Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6437/16.6T8VNF.G1-A.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO LEONES DANTAS
Descritores: CONTRAORDENAÇÃO LABORAL
RECURSO EXTRAORDINÁRIO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
ASSÉDIO
Data do Acordão: 05/02/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: REJEITADO
Indicações Eventuais: CONTRAORDENAÇÃO LABORAL
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE EM GERAL / INSTRUÇÃO DO PROCESSO / PROVA POR DOCUMENTOS / SANÇÕES APLICÁVEIS ÀS PARTES E A TERCEIROS.
DIREITO DO TRABALHO – CONTRATO DE TRABALHO / SUJEITOS / IGUALDADE E NÃO DISCRIMINAÇÃO / PROIBIÇÃO DE ASSÉDIO.
Doutrina:
-Simas Santos e Leal Henriques, Recursos Penais, 8.ª Edição, Rei dos Livros, 2011, p. 198 e ss.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 437.º, N.º 2.
CÓDIGO DO TRABALHO (CT): - ARTIGO 29.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


-DE 03-12-2014, PROCESSO N.º 712/12.6TTPRT.P1.S1;
-DE 12-12-2017, PROCESSO N.º 3100/15.9T8FAR.E1.S1, AMBOS IN WWW.DGSI.PT.
Sumário :
I – Em caso de alegada contradição entre acórdãos proferidos por um Tribunal da Relação com outro acórdão da mesma ou de diferente Relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, sobre matéria contraordenacional, é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, para fixação de jurisprudência, nos termos do n.º 2 do artigo 437.º do Código de Processo Penal.

II – Não existe oposição relevante como fundamento do recurso previsto no número anterior por não incidirem sobre a mesma questão de direito, entre um acórdão proferido por um Tribunal da Relação sobre o preenchimento dos elementos subjetivos da contraordenação prevista no artigo 29.º do Código do Trabalho e um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça sobre a resolução do contrato de trabalho pelo trabalhador, com justa causa, em que seja invocado como fundamento desta o assédio previsto naquele artigo do Código do Trabalho.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


I

Inconformada com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, em 21 de novembro de 2017, no processo contraordenacional em que é arguida AA, Ld.ª, vem esta interpor recurso de fixação de Jurisprudência, nos termos dos artigos 437.º e ss. do Código de Processo Penal,  daquele acórdão para este Supremo Tribunal.

Identificou como acórdão fundamento o acórdão proferido por esta Secção na revista n.º 712/12.6TTPRT.P1.S1, de 3 de dezembro de 2014, e motivou a admissão do recurso, em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 438.º daquele Código, nos seguintes termos:

«I - Em 06.11.2017, foi a Recorrente notificada do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, que revogou a douta sentença proferida pelo Juízo do Trabalho de Vila Nova de Famalicão (a qual absolvera a Recorrente da prática de contraordenação), substituindo-a por decisão que condenou a Recorrente na prática de contraordenação ao art. 29.°, n.° 1, do Código do Trabalho, punida nos termos dos arts. 25.°, n.° 8, 554.°, n.° 4, al. e), e 561.°, n.°s 1 e 2 do mesmo código.

II - Por requerimento recebido na Relação em 15.11.2017, a Recorrente arguiu a nulidade do referido Acórdão, por este condenar a Arguida por factos diferentes daqueles que lhe haviam sido imputados.

III - A arguição de nulidade foi julgada indeferida por Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, proferido em 18.12.2017 e que se considera notificado à Recorrente no dia 22.12.2017.

IV - Não é recorrível - por recurso ordinário - a decisão do Tribunal da Relação em processo de recurso de contraordenação (vd. art. 49.° da Lei n.° 107/2009, de 14 de setembro), em obediência à ideia de que a decisão do Tribunal de primeira instância já consubstancia um segundo grau de decisão, e a da Relação um terceiro grau.

V - Por isso, a decisão transitou em julgado em 15.01.2018.

VI - No entanto, a decisão transitada em julgada contradiz outros acórdãos, proferidos pelo Supremo Tribunal de Justiça e Tribunais de Relação, relativamente a uma mesma questão - a contradição aqui alegada será melhor exposta infra.

