Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
750/03.0TCGMR.G1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MARTINS DE SOUSA
Descritores: ÁGUAS PARTICULARES
DIREITO DE PROPRIEDADE
SERVIDÃO DE AQUEDUTO
SERVIDÃO DE PRESA
USUCAPIÃO
POSSE
Data do Acordão: 10/28/2014
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: COLECTÂNEA DE JURISPRUDÊNCIA DO STJ - Nº 259 - A. XXII - T. III/2014 - P. 90-98
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / COISAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL / NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES - DIREITOS REAIS / POSSE / AQUISIÇÃO E PERDA DA POSSE / USUCAPIÃO DE IMÓVEIS / DIREITO DA PROPRIEDADE / PROPRIEDADE DAS ÁGUAS / APROVEITAMENTO DAS ÁGUAS / SERVIDÕES PREDIAIS / SERVIDÕES LEGAIS / EXERCÍCIO DAS SERVIDÕES / EXTINÇÃO DAS SERVIDÕES.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS SENTENÇA / RECURSOS.
Doutrina:
- Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, I, 1981, p. 203.
- Antunes Varela, Anotação ao Acórdão do STJ, de 15-01-1981, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 115.º, n.º 3700, pp. 219-220; Das Obrigações em Geral, 7.ª edição, p. 536.
- Henrique Mesquita, Direitos Reais, pp. 163/164; Direitos Reais – Sumários das Lições, 1967, p. 204.
- José Cândido de Pinho, As Águas no Código Civil, 1985, pp. 31, 60 e 63, 81, 177/178 e 195.
- Menezes Leitão, …, pp. 329/330.
- Oliveira Ascensão, Desnecessidade e Extinção de Direitos Reais, “Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa”, Vol. XVIII, 1964, p. 244.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, Volume III, 2.ª edição, 1987, pp. 305, (nota 26) 629, 651, 657.
- Santos Justo, Direitos Reais, 4.ª edição, 2012, pp. 293, 424-425.
- Tavarela Lobo, Manual do Direito de Águas, Volume II, 2.ª edição, 1999, pp. 9 a 11, 186 e segs., 341, 342, 404/407, 415.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 204.º, N.º 1, ALÍNEAS E) E B), 334.º, 483.º, 798.º, 799.º, 1252.º, 1263.º, AL. A), 1296.º, 1297.º, 1316.º, 1386.º, N.º 1, 1389.º, 1390.º, 1392.º, 1543.º, 1546.º, 1557.º, 1558.º, 1561.º, 1565.º, N.º 1, 1568.º, N.º1, 1569.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC) / 2013: - ARTIGOS 5.º, N.º 3, 581.º, N.º 3, 609.º, N.º 1, 615.º, N.º 1, ALS. D), E), 2.ª PARTE, 663.º, N.º 5, 674.°, N.ºS 1 E 3, 679.º, 682.°, N.ºS L, 2 E 3.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 210.º.
D.L. N.º 306/2007, DE 27-08 (REGIME DA QUALIDADE DA ÁGUA DESTINADA AO CONSUMO HUMANO), DO D.L. N.º 207/94, DE 06-08, E DO DECRETO REGULAMENTAR N.º 23/95, DE 23-08 (SISTEMAS DE DISTRIBUIÇÃO PÚBLICA E PREDIAL DE ÁGUA E DE DRENAGEM PÚBLICA E PREDIAL DE ÁGUAS RESIDUAIS) E, POR FIM, DO REGULAMENTO DOS SISTEMAS PÚBLICOS E PREDIAIS DE DISTRIBUIÇÃO DE ÁGUA E DE DRENAGEM DE ÁGUAS RESIDUAIS PUBLICADO NO DR, 2.ª SÉRIE, N.º 170, DE 04-09-2007.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 29-11-2005, PROC. N.º 05B3525;
-DE 02-07-2007, PROC. N.º 08B3995;
-DE 14-05-2009, PROC. N.º 09A0661;
-DE 22-09-2009, PROC. N.º 2658/05.5TVLSB.S1;
-DE 17-02-2011, PROC. N.º 1351/07.9TBAMT.P1.S2;
-DE 16-03-2011, PROC. N.º 263/1999.P1.S1;
-DE 31-05-2011, PROC. N.º 3252/03.0TBVCT.G1.S1;
-DE 12-07-2011, PROC. N.º 364/05.0TBCMN.G1.S1;
-DE 21-06-2012, PROC. N.º 373/07.4TBVPA.P1.S1;
-DE 08-05-2013, PROC. N.º 2915/06.3TBOAZ.P1.S1.
Sumário :
I - Sobre a água (particular) existente ou nascida em prédio alheio podem-se constituir dois tipos de situações jurídicas distintas: (a) o direito de propriedade, que confere um direito pleno e ilimitado, permitindo o mais amplo aproveitamento de todas as utilidades que a água possa prestar; ou (b) o direito de servidão, que apenas concede a possibilidade de efectuar o tipo de aproveitamento da água previsto no título constitutivo e na estrita medida das necessidades do prédio dominante.

II - A aquisição do direito, de propriedade ou de servidão, relativo à água, pode ocorrer por usucapião, implicando nessa situação, além da verificação dos requisitos gerais atinentes à posse, que a usucapião seja acompanhada da realização de obras, visíveis e permanentes, no prédio alheio, que revelem a captação e posse da água nesse prédio.

III - O direito de servidão de aqueduto traduz-se na faculdade de conduzir, através de prédio alheio, as águas particulares a cujo aproveitamento se tem direito.

IV - A servidão de aqueduto adquirida por usucapião integra-se nas servidões voluntárias, não lhe sendo automaticamente aplicáveis os requisitos normativos das servidões legais, previstos no art. 1561.º do CC.

V - A servidão de aqueduto apenas poderá ser declarada extinta, por desnecessidade, mediante declaração judicial, quando a sua utilização de nada aproveite ao prédio dominante.

VI - A existência de uma servidão de aqueduto é independente da existência da servidão de presa, podendo aquela ter-se constituído por usucapião e a segunda não.

VII - Se a servidão de aqueduto se traduz, em concreto, numa canalização subterrânea no prédio serviente, é injustificado estar a ordenar, por via judicial, que os servientes sejam condenados a proceder à entrega imediata de um duplicado da chave própria para a fechadura do portão de acesso normal ao seu prédio ou que deixem esse portão aberto, para permitir o acesso dos titulares da servidão, considerando-se equilibrado que apenas seja facultado aquele acesso quando as circunstâncias imponham a necessidade de inspeccionar os tubos que compõem o aqueduto e nesse estrito condicionalismo.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

I.

AA e mulher BB – aquele entretanto falecido, tendo sido habilitadas, em seu lugar, a sua mulher e a sua filha CC – instauraram a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra DD e mulher EE, pedindo que:

a) seja declarado, e os réus condenados a reconhecer, que sobre os prédios descritos na Parte III (alíneas a), b), c) e d) do n.º 8) da petição (propriedade dos réus) se encontra constituída uma servidão de aqueduto e servidão de presa a favor dos prédios descritos na Parte I (alíneas a), b), c) e d) do n.ºs 1, 2, 3 e 4) da petição;

b) seja declarado, e os réus condenados a reconhecer, que tal servidão (de aqueduto e presa) têm o trajecto e configuração descritas na Parte IV (n.ºs 11, 12, 13, 14, 15, 16 e 17) da petição;

c) seja declarado, e os réus condenados a reconhecer, que tal aqueduto (canalizações) e presa (tanque – hemitanque sul) se destinam a conduzir, represar e voltar a canalizar as águas descritas na Parte II (n.ºs 5, 6 e 7) da petição para os seus prédios;

d) sejam os réus condenados a abster-se de impedir que os autores entrem nos prédios identificados na parte III (n.ºs 8, 9 e 10) da petição, na medida do necessário para seguirem a canalização que por tais prédios leva as águas identificadas nas partes I e II (n.ºs 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7) da petição, até detectarem o local ou locais onde a circulação das águas foi cortada ou desviada ou (noutra qualquer hipótese) descobrirem o que impede que as suas águas deixem de cair no hemitanque sul do tanque ...;

e) cumulativamente, os réus se abstenham de impedir que os autores façam as reparações necessárias para que as águas identificadas voltem ao seu curso normal, caindo, pela canalização aí existente (que existia) no hemitanque norte da poça ...;

f) cumulativamente, sejam os réus condenados a proceder à entrega imediata de um duplicado da chave própria para a fechadura do portão de ferro que dá (sempre deu) acesso normal dos autores ao tanque ..., pelos prédios dos réus; ou tomem, os réus, as providências necessárias para que o portão nunca seja fechado à chave, para permitir o acesso dos autores ao tanque ... sempre que for necessário;

g) cumulativamente, que os réus sejam sujeitos a uma cláusula compulsória que consista no pagamento de € 150 por cada dia que impeçam o acesso dos autores aos prédios onde corre a canalização e se encontra o hemitanque sul do tanque ...;

h) cumulativamente, os réus sejam condenados a abster-se de perturbar de qualquer modo a recolha e condução das águas propriedade dos autores e acima identificadas: quer das minas donde têm origem para o hemitanque sul do tanque ..., quer do hemitanque para os seus prédios;

i) cumulativamente, os réus sejam condenados no pagamento de uma indemnização correspondente aos prejuízos causados, descritos na petição, mas que melhor serão calculados em execução de sentença.

*

Os réus contestaram aceitando que são proprietários dos prédios e das águas referidas pelos autores, que foi construído o depósito de sete bicas, bem como a divisão do tanque, em dois, para onde correm as águas de quatro bicas para si, e de três bicas para aqueles, na parte sul.

Contrapuseram, contudo, que desde há 15 anos, os autores deixaram ao abandono o hemitanque sul, deixando de servir para a recolha das águas, porque junto ao mesmo uniram o tubo que trazia as águas das três bicas com aquele que as levava desse tanque, construindo um novo tanque no seu prédio para onde canalizaram todas as águas que seguiam para os seus prédios.

Negam ter impedido o acesso ao tanque ..., pois o mesmo sempre foi feito directamente pela Rua … por umas escadas em pedra.

Em 2002 pretendiam construir um prédio para a sua habitação a situar no prédio rústico onde está o tanque ... e, para que tal fosse possível, era necessário que os tubos subterrâneos que ali passavam fossem transferidos para outro local. Os autores autorizaram-nos a transferir a união dos tubos que existiam perto do tanque ... para outro local próximo do tanque novo.

Deduziram reconvenção pedindo que sejam declaradas extintas quaisquer servidões que eventualmente sobre os seus prédios se encontrem constituídas a favor dos prédios dos autores.

Na réplica, os autores argumentaram que nunca deixaram ao abandono o hemitanque sul do tanque ..., mas antes foram os réus quem impediu o acesso ao mesmo, desde Julho/Agosto de 2001, e procedido ao corte da canalização. Negam ter autorizado a transferência da união dos tubos.

