dependia a qualificação criminal dos factos imputados de forma a que pudessem ser julgados nos termos do artigo 47º e 48 do RGIT. Ou seja, os factos objeto da condenação mencionada em 2) não podiam ser conhecidos aquando da prolação da decisão referida em 1), só o podendo ser agora. Assim, sendo este o Tribunal da última condenação, é este o Tribunal competente para a realização de tal operação. Pelo que, importa proceder ao cúmulo jurídico das penas correspondentemente aplicadas por via das condenações referidas em 1) e 2), seguindo as regras previstas no nº2 do artigo 77º do Código Penal: construir-se-á em primeiro lugar a moldura do concurso e, considerando globalmente o conjunto dos factos e a personalidade do arguido, seguidamente se determinará, dentro dela, a medida concreta da pena única a aplicar. Como refere Figueiredo Dias (ob. cit. pp. 291 e 292) “Tudo deve passar-se (…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente revelará, entretanto, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente.” A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, sendo que em caso de cúmulo anterior somente se atenta às penas parcelares, não podendo ultrapassar 25 anos de prisão tratando-se de pena de prisão e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. Posto que, no caso concreto a moldura do concurso fixa-se entre os 3 anos e 6 meses e 9 anos e 6 meses de prisão. Dentro da moldura indicada, deve ter-se em conta, à luz das exigências gerais de culpa e prevenção e acordo com o artigo 77º, nº1 do Código Penal, os factos e a personalidade do agente. O conjunto dos factos fornece-nos a gravidade dos ilícitos perpetrados, o que, no caso dos autos, se revela bastante elevada considerando os valores em causa, sendo que relativamente a um dos crimes de abuso de confiança fiscal o valor do IVA não entregue ascende ao valor de € 9.699.909,38 e ao outro ao valor de €1.493.013,64, e que ao primeiro de associa um crime de branqueamento de capitais, que foram praticados dentro de um período tempo de cerca de 3 anos e que as consequências das suas condutas se traduzirem em prejuízo bastante considerável para o Estado, sendo as exigências de prevenção geral muito elevadas considerando a necessidade de reafirmação da norma atento o inúmero número de vezes que o crime de abuso de confiança fiscal é praticado e a gravidade do crime de branqueamento de capitais normalmente associada aquele. Por outro lado, quanto à personalidade do arguido, na pena a aplicar deve ter-se em conta, à luz do objectivo da ressocialização, a ausência de antecedentes criminais, as suas condições pessoais, encontrando-se inserido socialmente e profissionalmente, por um lado, e por outro, apesar do tempo decorrido desde a data dos factos que aqui assume pouca relevância considerando que tal se deve ao percurso processual dos autos, o incumprimento parcial das obrigações a que ficaram subordinadas as suspensões das penas (sendo que o arguido apenas entregou cerca de 21% (109.407,86€x100%/500.000,00€) da primeira prestação já vencida e de 4% do total que deve entregar fixado na condenação referida em 1) apesar de saber desde há muito da instauração dos autos (e da eventual responsabilidade pelo falta de entrega do imposto), apesar de manter a mesma atividade lucrativa (venda e revenda de produtos petrolíferos) por via da qual se apropriou das quantias do Estado e de ser proprietário de património societário e predial (ainda que atualmente possa integrar a herança da mulher). Entende-se, pois, que as exigências de prevenção especial são elevadas. Assim, conjugado, considera-se justo, adequado e proporcional aplicar uma pena dentro do primeiro terço da moldura, em concreto, a pena de 5 anos e 6 meses de prisão.” E a segunda decisão proferida, objecto do segundo recurso interposto, foi a seguinte: “I. Da nulidade da decisão Tendo sido invocada a nulidade da decisão com fundamento em omissão de pronúncia nos termos do artigo 379.º, n.º 1, c) do Código de Processo Penal, cumpre proferir o despacho a alude o artigo 414.º, n.º 4 do Código de Processo Penal. 1. Vem o recorrente, em primeiro lugar, invocar a nulidade do acórdão por falta de fundamentação relevante para a determinação da pena única fixada, invocando o disposto no n.º 2 do artigo 374.º e alínea a) e n.º1 do artigo 379.° ambos do Código de Processo Penal. Revisitado o acórdão em crise, entende-se que inexiste qualquer omissão de pronúncia, antes tendo o Tribunal se pronunciado e fundamentado a sua decisão em termos claros e suficientemente explícitos no que se refere à determinação da medida da pena. Aliás, a isso o obriga o disposto no artigo 9º-A do Código de Processo Civil aplicável ex vi artigo 4º do Código de Processo Penal, no qual se consagra o princípio da utilização de linguagem simples e clara. Face ao que, por falta de verificação da nulidade arguida, mantém-se o acórdão proferido nos seus exactos termos. Cúmulo Jurídico Vem o recorrente, em segundo lugar, arguir a nulidade da decisão de pronúncia alegando para tanto que tendo o cúmulo por objeto duas penas de prisão suspensas na sua execução devia o Tribunal ter-se pronunciado e procedido ao desconto da parte das penas que foram cumpridas nos termos do disposto no artigo 81.º, n.º2 do Código Penal, nos termos e pelos fundamentos mais bem descritos no seu requerimento. Apreciando. A decisão recorrida teve como objecto o cúmulo jurídico das penas em que o arguido foi condenado nos seguintes processos: - por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto em 09.06.2020, transitado em julgado em 05.11.2020, no processo nº200/04...., do Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., foi decidido: i. condenar o arguido pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal do artigo 105º, nºs 2 e 4 do RGIT, na pena de 3 anos de prisão; ii. condenar o arguido pela prática de um crime de branqueamento de capitais do artigo 368º-A, nºs 2 e 10 do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão; iii. condenar o arguido, em cúmulo jurídico, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão; iv. suspender a execução da pena pelo mesmo período de tempo – 4 anos e 6 meses – nos termos do artigo 50.º, nºs 1 e 5 do Código Penal; v. subordinar a suspensão de execução da pena, pelo mesmo período de tempo (4 anos e 6 meses), ao pagamento da quantia, ao Estado, no valor de 2.500.000,00€, faseadamente, em prestações, no valor cada uma de 500.000,00€, cuja primeira vence-se 12 meses após o trânsito em julgado da decisão e as subsequentes, respetivamente, aos 24, 36, 48 e, a última, aos, 54 meses (500.000,00 X 5 = 2.500.000,00€); - por acórdão proferido em 09.06.2020, transitado em julgado em 26.11.2020, no processo nº200/04...., do Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., o arguido foi condenado pela prática de autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso de confiança dos artigos 105º, nºs 1, 4 e 5 do RGIT (Regime Geral das Infrações Tributárias, Lei nº 15/2001, de 05/06), na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de cinco anos, na condição de pagar nesse período, o valor de €48.000,00 (quarenta e oito mil euros) e respetivos acréscimos legais, sendo que metade do valor, ou seja, de €24.000,00 (vinte e quatro mil euros) deverá estar liquidado até metade do período de suspensão da execução da pena de prisão, ou seja dentro de dois anos e seis meses, após trânsito em julgado. Nos termos da decisão proferida foi decidido condenar o arguido na pena única de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão. Vejamos, em primeiro lugar, questão da natureza do desconto. Com efeito, antes de mais cumpre saber se o desconto constituiu uma operação em sede de execução de penas ou se corresponde a um caso especial de determinação da pena. Subscrevendo o segundo entendimento referido veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07.12.2022, p. 3130/22.4T8BRG.S1, disponível in www.dgsi.pt. De acordo com tal posição haveria de proceder ao desconto da parte das penas de prisão suspensas já cumpridas antes de se proceder à operação de cúmulo e relativamente a cada uma das penas. Com efeito, ali se decidiu que: “V- Ora, o desconto equitativo a que se refere o artigo 81.º, n.