VII - Razão pela qual, do Acórdão proferido nos presentes autos, cabe recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, previsto nos termos dos arts. 437.° e ss. do Código de Processo Penal, aplicável subsidiariamente ao processo de contraordenação laboral nos termos conjugados do art 60.° da Lei n.° 107/2009, de 14 de setembro e do art. 41.° do Decreto-lei n.° 433/82, de 27 de outubro.

VIII - Nas páginas que se seguem ao presente requerimento introdutório, a Recorrente identifica os acórdãos com o qual o acórdão recorrido se encontra em oposição, o lugar da publicação do mesmo e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência, nos termos do disposto no art. 438.°, n.° 2, do CPP.»

Apresentou alegações em que integrou as seguintes conclusões:

«I. Impõe-se clarificar quais são os pressupostos de cuja verificação depende o preenchimento do conceito de assédio moral previsto no art. 29.° do Código do Trabalho, principalmente quando não se prove a intenção da empregadora.

II. A jurisprudência unânime (até à prolação do acórdão recorrido) aponta essencialmente dois caminhos para se qualificar determinada situação como sendo de assédio moral (obedecendo assim à conjunção alternativa "ou" prevista no art. 29.° do Código do Trabalho):

1. A existência de uma intenção da empregadora no sentido de produzir efeitos psicológicos negativos na esfera do trabalhador; ou

2. Na falta da referida intenção, pelo menos a ocorrência de tais efeitos psicológicos negativos como consequência de uma conduta da empregadora relativamente à qual a empregadora tenha previsto tais efeitos como resultados possíveis da mesma, normalmente associada a um objetivo ilícito ou eticamente reprovável.

III. No caso sub-judice, foi à partida excluída a primeira hipótese, pelo que o tribunal seguiu pela segunda via, mas interpretando-a de forma diferente (e muito mais ampla) do que vinha sendo feito até ao presente.

IV. A jurisprudência deve, pois, fixar-se no sentido de que, para o preenchimento do conceito de assédio moral, quando falte o elemento da intenção da empregadora para a produção de efeitos psicológicos negativos, deve exigir-se pelo menos a ocorrência de tais efeitos psicológicos negativos como consequência de uma conduta da empregadora relativamente à qual a empregadora tenha previsto tais efeitos como resultados possíveis da mesma, normalmente associada a um objetivo ilícito ou eticamente reprovável.

É este o sentido que respeita a jurisprudência anterior ao acórdão recorrido e que, como se suportará em alegações, se afigura o mais correto em face do Direito em vigor.»

Termina requerendo a admissão do presente «recurso de fixação de jurisprudência e, em consequência, sejam as partes notificadas para apresentação de alegações, nos termos do art. 442.°, n.° 1, do Código de Processo Penal».

O Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Guimarães respondeu ao recurso interposto, sustentando a inadmissibilidade do mesmo e integrando nas alegações apresentadas as seguintes conclusões:

«1. O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, é inadmissível perante acórdão da Relação, no âmbito de processos de contraordenação,

2. nos termos dos arts. 49.°, n.° 2 e 51°, n.° l da Lei n.° 107/2009, de 14.09, 41.°, n.° l, 73°, n.° 2 e 75°, n.° l do RGCO,

3. atenta a especial previsão, no regime processual por contraordenação, de  irrecorribilidade dos acórdãos da relação, seja por via normal, seja por via extraordinária (para fixação de jurisprudência) e a insusceptibilidade de aplicação subsidiária, de normas de processo penal; subsidiariamente:

4. A admitir-se o recurso para fixação de jurisprudência, deverá o mesmo ser rejeitado,

5. por  o quadro factual sobre que incidiram as duas decisões não se revelar idêntico,

6. os acórdãos em alegada oposição terem sido proferidos no âmbito de processos de natureza distinta e de diferente legislação,

7. e inexistir oposição expressa de acórdãos.»