Foi exarado despacho saneador, com selecção da matéria de facto assente e controvertida, tendo os autos seguido os seus termos, após o que se efectuou prova pericial e audiência final, com inspecção judicial ao local, vindo a ser proferida sentença que, julgando a acção parcialmente provada e procedente, “A) declara que:

a) sobre o prédio registado a favor dos Réus DD e mulher EE sob o n.º … - … e inscrito na matriz urbana sob o artigo … se encontra constituída uma servidão de aqueduto a favor dos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de ... sob os n.ºs …, …, … e … da freguesia …, melhor identificados no ponto 1. da fundamentação de facto, pertencentes às Autoras habilitadas BB e CC;

b) a servidão de aqueduto referida em a) é formada por tubos ora subterrâneos, ora visíveis à superfície da terra, com diâmetro variável entre 2,5 cm e 4 cm que entram no prédio descrito sob o n.º … através de uma abertura situada na sua confrontação sul, onde actualmente se encontra um portão em ferro, seguindo sensivelmente no sentido nascente – poente, com o trajecto desenhado no documento de fls. 42, até ao junto ao hemi-tanque sul ..., onde se unem, saindo para os prédios descritos sob os n.ºs …, …, … e … em trajecto paralelo e inverso;

c) o aqueduto se destina a conduzir as águas identificadas no ponto 6. da fundamentação de facto para os prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de ... sob os n.ºs …, 65/060387, … e … da freguesia … com vista ao aproveitamento para gastos domésticos das habitações, lima e rega dos terrenos;

B) condena os Réus DD e mulher EE a:

a) reconhecer o declarado supra em A) a), b) e c);

b) absterem-se de impedir que as Autoras habilitadas BB e CC entrem no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º … na medida do necessário para seguirem a canalização que pelo mesmo leva as águas referidas supra em A) c) até detectarem o local ou locais onde a circulação das águas foi cortada ou desviada e façam as reparações necessárias para que tais águas voltem ao seu curso normal, através da canalização com o trajecto referido supra em A)b);

c) entregar imediatamente às Autoras habilitadas um duplicado da chave própria para a fechadura do portão de ferro situado na confrontação sul do prédio descrito sob o nº… ou tomar as providências necessárias para que o referido portão nunca seja fechado à chave a fim de lhes permitir o acesso ao interior do referido prédio para as finalidades identificadas em B) b);

d) a pagar, a título de sanção pecuniária compulsória, o montante de € 75 por cada dia que impeçam o acesso ao primeiro prédio identificado em B) a);

e) a pagar a indemnização que vier a ser liquidada relativamente aos prejuízos decorrentes dos factos identificados nos pontos 25. a 27., 30., 32., 33. e 36. a 40. da fundamentação de facto.

C) absolve os Réus dos restantes pedidos formulados pelas Autoras habilitadas.

II. Julgando a reconvenção não provada e improcedente absolve as reconvindas habilitadas BB e CC do pedido formulado pelos reconvintes DD e mulher EE”.

*

Inconformadas, ambas as partes apelaram para a Relação de Guimarães, que, por acórdão do pretérito dia 09-01-2014, julgou “parcialmente procedente a apelação, revogando as alíneas “c” e “e” do Ponto “B” da sentença, reportando a alínea “d” do mesmo ponto à violação da obrigação de permitir aos AA o acesso ao prédio dos RR sempre que as circunstâncias concretas imponham a inspecção dos tubos e mantendo em tudo o mais a sentença recorrida”.

*

De novo, insatisfeitos, vieram recorrer, para este Supremo Tribunal, os réus e as autoras/habilitadas, estas, subordinadamente.

A concluir a minuta de recurso, os réus alinhavaram as seguintes conclusões:

1.º – Errou o Tribunal recorrido ao não ter declarado nula a sentença da primeira instância, pois não obstante ter concluído que os autores não alegaram os caracteres da posse correspondentes à pacificidade e publicidade, nem invocaram o «animus possidendi» – manteve como verificados os requisitos em falta, reconhecendo aos autores o direito à servidão de aqueduto sobre a água em causa.

2.º - Ora, dispõe o art. 668.º do Código de Processo Civil (atual 615.º) que é nula a sentença quando:

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. O tribunal a quo usou ilegitimamente do poder jurisdicional em virtude de pretender conhecer questões de que não podia conhecer (excesso de pronúncia);

3.º - No caso «sub judice», não obstante reconhecer que os autores não alegaram os requisitos da posse (pacificidade, publicidade e o «animus possidendi»), essenciais para a constituição do direito por usucapião, o tribunal a quo substituiu-se aos autores e deu tais requisitos por preenchidos, violando também o principio segundo o qual o tribunal não pode substituir-se às partes. O aplicável artigo 664.º do Código de Processo Civil estatui que o Juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito, encontrando-se, todavia, condicionado aos factos articulados pelas partes. O art. 467.º do Código de Processo Civil impõe àquele que apresente petição a obrigação de formular um pedido. De acordo com o estatuído no art. 264.º do Código de Processo Civil, às partes cabe alegar os factos que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções.

3.º - O Tribunal da Relação não pode conceder uma tutela não pretendida aos autores por aqueles que a podia ter pedido mas o não fizeram, não lha pode impor em matéria onde pontifica a disponibilidade das partes. A nossa jurisprudência recente continua a apontar no sentido de que não pode o tribunal substituir-se à parte, sendo paradigmáticos dois acórdãos, da Relação de Coimbra e do STJ, datados respetivamente, de 28.01.2009 e 29.03.2012 (itij).

4.º - Pelo exposto, a decisão recorrida, por uso ilegítimo do poder jurisdicional em virtude de ter conhecido de questões não alegadas, padece da nulidade prevista na já citada alínea d), do n.º 1, do art. 668.º do Código de Processo Civil, circunstância que ocorreu no presente caso.

5.º - Ainda que assim se não entenda – o que não se concede – sempre se alega que a Relação andou mal na parte em que reconheceu aos autores, por usucapião, o direito de servidão de aqueduto, não se verificando, no caso, os caracteres da posse correspondentes à pacificidade, publicidade e o «animus possidendi».

6.º - Desde logo, os autores não têm qualquer título de aquisição sobre as águas que teriam sido afetadas porquanto não articularam e não provaram que as águas das nascentes se encaminhassem através de obras visíveis e permanentes e feitas por mão-de-obra humana nos prédios onde existe a nascente para o dito Tanque ... situado no prédio dos réus, e respetiva posse como é exigido pelo disposto no art. 1390.º do Código Civil. Não adquiriram assim, o direito às águas das ditas nascentes pela forma exigida no disposto no art. 1390.º do Código Civil.

7.º - A usucapião só é atendida e considerada justo título de aquisição quando for acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem captação e a posse da água nesse prédio – n.º 2 do citado artigo.

8.º - No caso concreto, não se provaram os elementos objectivos e subjectivos, para a aquisição por usucapião sendo a posse da mesma uma posse vocacionada para a usucapião. Com efeito, da leitura da matéria assente não resulta, por parte dos Autores, a construção de obras, no terreno ou prédio onde exista a nascente, obras essas que derivem de facto humano. Os factos provados não revelam as obras a que alude o n.º 2 do citado artigo 1390.º.

9.º - Por outro lado, nos pedidos formulados, os Autores não pedem o reconhecimento do direito sobre a água, mas apenas o direito de servidão de presa e aqueduto. Daí que o desfecho da ação nunca seria o que consta do acórdão recorrido. Ao condenar os réus nos pedidos formulados, a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 1390.º do C. C. e 668.º, n.º 1, c) do CPC.

10.º - De qualquer modo, a decisão recorrida não pode manter-se, pois uma servidão de aqueduto só se pode constituir em prédios rústicos ou ...s muradas, nos termos do n.º 1, do art. 1561.º, do C.C. Ora, a Relação manteve a decisão do tribunal da primeira instância que declarou que se encontra constituída uma servidão de aqueduto sobre o prédio dos réus, identificado como urbano – prédio registado sob o n.º … – … e inscrito na matriz urbana sob o artigo 1514. Inexiste pois qualquer constituição de servidão sobre as referidas águas a favor dos prédios dos Autores e sobre o prédio dos Réus, por ser urbano.

11.º - Andou mal o Tribunal da Relação ao não condenar os autores/reconvindos no pedido reconvencional. A Relação não ponderou convenientemente o juízo de proporcionalidade que deve existir entre o grau de desagravamento do prédio serviente em resultado da extinção da servidão e a dimensão dos custos, inconvenientes e incómodos resultantes para o prédio dominante da alternativa ao uso da servidão.

12.º – A alternativa aportada pelos réus na planta de fls. 42, pela atual situação fáctica ao prédio dominante permite fruir aos autores e gozar, em toda a sua plenitude e extensão, todas as utilidades que eram satisfeitas pelo exercício da servidão.

13.º – Está dado como provado que, pelo menos a partir de 1987 os Autores deixaram de usar o hemi-tanque sul para recolha de águas identificadas em 6) a), substituindo-o pela união de dois tubos referidos em 16), junto ao hemi-tanque sul, construindo na mesma época nos seus prédios um novo tanque onde recolhiam as águas que sobravam do consumo nas habitações para as utilizar na rega dos campos [cfr. artigos 18, 19 e 20 dos factos provados].

Sendo que, após o momento referido em 36), a fim de não perderem a água, os Autores fizeram uma ligação na tubagem existente no caminho que confronta com os identificados em 11) e em 1) por forma a aproveitá-la no tanque nestes existente [artigo 39.º e 43.º].

14.º - Por isso, os Autores aproveitaram sempre a água para rega, quer através do tanque novo que construíram assim que deixaram de usar o hemi-tanque sul para recolha de águas localizado no prédio dos Réus, quer após a ligação que fizeram na tubagem existente no caminho que confronta com os identificados em 11) e em 1) por forma a aproveitá-la no tanque nestes existente [artigo 39.º e 43.º].

15.º - Daí que a decisão recorrida não se possa manter, e deve ainda ser anulada, por ser deficiente, obscura e contraditória a decisão sobre estes pontos concretos da matéria de facto (devia ter sido ativado o comando do artigo 712.º, 4 do CPC, atual 662.º).

Na verdade, se na resposta ao artigo 28.º da BI, foi dado como provado que a partir de 1987 os Autores deixaram de usar o hemi-tanque sul para recolha de águas identificadas em 6) a) [artigo 28.º], sendo que, na mesma época os Autores construíram nos seus prédios um novo tanque onde recolhiam as águas que sobravam do consumo nas habitações para as utilizar na rega dos campos [cfr. resposta ao artigo 30º], então não se pode manter uma resposta positiva aos quesitos 24.º e 27.º, afirmando que não é possível regar por aspersão o milho por falta de pressão da água, quando anteriormente se dá por assente que os Autores construíram um novo tanque para a rega.

16.º - O Tribunal da Relação devia, pois, eliminar a resposta dada pelo tribunal a quo que deu como provado a matéria do artigo 27.º da BI, segundo o qual Não é possível regar por aspersão o milho cultivado nos prédios dos Autores por falta de pressão da água [artigo 27.º]. Tal resulta dos depoimentos das testemunhas que depuseram sobre a matéria do quesito 27.º da BI, que continuaram a afirmar que sempre tiveram água para rega.

17.º – Também não se justifica a manutenção da alegada servidão de aqueduto, pois o facto de os caseiros terem água da rede pública é um factor a ponderar a favor da desnecessidade de tal servidão. É que os Autores alegam que a escassez da água obrigou os caseiros a recorrerem à rede pública, o que não é verdade, face à prova documental junta aos autos – cfr. certidão da empresa municipal de água (FF).