º 2, do CP reporta-se a cada pena anterior que vai ser imputado na nova pena de diferente natureza, não podendo ser calculado de forma global, como o foi na decisão impugnada. Com efeito, a forma como foi efetuado o desconto global na decisão sob recurso peca por falta de fundamentação, na medida em que fica sem se saber qual foi o valor ou medida do desconto equitativo por cada pena anterior que foi englobada no cúmulo jurídico e que terá de ser imputado na nova pena de prisão efetiva que foi aplicada.” No indicado acórdão, para sustentação da posição adotada, diz-se que “entendemos, na linha do exposto no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 9/2011, de 23.11, que se justifica «plenamente o tratamento sistemático do instituto do desconto no quadro da determinação da pena porque o desconto transforma o quantum da pena a cumprir; embora a pena, na sua espécie e gravidade, esteja definitivamente fixada antes de o tribunal considerar a questão do desconto, o que é certo é que a gravidade da pena a cumprir é também determinada pela decisão da questão do desconto (…). Tudo leva, assim, a que o desconto - mesmo quando legalmente predeterminado - deva ser sempre mencionado na sentença condenatória (…)». O referido aresto do Supremo Tribunal de Justiça nº 9/2011, de 23.11, publicado in Diário da República nº225/2011, Série I de 2011-11-23, no entanto, uniformizou a jurisprudência nos seguintes termos: “Verificada a condição do segmento final do artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal - de o facto por que o arguido for condenado em pena de prisão num processo ser anterior à decisão final de outro processo, no âmbito do qual o arguido foi sujeito a detenção, a prisão preventiva ou a obrigação de permanência na habitação -, o desconto dessas medidas no cumprimento da pena deve ser ordenado sem aguardar que, no processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas, seja proferida decisão final ou esta se torne definitiva.” Ou seja, salvo, s. m. o., por via do referido aresto não se cristalizou o entendimento de que o desconto deve preceder a fixação da medida da pena, antes que o desconto (de medida privativa de liberdade) deve ser aplicado na sentença que proceder à determinação da medida da pena, após esta, para efeitos do cumprimento da pena. Como ali se refere, o entendimento adotado sobre o tratamento sistemático do desconto é justificado “seja qual for a posição que se adopte quanto à natureza jurídica do desconto - caso especial de determinação da pena ou regra legal de execução da pena (30)”, daqui decorrendo que ali não se adotou uma posição inequívoca sobre a natureza do desconto (sublinhado nosso). De referir ainda que no acórdão de uniformização de jurisprudência se admitiu expressamente a possibilidade de se proceder ao desconto somente após a sentença condenatória, em decisão judicial posterior, quando as medidas privativas de liberdade tenham tido lugar em processo distinto e das mesmas não se tenha conhecimento. Invoca-se ainda, para defesa do desconto enquanto caso especial de determinação da pena, os ensinamentos de Figueiredo Dias (in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pp. 298-299) quando refere que “Já se pretendeu que sendo o funcionamento do desconto «automático» - talvez melhor: «obrigatório» -, ele deixa de constituir um caso especial de determinação da pena, para se tornar em mera regra legal de execução: com a consequência de que o desconto não precisaria de ser mencionado na sentença, tornando-se tarefa das autoridades competentes para a execução. É pelo menos duvidoso que assim deva ser entre nós, Por um lado, como veremos, em certas hipóteses o juiz fará na pena não o desconto pré-determinado na lei, mas aquele que lhe parecer «equitativo» - o que afasta de todo a hipótese de se falar, então, em mera regra de execução da pena; por outro lado, mesmo quando pré-determinado legalmente, o desconto transforma o quantum da pena a cumprir pelo agente, o que basta para justificar o tratamento sistemático do instituto do desconto entre os casos especiais de determinação da pena. Tudo convida, assim, a que o desconto seja sempre - mesmo quando legalmente pré-determinado - mencionado na sentença condenatória”. Em sentido inverso, veja-se Hans-Heinrich Jescheck (in Tratado de Derecho Penal, «Parte Geral», tradução e adições de Direito espanhol por S. Mir Puig e F. Muñoz Conde, volume segundo, Bosch, Casa Editorial, S. A., p. 1223 apud Ac. STJ nº9/2011) que defende que o carácter obrigatório do desconto o converte em regra legal de execução da pena. Todavia, e independentemente de saber se deve ou não proceder-se ao desconto no caso das penas de prisão suspensas, não se afigura que tal deva ocorrer antes do momento da fixação da pena, mesmo nas situações de cúmulo jurídico sob pena de subversão das normas nas quais se preveem os critérios de fixação da pena, mormente dos artigos 70º, 71º e 77º do Código Penal. Situação diferente é a de proceder ao desconto na decisão da fixação da pena após esta, quando é conhecido o cumprimento anterior de outra pena ou medida que deva ser descontada nos termos fixados pelo AFJ nº 9/2011. É que, veja-se, não é concebível proceder ao desconto de uma pena de prisão ou de uma medida de prisão preventiva ou de permanência na habitação numa pena que ainda não foi fixada. E assim também não o deve ser, s.m.o., numa pena resultante da operação de cúmulo jurídico, seja efectuado antes ou depois do trânsito em julgado de alguma das condenações por qualquer um dos crimes em concurso. Com efeito, tal somente pode suceder após a determinação da pena em que o agente deve ser condenado, para efeitos de se determinar qual o quantum dessa pena que ainda deve ser cumprido. Aliás, parece-nos, que somente dessa forma é que é alcançado o benefício decorrente da aplicação de uma pena única resultante da operação do cúmulo jurídico, pois que, o desconto prévio a tal determinação, ou seja, apenas relativo à pena parcelar, acabaria por ser inferior ao obtido se realizado relativamente à pena única. Ainda que tal possa suscitar questões sobre a aplicabilidade do instituto da suspensão da pena, quando a pena resultante do desconto seja inferior a 5 anos, parece-nos que o legislador assim não o entendeu, pois que, não consagrou norma idêntica à do artigo 43º, nº2, b) do Código Penal (na qual se prevê a possibilidade de cumprimento em regime de permanência na habitação de “pena de prisão efetiva não superior a dois anos resultante do desconto previsto nos artigos 80.º a 82.º”). Em segundo lugar, independentemente do momento a que poderia haver lugar a tal desconto, cumpre apurar se deve ter lugar o desconto equitativo relativamente a penas suspensas. Dispõe-se no artigo 81º do Código Penal que: “1 - Se a pena imposta por decisão transitada em julgado for posteriormente substituída por outra, é descontada nesta a pena anterior, na medida em que já estiver cumprida. 2 - Se a pena anterior e a posterior forem de diferente natureza, é feito na nova pena o desconto que parecer equitativo.” Refere Figueiredo Dias (in ob. cit., pp. 300-301), a propósito do desconto equitativo a que alude o nº2 do artigo 81º do Código Penal que: “Da leitura dos artigos 80.º a 82.º parece resultar que, no pensamento da lei, o instituto do desconto só funciona relativamente a privações da liberdade processuais, a penas de prisão e (ou) a penas de multa, já não relativamente a outras penas de substituição e a medidas de segurança. Uma tal restrição não parece, porém, ao menos em todos os casos pensáveis, político-criminalmente justificável. Melhor será, por isso, considerar que se está perante uma lacuna, que o juiz pode integrar - tratando-se como se trata de uma solução favorável ao delinquente -, sempre que possa encontrar um critério de desconto adequado ao sistema legal e dotado de suficiente determinação. (...) O critério da equitatividade permite que, com ele, se preencha a lacuna atrás anotada (...), relativa aos casos em que a pena - anterior ou (e) posterior - é uma pena diferente da prisão ou multa (...): em todos estes casos o tribunal deve, por analogia favorável ao condenado, fazer na nova pena o desconto que lhe parecer equitativo”. Todavia, o referido Mestre não se pronuncia expressamente sobre a possibilidade de desconto das penas de suspensão substituídas por penas de prisão, nem aponta qualquer critério de desconto adequado ao sistema legal e que seja dotado de suficiente determinação. É que tais palavras foram escritas antes da alteração legislativa de 2017 do Código Penal (cfr. Lei nº 94/2017, de 23.08, com início de vigência a partir de 21.11.2017), por via da qual o legislador veio estabelecer os critérios para o desconto nas penas de prisão das penas cumpridas de proibição do exercício de profissão, função ou atividade (cfr. artigo 46º, nº5 do Código Penal) e de prestação de trabalho a favor da comunidade (cfr. artigo 59º, nº4 do Código Penal), sendo que até então tinha de se proceder ao desconto equitativo nos termos do artigo 81º, nº2 do Código Penal. Apesar disso, conforme supra se enunciou, parte da jurisprudência tem vindo a entender que se deve proceder ao desconto das penas