Neste Tribunal a Ex.mª Procuradora-Geral Adjunta proferiu proficiente parecer nos termos do artigo 440.º, n.º 1, do Código de Processo Penal pronunciando-se no sentido de que «não se verificam, portanto, os requisitos necessários para o recurso de fixação de jurisprudência, que, consequentemente, não deve ser admitido».

Foi distribuído por via eletrónica o projeto de acórdão aos Exm.ºs Juízes Conselheiros Presidente da Secção Social e Adjunto.

Preparada a deliberação, cumpre conhecer do objeto do recurso.


II


1 - A Lei n.º 62/2013, de 26/8 – Lei da Organização do Sistema Judiciário –, prevê no n.º 1 do seu artigo 126.º a competência cível dos juízos do trabalho e no n.º 2 a competência para conhecimento dos recursos de impugnação em matéria contraordenacional.

Por outro lado, o artigo 54.º, n.º 1, daquela Lei veio definir a competência da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça, referindo que a mesma julga as causas definidas no artigo 126.º, o que implica forçosamente a competência em matéria contraordenacional referida no n.º 2 daquele mesmo artigo.

Deste modo, atribuiu-se à Secção Social a competência para conhecer dos recursos de uniformização de jurisprudência em matéria contraordenacional.

É, pois, esta Secção competente para conhecer do presente recurso.

2 - Na resposta apresentada o Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Guimarães veio sustentar a inadmissibilidade do recurso de fixação de jurisprudência, nos termos do artigo 437.º e ss. do Código de Processo Penal, nos processos de contraordenação.

Esta Secção debruçou-se já sobre essa questão no acórdão de 12 de dezembro de 2017, proferido no processo n.º 3100/15.9T8FAR.E1.S1[1], tendo-se concluído, o seguinte:

«e). Conclui-se, pois, que, em caso de contradição entre acórdãos proferidos pelo Tribunal da Relação, no uso da faculdade prevista no artigo 73º, n.º 2, nada impede que se interponha recurso, nos termos do artigo 437º e seguintes, do CPP, para fixação de jurisprudência pelo Supremo Tribunal de Justiça.»

Na linha da orientação subjacente a este acórdão, que se mantém, considera-se que nada obsta à aplicação do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, previsto no artigo 437.º do Código de Processo Penal, ao processo das contraordenações.

Improcede, assim, a questão prévia suscitada.


III


1 - Resulta do disposto nos números e 1 e 2 do artigo 437.º do Código de Processo Penal que «quando no domínio da mesma legislação», «um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça», «cabe recurso para o pleno das secções criminais», o que no caso se deve entender como dirigido a esta Secção.

Configuram-se assim como pressupostos do recurso previsto nesta norma:

«a) um acórdão do Tribunal da Relação, de que não seja admissível recurso ordinário, transitado em julgado, proferido no processo onde se apresenta o requerimento;

b) a existência de contradição entre esse aresto e outro anteriormente proferido pela mesma ou diferente Relação, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça;

c) que essa contradição tenha ocorrido no domínio da mesma legislação, sendo que a contradição deve incidir sobre a mesma questão fundamental de direito. Tendo por base a identidade dos respetivos pressupostos»[2].

Resulta ainda do disposto no n.º 3 do mesmo artigo que «Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, direta ou indiretamente, na resolução da questão de direito controvertida» e do n.º 4 deste dispositivo que «Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado».

Por outro lado, resulta do disposto no n.º 1 do artigo 438.º do Código de Processo Penal, que «O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar» e do n.º 2 do mesmo artigo que «No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência».

No caso dos autos, a recorrente interpôs o recurso em tempo, identificou o acórdão fundamento e deu cumprimento ao disposto no n.º 2 do referido artigo n.º 438.º do Código de Processo Penal.

Cumpre agora dar cumprimento ao disposto no n.º 3 do artigo 440.º daquele código do qual decorre que «No exame preliminar o relator verifica a admissibilidade e o regime do recurso e a existência de oposição entre os julgados».