18.º - Com efeito, resulta dos autos, a fls. 51 e 52 do apenso A) da providência cautelar, que existe no local dos prédios dos Autores e Réus, rede pública de água desde, pelo menos, 1 de Fevereiro de 1993. Ao contrário do que ficou dito pelas testemunhas das Autoras e diversamente daquilo que foi declarado pela própria Autora no seu depoimento de parte, não foram os “cortes” dos tubos – alegadamente ocorridos no Verão de 2002 - que obrigaram os caseiros a consumirem água da rede pública. Para tal, basta atender na certidão da FF, a fls. 30 do volume do recurso de agravo, que certifica que os caseiros da autora possuem contrato de fornecimento de água desde 1993, e em vigor na data da emissão de tal certidão em 27 de Maio de 2003.

19.º – Acresce que, ainda assim, os caseiros dos autores não podem, legalmente, utilizar as águas das minas nas habitações, em obediência às normas previstas na legislação que regula os sistemas de distribuição pública e predial de água, destacando-se aqui as disposições previstas no DL n.º 306/2007, de 27/08, que estabelece o regime da qualidade da água para o consumo humano e que tem por objetivo proteger a saúde humana dos efeitos nocivos resultantes de eventuais contaminações; o Decreto-Lei n.º 207/94 de 6 de Agosto, do Decreto Regulamentar n.º 23/95 de 23 de Agosto e sobretudo o Regulamento dos sistemas públicos e prediais de distribuição de água e de drenagem de águas residuais nos concelhos de Guimarães e ... (este local o da situação dos prédios dos Autores e Réus), publicado em Diário da República, 2ª série, n.º 170, de 4 de Setembro de 2007.

20.º – No citado Regulamento destaca-se a obrigatoriedade de ligação às redes de distribuição de água de todos os prédios urbanos (sendo que, como se disse, no local dos prédios dos Autores e Réus, existe sistemas de distribuição de água desde, pelo menos, o ano de 1993), cabendo tal obrigação aos proprietários ou usufrutuários das edificações – cfr. artigo 10.º; o dever dos proprietários, usufrutuários ou superficiário dos edifícios servidos por sistemas prediais de distribuição de água, pedir a ligação à rede – cfr. artigo 26º e 30º; a proibição de ligações a outros sistemas, nomeadamente poços, furos, minas ou outros – cfr. artigo 69.º;

21.º - Ora, aplicando estas regras ao caso dos autos, resulta que o acórdão recorrido não pode proteger nem manter uma situação de ilegalidade, dando cobertura à utilização das águas das Autoras nas habitações dos caseiros, provindas de minas, quando tal é proibido pelas normas regulamentares acima citadas, punidas com coimas. E compreende-se que assim seja, pois o que aqui está em causa, é a necessidade de preservar a Segurança, o Ambiente e sobretudo a Saúde Pública.

22.º - A este propósito, atente-se na fotografia de fls. 562, correspondendo ao depósito situado nos montes e do qual provém alegadamente a água para os autores, sendo praticamente a céu aberto, no monte, não vigiada, tapada muito deficientemente com umas chapas de zinco, toda ferrugenta, sujeita às mais variadas violações, permitindo o acesso de qualquer pessoa ou animais e, por isso, insuscetível de ser consumida ou sequer utilizada por qualquer pessoa, pois a utilização de água contaminada, infetada ou empestada na lavagem de roupas ou na lavagem de divisões duma habitação (como o WC ou terraços) acarreta sempre riscos para os utilizadores dessas roupas ou desses espaços, podendo desencadear várias doenças, nomeadamente do foro dermatológico.

23.º – Mas a desnecessidade da alegada servidão de aqueduto ao prédio dominante (dos autores) assenta ainda no seguinte: como flui da sentença da primeira instância, nesta parte bem mantida pela Relação, foi considerado que a servidão de presa não chegou a constituir-se por não ter sido dado uso ao hemi-tanque sul do tanque ... pelo período de tempo necessário para a aquisição originária do direito.

24.º - Por outro lado, está dado como por provado que:

•        18. Pelo menos a partir de 1987 os Autores deixaram de usar o hemi-tanque sul para recolha de águas identificadas em 6) a) [artigo 28.º].

•        19. No momento referido em 18) os Autores uniram os dois tubos referidos em 16), junto ao hemi-tanque sul, fazendo com que as águas identificadas em 6) a) seguissem para os seus prédios inteiramente no interior de canalização [artigo 29.º].

•        20. Na mesma época os Autores construíram nos seus prédios um novo tanque onde recolhiam as águas que sobravam do consumo nas habitações para as utilizar na regra dos campos [artigo 30.º].

•        21. No tanque referido em 20) afluem águas canalizadas de variadas proveniências [artigo 40.º].

•        22. Devido ao referido em 18), o hemi-tanque sul está a partir-se, apresenta fendas, bem como água da chuva estagnada, ervas e lixo no seu interior [artigo 32.º].

•        34. Em 2002 os Réus pretendiam construir uma casa para habitação da família no prédio identificado em 11) [artigo 33.º]

•        35. Para tal construção fosse possível era necessário transferir os tubos subterrâneos que passavam na esquina do alpendre para outro local [artigo 34.º].

25.º - Resulta assim que, por iniciativa dos Autores, o hemi tanque Sul do tanque ..., localizado no prédio dos Réus, deixou de funcionar como tanque de recolha das alegadas águas. Na mesma época os Autores construíram nos seus prédios um novo tanque onde recolhiam as águas que sobravam do consumo nas habitações para as utilizar na rega dos campos [artigo 30.º], tanque este onde afluem águas canalizadas de variadas proveniências [artigo 40.º].

26.º - Nada impede que as águas provenham diretamente da nascente e entrem diretamente nas habitações ou no tanque novo que os autores construíram assim que abandonaram o hemi-tanque sul e daí siga para as habitações dos caseiros e rega. Esta solução foi admitida pelo próprio perito ouvido na audiência, GG (depoimento prestado em 20/05/2011, gravado em CD; início da gravação: 10:24:22; fim da gravação: 10:47:27);

27.º – Com efeito, a partir do momento em que os autores abandonaram o hemi-tanque sul não se justifica que as águas que provenham da nascente entrem pelo prédio dos réus, pois a nascente está localizada num nível ou cota superior em relação ao tanque novo que os autores construíram e às habitações dos caseiros, podendo fazer uma ligação direta da nascente – cfr. planta de fls. 42.

28.º - A partir do momento em que os autores deixaram de usar o hemi-tanque sul localizado no prédio dos réus para recolha de águas (cfr. ponto 18 dos factos provados), a alegada servidão de aqueduto deixou de trazer qualquer mais-valia significativa ao prédio dos autores (dominante), uma vez que, ao mesmo tempo, os autores construíram nos seus prédios um novo tanque onde recolhiam as águas que sobravam do consumo nas habitações para as utilizar na rega dos campos [artigo 30.º], tanque este onde afluem águas canalizadas de variadas proveniências [artigo 40.º].

29.º – Como os autores continuaram sempre a usufruir das águas – aliás, a construção do tanque novo que levaram a efeito é prova disso, pois evidencia a necessidade de recolhas das águas e evidencia grande quantidade de água (as fotografias de fls. 43 e 44 mostram a existência de passadores que, como se sabe, só se justifica a sua existência para fechar a água, quando esta abunda, como é o caso), deve ser julgada extinta a alegada servidão de aqueduto, já que deixa de se justificar o sacrifício imposto ao prédio serviente, dos réus.

30.º - E mesmo que, tecnicamente, isso implique a construção dum depósito pelos autores para «reter» as águas provindas da nascente, a localizar-se no prédio destes – como admitiu o caseiro, testemunha HH - não será sacrifício que não possam suportar, pois tal só valorizará o prédio dominante. A manter-se a decisão recorrida é que o prédio serviente fica desvalorizado.

31.º – A Relação não ponderou o conflito existente entre a necessidade dos Réus em terem direito a uma habitação condigna e a servidão em causa. Conforme alegado na contestação e resulta do senso comum, nenhum projeto de construção duma habitação seria aprovado pela Câmara Municipal se no terreno existissem tubos subterrâneos de água. Mas neste caso concreto, não se trata da construção duma habitação qualquer e este facto a Relação não ponderou convenientemente nos interesses em jogo.

Trata-se da primeira e única habitação dos réus, pois estes viviam num alpendre, muito em boa parte, quando os três filhos dos réus eram ainda menores, como resulta do depoimento de parte da Ré EE e do filho HH, referido expressamente no despacho da resposta à matéria de facto, que a Relação omitiu.

32.º - A manter-se a decisão recorrida, e a manter-se a alegada servidão de aqueduto nos termos nela definidos, os réus terão provavelmente que destruir a casa que construíram em 2005/2006 para permitir a passagem dos tubos.

Daí também que se diga que a Relação não fez uma ponderação correta dos interesses conflituantes presentes na relação jurídica em causa: por um lado, o interesse do proprietário do prédio serviente, com vista a fruir e gozar duma casa de habitação condigna; por outro lado, o interesse do proprietário dominante, em fruir da água da nascente pelo exercício da servidão, quando tem outras alternativas para dela fruir e gozar, como se viu anteriormente.

E, por isso, porque as utilidades podem integralmente ser fruídas e gozadas por outro meio que não o prédio serviente, deve operar-se a extinção da servidão.

33.º – A Relação devia ter em linha de conta que as utilidades retiradas pelo prédio dominante do exercício da servidão (utilização da água) são satisfeitas por meio alternativo (continuação da utilização da água), sendo grandes as vantagens trazidas ao prédio serviente pela extinção da servidão (direito a uma habitação condigna).

34.º – A Relação não ponderou corretamente as perdas e vantagens para apurar qual o interesse merecedor de tutela, neste caso, o interesse a uma habitação merecida. E, assim, neste caso, a manutenção da servidão revela-se comunitária e juridicamente insuportável no confronto com os sacrifícios que importa ao prédio serviente, mormente quando a manutenção da servidão se destine apenas a conservar o gozo de determinadas vantagens de mera comodidade para o prédio dominante. Errou assim a Relação ao manter a matéria constante nos pontos 26.º e 41.º da sentença da primeira instância.

35.º – Ponderando todas as circunstâncias concretas do caso, acima explanadas, resulta que a decisão recorrida não aplicou ao caso uma solução equilibrada. Não efetuou um juízo de proporcionalidade entre o grau de desagravamento do prédio serviente em resultado da extinção da servidão e a dimensão dos eventuais custos, inconvenientes e incómodos resultantes para o prédio dominante da alternativa ao uso da servidão.

36.º - A manutenção da servidão, é também juridicamente insuportável, configurando um abuso de direito, dados os sacrifícios que implica para o prédio serviente, excedendo, manifestamente, os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico visado.