de prisão suspensas, em particular quando sujeitas a condições já cumpridas, que venham a ser substituídas por penas de prisão efetiva com recurso à analogia (cfr. acórdãos do STJ de 07.12.2022, p. 3130/22.4T8BRG.S1, de 09.02.2022, p. 21461/21.9T8LSB.S1 e de 12.10.2022, p. 277/08.3TAEVR.S1, disponíveis in www.dgsi.pt). Em sentido negativo pronunciaram-se os acórdãos do STJ de 02.10.2019, p. 1379/19.6T8SNT.L1.S1, de 20.01.2010, p. 392/02.7PFLRS.L1.S1 e de 17.12.2009, p. 328/06.6GTLRA.S1, disponíveis in www.dgsi.pt, limitando-se a afirmar que apenas são passíveis de desconto penas ou medidas privativas de liberdade. Ora, ao contrário do que sucede com as penas de prisão, a jurisprudência de forma unânime têm entendido não ser possível englobar no cúmulo jurídico penas de prisão suspensas que tenham sido declaradas extintas em virtude de não ser possível proceder ao seu desconto. Neste sentido veja-se, inter alia, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.04.2017, p. 176/10.9IDBRG.S1, in www.dgsi.pt, no qual se decidiu que: “I - Tem sido maioritariamente entendido, neste Tribunal - e é essa a nossa posição -, que não se coloca qualquer questão de violação de "caso julgado" em relação à pena de prisão com execução suspensa que venha a ser incluída no cúmulo jurídico, mas cuja pena conjunta não seja, por sua vez, suspensa na sua execução. II - A pena única do concurso, por conhecimento superveniente, deve englobar todas as penas, ainda que suspensas, pelos crimes em concurso, decidindo-se, após a determinação da pena única, se esta deve, ou não, ser suspensa. III - Todavia, no concurso de crimes superveniente não devem ser englobadas as penas suspensas já anteriormente declaradas extintas, nos termos do artigo 57.º, n.º 1, do CP, pois, não tendo sido cumpridas as penas de prisão substituídas e, portanto, não podendo as mesmas ser descontadas na pena única, tal englobamento só agravaria injustificadamente a pena única final. (…)” Acresce ainda dizer que se entende que as penas de prisão suspensas, atento o regime que decorre do artigo 56º do Código Penal, só se consideram efetivamente cumpridas no final do respetivo período. Como refere André Lamas Leite (in “Comentário ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2016, de 18 de Fevereiro de 2016”, disponível in http://bdjur.almedina.net/fartigo.php?id=70) a propósito da distinção entre penas de substituição e incidentes de execução da pena “Nas penas substitutivas, atento o seu regime condicional, a pena principal não está a ser cumprida no momento em que a substitutiva o está a ser. Um mês de adimplemento das injunções impostas em sede de pena suspensa que, entretanto, é revogada por incumprimento, não significa que a pena principal de prisão tenha sido já cumprida em um mês e que haja, por isso, de proceder ao respectivo desconto. Muito pelo contrário, atento o regime condicional a que está sujeita - repita-se -, a sanção substitutiva só se acha cumprida no final quando, ponto por ponto, a mesma não tenha conhecido incumprimentos ou, pelo menos, inadimplementos que o juiz entenda que possam comprometer os desideratos que animaram a sua determinação. atento o regime condicional a que está sujeita - repita-se -, a sanção substitutiva só se acha cumprida no final quando, ponto por ponto, a mesma não tenha conhecido incumprimentos ou, pelo menos, inadimplementos que o juiz entenda que possam comprometer os desideratos que animaram a sua determinação.” (sublinhado nosso). É que, apesar de não ser necessário uma revogação expressa das penas suspensas no cúmulo jurídico, não pode deixar de entender-se que existe um paralelismo entre ambas as situações. Ora, nos termos do artigo 56º, nº2 do Código Penal “a revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efetuado”. Pelo que, a analogia a realizar-se, face ao disposto no artigo 1º, nº3 do Código Penal e tendo em vista a observância do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, não poderia prescindir da análise e ponderação do princípio da não repetição das prestações efectuadas no âmbito da execução da pena suspensa em caso de revogação desta. De forma impressiva sobre a possibilidade de realização de cúmulo de penas de prisão suspensas na sua execução com penas de prisão em virtude do facto de não existir qualquer desconto e da possibilidade de revogação das penas suspensas que integrem o cúmulo jurídico, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06.09.2017, p. 85/13.0PJLRS-B.S1, in www.dgsi.pt, nos termos do qual se decidiu: “I - A modificação legislativa operada pela Lei 59/2007, de 04-09, no art. 78.º, n.º 1, do CP, foi incontestavelmente no sentido de incluir no cúmulo as penas cumpridas, que serão descontadas na pena única, como expressamente se dispõe no texto legal. Por força desse desconto, a inclusão dessas penas não envolve nenhum prejuízo para o condenado. II - Mas a situação é diferente quanto às penas prescritas ou extintas. Embora a letra da lei aparentemente consinta a inclusão, essas penas devem ser excluídas. É que, se elas entrassem no concurso, interviriam como factor de dilatação da pena única, sem qualquer compensação para o condenado, por não haver nenhum desconto a realizar. Ora, essas penas foram “apagadas” da ordem jurídico-penal, por renúncia do Estado à sua execução. A renúncia é definitiva. III - Recuperar essas penas, por via do concurso superveniente, seria subverter o carácter definitivo dessa renúncia. Seria, afinal, nem mais nem menos, condenar outra vez o agente pelos mesmos factos, seria violar frontalmente o princípio non bis in idem, consagrado no art. 29.º, n.º 5, da CRP. Aliás, o próprio texto da lei, ao impor o desconto das penas cumpridas, disposição redundante na medida em que o desconto sempre seria obrigatório, face ao disposto no art. 80.º, n.º 1, do CP, revela que o legislador teve apenas em mente incluir no concurso as penas cumpridas. IV - Da mesma forma, devem ser excluídas do concurso as penas de prisão suspensas declaradas extintas nos termos do art. 57.º, n.º 1, do CP, na medida em que, não podendo ser descontadas na pena única, por não terem sido cumpridas, o englobamento no concurso redundaria num agravamento injustificado dessa pena. V - A admissibilidade de concurso entre penas de prisão efetivas e suspensas, ou melhor, a admissibilidade de revogação da suspensão de uma pena suspensa em concurso de conhecimento superveniente tem sido controvertida na doutrina e na jurisprudência. VI - Sendo o conhecimento do concurso simultâneo, não existem dúvidas de que o tribunal deve começar por determinar as penas parcelares, decidindo, a final, perante a pena conjunta fixada, pela suspensão, ou não, desta pena. O problema coloca-se quando o conhecimento do concurso de penas (de prisão) é superveniente, sendo uma, ou mais, das penas parcelares suspensas, e a outra, ou outras, efetivas. Aqui existem divergências doutrinais e jurisprudenciais, embora seja largamente dominante a orientação no sentido da admissibilidade de cumulação de penas efetivas com penas suspensas de prisão, ainda que tal acumulação conduza à revogação da suspensão. VII - Nesta perspetiva, podem, pois, no conhecimento superveniente de concurso, ser revogadas as penas suspensas que entram nesse concurso. Como pode igualmente, caso se verifique o condicionalismo legal, formal e material, ser suspensa a pena única de um concurso entre penas suspensas e penas efetivas de prisão. VIII - Acrescente-se que, em qualquer caso, as penas suspensas só entrarão no cúmulo se ainda não tiverem decorrido os respetivos prazos, ou se tiver sido revogada a suspensão. Consequentemente, serão excluídas do concurso as penas extintas, bem como as penas suspensas cujo prazo findou, enquanto não houver decisão sobre a extinção da pena. IX - Esta posição foi, porém, vigorosamente contestada por Nuno Brandão, em comentário ao acórdão deste STJ de 03-07-2003. Defende ele que aquela orientação não tem em conta as razões que fundam a aplicação das regras do concurso ao concurso de conhecimento superveniente. E que está ferida de inconstitucionalidade, por violação do caso julgado, consagrado no art. 29.º, n.