Face ao acima referido, quando ao cumprimento dos pressupostos de natureza formal relativamente à admissão do recurso, cumpre indagar se existe a contradição entre o acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães e o acórdão desta Secção de 3 de dezembro de 2014, proferido na revista n.º 712/12.6TTPRT.P1.S1[3] invocado pela recorrente como acórdão fundamento.

Conforme referem Simas Santos e Leal Henriques, «a oposição suceptível de fazer seguir o recurso em apreço pressupõe os seguintes requisitos:

- Julgamento contraditório explícito da mesma questão;

- natureza de direito e não de facto da questão opostamente julgada;

- identidade (pelo menos) entre as questões debatidas em ambos os acórdãos. Esta identidade, sem prejuízo do que se referiu antes, tando se pode traduzir, pois, em mesma questão como em questões diversas, se neste último caso, se puder afirmar que para a sua decisão os dois acórdãos assacados de contraditórios se pronunciaram de maneira oposta acerca de qualquer ponto jurídico neles discutido (…);

- inalterabilidade da legislação no período compreendido entre a prolação de ambos os acórdãos»[4].

Como doutamente refere no parecer proferido, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta, «o preenchimento deste requisito [a contradição] supõe que as soluções alegadamente em conflito:

a) correspondam a interpretações divergentes de um mesmo regime normativo, situando-se ou movendo-se no âmbito do mesmo instituto ou figura jurídica fundamental, o que implica, não apenas que não hajam ocorrido, no espaço temporal situado entre os dois arestos, modificações legislativas relevantes, mas também que as soluções encontradas num e noutro acórdão se situem no âmbito da interpretação e aplicação de um mesmo instituto ou figura jurídica, i.e., que correspondam a soluções divergentes de uma mesma questão fundamental de direito - não integrando contradição ou oposição de acórdãos o ter-se alcançado soluções práticas diferentes para os litígios através da respetiva subsunção ou enquadramento em regimes normativos materialmente diferenciados;

(…)».

Cumpre então averiguar se o acórdão recorrido e o acórdão fundamento se debruçaram sobre a mesma questão de direito e se o fizeram de forma divergente. No fundo, se aplicaram o mesmo direito sobre um complexo factual que se possa considerar idêntico, ou seja, cujo núcleo seja fundamentalmente o mesmo, uma vez que só desta forma se pode afirmar que as duas decisões comportam a aplicação do mesmo direito de forma divergente, o que é pressuposto para a afirmação da existência de contradição relevante, como fundamento do recurso extraordinário em causa.

2 – Tal como se referiu, a decisão recorrida tinha por objeto uma sentença do tribunal da 1.ª instância que absolvera a arguida num recurso de impugnação no âmbito do processo das contraordenações da prática de uma contraordenação laboral pela qual a arguida fora condenada pela autoridade administrativa competente, a Autoridade para as Condições de Trabalho.

Está em causa o seguinte segmento da decisão recorrida:

[Vejamos então o recurso do Mº Pº e o do assistente.

O MºPº refere no essencial que o tribunal deveria ter apreciado e considerado preenchido o tipo contraordenacional do art° 29.°, 1 do CT a título pelo menos de dolo eventual.

Já o assistente refere ainda resultar provado o nexo de causalidade entre a conduta da arguida e o exercício por parte do trabalhador dos seus direitos, entendendo verificar-se ainda uma infração ao art° 129° do CT.

(…)

Assim deveria a decisão ter apreciado as ditas imputações, designadamente a do artigo 29°, 1 do CT, como agora o MºPº e assistente reclamam, aquele em relação apenas ao artigo 29°.

Não importa se o art° 29° é um mais ou um menos em relação ao art° 129°, importa ver da verificação dos seus elementos objetivos e subjetivos e tanto basta. Porquanto a arguida foi condenada por uma única contraordenação, não importa equacionar a questão do concurso, pelo que começaremos por apreciar a imputação do artigo 29°.

Refere o normativo:

Assédio

1 - É proibida a prática de assédio.