37.º – E assim é pois está dado como assente que as autoras tiveram sempre água; a água teve sempre caudal; as autoras é que tomaram a iniciativa de abandonar o hemi-tanque sul, construindo um tanque alternativo para recolha de águas; não foi constituída a servidão de presa; nada impede que as autoras façam ligação direta da nascente às casas; a água não pode ser aproveitada para consumo e lides domésticas; a rega por aspersão do milho importa a existência mecanizada, não provada, sendo houve testemunhas das arroladas pelas autoras que declararam que a rega não se ressentiu; por outro lado, a manutenção da alegada servidão de aqueduto pode conduzir à destruição da habitação dos réus. Por isso, como se disse, a manter-se a servidão de aqueduto, tal constituirá um abuso de direito.

Nestes termos, nos melhores de direito e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, julgando-se procedente por provado o pedido reconvencional dos recorrentes, com as inerentes consequências.

*

As autoras, por sua vez, remataram o recurso subordinado de revista, com as seguintes conclusões:

1. Deve, ao contrário do decidido no acórdão recorrido e na sentença de 1.ª instância, decidir-se pela procedência do pedido formulado pelos Autores, na sua petição, no sentido de ser declarado e os Réus condenados a reconhecerem que sobre o prédio registado a favor dos Réus se encontra constituída também uma servidão de presa, com o trajecto e características já definidas na douta sentença recorrida e tudo quanto de mais é peticionado pelos Autores no que a tal servidão de presa se refere;

2. Deve, ao contrário do decidido no acórdão recorrido, condenar-se os R.R. a entregar imediatamente às Autoras habilitadas um duplicado da chave própria para a fechadura do portão de ferro situado na confrontação sul do prédio descrito sob o n.º … ou tomar as providências necessárias para que o referido portão nunca seja fechado à chave a fim de lhes permitir o acesso ao interior do referido prédio para as finalidades identificadas em B) b) da sentença de 1.ª instância;

3. Deve, ao contrário do decidido no acórdão recorrido, condenar-se os RR. a pagar aos AA. a indemnização que vier a ser liquidada relativamente aos prejuízos decorrentes dos factos identificados nos pontos 25. a 27., 30., 32., 33. e 36. a 40. da fundamentação de facto na sentença de 1.ª instância;

4. Deve, ainda, julgar-se improcedente o recurso de revista interposto pelos RR

*

Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

São múltiplas as questões suscitadas nas revistas.
No que respeita à prolixa e confusa revista dos réus:
1º. Nulidade do acórdão por excesso de pronúncia (1.º a 4.º) e oposição entre os fundamentos e a decisão (9.º);
2º. Reapreciação da prova e deficiência, obscuridade e contradição das respostas à matéria de facto controvertida (13.º a 18.º, 22.º e 26.º);
3º. Falta de requisitos necessários à usucapião do direito de servidão de aqueduto a favor dos autores (5.º a 8.º); impossibilidade da constituição daquela servidão, pelo facto do prédio dos réus ser urbano (10.º); e ilegalidade da utilização das águas das minas nas habitações dos caseiros das autoras (19.º a 21.º);
4º. Extinção da servidão de aqueduto por desnecessidade (23.º a 29.º);
5º. Desproporcionalidade entre a existência da servidão e o direito à habitação dos réus e abuso do direito (11.º, 12.º e 30.º a 37.º).
E, relativamente à revista das autoras:
6º. Reconhecimento da constituição de servidão de presa;
7º. Condenação na entrega das chaves ou autorizar o acesso;
8º. Determinação de indemnização.

II.

A - Das instâncias vem considerada provada a seguinte matéria de facto, atendendo já à alteração às respostas à base instrutória, introduzida pela Relação:

1. Os autores são donos dos prédios descritos:

a) prédio rústico denominado “...” ou “...” sito no lugar de ..., freguesia de …, com área de 39 800 m2, a confrontar do Norte e Poente com a ...e do Sul e Nascente com caminho de servidão, descrito sob o n.º …  – …  da CRP de ... e inscrito sob os arts. 96.º, 98.º e 100.º rústicos;

b) um prédio rústico composto por terreno com a área de 9446 m2, sito no lugar de Bairro, freguesia de ... de ... a confrontar de Norte e Sul com caminho, de Nascente com II e caminho e de Poente com AA, descrito sob o n.º …  – ... da CRP de … e inscrito sob os arts. 106.º e 107.º rústicos;

c) um prédio urbano composto de casa de rés-do-chão com lojas, barras, cortes e eido, sito no lugar de …, freguesia de ..., a confrontar de todos os lados com os AA., descrito sob o n.º …... de …, da CRP de ... e inscrito sob o art. 224.º urbano da dita freguesia;

d) um prédio urbano composto de casa de rés-do-chão e andar destinada a habitação, sito no lugar do …, freguesia de ... de ..., com a área coberta de 132 m2, a confrontar do Norte e Poente com caminho e do Sul e Nascente com AA, descrito com o n.º … - ... de ... da CRP de ... e inscrito sob o art. 768.º [alínea A) dos factos assentes].

2. Tais prédios foram adquiridos pelos autores por divisão de coisa comum, conjuntamente com JJ, marido e outros, titulada por escritura pública celebrada em 16-09-1985 [alínea B)].

3. E nessa escritura aos autores foram adjudicados os referidos prédios [alínea C)].

4. Os autores são donos de:

a) as águas do Tanque ..., que substitui o antigo Tanque …, e que recolhe as águas provenientes das minas situadas na sorte do ... e na ... do ... de …, donde vêm canalizadas, pertencendo aos autores três dias por semana, às segundas, quartas, e ...s-feiras, para os prédios dos autores;

b) as águas do Tanque ..., situado na ... de … e que recolhe as águas do mesmo Tanque e poças anexas, para os prédios dos autores às segundas e terças-feiras, durante todo o ano;

c) as águas da ..., situada junto ao casal da ... e que recolhe as águas das nascentes existentes na mesma, pertence aos Autores para os seus prédios às segundas, terças e ...s-feiras e sábado [alínea D)].

5. Tais águas foram-lhe adjudicadas do modo e proporções definidas acima pela escritura de divisão de coisa comum de 16-09-1985 referida anteriormente [alínea E) e doc. n.º 1].

6. Assim, foram construídos vários depósitos onde as águas, nascidas nas várias minas situadas na … do ... ou … e na ... de …, umas pertencentes aos autores outras aos réus passaram a ser recolhidas e conduzidas, a saber:

a) umas águas eram recolhidas num depósito sito na ... do …, apetrechado com sete bicas (tantas quantas os dias da semana) iguais, sendo que três bicas soltam água para os autores (para os seus prédios);

b) outras águas (estas inteiramente dos autores) (à mesma na ... do …) são recolhidas numa dorna em cimento com 70 centímetros de diâmetro e 1 metro de profundidade, daí é canalizada para um tanque de recolha de forma rectangular com 2 metros de largura e 1,5 metros de comprimento e 1 metro de profundidade (sita na ... das …) [alínea F)].

7. E todas as águas pertencentes aos autores e acima descriminadas são conduzidas dos depósitos de recepção referido por tubos (ora subterrâneos, ora visíveis à superfície da terra) (tubos esses cujo diâmetro varia entre 2,5 centímetros e 4 centímetros) para o denominado tanque ... [alínea G)].

8. Entretanto [o tanque ...] foi dividido em duas partes (dois tanques) sendo a parte dos autores com 2,9 metros de comprimento e a parte dos réus com 3,4 metros de comprimento e sendo o tanque dos autores o que fica do lado Sul [alínea H)].

9. Para cada um destes tanques, em canalização própria e independente, correm as referidas águas (as dos autores e as dos réus) [alínea I)].

10. Na década de 1980 os autores e HH entenderam simplificar a divisão das águas referidas em 6) a) e as adjudicadas a este na escritura de 16-09-1985, aludida em 5), fazendo a operação identificada em 8) e 9) [resposta ao artigo 1.º da base instrutória].

11. Sem prejuízo da divisão referida em 8), o Tanque ... sito no prédio registado a favor dos réus sob o n.º … - … de ... e inscrito na matriz urbana sob o artigo …, tem 6,38 metros de comprimento, 5,23 metros de largura e 1,1 metro de profundidade [artigo 2.º].

12. As águas referidas em 6) a) foram recolhidas no hemitanque sul do Tanque ... até 1987 e daí canalizadas para os prédios dos autores para serem aproveitadas para gastos domésticos das habitações, lima e rega dos terrenos, beneficiando do facto de haver um acentuado desnível entre eles e o referido tanque, para as recolherem e consumirem sem gastos de energia [artigo 3.º].

13. O tanque de recolha e as canalizações que dele saíam eram visíveis [artigo 4.º].

14. Durante período não concretamente apurado, anterior ao momento referido em 5), tais águas eram conduzidas em rego aberto que atravessava a actual Rua ... sita a norte do prédio identificado em 11) e depois seguiam pelo caminho que nela entronca pelo lado direito e confronta com esse prédio e os identificados em 1) [artigo 5.º].

15. Tal rego tinha cerca de 40 cm de largura e outro tanto de profundidade [artigo 6.º].

16. No momento referido em 10) os autores e HH entenderam canalizar tais águas através de tubos de modo que os mesmos entravam no prédio identificado em 11) através de uma abertura situada na sua confrontação sul, seguindo sensivelmente no sentido nascente – poente, com o trajecto desenhado no documento de fls. 42, até ao hemitanque sul onde foram recolhidas até 1987 e do qual saíam para os prédios identificados na alínea 1) em trajecto paralelo e inverso em tubos com idênticas características [artigo 7.º].

17. Na abertura referida em 16) existia uma cancela de madeira que os autores usavam para seguir a canalização das águas até ao hemitanque sul num percurso correspondente ao desenhado no documento de fls. 42, bem calcado, com cerca de 50 cm de largura [artigo 8.º].

18. Pelo menos a partir de 1987 os autores deixaram de usar o hemitanque sul para recolha das águas identificadas em 6) a) [artigo 28.º].

19. No momento referido em 18) os autores uniram os dois tubos referidos em 16), junto ao hemitanque sul, fazendo com que as águas identificadas em 6) a) seguissem para os seus prédios inteiramente no interior de canalização [artigo 29.º].

20. Na mesma época os autores construíram nos seus prédios um novo tanque onde recolhiam as águas que sobravam do consumo nas habitações para as utilizar na rega dos campos [artigo 30.º].

21. No tanque referido em 20) afluem águas canalizadas de variadas proveniências [artigo 40.º].

22. Devido ao referido em 18), o hemitanque sul está a partir-se, apresenta fendas, bem como água da chuva estagnada, ervas e lixo no seu interior [artigo 32.º].

23. Durante o ano de 2001 começaram a surgir dificuldades e interrupções na condução das águas referidas em 12) [artigo 9.º].

24. Por várias vezes o caseiro agrícola dos autores, por estes incumbido de zelar pelo abastecimento da água aos prédios identificados em 1), se deslocou ao prédio dos réus e reparou a canalização que aparecia cortada, reatando a condução das águas [artigo 10º].

25. No final do Verão de 2002 os autores verificaram que, embora o caudal das águas se mantivesse, a pressão das mesmas na canalização era inferior à habitual [artigo 11.º].

26. Tal determinou que ficassem privados de água nas habitações pelo facto de as mesmas terem deixado de ter “ponto” para lá chegarem [artigo 12.º].

27. Desde essa altura os caseiros das habitações dos autores passaram a consumir exclusivamente água da rede municipal, o que implica despesas acrescidas [artigo 13.º].