º 5, da CRP. Segundo o mesmo autor, o que justifica a aplicação ao concurso supervenientemente conhecido das regras do concurso é unicamente a aplicação de uma pena mais favorável ao condenado. Por isso, em seu entender, se tal não acontecer, deve ser atribuída ao condenado a faculdade de optar entre a acumulação das penas e o cumprimento separado das mesmas. Assim, no concurso entre penas de prisão efectivas e suspensas, a realização do cúmulo dependeria do consentimento do condenado. X - Estes argumentos não procedem. Desde logo, não é correcto afirmar que a aplicação das regras do concurso ao concurso de conhecimento superveniente tenha exclusivamente em vista beneficiar o condenado. Tal acontecerá eventualmente com frequência. Mas não é esse o fundamento da solução legislativa. A intenção da lei é tratar de forma igualitária os dois tipos de concurso, já que, no caso de concurso de conhecimento superveniente, só por razões aleatórias ou fortuitas o tribunal não procedeu atempadamente à aplicação da pena única. Sendo assim, nenhuma razão de ordem material existe para distinguir entre as duas situações. XI - São essencialmente razões de política criminal que fundamentam o sistema da pena conjunta: a definição da pena adequada, no caso de pluralidade de penas, em função da globalidade dos factos apurados e da personalidade revelada pelo condenado. São, pois, interesses eminentemente de ordem pública que fundamentam o sistema da pena conjunta. E daí que seja liminarmente de recusar a tese da atribuição ao condenado da faculdade de “optar” entre a pena única e o cumprimento das penas em separado. XII - Por outro lado, a acumulação entre penas de prisão efectivas e suspensas não viola o caso julgado. Na verdade, a substituição não transita em julgado. É evidente que a sentença que decreta a substituição da pena transita: a opção pela substituição estabiliza. Mas a substituição não fica definitivamente garantida, antes está sujeita à condição resolutiva do decurso do prazo sem se registar a prática pelo condenado de novos crimes (e eventualmente pelo cumprimento de deveres e condições, por parte deste). O caso julgado abrange, afinal, somente a medida concreta da pena de prisão (principal), mas não a forma da sua execução. XIII - É claro que a revogação da suspensão exige uma decisão transitada em julgado. E pode ainda afirmar-se que o condenado em pena suspensa tem a expetativa de, cumprindo o devido e comportando-se de acordo com o direito, ver a pena suspensa declarada extinta. E também se poderá aditar que a suspensão da pena de prisão envolveu necessariamente um juízo de prognose positiva por parte do tribunal que a decretou, devendo assim aguardar-se o termo do prazo. XIV - Mas esta perspetiva escamoteia outra vertente da questão. É que, ao ser decidida a suspensão, o tribunal ignorava a verificação de um concurso de penas. Teria o tribunal efetuado o mesmo juízo se conhecesse esse facto? Não alteraria decisivamente os dados da questão o conhecimento da existência de outras condenações? XV - Por outro lado, a proteção da assinalada “expectativa” do condenado só se justificaria se o instituto da pena conjunta se fundasse no favor rei. Já vimos que não é assim. São razões de ordem pública que o justificam. São essas razões que impõem o tratamento igualitário do concurso de penas, seja ele de conhecimento contemporâneo, seja de conhecimento superveniente. Doutra forma, conceder-se-ia um benefício injustificado ao condenado em pena suspensa, caso essa suspensão não se justificasse se os factos fossem apreciados contemporaneamente com os restantes em concurso. XVI - Concluindo, dir-se-á que a aplicação de uma pena conjunta depende de um juízo global sobre os factos e a personalidade do agente (art. 77º, nº 1, do CP). O princípio da pena conjunta, com imposição de uma pena única a cumprir, não se compadece com avaliações parcelares dos factos e necessariamente da personalidade do agente. A exclusão das penas suspensas do concurso invalidaria a visão conjunta que a lei considera determinante para a imposição de uma pena única. Só a avaliação global dos factos e da personalidade do agente, nela incluindo todas as condenações, sejam as penas efectivas ou suspensas, permitirá ao tribunal pronunciar-se sobre a medida da pena conjunta, podendo então decidir-se eventualmente pela suspensão dessa pena, caso se verifiquem os condicionalismos legais. Adota-se, pois, resolutamente a posição dominante nesta matéria, admitindo-se, assim, o concurso de penas de prisão efetiva e de prisão suspensa.” (sublinhado e negrito nossos) Isto para dizer que se entende que inexiste qualquer omissão de pronúncia na medida em que se entende que não há lugar à operação de desconto das penas suspensas em que o arguido foi condenado. Ainda que assim não se entendesse, no caso concreto, verifica-se que pouco tempo decorreu desde o trânsito em julgado das decisões objecto do cúmulo (05.11.2020 e 26.11.2020), atento o período das suspensões das penas determinado (4 anos e 6 meses e 5 anos respectivamente), e que, conforme se escreveu na decisão em crise se verifica o incumprimento das obrigações a que ficaram subordinadas as suspensões das penas, tendo apenas o arguido apenas entregue “cerca de 21% (109.407,86€ x 100% / 500.000,00€) da primeira prestação já vencida e de 4% do total que deve entregar fixado na condenação referida em 1) apesar de saber desde há muito da instauração dos autos (e da eventual responsabilidade pelo falta de entrega do imposto), apesar de manter a mesma atividade lucrativa (venda e revenda de produtos petrolíferos) por via da qual se apropriou das quantias do Estado e de ser proprietário de património societário e predial (ainda que atualmente possa integrar a herança da mulher)”, conforme referido na decisão recorrida. Concluindo-se, por isso, que não deveria haver lugar a qualquer desconto por não se verificar o cumprimento das obrigações das penas suspensas e não serem procedentes as razões de tal falta, caso o tal fosse admissível. Aliás, sempre se diga que além de se ter sido ponderada a exequibilidade do seu cumprimento nos acórdãos condenatórios e que as quantias se referem parte do montante de que o arguido beneficiou com a prática dos crimes. Pelo que, fica, assim, suprida a eventual omissão de pronúncia que se encontrasse verificada.” 2. Fundamentação Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas respectivas conclusões (art. 412.º, n.º 1, do CPP), as questões a apreciar respeitam a: No recurso principal - (a) nulidade do acórdão por falta de fundamentação da pena única - arts 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, al. a) do CPP; (b) Impugnação da medida e espécie da pena única; (c) Ponderação do desconto equitativo por cumprimento parcial das penas de prisão suspensas. No recurso subsequente – (d) (i)legalidade do despacho proferido em data posterior ao acórdão. 2. (a) Da nulidade do acórdão por falta de fundamentação da pena única O recorrente começa por suscitar a nulidade prevista no art. 379.º, n.º 1, al. a) do CPP, assente num alegado incumprimento do art. 374.º, n.º 2, do CPP. Argumenta que o acórdão recorrido não fundamentou suficientemente a determinação da pena conjunta e não assegurou a controlabilidade e racionalidade da medida da pena de prisão imposta; que se impunha um exame crítico de ponderação conjunta sobre a interligação dos factos com a personalidade do recorrente, por forma a valorar-se o ilícito global; que o dizer-se justa, adequada e proporcional uma pena dentro do primeiro terço da moldura é uma afirmação genérica desprovida de exame crítico; que o cúmulo jurídico não se basta com uma mera operação aritmética, e que da fundamentação não é possível extrair as características da personalidade do arguido que determinaram a pena única de cinco anos e seis meses de prisão. Em suma, e sempre na sua alegação, o acórdão seria omisso quanto a um exame crítico de ponderação conjunta sobre a interligação entre os factos e a personalidade do recorrente, de molde a saber-se se o conjunto dos factos delituosos em concurso exprimem uma inclinação criminosa ou apenas constituem delitos ocasionais não radicados na personalidade do arguido. O Ministério Público contrapôs que no acórdão recorrido se encontra descrita toda a factualidade relevante para a valoração do ilícito global perpetrado pelo arguido; que no concernente à fundamentação de direito se considerou a elevada gravidade dos ilícitos perpetrados atentos os valores em causa, sendo que relativamente a cada um dos crimes de abuso de confiança fiscal o valor do IVA não entregue ascendeu a € 9.699.909,38 e a €1.493.013,64, e que ao primeiro se associa um crime de branqueamento de capitais, que os crimes foram praticados no período de cerca de três anos e que as consequências se traduziram em prejuízo bastante considerável para o Estado, sendo as exigências de prevenção geral muito elevadas; que a decisão mostra ter tido em conta a personalidade do arguido, a ausência de antecedentes criminais, as suas condições pessoais, encontrando-se inserido socialmente e profissionalmente, por um lado, e pelo outro, apesar do tempo decorrido desde a data dos factos ter-se atendido ao incumprimento parcial das obrigações a que ficaram subordinadas as