2 - Entende-se por assédio o comportamento indesejado, nomeadamente o baseado em fator de discriminação, praticado aquando do acesso ao emprego ou no próprio emprego, trabalho ou formação profissional, com o objetivo ou o efeito de perturbar ou constranger a pessoa, afetar a sua dignidade, ou de lhe criar um ambiente intimidativo, hostil, degradante, humilhante ou desestabilizador.

5 - A prática de assédio constitui contraordenação muito grave, sem prejuízo da eventual responsabilidade penal prevista nos termos da lei.

Resulta da norma como pressuposto de uma situação de assédio, a comprovação de um comportamento não desejado, praticado no emprego, e tendo um determinado objetivo ou visando um determinado efeito perturbador, constrangedor, de afetação da dignidade da pessoa, ou se traduza na criação de um ambiente hostil, intimidativo, degradante, humilhante ou desestabilizador.

É necessária uma intenção direcionada a um determinado objetivo ilícito ou eticamente reprovável. O intento prende-se com a pressão psicológica que se pretende criar no sujeito tendo em vista levá-lo a tomar determinada atitude ou favorecer a tomada futura de determinada medida.

Sobre o assunto refere-se no Acórdão do STJ de 3/12/2014, processo n.º 712/12.6TTPRT.P1.S1, disponível na net:

(…)

No caso dos autos resulta demonstrado um comportamento mantido no tempo de claro desfavorecimento, não podendo no quadro de circunstâncias e consequências, e atendendo até aos avisos da ACT para corrigir a situação, a arguida ter deixado de representar as consequências imediatas da sua conduta, como possíveis, conformando-se com elas.

Concorda-se assim com o referido pelo recorrente no sentido de relativamente a esta infração ocorrer (pelo menos) dolo eventual. Dos factos não resulta claramente demonstrado que a arguida tenha dirigido a sua conduta buscando o resultado, mas já não é claro que não o tenha previsto como consequência necessária da mesma. Com segurança contudo pode afirmar-se o dolo eventual.

A situação de desfavor é manifesta, pois no que tange às funções anteriormente exercidas não ocorreram alterações para os trabalhadores aí "colocados", e nenhuma razão atinente ao trabalhador foi demonstrada que justifique o tratamento, nem do ponto de vista da gestão foi demonstrado o que quer que fosse que sustente a situação. Outros entraram depois e foram aí colocados, sem justificação aceitável e demonstrada.

Mostra-se assim preenchido este tipo contraordenacional.]

 

Estava em causa nesta decisão saber se os factos que eram imputados à arguida integravam a contraordenação prevista no artigo 29.º do Código do Trabalho, que considerava, no seu n.º 4, como contraordenação muito grave a violação do disposto no números 1, 2 e 3 daquele artigo e, nomeadamente, se tal contraordenação podia ser imputada à arguida, dolosamente.

O mencionado segmento da decisão recorrida tem por objeto as seguintes conclusões do recurso interposto pelo Ministério Público junto do tribunal da 1.ª instância:

«15 - Ora, em face da factualidade dada como provada em 3 a 14, 19 a 21, 23 a 40, 43 a 45, 51 e 46 a 47, afigura-se-nos que o Tribunal "a quo" não podia ter deixado de considerar encontrar-se preenchido o tipo contraordenacional contido no art. 29°, n.º 1, do C. do Trabalho.

16 - O que, aliado ao preenchimento do elemento subjetivo da infração, cuja verificação é possível retirar, in casu e segundo cremos, da própria materialidade fáctica dada como assente, impunha a prolação de decisão diversa da que foi proferida; necessariamente condenatória da arguida pela prática da contraordenação, muito grave, em causa.

17 - Cumpre, ainda, salientar que, no que respeita à infração aludida, na decisão administrativa consignou-se que: "Encontra-se plenamente provado que a Arguida propositadamente tratou desfavoravelmente o trabalhador BB ... o que demonstra da parte da arguida um comportamento discriminatório e assediante, criando ao trabalhador um ambiente de trabalho hostil que afeta a sua dignidade enquanto pessoa e que lhe provocam instabilidade, insegurança, receio, comportamentos esses que são propiciadores à cessação do seu contrato de trabalho";

18 - Tendo, assim, imputado à arguida a prática daquela contraordenação, a título de dolo - o que não foi, como entendemos que deveria ter sido, considerado, na sentença recorrida.