28. O referido caseiro agrícola dos autores procurou esclarecer a situação deslocando-se ao prédio dos réus [artigo 14.º].

29. Foi impedido de o fazer pelo filho mais velho dos réus com quem se envolveu numa altercação [artigo 15.º].

30. A averiguação do que se passa por parte dos autores ficou dificultada pelo facto de os réus terem substituído a cancela referida em 17) por um portão em ferro com cerca de 3 metros de largura provido de fechadura [artigo 16.º].

31. A referida cancela estava apenas apetrechada com um cravelho que os autores abriam quando pretendiam aceder ao prédio identificado em 11) para a finalidade referida em 17) [artigo 17.º].

32. Os réus mantêm o referido portão fechado à chave e não forneceram uma aos autores [artigo 18.º].

33. Dessa forma os réus impedem os autores de verificar o trajecto da canalização referido em 16) e proceder à respectiva reparação [artigo 20.º].

34. Em 2002 os réus pretendiam construir uma casa para habitação da família no prédio identificado em 11) [artigo 33.º].

35. Para que tal construção fosse possível era necessário transferir os tubos subterrâneos que passavam na esquina do alpendre para outro local [artigo 34.º].

36. Eliminado pela Relação (cf. fls. 834).[1]

37. Desde o momento referido em 25) as águas que os autores recebem com a proveniência identificada em 6) a) têm menor pressão [artigo 24.º].

38. Não é possível regar por aspersão o milho cultivado nos prédios dos Autores por falta de pressão da água [artigo 27.º].

39. Após o momento referido em 36), a fim de não perderem a água, os autores fizeram uma ligação na tubagem existente no caminho que confronta com os identificados em 11) e em 1) por forma a aproveitá-la no tanque nestes existente [artigo 43.º].

40. Esta solução não permite abastecer as habitações existentes nos seus prédios [artigo 44.º].

41. Para que o abastecimento das habitações seja possível é necessário que a água siga o trajecto referido em 16) e 19) [artigo 45.º].

42. Os autores nunca autorizaram os réus a mexer nas canalizações [artigo 46.º].

43. Os autores cortaram relações com os réus desde que instauraram o procedimento cautelar em Setembro de 2002 [artigo 47.º].

B. Abordar-se-ão, seguidamente, as questões atrás enunciadas:

B1. Nulidade do acórdão por excesso de pronúncia e condenação em objecto diverso.

Os réus começam por argumentar que o tribunal recorrido errou ao não ter declarado nula a sentença – por excesso de pronúncia –, sendo por isso nula a decisão ora sindicada, porquanto, não obstante reconhecer que os autores não alegaram os requisitos da posse – pacificidade, publicidade e animus possidendi –, essenciais para a constituição do direito de servidão de aqueduto por usucapião, substituiu-se aos autores e deu tais requisitos por preenchidos, incorrendo, assim, na nulidade prevista na alínea d), do n.º 1, do art. 668.º do CPC – actual art. 615.º do NCPC (2013).

Por outro lado, sustentam, adicionalmente, que “nos pedidos formulados, os autores não pedem o reconhecimento do direito sobre a água, mas apenas o direito de servidão de presa e aqueduto. Daí que o desfecho da acção nunca seria o que consta do acórdão recorrido. Ao condenar os réus nos pedidos formulados, a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 1390.º do CC e 668.º, n.º 1, c) do CPC”(sic).[2]

Em causa estão potenciais vícios (formais) do acórdão, atinentes aos respectivos limites de conhecimento, seja por excesso de pronúncia, seja por pronúncia ultra petitum, na modalidade de objecto diferente do especificado pela parte.

Ao recurso apreciado aplica-se, como já se sublinhou, o NCPC (2013), estando as nulidades da decisão judicial plasmadas no actual art. 615.º, o qual, em relação ao antigo art. 668.º do CPC, na redacção dos DL n.ºs 303/2007, de 24-08, e 34/2008, de 26-02, veio acrescentar, na alínea c), a expressão “…ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”, ao mesmo tempo que suprimiu a alínea f), onde se preceituava que a omissão da fixação da responsabilidade quanto a custas consubstanciava uma nulidade decisória.

Pois bem. O excesso de pronúncia regista-se quando o juiz, desrespeitando os factos alegados pelas partes, exorbita o seu perímetro e deixa de observar os limites da causa de pedir invocada – ou aprecia excepções na exclusiva disponibilidade das partes –, o que inquina, de nula, a decisão tomada, conforme decorre do art. 615.º, n.º 1, al. d), 2.ª parte, do NCPC.

Esta nulidade é frequentemente agitada em sede recursiva, a par da omissão de pronúncia, e tem a sua génese na confusão que se estabelece, amiúde, entre questões a apreciar e as razões ou argumentos aduzidos pelas partes. Importa acautelar que o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação e aplicação das regras de direito – cf. art. 5.º, n.º 3, do NCPC –, e, como tal, os argumentos, motivos ou razões jurídicas não vinculam o tribunal. Por isso, quando tal se imponha, o tribunal pode – e deve – julgar as questões que constituem o objecto do processo com base em razões jurídicas diversas das invocadas pelas partes, e, do mesmo modo, não está adstrito a esgotar a análise dos argumentos, mas, apenas, a explicar e considerar todas as questões que devam ser conhecidas, ponderando os argumentos na medida do necessário e suficiente.

Escreveu-se a este respeito no acórdão recorrido: “Invocam que os AA não alegaram factos atinentes à pacificidade e publicidade, nem invocaram animus possidendi./ Não é, assim, porém. Como responderam os apelados, nas suas contra-alegações, ainda que, sob o ponto de vista do rigor jurídico, não na forma ideal – dizemos nós -, foi alegado que no exercício do direito de propriedade das citadas águas e fazendo seu proveito, exploraram-nas, fizeram conservações nas canalizações, veneraram as construções, à vista de toda a gente, sem oposição e na convicção de exercer um direito próprio. E essas canalizações são, em parte, as que ora se discutem. Por isso, o tribunal não foi além do que se encontrava alegado, sendo certo que os arestos citados não se adequam ao caso em apreciação, posto que neles se aborda a questão do pedido que, no caso, manifestamente, não foi ultrapassado. Improcede, pois”.

Coincidindo integralmente a nossa posição com tal afirmação, nada mais se nos oferece dizer, sendo certo, aliás, que o Acórdão do STJ, de 29-03-2012, assinalado pelos recorrentes, se reportava a uma situação totalmente diversa, não se tendo encontrado, ainda, o Ac da Relação de Coimbra a que aludem.

O art. 615.º, n.º 1, al. e), do NCPC, por sua vez, estabelece que a sentença é nula quando o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido. Trata-se de uma nulidade que funciona como sanção para o desrespeito pela norma do n.º 1 do art. 609.º do NCPC, a qual proíbe expressamente a condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir.

O pedido é, como o define a lei, o efeito jurídico que se pretende obter com a causa – art. 581.º, n.º 3, do NCPC -, balizando o campo de apreciação do tribunal na prossecução da solução do litígio, como exigido pelas normas dos arts. 609.º, n.º 1, e 615.º, n.º 1, al. e), do NCPC. Relevante, na determinação do objecto do pedido – englobando o seu objecto imediato e mediato, ou seja, a forma de tutela jurídica e a sua consequência jurídica material -, será o conhecimento do efeito prático, que não do mero efeito jurídico, que a parte pretende alcançar, para além da qualificação jurídica que dá à pretensão.[3]

Nesta parte, e analisando a questão que já tinha sido levantada na apelação, consignou-se no Acórdão sob recurso: “A propriedade das águas, no que aos AA. concerne, resulta da factualidade dada como provada, sob o n.º 4 da sentença e, não se colhe da sentença em crise qualquer condenação que não tinha sido formulada, o que decorre linearmente do cotejo entre o pedido constante da petição reformulada e a dita decisão. A condenação é atinente, apenas, à servidão, seu exercício e indemnização por actuação considerada ilícita./De todo o modo, sempre se dirá, no que concerne a águas particulares, de acordo com os ensinamento da doutrina (cf. Tavarela Lobo, Manual do Direito de Águas, 2ª ed., vol. II, pág. 383), não é necessária a prova da titularidade do direito sobre a água para se obter o reconhecimento de uma servidão de aqueduto por usucapião” (sic).

Não se diria melhor e dando-se por acolhidas as considerações tecidas no acórdão recorrido – que se dão por repetidas, nos termos do art. 663.º, n.º 5, aplicável ex vi do art. 679.º do NCPC –, e sem necessidade de maiores considerandos, julga-se improcedente a questão atinente às nulidades do acórdão recorrido.

B2. Reapreciação da prova e deficiência, obscuridade e contradição das respostas à matéria de facto controvertida.

É manifesto que os réus, em grande parte do recurso, repetem as alegações que já apresentaram na apelação - em especial, pontos 13.º a 18.º, 22.º e 26.º reproduzem, quase ipsis verbis, as conclusões vertidas nos pontos 38.º a 44.º, 48.º e 52.º da apelação - o que não pode deixar de merecer  o devido reparo, sendo evidente que a mera troca pontual de expressões – tais como “sentença” por “decisão recorrida” –, não equivale a considerar que, substancialmente, as alegações/conclusões de recurso sejam diversas na apelação e na revista.

Em todo o caso, sempre se aduzirá o seguinte:

É às instâncias – seja na 1.ª instância, seja na Relação – que incumbe operar o julgamento de facto, sabido que o STJ não controla a matéria de facto, nem revoga por erro no seu apuramento, cabendo-lhe, antes, fiscalizar a aplicação do direito aos factos seleccionados pelos tribunais de instância – cf. arts. 674.°, n.ºs 1 e 3, e 682.°, n.ºs l e 2, ambos do NCPC.

Competindo às instâncias a fixação da factualidade pertinente à resolução do dissídio, ao Supremo apenas cumpre aplicar definitivamente o regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fincados pelo tribunal recorrido – art. 682.º, n.º 1, do NCPC –, não lhe incumbindo censurar a apreciação factual ali executada, fora dos apertados limites legais delimitados pelo n.º 3 do art. 674.º do NCPC, concernente às situações limite de violação de regras de direito probatório material/prova vinculada.

Em suma, ao STJ apenas pertence averiguar da correcção da aplicação do direito aos factos seleccionados pelos tribunais de instância, tal como promana dos arts. 674.° e 682.°, n.ºs l e 2, do NCPC. Daí dizer-se que o STJ é um tribunal de revista e não um tribunal de 3.ª instância – cf. art. 210.° da Constituição. 

Assim sendo, constituindo os pontos controvertidos indicados pelos recorrentes – nas suas conclusões 13.ª a 18.ª, 22.ª e 26.ª –, factos de prova livre –, não estando sujeitos a qualquer tipo de prova legalmente taxada –, era às instâncias que incumbia, como aconteceu, a respectiva fixação, sem qualquer interferência por banda deste tribunal, não se vislumbrando que a valoração probatória operada em 2.ª instância tenha violado quaisquer regras processuais ou de lógica, porquanto a Relação se cingiu a procurar, segundo padrões de normalidade e plausibilidade, os factos provados (e aqueles que quedaram por ficar demonstrados).