suspensões das penas. Considera não ser verdade que o Tribunal a quo tenha desconsiderado o teor do relatório social, tendo feito um exame crítico de ponderação conjunta sobre a interligação entre os factos e a personalidade do condenado, nomeadamente, quando refere que o mesmo não tem antecedentes criminais, não obstante, “o incumprimento parcial das obrigações a que ficaram subordinadas as suspensões das penas”. Conclui, assim, o Ministério Público não se estar perante qualquer insuficiência de fundamentação de direito, uma vez que, o acórdão recorrido, na determinação da pena conjunta assegura a controlabilidade e a racionabilidade da medida da pena única de 5 anos e 6 meses de prisão imposta ao recorrente, não padecendo, por isso, de deficiente fundamentação. As considerações efectuadas pelo Ministério Público e ora enunciadas em síntese, contrariamente às desenvolvidas pelo recorrente no que a apodadas insuficiências de fundamentação respeita, estão em total correspondência com o acórdão recorrido. O acórdão encontra-se transcrito em 2.1., na parte que interessa ao recurso, e é visível a razão do Ministério Público na conclusão que formula e na motivação que a precede. As suas afirmações, repete-se, contrariamente às do recorrente, estão em total coerência com o texto do acórdão. Desde logo, constata-se que a decisão recorrida se encontra dotada de toda a factualidade necessária à decisão, descrevendo exaustivamente os factos que relevaram para a culpabilidade (e quanto a cada um dos três crimes em concurso), bem como todos os factos relativos à personalidade do arguido, às suas condições pessoais, e aos antecedentes criminais. A fundamentação de facto é de considerar, assim, exaustiva. E àquela alia-se a fundamentação de direito, procedendo-se subsequentemente a uma avaliação dos factos em conjunto com a personalidade do arguido e justificando-se a pena única que se considerou adequada em função de exigências de prevenção. Procedeu-se pois, no acórdão, a uma avaliação do ilícito global perpetrado, ponderando-se a conexão e o tipo de conexão entre os factos concorrentes, e a sua relação com a personalidade do arguido. Não deixa de se lembrar que a sindicância sobre nulidades de acórdão por deficiências de fundamentação se processa necessariamente em concreto, no contexto do recurso em que a nulidade é arguida. E sendo os recursos meios de reparação de erros de julgamento que não servem o mero aprimoramento de decisões eventualmente menos perfeitas, défices de fundamentação que não tornem a decisão incompreensível e não inviabilizem a análise no contexto do recurso interposto, não devem conduzir à declaração de nulidade por deficiências de fundamentação. Do regime geral das nulidades (art. 122.º do CPP - Efeitos da declaração de nulidade) resulta que a declaração de nulidade visa invalidar o acto nulo praticado, sendo repetido aquilo que for necessário repetir e devendo ser aproveitado tudo o que puder ser salvo do efeito daquela. Não interessando, por um lado, a análise da decisão recorrida numa perspectiva abstracta da sua maior ou menor perfeição formal, e, pelo outro, contendo o acórdão todos os elementos necessários à decisão do recurso sobre a pena única do modo como este se apresenta formulado, inexiste nulidade de acórdão por deficiências de fundamentação a declarar. No entanto, da ausência de nulidade não decorre necessariamente que não se venha a considerar justificada a intervenção correctiva do Supremo no que respeita à pena única, matéria diversa, a conhecer no ponto seguinte. Em suma, não se detectam no acórdão falhas ou deficiências formais de fundamentação. E saber se o conjunto dos factos – se o grande facto – revela efectivamente um ilícito global desvalioso mensurável no exacto ponto de pena considerado no acórdão recorrido, é já um problema substancial, de medida e escolha de pena, e não um problema de deficiência formal de fundamentação (da pena). Essa (nova) questão, material, será abordada no ponto seguinte, e a mesma já não respeita à nulidade arguida. 2.(b) Da medida e espécie da pena única O recorrente impugna a pena única na vertente das suas medida e espécie. Pugna pela redução da pena de 5 anos e 6 meses de prisão para 5 anos de prisão e pela aplicação de pena de substituição prisão suspensa. Não traz ao recurso como questão (e não impugna) o condicionamento da suspensão ao cumprimento das condições que foram impostas nas penas (parcelares e única) já proferidas, aceitando-a até na motivação, como condicionante da pena suspensa que peticiona a final. Não traz também às conclusões a matéria da possibilidade de efectivacão de cúmulo jurídico de penas de prisão não efectivas - as (três) penas parcelares que integram o presente cúmulo são de prisão suspensa – embora na motivação teça breve alusão a este tema. Ali disse o arguido, laconicamente, que “mesmo que se admita que o facto de existirem penas parcelares suspensas na sua execução não impede que sejam integradas num novo cúmulo jurídico, o certo é que não se abdica que, mesmo aceitando tal posição, a mesma não pode constituir argumento para que se ignore as situações em que parte da(s) pena(s) já tenham sido cumprida(s) desse modo, suspensas na sua execução”. Ou seja, a menção ora transcrita indicia que a referência ao tema do cúmulo jurídico de penas suspensas surge como meramente instrumental da questão posteriormente suscitada: a relativa ao desconto proporcional. E embora não podendo considerar-se a problemática do cúmulo de penas de prisão suspensa como questão autónoma trazida ao recurso, não deixa de se consignar que o Supremo tem reiterado a jurisprudência no sentido da inclusão das penas de prisão suspensas no cúmulo jurídico, em conjunto com penas de prisão efectivas ou em aglutinação com outras parcelares de idêntica natureza, como sucede aqui. Mostra-se, pois, juridicamente viável aplicar uma pena única de prisão efectiva, precluindo as suspensões de prisão anteriormente decididas nas penas parcelares que se aglutinam. E esta jurisprudência, hoje uniforme, do Supremo Tribunal de Justiça tem merecido pronúncia de não inconstitucionalidade, como pode ver-se designadamente nos acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 3/2006 e 341/2013. Neste último, o Tribunal Constitucional refere que "tendo em conta as regras estabelecidas para o conhecimento superveniente do concurso, o tribunal que procede ao cúmulo, na ponderação da pena única a aplicar, terá de proceder a uma avaliação conjunta dos factos e da personalidade do agente, sendo essa necessidade de avaliação conjunta que determina que se considere nessa ponderação todas as condenações, sejam elas em pena de prisão efetiva ou suspensa, de modo a poder pronunciar-se sobre a medida da pena conjunta e, então, decidir ou não pela suspensão dessa pena, como faria caso o conhecimento do concurso fosse simultâneo e não superveniente. Ou seja, a não manutenção da suspensão da pena não está diretamente fundada em factos anteriores à sentença que outorgou a suspensão de execução de pena privativa de liberdade, mas sim na circunstância de só posteriormente se ter conhecimento desses factos e, por essa razão, se ter de proceder supervenientemente ao cúmulo jurídico". Considera-se, para tanto, que uma vez constatada uma situação de concurso efectivo de crimes, o princípio da pena única impõe a prolação da pena aglutinadora. E considera-se também que inexiste afronta ao caso julgado formado pela decisão que aplicou pena suspensa, pois o caso julgado dessa decisão formou-se apenas quanto à escolha e medida concreta da prisão principal aplicada. A substituição da prisão encontra-se invariavelmente sujeita a condições resolutivas: a do decurso do prazo sem prática de novos crimes, em todos os casos; a do cumprimento de deveres e condições, em determinados casos. E se ao ter inicialmente determinado a suspensão da prisão o tribunal desconhecia o concurso de crimes, as novas condenações entretanto conhecidas determinam a necessária reapreciação da anterior decisão, cujo caso julgado se encontra sujeito à cláusula rebus sic stantibus. Como ilustrativos da posição do Supremo, vejam-se os acórdãos seguintes: - acórdão do STJ de 15-07-2020 (Rel. Manuel Matos) “I - O STJ tem examinado a questão da inclusão de uma pena suspensa numa decisão de cúmulo jurídico de penas, no âmbito de um concurso superveniente de crimes, entendendo que as penas suspensas deverão ser englobadas no cúmulo jurídico desde que não tenham sido declaradas extintas pelo decurso do prazo de suspensão. II – De acordo com a posição predominante, no sentido da inclusão da pena de prisão suspensa na execução, defende-se que a “substituição” deve entender-se, sempre, resolutivamente