19 - Importa, por outro lado, atentar que, apesar do art. 8.°, n.º 1, do DL 433/82, de 27/10 dispor que "só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência", nas contraordenações laborais, a negligência é sempre punível (cfr. art. 550° do C. do Trabalho).

20 - Entendemos, todavia, que dos factos dados como provados na sentença ora posta em crise e atendendo ao disposto no art. 557° do C. do Trabalho, resulta que a atuação descrita da arguida foi, pela mesma, praticada, pelo menos, a título de dolo eventual.

21 - Termos em que, ao decidir como decidiu, na sentença recorrida violou o Tribunal "a quo" o disposto nos arts. 29.°, n.ºs 1 e 4, do C. do Trabalho e 62.° do RGCO;

22 - Pelo que, deverá ser a mesma revogada e substituída por outra que condene a arguida pela prática, a título de dolo e como reincidente, da contraordenação, muito grave, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts 29.°, n.ºs 1 e 4, 554°, n.º 4, 557.°, 559°, n.º 1 e 561.° do C. do Trabalho.»

Analisada a decisão recorrida pode concluir-se que as considerações referidas pela recorrente sobre a intencionalidade com que a arguida teria praticado os factos que lhe eram imputados relevam na ponderação do preenchimento do elemento subjetivo da contraordenação que estava em causa.

O elemento subjetivo nas contraordenações materializa algo que está para além do dos elementos objetivos que integram a conduta sancionável, não podendo confundir-‑se a duplicidade de planos em que a questão do assédio é colocada no presente recurso.

No caso da decisão recorrida, está em causa o elemento subjetivo de uma contraordenação imputada à recorrente, com base na violação dos deveres que a oneram decorrentes do artigo 29.º do Código do Trabalho.

Por outro lado, no acórdão fundamento discute-se se os factos invocados pelo trabalhador como integrativos de uma situação de assédio, nos termos do mencionado artigo 29.º do Código do Trabalho, podiam integrar justa causa para a resolução do contrato de trabalho por sua iniciativa, questão a que no caso o tribunal deu resposta negativa.

A abordagem feita nesta decisão ao assédio como conduta lesiva do direito dignidade do trabalhador situa-se no plano da caracterização dessa figura, nada tendo a ver com a problemática dos elementos que estruturam a infração contraordenacional e a conformação do dolo no contexto do chamado elementos subjetivo dessa infração.

Independentemente da questão de saber se a base de facto em que assentam as duas decisões era idêntica, pode concluir-se que as questões jurídicas apreciadas num caso e noutro eram diversas.

No caso da decisão recorrida estava em causa, conforme se referiu, o preenchimento do dolo como elemento subjetivo da contraordenação que era imputada à arguida por violação do disposto no artigo 29.º do Código do Trabalho.

No caso do acórdão fundamento, o que estava em causa era a invocação do assédio previsto na mesma disposição como fundamento da resolução do contrato de trabalho por iniciativa do trabalhador assediado, nos termos do artigo 394.º e ss. do  mesmo Código do Trabalho.

O direito aplicado nas duas situações é diverso, pelo que não pode deste modo afirmar-se que exista contradição relevante, para os efeitos do disposto no n.º 2 do artigo 437.º do Código de Processo Penal.


IV


Em face do exposto, acorda-se em rejeitar o presente recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.

Custas pela recorrente que se fixam em 3 (três) unidades de conta.

Lisboa, 2 de maio de 2018

António Leones Dantas (Relator)

Júlio Gomes

Pinto Hespanhol

______________
[1] Disponível nas Bases de Dados Jurídicas da DGSI.
[2] Parecer proferido pelo Ministério Público no presente processo.
[3] Disponível nas Bases de Dados Jurídicas da DGSI.
[4] Recursos Penais, 8.ª Edição, Rei dos Livros, 2011, pp. 198 e ss.