Só se verificasse uma contradição insanável sobre a matéria de facto, que inviabilizasse a decisão jurídica do pleito, o processo deveria voltar ao tribunal da Relação, a fim de suprimir tal contradição, o que, ostensivamente, não ocorre. Diga-se, aliás, que a convicção da Relação – como expressamente consta do acórdão sindicado cuja leitura cuidada, nessa parte, se recomenda aos recorrentes – foi obtida de forma complexa, concertando os depoimentos das testemunhas com os elementos documentais e demais prova, não se cingindo ao uso de meras expressões vazias ou destituídas de conteúdo, inexistindo qualquer contradição nas respostas assinaladas pelos réus/recorrentes (v.g., respostas arts. 28.º e 30.º da base instrutória em confronto com os arts. 24.º e 27.º), mormente no que se reporta à consideração de que não é possível regar por aspersão o milho por falta de pressão de água, não obstante estar dado por assente que os autores construíram um novo tanque para rega.

De resto, e no mais, as considerações vertidas nos pontos 18.º, 22.º e 26.º das conclusões, além de desfasadas da matéria de facto dada por assente nas instâncias, não se afiguram revestir qualquer tipo de relevância em sede de revista, por se referirem, novamente, a meios de prova de livre apreciação – documento escrito, fotografia e perito –, que apenas podiam ser considerados nos tribunais a quo.

Nada, pois, a censurar ao raciocínio vertido no aresto recorrido, para fundamentar a sua convicção e as respostas dadas aos sobreditos artigos da base instrutória, não se registando que existam as deficiências, obscuridades ou contradições, que impliquem o recurso ao mecanismo do art. 682.º, n.º 3, do NCPC.

B3. Falta de requisitos necessários à usucapião do direito de servidão de aqueduto a favor dos autores; impossibilidade da constituição daquela servidão, pelo facto do prédio dos réus ser urbano; e ilegalidade da utilização das águas das minas nas habitações dos caseiros das autoras.

Os réus/recorrentes, uma vez mais, repisam, quase ipsis verbis, o que já antes escreveram na apelação: na verdade, as conclusões vertidas nos pontos 5.º a 8.º, 10.º, e 19.º a 21.º correspondem aos pontos 24.º a 27.º, 29.º, e 45.º a 47.º das conclusões da apelação. Seria lícito cingir-nos a remeter para o que no aresto impugnado, acertadamente,  se escreveu – cf. art. 663.º, n.º 5, do NCPC, aplicável ex vi do art. 679.º -, mas para melhor suporte da solução aí adoptada, vai salientar-se ainda o seguinte:

recapitulando a factualidade relevante, regista-se que: por escritura pública de divisão de coisa comum, celebrada em 16-09-1985, foram adjudicadas aos autores as águas descritas no ponto 4 dos factos provados, cuja recolha foi alcançada através da construção de vários depósitos: (i) um situado na ..., apetrechado com sete bicas iguais, tantas quantas os dias da semana, soltando três delas água para os prédios dos autores; (ii) uma dorna em cimento com 70 centímetros de diâmetro e 1 metro de profundidade situada também na ..., com ligação de canalização para um tanque de recolha com 2 metros de largura, 1,5 metros de comprimento e 1 metro de profundidade situado na .... A partir destes depósitos as águas são conduzidas por tubos de diâmetro variável entre 2,5 centímetros e 4 centímetros, umas vezes subterrâneos e, outras vezes, visíveis à superfície da terra para outro depósito denominado tanque ....[4]

Na década de 1980, os autores e HH, a quem também foram adjudicadas águas naquela escritura pública, decidiram simplificar a divisão das águas recolhidas no depósito das sete bicas, sito na ... do …, dividindo o tanque ... em dois: o situado a sul, com 2,9 metros de comprimento ficou para os autores, e o do norte, com 3,4 metros de comprimento, ficou para o HH –agora para os réus –, fazendo correr para cada um desses tanques, em canalização própria e independente, a água que lhes cabia respectivamente.

Até à celebração da escritura de divisão de coisa comum (e durante período temporal não apurado), a canalização das águas era levada a cabo através de um rego aberto, com 40 cm de largura e de profundidade, o qual atravessava a actual Rua ..., sita a norte do prédio que actualmente pertence aos réus, seguindo depois pelo caminho que nela entronca pelo lado direito e confronta com o mesmo prédio dos réus e aqueles que pertencem aos autores.[5]

Ainda na década de 1980, quando autores e HH decidiram dividir o tanque ..., optaram por canalizar tais águas através de tubos, com o seguinte percurso: os tubos entravam no prédio, que actualmente pertence aos réus, descrito sob o n° …, através de uma abertura situada na sua confrontação sul, seguiam sensivelmente no sentido nascente – poente, com o trajecto desenhado no documento de fls. 42, até ao hemitanque sul; deste saíam tubos com idênticas características para os prédios pertencentes aos autores em trajecto paralelo e inverso.

Os autores beneficiavam do acentuado desnível entre os seus prédios e o tanque ... que lhes permitia recolher as águas e consumirem-nas sem dispêndio de energia, aproveitando-as para gastos domésticos das habitações, lima e rega dos terrenos.

O tanque de recolha e as canalizações que dele saíam eram visíveis.

Na abertura situada na confrontação sul do prédio dos réus existia uma cancela de madeira que os autores usavam para seguir a canalização das águas até ao hemitanque sul num percurso correspondente ao da tubagem subterrânea, bem calcado, com cerca de 50 cm de largura.

As águas em causa caíram no hemitanque sul ... até 1987, ano em que os autores uniram o tubo que trazia a água do depósito das sete bicas, sito na ... do …, com aquele que a conduzia em trajecto inverso para os seus prédios, passando a mesma a seguir inteiramente no interior de canalização.

O aproveitamento continuou idêntico: a água seguia directamente para as habitações a fim de ser consumida e a que sobrava era recolhida num tanque então construído no prédio dos autores e posteriormente usada na rega dos campos, à semelhança do que sucedia com águas que afluíam de outras proveniências. A partir daquele momento o hemitanque sul deixou de ser utilizado, o que determinou que se deteriorasse, apresentando-se actualmente partido, com fendas e, no seu interior, com água da chuva estagnada, ervas e lixo.

No ano de 2001 começaram a surgir dificuldades e interrupções na condução das águas. O caseiro agrícola dos autores, que estava incumbido por estes de zelar pela regularidade do abastecimento, deslocou-se por diversas vezes ao prédio dos réus para reparar a canalização, que aparecia cortada e reatava a condução das águas.

No final do Verão de 2002, embora o caudal se mantivesse, a pressão das águas na canalização tornou-se inferior ao habitual (situação que se mantém), o que determinou a privação de água nas habitações situadas nos prédios dos autores, uma vez que deixou de haver “ponto” para esse efeito; desde então os caseiros habitacionais dos autores passaram a consumir exclusivamente água da rede municipal.

A cancela, que permitia o acesso dos autores sempre que necessitavam de indagar sobre o estado da canalização, foi substituída por um portão em ferro com cerca de 3 metros de largura provido de fechadura, que os réus passaram a manter fechado à chave, sem que tivessem fornecido uma aos autores, impedindo-os de verificar o trajecto da canalização e de proceder à reparação.

Para que o abastecimento das habitações seja possível é necessário que a água siga o trajecto anteriormente referido, não tendo a solução de recurso utilizada pelos autores (ponto 39) permitido esse abastecimento, nem sendo possível regar por aspersão o milho cultivado nos prédios dos autores, por falta de pressão da água.

Esta a factualidade relevante e dela se partirá na sua análise jurídica à luz das questões acima enunciadas.

As águas são partes componentes dos prédios, consideradas coisas imóveis, e mesmo depois de adquirirem autonomia continuam a ser coisas imóveis – cf. art. 204.º, n.º 1, alíneas e) e b), do Código Civil (CC)[6] –, classificando-se em públicas e particulares, estando as primeiras submetidas ao regime estabelecido em leis especiais – cf. art. 1385.º do CC.

São particulares – segundo a definição do art. 1386.º, n.º 1, do CC –, entre outras, (i) as águas que nascerem em prédio particular (e as pluviais que nele caírem), enquanto não transpuserem, abandonadas, os limites do mesmo prédio ou daquele para onde o dono dele as tiver conduzido, e ainda as que, ultrapassando esses limites e correndo por prédios particulares, forem consumidas antes de se lançarem no mar ou em outra água pública, e (ii) as águas subterrâneas existentes em prédios particulares.

Rege o art. 1389.º do CC que o dono do prédio onde haja alguma fonte ou nascente de água pode servir-se dela e dispor do seu uso livremente, salvas as restrições previstas na lei e os direitos que terceiro haja adquirido ao uso da água por justo título.

Tavarela Lobo clarifica que, no exercício do seu direito de propriedade, o dono da nascente goza dos poderes de uso, disposição e derivação das águas: “Os poderes de uso ou utilização do dono da nascente compreendem a faculdade de conduzir as águas para outro prédio seu ou de terceiro. Ultrapassados os limites desses prédios já não pode o proprietário da nascente dessas águas sobejas, abandonadas, aproveitá-las ou dispor delas livremente, pois lhe não pertencem. Se atingem uma corrente pública passam a revestir natureza dominial, não sendo, assim, lícito ao dono da nascente «ir tirá-las à mesma corrente». Não ingressando no domínio público e podendo ser aproveitadas pelos proprietários inferiores é vedado ao dono do prédio da nascente reivindicá-las da posse desses proprietários de jusante, que suportam o ónus do seu escoamento”. Por seu turno, “os poderes de disposição do dono da fonte ou nascente podem revestir as formas de alienação da propriedade, constituição de servidões de água ou um mero uso pessoal. Representando a fonte ou nascente situada num prédio uma parte componente dele – pars fundi – é de per si susceptível de alienação autónoma. Com esta característica de propriedade independente do prédio onde nascem, essas águas tanto podem ser alienadas conjunta ou separadamente do mesmo”. Finalmente, “no direito de derivação concedido ao dono da nascente compreende-se, em princípio, a faculdade de dispersar as águas inutilmente, secar ou destruir a nascente absorvendo as águas no próprio prédio, etc., não causando prejuízo a terceiros”.[7]

As restrições àquele direito são, especialmente, as referidas nos arts. 1392.º, 1557.º e 1558.º; os direitos adquiridos são os previstos no art. 1390.º (todos do CC).[8]

Conforme explica José Cândido de Pinho “as fontes e nascentes constituem partes integrantes do solo onde se acham implantadas. Daí, a utilização das respectivas águas decorrer do prolongamento natural do domínio do prédio sobre todos os seus elementos componentes”. E, acrescenta, “o dono do prédio onde a fonte ou a nascente existam, ainda que ambas alimentadas por águas não nativas desse prédio, detém, por regra, na sua esfera jurídica a propriedade destas. O desvio ao princípio situa-se na possibilidade que existe de outrem, sobre elas, deter um poder soberano, que bem pode ser o de propriedade (desde que para tanto exista um título capaz de a ter transferido, ou originariamente a ter criado – estamos a pensar na usucapião) ou de servidão (verificados os necessários pressupostos)”. [9]

De facto, é consensual – seguindo Antunes Varela – que existe a possibilidade de sobre uma água existente ou nascida em prédio alheio se constituírem dois tipos distintos de situações: “o direito de propriedade, sempre que, desintegrada a água da propriedade superficiária, o seu titular pode usá-la, fruí-la, e dispor dela livremente; o direito de servidão, quando, continuando a água a pertencer ao dono do solo ou de um outro prédio, se concede a terceiro a possibilidade de aproveitá-la, em função das necessidades de um prédio diferente”. O autor prossegue: “Em qualquer dos casos, há um verdadeiro direito real sobre a res imobilis (art. 204.º, 1, b, do CC) que é a água. Mas existe entre os dois direitos reais uma profunda diferença, tanto no seu conteúdo, como na sua extensão ou dimensão: no primeiro caso, há um direito pleno e, em princípio, ilimitado sobre a coisa, que envolve a possibilidade do mais amplo aproveitamento, ao serviço de qualquer fim, de todas as utilidades que a água possa prestar; o segundo confere ao seu titular apenas a possibilidade de efectuar o tipo de aproveitamento da água previsto no título constitutivo e na estrita medida das necessidades do prédio dominante”.[10]

Retrocedendo ao caso concreto, a factualidade supra elencada permite concluir pela titularidade dos autores do direito à água que caía na parte sul do tanque ..., colocando-se a questão de saber se é possível reconhecer o direito de servidão de aqueduto, relacionado com essa água, como o fizeram as Instâncias.