condicionada ao conhecimento superveniente do concurso e que o caso julgado se forma quanto à medida da pena e não quanto à sua execução.” - acórdão do STJ de 29-09-2021 (Rel. Nuno Gonçalves): “V - A pena suspensa que esteja em execução, cumula-se juridicamente com as penas parcelares de prisão aplicadas por crimes do mesmo concurso, sem que tenha de ser previamente revogada a suspensão da execução da pena de prisão.” - acórdão do STJ de 06-10-2021 (Rel. Sénio Alves) “I - Em caso de conhecimento superveniente de concurso, tudo deve processar-se como se o conhecimento fosse contemporâneo. Daí que a suspensão da execução da pena se deva considerar resolutivamente condicionada ao conhecimento superveniente do concurso, sendo certo que o caso julgado se forma quanto à medida da pena e não quanto à sua execução.” Assim, dúvidas inexistem também (e o recorrente não o questiona) que as três penas que integram o presente cúmulo jurídico e compõem a pena única recorrida correspondem a três crimes que se encontram entre si numa relação de concurso efectivo. E na pluralidade de infracção a regra é a de que o concurso de crimes dá lugar ao concurso de penas, por contraposição à sucessão de crimes que dá lugar à sucessão de penas. As penas correspondentes a crimes que se encontrem numa relação de concurso efectivo e/ou real devem ser cumuladas juridicamente, e isto independentemente de o conhecimento desse concurso poder vir a ser superveniente, como sucede no caso presente. Daí que o art. 78.º do CP mande aplicar as regras do art. 77.º (regras da punição do concurso) ao conhecimento superveniente do concurso. Ensina Figueiredo Dias que “a generalidade das legislações manda construir para a punição do concurso uma pena única ou pena do concurso, desde logo justificável à luz da consideração – necessariamente unitária – da pessoa ou da personalidade do agente; e politico-criminalmente aceitável à luz das exigências da culpa e da prevenção (sobretudo de prevenção especial) no processo de determinação e de aplicação de qualquer pena” (Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 2005, p. 280). Ainda segundo o Professor, a mera adição mecânica das penas faz aumentar injustamente a sua gravidade proporcional e abre a possibilidade de ser deste modo ultrapassado o limite da culpa. Pois se a culpa não deixa de ser sempre referida ao facto (no caso, aos factos), a verdade é que, ao ser aferida por várias vezes, num mesmo processo, relativamente ao mesmo agente, ela ganha um mesmo efeito multiplicador. (…) Por outro lado, uma execução fraccionada (…) opõe-se inexoravelmente a qualquer tentativa séria de socialização” (Jorge de Figueiredo Dias, loc. cit.). Razões de culpa, de prevenção e da personalidade da pessoa justificam, pois, o cúmulo jurídico de penas. E lembra Cavaleiro de Ferreira que o cúmulo material de penas não só não é adoptado na lei vigente, como nunca o foi por nenhum dos códigos penais precedentes (Cavaleiro Ferreira, Lições de Direito Penal, II, 2010, p. 156). O condenado tem direito à pena única, resultante da soma jurídica das penas parcelares correspondentes aos crimes por si cometidos, desde que estes concorram efectivamente ou realmente entre si. Assim é, independentemente de o concurso ser conhecido num mesmo ou em vários processos, desde que todas as penas correspondam a crimes cometidos antes do trânsito em julgado da primeira condenação. Identificada a situação de concurso efectivo de crimes, estabilizada no processo a necessidade de efectivacão do cúmulo jurídico superveniente das três penas de prisão parcelares (inicialmente suspensas), bem como a medida da prisão principal de cada uma delas, atente-se na argumentação do recorrente quanto à questão de medida de pena única que coloca. Considera o arguido que o acórdão recorrido padece de erro de julgamento de direito, decidindo em violação dos arts. 71.º, 77.º e 78, do CP, mostrando-se a pena única de 5 anos e 6 meses de prisão inadequada e desproporcionada; que seria adequada e proporcional a pena de 5 anos, suspensa na sua execução por igual período, mesmo que sujeita às condições já impostas; que não se alcança como o tribunal decidiu que as exigências de prevenção especial são elevadas, quando toda a factualidade aponta em sentido contrário; que os factos a que se reportam as penas parcelares remontam aos anos de 2003 a 2005, tratando-se de factos praticados há dezoito anos; que o recorrente não reincidiu na prática desses crimes, nem praticou outros, visto que “não tem averbadas no seu certificado de registo criminal outras condenações”; que na sequência das penas parcelares objecto do cúmulo jurídico entregou praticamente € 110.000,00 por forma a cumprir as obrigações impostas, estando provado que “no âmbito da execução da pena aplicada no processo 200/04...., o arguido procedeu à entrega do valor de 109.407,86€.” Conclui que a pena aplicada de 5 anos e 6 meses terá resultado de uma mera operação aritmética, em que se somou a pena parcelar mais elevada com 1/3 das duas restantes penas (de três anos) e que a utilização de fórmulas matemáticas viola a Constituição, porquanto resulta de uma interpretação do art. 77.º, do CP contrária ao art. 18.º, n.º 2, da CRP, resultando violados os princípios da necessidade da pena e da proporcionalidade ou da proibição do excesso. A tudo o Ministério Público contrapôs, em apertada síntese, e designadamente no parecer emitido no Supremo, que a medida da pena única foi fundamentada com suficiência, que a pena única é justa e criteriosa, e que não se revelaria justificada a suspensão da execução da pena de prisão objecto da condenação. Começando pelo último argumento apresentado pelo recorrente, concorda-se que a pena única não deve obedecer a fórmulas matemáticas, antes devendo determinar-se, dentro de uma moldura penal de cúmulo casuisticamente encontrada após fixação das parcelares integrantes de determinada adição jurídica de penas, procedendo-se a reavaliação dos factos em conjunto com a personalidade do arguido (art. 77.º, n.º 1, do CP), numa especial fundamentação na sentença/acórdão, e a fixar “em função das exigências gerais de culpa e de prevenção (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, loc. cit. p. 291). Sobre a desaplicação dos critérios aritméticos, veja-se o acórdão do STJ de 27-01-2022 (Rel. Orlando Gonçalves), em cujo sumário pode ler-se: “V - Existe, efetivamente uma corrente jurisprudencial que perante a constatação de grande amplitude na moldura penal do concurso, estabelece uma fração variável nas penas parcelares a somar à pena mais grave, com vista a consagrar uma alegada objetividade e igualdade entre os arguidos nas operações de fixação de penas conjuntas. VI - Esta corrente foi já de algum modo ensaiada quando entrou em vigor o CP de 1982, para as penas singulares. Alguma jurisprudência, de que são exemplos os acórdãos do STJ de 30-11-1983 e de 19-12-1984 (cf., respetivamente, BMJ n.º 331, p. 363 e BMJ n.º 342, p. 233) também seguiu o entendimento de que face à maior amplitude dos limites máximos das penas relativamente ao CP anterior, se devia definir um ponto para determinação das penas singulares, fixando esse ponto como a média entre os limites mínimo e máximo. Assim, no caso de ausência de circunstâncias que agravem ou atenuem a conduta do agente ou, havendo-as, os respetivos agravativo e atenuativo, por serem iguais, se anularem, a pena deveria a pena ser graduada em concreto à volta da média entre os limites mínimo e máximo estabelecidos em abstrato no preceito incriminatório. Essa corrente jurisprudencial não vingou muito tempo, consolidando-se na jurisprudência e na doutrina, o entendimento de que a fixação das penas singulares deve fazer-se de acordo com os critérios de determinação da pena estabelecidos no CP, onde não há referência a qualquer ponto médio entre os limites mínimo e máximo da pena estabelecida no tipo penal, como ponto de partida para fixação concreta dessa pena. VI - Em sentido contrário à corrente jurisprudencial a que se arrima o recorrente, existe uma outra, que seguimos, de que a utilização de critérios rígidos, com fórmulas matemáticas ou critérios abstratos de fixação da sua medida, não é compatível com os critérios legais. VII - Reconhecendo que a amplitude que geralmente assume a moldura penal do concurso de penas ou seja, a distância entre os limites máximo e mínimo dessa moldura, pode provocar, e muitas vezes provoca dificuldades na determinação da pena, potenciando a produção de desigualdades ou pelo menos disparidades evidentes nas decisões de tribunais diferentes, acrescenta esta corrente, que essas dificuldades, embora maiores por vezes, não são diferentes das que os tribunais enfrentam