Da análise dos preceitos legais anteriormente mencionados, assinala-se que a separação e desintegração das águas do domínio de um prédio pode ocorrer na sequência de um título de aquisição do direito à água (ou ao uso da água) a favor de terceiro, porquanto o art. 1389.º do CC, depois de reconhecer ao proprietário do prédio a faculdade de se servir da água de fonte ou nascente nele existente e de dela dispor livremente, ressalva as restrições previstas na lei “e os direitos que terceiro haja adquirido ao uso da água por título justo”. E o art. 1390.º, no seu n.º 1, considera título justo de aquisição da água das fontes e nascentes, conforme os casos, “qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões”.[11]

Como já ficou referido, o direito à água que nasce em prédio alheio pode ser – conforme o título da sua constituição – um direito ao uso pleno da água, sem qualquer limitação, ou seja, um direito de propriedade; e pode ser apenas o direito de a aproveitar noutro prédio, com as limitações inerentes às necessidades deste, isto é, um direito de servidão.[12]

Porém, para a aquisição do direito por usucapião (cf. art. 1316.º do CC), trate-se da aquisição da propriedade ou de servidão, torna-se ainda necessário, além dos demais requisitos exigidos por lei, e tal como prescreve o n.º 2 do art. 1390.ºdo  CC que a usucapião seja “acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio”.

Ou seja, exige-se no art. 1390.º, n.ºs 1 e 2, do CC, a par dos requisitos gerais de uma posse conducente à usucapião, que tenha também havido a construção de obras no prédio onde se situa a fonte ou nascente de onde brotam as águas, e sem a prova dessas obras, feitas sem oposição do dono do prédio onde se situe a nascente ou fonte, a usucapião não será atendida, pois não constitui, só por si, justo título de aquisição de águas de nascentes.[13]

Precisamente, os recorrentes começam por contestar que ocorram, in casu, os requisitos necessários à usucapião do direito de servidão de aqueduto a favor dos autores – cf. pontos 5.º a 8.º das conclusões –, porquanto a usucapião só é atendida e considerada justo título de aquisição quando for acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e posse da água nesse prédio, o que não se registará na situação vertente.

Vejamos:

O art. 1543.º do CC considera que as servidões prediais consistem num encargo imposto a um prédio em benefício de outro prédio, pertencente a dono diferente, e que revestindo natureza real, oneram todo o prédio serviente, e não apenas a parte concretamente afectada – art. 1546.º do CC. Elas permitem o aproveitamento de determinadas utilidades do prédio serviente, variáveis consoante o respectivo conteúdo, e implicam as correspondentes restrições para o titular do prédio dominante, que fica impedido de praticar actos que prejudiquem aquele aproveitamento – cf. art. 1568.º, n.º 1, do CC.[14]

Entre as referidas servidões conta-se a de aqueduto cuja utilidade imediata é o aproveitamento da água de que se é proprietário ou titular do direito de utilização e esse aproveitamento traduz-se na “faculdade de conduzir através de prédio alheio as águas” particulares “a cujo aproveitamento tenha direito”.[15]

Traduz-se essencialmente na condução da água para um prédio dominante, onde é utilizada, através de um prédio alheio serviente, por meio de cano, rego ou mina, em regra pelo subsolo.[16]

O adquirente do direito de propriedade sobre águas provenientes de nascentes em prédio alheio por usucapião deve alegar e demonstrar a posse de obras, visíveis e permanentes, nesse prédio, reveladoras da captação e condução da água para o seu prédio, o que permite excluir da usucapião, em matéria de águas, as situações de posse equívoca, já que, como refere Henrique Mesquita, “impendendo sobre os proprietários a obrigação de dar escoamento às águas que naturalmente e sem obra do homem provenham de prédios superiores (art. 1351.º) e facultando-lhes a lei, em compensação deste encargo, o poder legal de as aproveitar (veja-se o art. 1391.º), a simples fruição, pelos proprietários inferiores, da água de uma fonte ou nascente tanto pode traduzir o cumprimento de um encargo e o mero exercício de una faculdade legal, como a intenção de agir uti dominus. Ora é precisamente para destruir esta equivocidade que o legislador faz depender a posse da construção de obras no prédio superior”.[17]

Como tal, a exigência de sinais visíveis e permanentes destina-se a distinguir as situações de mera tolerância do proprietário, que apenas consente em que terceiros retirem certas utilidades do prédio, das hipóteses de exercício de poderes de facto susceptíveis de conduzir à aquisição de um direito por usucapião, em limitação ou oneração do direito de propriedade, traduzindo um apossamento e a prática reiterada de poderes correspondentes a tal direito e exteriorizando a relação de serventia entre os prédios.[18] Como escrevem Pires de Lima e Antunes Varela, ao anotar o regime das servidões não aparentes (art. 1548.º do CC): “Admitir a usucapião como título aquisitivo deste tipo de servidões, não obstante a equivocidade congénita dos actos reveladores do seu exercício, teria o grave inconveniente de dificultar, em vez de estimular, as boas relações de vizinhança, pelo fundado receito que assaltaria as pessoas de verem convertidas em situações jurídicas de carácter irremovível situações de facto, assentes sobre actos de mera condescendência ou obsequiosidade”.[19]

Por isso, o transporte das águas “através de prédios rústicos alheios” – cf. n.º 1 do art. 1561º do CC – tem de revelar-se, externamente e de forma permanente, para se poder adquirir por usucapião a servidão correspondente, sendo certo que será suficiente para revelar a correspondente utilização a visibilidade dos pontos de captação e de destino da água conduzida, ainda que não ocorra em toda a extensão ou em todos os prédios atravessados, nada obrigando a que esse transporte, que pode ser subterrâneo, se faça apenas de um prédio para os prédios contíguos.

Na verdade, “uma canalização subterrânea – como escreve José Cândido Pinho – embora não manifestamente visível, mormente durante a sua implantação no subsolo, pode ser suficientemente reveladora da sua existência e, consequentemente, da posse e captação da água. Os elementos que o podem demonstrar são a parte inicial da obra de penetração no subsolo (a boca da tubagem), as janelas ou óculos durante o seu percurso (para limpeza dos canos) e abertura de saída da canalização”.[20] De resto, foi este o entendimento vertido, por exemplo, no Acórdão do STJ, de 17-02-2011, onde se exarou: “As obras visíveis e permanentes que a lei exige como requisito desta figura, no n.º 2 do art. 1390.º do CC, podem ser constituídas por canalização subterrânea desde que, nomeadamente pela entrada e saída ou por óculos existentes no percurso, revele a posse e actuação sobre aquelas águas”.[21]

Pode assim afirmar-se que as autoras/recorridas, desde há vários anos que vêm procedendo à captação de água no prédio dos réus, tendo construído para o efeito, nesse mesmo prédio, várias obras, que são visíveis de todos e apresentam carácter permanente, e cujo significado é inequívoco: elas revelam a captação e a posse da água nesse prédio.

Os demais requisitos da usucapião – posse pública e pacífica, e de boa fé – bem como o lapso temporal necessário à sua verificação, estão também presentes e retratados na facticidade apurada.

Isto dito, e revertendo ao caso sub judicio constata-se que, desde, pelo menos, o momento em que ocorreu a divisão do tanque ... e a colocação de tubos de condução das águas, na década de 1980, os(as) autores(as) praticaram actos de posse relacionados com o aproveitamento da água – que era conduzida através do prédio dos réus –, dando instruções para que a canalização fosse zelada e mantida operacional, o que permite presumir (como concluíram as instâncias) que agiam com intenção de exercer os poderes típicos do direito de servidão de aqueduto, tendo-se perfeito o prazo da usucapião em Setembro de 2000 (se se tomar como referência a data da escritura de divisão de 16-09-1985) ex vi, em especial, dos arts. 1263.º, al. a), 1252.º, 1296.º, 1297.º, todos do CC.

A seguir, suscitam os recorrentes a questão da impossibilidade da constituição daquela servidão, pelo facto do seu prédio ser urbano (ponto 10.º das conclusões), estribando-se, para tanto, na redacção do art. 1561.º, n.º 1, do CC, de acordo com a qual só se pode constituir servidão de aqueduto em prédios rústicos ou ...s muradas, nos moldes aí previstos.

Importa começar por relembrar a distinção clássica entre as servidões voluntárias – não impostas por lei, constituídas por contrato, testamento, usucapião e destinação de pai de família – e as legais ou coactivas – impostas por lei na falta de constituição voluntária, podendo ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, conforme os casos.[22]

No âmbito das servidões voluntárias, cumpre distinguir a servidão resultante da usucapião da servidão legal, como muito bem assinala José Cândido Pinho: “Com efeito, a servidão que decorre da usucapião apoia-se, sempre, em factos humanos prolongados no tempo. A simples intervenção legal, pela via judicial, não visa, senão, regular jurídica e definitivamente a situação criada. A lei fica-se pela atribuição de efeitos jurídicos ao facto humano. Já a servidão legal é aquela que resulta do funcionamento prático de certos requisitos normativos em determinado momento. Em vez de impor o decurso de um prazo mínimo, como na usucapião, limita-se, apenas, a requerer uma situação fáctica subsumível ao preceito legal. Verificados os requisitos, o potencial beneficiário pode, postestativamente, recorrer a tribunal solicitando a sua criação coactiva, a não ser que entre os sujeitos determinados pela relação jurídica se alcance uma solução negociada, voluntária. Mas ainda nesta hipótese, a servidão assim constituída não deixa de ser legal”.[23]

Nestes termos, concorda-se, na íntegra, com a solução da Relação e para ela remetemos: “Dispõe o art. 1557.º, n.º 2, do CC que os prédios urbanos estão isentos de servidão legal de aproveitamento de águas para gastos domésticos. As servidões prediais podem ser constituídas por contrato, testamento, usucapião ou destinação do pai de família – n.º 1 do art. 1547.º./As servidões legais, na falta de constituição voluntária, podem ser constituídas por sentença judicial ou por decisão administrativa, conforme os casos – n.º 2 do mesmo preceito./Daqui decorre, por um lado, que servidão legal é aquela que pode ser coactivamente imposta e, por outro lado, que a usucapião não origina uma servidão legal, não lhe sendo, por isso, aplicável o regime próprio das servidões legais. Portanto, nunca procederia a arguição, ora feita, de que, sendo urbano o prédio dos RR, o tribunal não poderia declarar a existência da servidão constituída por usucapião” .