quando se trata de aplicar uma qualquer pena cujos limites sejam também afastados. O que importa é proceder a uma aplicação muito ponderada e exigente, rigorosamente fundamentada, do critério legal da determinação da pena do concurso, com referência às circunstâncias dos crimes em presença, no seu relacionamento com a personalidade do condenado, e considerando os fins das penas.” E desenvolve Rodrigues da Costa, em artigo citado no recurso (“O Cúmulo Jurídico Na Doutrina e na Jurisprudência do STJ” https: //www.stj.pt/wp-ontent/uploads/2018/01/rodrigues_costa_cumulo_juridico.pdf), que “o uso de tais fórmulas vem a traduzir-se na adição à pena parcelar mais grave de uma determinada fracção aritmética das restantes penas para, assim, se determinar a pena única, segundo um princípio de exasperação, que não corresponde ao critério da lei, chegando a considerar-se, pelo menos numa dessas fórmulas, que existe um acquis jurisprudencial de adição à pena parcelar mais alta de um terço das demais penas e reconduzindo toda a tarefa de determinação da pena única a uma função residual em que só haveria que proceder a uma reordenação cronológica dos factos e a uma actualização da história pessoal do agente dos crimes. Daí que, desse ponto de vista, não haja que interligar os factos e conexioná-los uns com os outros, de modo a obter-se um sentido do conjunto em termos de ilicitude global e de culpa referida ao todo, conjugando-os com a personalidade única e unitária do agente. Em nome da igualdade das penas, prescinde-se de saber quais são, em concreto, os factos cometidos e as circunstâncias em que foram praticados, tudo se reconduzindo a apurar quais os crimes em jogo, por referência às disposições legais atinentes e as penas aplicadas, para efeitos de se somarem, segundo uma dada proporção/compressão, à pena parcelar mais elevada.” Cada caso transporta em si a natureza de caso único e o mesmo sucede com a personalidade dos arguidos. Independentemente da multiplicidade e diversidade de factores concretos que relevam na determinação das penas (parcelares e única) e do desaconselhamento na aplicação de fórmulas aritméticas, é porém de reconhecer a importância do referente jurisprudencial na actividade, sempre judicialmente vinculada, de determinação da pena. A preocupação com o referente jurisprudencial contribui para a atenuação de eventuais disparidades na aplicação prática dos critérios legais de determinação de pena. E se bem que não se possa dizer que a pena única aplicada seguiu critérios aritméticos, como avançou o recorrente, nem que deixou de respeitar um qualquer referente jurisprudencial, justifica-se, mesmo assim, a intervenção correctiva do Supremo na medida da pena única. Constata-se que o punctum da concretização da fundamentação da pena única no acórdão se encontra no excerto seguinte: “O conjunto dos factos fornece-nos a gravidade dos ilícitos perpetrados, o que, no caso dos autos, se revela bastante elevada considerando os valores em causa, sendo que relativamente a um dos crimes de abuso de confiança fiscal o valor do IVA não entregue ascende ao valor de € 9.699.909,38 e ao outro ao valor de €1.493.013,64, e que ao primeiro de associa um crime de branqueamento de capitais, que foram praticados dentro de um período tempo de cerca de 3 anos e que as consequências das suas condutas se traduzirem em prejuízo bastante considerável para o Estado, sendo as exigências de prevenção geral muito elevadas considerando a necessidade de reafirmação da norma atento o inúmero número de vezes que o crime de abuso de confiança fiscal é praticado e a gravidade do crime de branqueamento de capitais normalmente associada aquele. Por outro lado, quanto à personalidade do arguido, na pena a aplicar deve ter-se em conta, à luz do objetivo da ressocialização, a ausência de antecedentes criminais, as suas condições pessoais, encontrando-se inserido socialmente e profissionalmente, por um lado, e por outro, apesar do tempo decorrido desde a data dos factos que aqui assume pouca relevância considerando que tal deve ser ao percurso processual dos autos, o incumprimento parcial das obrigações a que ficaram subordinadas as suspensões das penas (sendo que o arguido apenas entregou cerca de 21% (109.407,86€x100%/500.000,00€) da primeira prestação já vencida e de 4% do total que deve entregar fixado na condenação referida em 1) apesar de saber desde há muito da instauração dos autos (e da eventual responsabilidade pelo falta de entrega do imposto), apesar de manter a mesma atividade lucrativa (venda e revenda de produtos petrolíferos) por via da qual se apropriou das quantias do Estado e de ser proprietário de património societário e predial (ainda que atualmente possa integrar a herança da mulher). Entende-se, pois, que as exigências de prevenção especial são elevadas. Assim, conjugado, considera-se justo, adequado e proporcional aplicar uma pena dentro do primeiro terço da moldura, em concreto, a pena de 5 anos e 6 meses de prisão.“ O valor global do dano correspondente aos crimes cometidos pelo arguido é de facto extremamente alto. O que se repercute num elevadíssimo grau da ilicitude de todos os factos, atenta a natureza jurídica dos bens jurídicos atingidos. Na avaliação do ilícito global perpetrado, ponderou-se no acórdão a conexão e o tipo de conexão entre os factos concorrentes, e a sua relação com a personalidade do arguido, evidenciando realmente o conjunto dos factos – o grande facto - um ilícito global expressivamente desvalioso, e a personalidade do arguido revelada nos factos, agora no facto global, evidencia também um grau de culpa elevado, como se considerou no acórdão. As considerações que possam fazer-se sobre a personalidade do arguido devem cingir-se, e cingiram-se de facto, à sua personalidade revelada no facto, pois “o agente deve ser punido pelo que fez, não por aquilo que é como pessoa, ou aquilo em que se tornou por sua culpa” (Vaz Patto, Os Fins das Penas e a Prática Judiciária, www.tre.pt). É certo que, respeitando à culpa, tais considerações não puderam deixar de ter sido já incluídas no processo, prévio, de determinação das penas parcelares. Mas a sua reponderação na determinação da pena única respeita o princípio da proibição da dupla valoração (art. 72.º, n.º 2 do CP), pois como princípio extensível a todas as operações de determinação da pena, ele deve repercutir-se ao longo de todo o processo aplicativo da pena. “Aquilo que à primeira vista poderá parecer o mesmo factor concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles” (Figueiredo Dias, loc. cit., p. 292). E essa culpa revelada no facto apresenta-se aqui efectivamente muito elevada. Sucede que algumas outras circunstâncias contribuem para que fique, no entanto, por explicar a necessidade de aplicação de uma pena única de 5 anos e 6 meses de prisão, em detrimento de uma pena única de 5 anos, a qual se apresenta aqui concretamente mais justa e proporcional, e ainda adequada à garantia das finalidades da punição. Desde logo, as penas que integraram o cúmulo, todas elas transitadas em julgado e de cuja correcção não cumpre jamais ajuizar, são as seguintes: 1.ª - pena de 3 anos de prisão pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal; 2.ª - pena de 3 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime de branqueamento de capitais (estas duas penas foram logo aglutinadas na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na execução, com subordinação ao pagamento ao Estado da quantia de 2.500.000,00 € (faseadamente em prestações); 3.ª - pena de 3 anos de prisão pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, suspensa na sua execução pelo período de cinco anos, na condição de pagamento nesse período do valor de € 48.000,00 (em duas prestações). As duas primeiras penas (e a correspondente pena única) transitaram em julgado a 26.11.2020 e a terceira a 06.11.2020, tendo o arguido no decurso das suas execuções procedido a pagamento de parte das quantias condicionantes de ambas as suspensões, não tendo ocorrido revogação das suspensões. O cúmulo jurídico anterior, que dera lugar à pena de prisão suspensa de 4 anos e 6 meses de prisão condicionada nos termos expostos, foi agora desfeito apenas para aditamento da terceira pena suspensa. Todas as penas que integram o presente cúmulo respeitam a crimes por factos praticados de 2003 a 2005, ou seja, há dezoito anos, não tendo o arguido, que completará em breve sessenta anos de idade, antecedentes criminais anteriores ou posteriores aos factos. Nestas circunstâncias, o longo tempo decorrido sobre a actividade delituosa, mantendo o arguido boa conduta, não pode deixar de atenuar o juízo de censura social do(s) crime(s). Acresce que as condenações agora objecto de cúmulo, e como sinaliza o recorrente, “se reportam, na sua génese, a um único processo judicial (n.º 200/04....), que abrangia factualidade praticada, mas que, em virtude da separação processual deu origem, também, a um apenso (n.º 200/04....)”. Daí que de algum modo se compreenda a conclusão do recorrente ao referir que, “no caso concreto, transformar duas penas suspensas na sua execução, numa única pena de prisão efectiva, se mostra também excessivo e desproporcional, considerando até os fins últimos que presidem ao cúmulo jurídico de penas”. No contexto global dos factos, e apesar da expressiva gravidade e da intensa actividade delituosa, esta prática criminosa surge num período circunscrito no tempo, que não pode deixar de se considerar episódico na vida do concreto arguido, pessoa familiar, profissional e socialmente enquadrada, como resulta dos factos provados. Parece poder assim concluir-se tratar-se, não de uma particular tendência para a prática do crime radicada na personalidade do agente, mas de uma pluralidade de condutas ocasionais que não revelam uma personalidade a tal ponto desvaliosa que se deva atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. Na conhecida lição de Figueiredo Dias, “de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”, e a pena única de 5 anos de prisão, que torna então viável, e recomendável, a suspensão condicionada à (continuação da) reparação do mal do crime, mostra-se (mais) eficaz na garantia de todas as finalidades da punição. Satisfaz claramente as de prevenção especial e, atento o forte reforço da suspensão da prisão com o cumprimento da reparação do mal dos crimes, não deixa de assegurar também as finalidades de prevenção geral. De todo o exposto resulta que a pena de 5 anos de prisão é a que melhor se adequa aos princípios da proporcionalidade e da necessidade, permitindo ainda a suspensão da execução da prisão, reforçada com as condições já impostas nas parcelares cumuladas, condicionamento que o arguido não discutiu no recurso. Na verdade, do art. 50.º, n.º 1 do CP resulta que o tribunal tem de fundamentar (acrescidamente) a decisão de não suspensão da execução de uma pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos (v.g. Ac. TC n.º 61/2006, sendo ainda esta a jurisprudência constante dos tribunais superiores). E só o poderá fazer na ausência de factos fundantes de um juízo de prognose favorável à ressocialização em liberdade ou na existência de factos contra-indiciantes desse mesmo juízo de prognose. Como se diz no acórdão do STJ de 12-09-2013 (Rel. Henriques Gaspar) “a filosofia e as razões de política criminal que estão na base do instituto, radicam essencialmente no objectivo de afastamento das penas de prisão efectiva de curta e média duração, garantindo ainda, quer um conteúdo bastante aos fundamentos de ressocialização, quer exigências mínimas de prevenção geral e de defesa do ordenamento jurídico: é central no instituto o valor da socialização em liberdade”; “não são, por outro lado, considerações de culpa que devem ser tomadas em conta, mas juízos prognósticos sobre o desempenho da personalidade do agente perante as condições da sua vida, o seu comportamento e as circunstâncias do facto, que permitam fazer supor que as expectativas de confiança na prevenção da reincidência são fundadas”. No mesmo acórdão, o Supremo nota que “a pena de substituição de suspensão da execução constitui uma medida de conteúdo reeducativo e pedagógico, de forte exigência no plano individual, particularmente adequada para, em certas circunstâncias e satisfazendo as exigências de prevenção geral, responder eficazmente a imposições de prevenção especial de socialização, ao permitir responder simultaneamente à satisfação das expectativas da comunidade na validade jurídica das normas violadas, e à socialização e integração do agente no respeito pelos valores do direito, através da advertência da condenação e da injunção que impõe para que o agente conduza a vida de acordo com os valores socialmente mais relevantes.” No caso presente, não resulta demonstrado que as exigências de prevenção geral - que, no momento (do processo aplicativo da pena) em análise, são sempre já exigências de “segunda linha de ponderação” - não resultem concretamente asseguradas com a condenação do arguido numa pena de prisão suspensa. E prossegue o referido acórdão que “a ameaça da prisão, especialmente em indivíduos sem anterior contacto com a justiça criminal, contém por si mesma virtualidades para assegurar a realização das finalidades da punição, nomeadamente a finalidade de prevenção especial e a socialização, sem sujeição ao regime, estigmatizante e muitas vezes de êxito problemático, da prisão” e que “a suspensão da execução, acompanhada das medidas e das condições admitidas na lei que forem consideradas adequadas a cada situação, permite, além disso, manter as condições de sociabilidade próprias à condução da vida no respeito pelos valores do direito como factores de inclusão, evitando os riscos de fractura familiar, social, laboral e comportamental como factores de exclusão. Por fim, a suspensão da execução da pena não depende de um qualquer modelo de discricionariedade, mas, antes, do exercício de um poder-dever vinculado, devendo ser decretada, na modalidade que for considerada mais conveniente, sempre que se verifiquem os respectivos pressupostos formais e materiais.” A elevada gravidade dos factos em análise é indiscutível. Mas essa elevada gravidade, no contexto geral dos factos relativos à culpabilidade e à personalidade do arguido, não demonstra um tal risco de reiteração ou de repetição que impeça a suspensão. Em suma, os juízes de prognose importam sempre um risco, e a presunção sobre a suficiência da pena de substituição não se encontra, em concreto, afastada. Considera-se, por tudo, mais adequada à ressocialização do arguido, satisfazendo ainda as exigências de prevenção geral, a aplicação de pena suspensa pelo período de cinco anos (art. 50.º, n.º 5, do CP). Tal suspensão fica condicionada ao pagamento, no período de cinco anos, da quantia ao Estado no valor de 2.548.000,00€, em prestações anuais de 500.000,00€, sendo a última de 548.000,00€. No cumprimento da condição serão naturalmente deduzidos todos os valores já entregues pelo arguido no decurso do cumprimento das penas parcelares englobadas no presente cúmulo. Lembre-se que o Tribunal Constitucional sempre se pronunciou no sentido da não inconstitucionalidade da norma constante do art. 51.º, n.º 1-a), do CP na parte em que permite condicionar a suspensão da pena de prisão à reparação dos danos causados ao ofendido (acórdãos do TC n.º 440/87 e n.º 569/99), sendo igualmente abundante a sua jurisprudência no sentido da conformidade constitucional da obrigatoriedade desse condicionamento ao pagamento da totalidade de uma dívida fiscal (entre muitos, Ac TC 356/2003, 335/2003, 500/2005, 309/2006, 61/2007, 556/2009, 237/2011). E adite-se que é também de considerar como concretamente respeitada a jurisprudência do AFJ do STJ n.º 8/2012 (“No processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105.º n.º 1, do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50.º n.º 1, do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14.º n.º 1, do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado …”), pois aquando da aplicação das penas parcelares, de prisão suspensa condicionada aos pagamentos, não pôde deixar de ter sido averiguada tal razoabilidade, sendo ainda certo que o recorrente peticionou agora a suspensão da pena sem adversariar o seu condicionamento nos moldes anteriormente determinados. Para terminar, consigna-se que em face do exposto fica prejudicado o conhecimento das questões e problemas sobrantes, como sejam (c) a ponderação do desconto equitativo por cumprimento parcial das penas de prisão suspensa e (d) a legalidade do despacho proferido em data posterior ao acórdão. Assim, por razões de prejudicialidade e pela consequente inutilidade do conhecimento, resulta ainda evidente a ausência de qualquer efeito actual do despacho recorrido, proferido posteriormente ao acórdão, despacho cuja legalidade (e até recorribilidade) deixa de interessar apreciar. 3. Decisão Face ao exposto, acordam na 3.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente o recurso, reduzindo-se a pena única para 5 anos de prisão, que será suspensa na execução por cinco anos e condicionada ao pagamento, nesse período, da quantia ao Estado de 2.548.000,00€, em prestações anuais de 500.000,00€, sendo a última de 548.000,00€. Sem custas (art. 513.º, n.º 1, do CPP, a contrario). Lisboa, 21.06.2023 Ana Barata Brito, relatora Sénio dos Reis Alves, adjunto José Luis Lopes da Mota, adjunto |