De resto, a objecção dos recorrentes não colhe pois tratando-se a servidão de aqueduto, no prédio dos réus, de encanação colocada em terreno não se antolha que ocorra qualquer gravame relativamente à parte habitacional, sendo esse o escopo do art. 1561.º, n.º 1 (cf. igualmente, o art. 1557.º, n.º 2, do CC).[24]

Por fim, levantam os recorrentes, nesta sede do recurso, o problema da ilegalidade da utilização das águas das minas nas habitações dos caseiros das autoras (pontos 19.º a 21.º das conclusões).

Salvo o devido respeito, não se compreende em que medida os normativos constantes do DL n.º 306/2007, de 27-08 (regime da qualidade da água destinada ao consumo humano), do DL n.º 207/94, de 06-08, e do Decreto Regulamentar n.º 23/95, de 23-08 (sistemas de distribuição pública e predial de água e de drenagem pública e predial de águas residuais) e, por fim, do Regulamento dos sistemas públicos e prediais de distribuição de água e de drenagem de águas residuais nos concelhos de Guimarães e ... (publicado no DR, 2.ª Série, n.º 170, de 04-09-2007), podem relevar no caso em apreço.

Em primeiro lugar, essa legislação é totalmente inócua para apreciar o problema de fundo que se debate nesta acção e não bule, de modo algum, com a problemática da constituição da servidão de aqueduto, sendo certo, para mais, que a água é utilizada para diversos fins, designadamente para ser utilizada na lima e rega dos terrenos, designadamente para regar por aspersão o milho cultivado nos prédios dos autores.

Por outro lado, nos termos do art 69.º do Regulamento, publicado no DR, 2.ª Série, n.º 170, de 04-09-2007, sob a epígrafe “Proibição de ligações a outros sistemas”:

1. Os sistemas prediais alimentados por água da rede pública devem ser completamente independentes de qualquer sistema de distribuição de água com outra origem, nomeadamente poços, furos, minas ou outros, sob pena de interrupção do fornecimento de água e aplicação das penalidades previstas neste regulamento.

2. A FF pode autorizar a utilização de água proveniente de captações privativas (poços, furos, minas ou outros), exclusivamente para lavagem de pavimentos, rega, combate a incêndios e fins industriais não alimentares, desde que salvaguardadas as condições de defesa de saúde pública. As redes de água e respectivos dispositivos de utilização, alimentados por essas captações, devem ter sinalização específica (…)”

Tal é suficiente para se demonstrar a improcedência da invocada impossibilidade legal, porquanto os caseiros (dos autores) podem utilizar as águas dos autos para lavagem de pavimentos e rega, desde que essas redes de água e respectivos dispositivos de utilização, alimentados por essas captações, tenham sinalização específica e sejam independentes do sistema de distribuição de água da rede pública.

Nessa medida, improcede, outrossim, este fundamento do recurso.

B4. Extinção da servidão de aqueduto por desnecessidade

Reiterando, novamente, o teor da apelação, vêm os réus – nos pontos 23.º a 29.º das conclusões da revista – pugnar pela extinção da servidão de aqueduto por desnecessidade, pois “a partir do momento em que os autores deixaram de usar o hemitanque sul localizado no prédio dos réus para recolha de águas, a alegada servidão de aqueduto deixou de trazer qualquer mais-valia significativa ao prédio dos autores (dominante), uma vez que, ao mesmo tempo, os autores construíram nos seus prédios um novo tanque onde recolhiam as águas que sobravam do consumo nas habitações para as utilizar na rega dos campos, tanque este onde afluem águas canalizadas de variadas proveniências” (sic).

Nas situações de desnecessidade, a servidão de aqueduto poderá ser declarada extinta a requerimento do proprietário do prédio serviente, mediante uma decisão judicial, de harmonia com os princípios que regulam a extinção das servidões em geral – cf. art. 1569.º do CC.[25]

O objectivo da declaração de desnecessidade será o de libertar os prédios de servidões desnecessárias ou impraticáveis, que desvalorizem os prédios servientes – sem valorizarem os dominantes – e repousa na constatação de que não devem existir encargos sobre um prédio em favor de outro, a não ser quando sejam necessários.

Acompanhando Oliveira Ascensão, só quando essa utilização de nada aproveite ao prédio dominante, surge a figura da desnecessidade.[26]

Como se dirimiu no Acórdão do STJ, de 16-03-2011, Proc. n.º 263/1999.P1.S1, “só deve ser declarada extinta por desnecessidade uma servidão que deixou de ter qualquer utilidade para o prédio dominante; fazer equivaler a desnecessidade à indispensabilidade não é consistente com a possibilidade de extinção por desnecessidade de servidões que não sejam servidões legais”.[27]

Daí que, como se observa na decisão sindicada, seja de adoptar um conceito de desnecessidade paralelo ao interesse que justifica a constituição, e que é o da utilidade para o prédio dominante, ou seja, uma servidão pode constituir-se por ser útil ao prédio dominante e pode extinguir-se se essa utilidade desaparecer.

In casu, importa recapitular alguns dos factos que a este propósito ficaram provados:

- Não é possível regar por aspersão o milho cultivado no prédio dos autores por falta de pressão da água.

- A fim de não perderem a água, os autores fizeram uma ligação na tubagem existente no caminho que confronta com os prédios por forma a aproveitá-la no tanque neste existente.

- Esta solução não permite abastecer as habitações existentes nos seus prédios.

- Para que o abastecimento das habitações seja possível é necessário que a água siga o trajecto definido em 16) e 19) dos factos provados.

Como muito bem foi salientado na sentença da 1.ª Instância: “Revertendo para o caso dos autos, afigura-se que a pretensão dos réus não pode proceder porquanto desde o Verão de 2002, que coincidiu com os cortes sistemáticos de canos e o atrito do filho dos reconvintes com o caseiro dos reconvindos, que as águas em causa têm menor pressão tornando impossível regar por aspersão o milho cultivado nos prédios destes. Por outro lado, apesar de uma ligação alternativa que os autores fizeram na tubagem para evitar a perda da água, ligação essa situada no caminho que confronta entre os prédios de ambos os litigantes, a verdade é que conseguem abastecer as habitações, já que para tal efeito é essencial que a água siga o trajecto anteriormente aludido para ter «ponto» e lá poder chegar. De resto, não se diga que a circunstância de os caseiros terem água da rede pública é um factor a ponderar a favor da desnecessidade, pois o fornecimento de água pelos autores poderá constituir uma mais valia para o arrendamento das casas na medida em que possa traduzir-se numa poupança para os seus habitantes: ainda que se admita que a água da nascente não seja usada para beber ou cozinhar há outros usos bem significativos como a lavagem de roupas, limpeza de casa e banhos que poderão constituir uma despesa acrescida inerente aos consumos contratados com a KK. Não é despiciendo igualmente a impossibilidade de rega mais cómoda e eficaz por aspersão só possível com a maior pressão garantida com o trajecto no interior do prédio dos réus”.

Colhe-se, portanto, deste quadro factual que os recorrentes não demonstraram a invocada desnecessidade, resultando, antes, da conjugação dos factos supra enunciados a constatação de que da existência da servidão decorre uma mais valia para o prédio dos autores.

B5. Desproporcionalidade entre a existência da servidão e o direito à habitação dos réus e abuso do direito.

Nos pontos 11.º, 12.º e 30.º a 37.º das conclusões da revista, os recorrentes terminam por concluir que a decisão recorrida “não efectuou um juízo de proporcionalidade entre o grau de desagravamento do prédio serviente em resultado da extinção da servidão e a dimensão dos eventuais custos, inconvenientes e incómodos resultantes para o prédio dominante da alternativa ao uso da servidão”, ao mesmo tempo que consideram que “a manutenção da servidão, é também juridicamente insuportável, configurando um abuso de direito, dados os sacrifícios que implica para o prédio serviente, excedendo, manifestamente, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes e pelo fim social e económico visado”.

Uma vez mais, não assiste razão aos recorrentes.

Com efeito, emerge do já exposto que não se provou a versão factual carreada pelos recorrentes que permitiria, porventura, sopesar o referido neste ponto recursivo.

Porém, como salientado no Acórdão recorrido, “invoca-se uma falta de ponderação entre os interesses conflituantes derivados da fruição de uma casa de habitação e da água, esquecendo, todavia, que da factualidade provada nada se apura quanto a tal conflito. Do mesmo modo, nada se provou quanto a meios alternativos de obter as mesmas exactas vantagens, ónus dos reconvintes (art. 342.º do Código Civil). Consequentemente, fica também prejudicado o alegado abuso de direito, que não encontra qualquer base factual na matéria provada” (pp. 59/60, fls. 846/847).

E assim é, por, na verdade, no que tange ao abuso do direito, previsto no art. 334.º do CC, tratar-se de uma excepção peremptória inominada, cuja verificação ocorre quando o direito legítimo é exercido, em determinadas circunstâncias, de modo a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico socialmente dominante, distanciando-se do interesse social e excedendo manifestamente os limites resultantes da boa fé, dos bons costumes ou do fim económico-social do direito, tornando-se, assim, escandalosa e intoleravelmente ofensiva do comum sentimento de justiça.[28]

Como se adverte no Acórdão do STJ, de 22-09-2009, Proc. n.º 2658/05.5TVLSB.S1: “Este instituto do abuso do direito, bem como os princípios da boa-fé e da lealdade negocial, são meios de que, os tribunais devem lançar mão para obtemperar a situações em que alguém, a coberto da invocação duma norma tuteladora dos seus direitos, ou do exercício da acção, o faz de uma maneira que – objectivamente – e atenta a especificidade do caso, conduz a um resultado que viola o sentimento de Justiça, prevalecente na comunidade, que, por isso, repudia tal procedimento, que apenas formalmente respeita o Direito, mas que, em concreto, o atraiçoa”.

Destarte, sufragando o já anteriormente referido, e como decorrência do que deixámos dito a respeito da matéria de facto fixada, entendemos dispensar-nos de mais argumentos para demonstrar que não existe qualquer abuso do direito.

Passemos, agora, ao recurso das autoras.

B6. Reconhecimento da constituição de servidão de presa.

Reiteram as autoras que “deve, ao contrário do decidido no acórdão recorrido e na sentença de 1.ª instância, decidir-se pela procedência do pedido formulado pelos autores, na sua petição, no sentido de ser declarado e os réus condenados a reconhecerem que sobre o prédio registado a favor dos réus se encontra constituída também uma servidão de presa, com o trajecto e características já definidas na douta sentença recorrida e tudo quanto de mais é peticionado pelos autores no que a tal servidão de presa se refere” (sic).

A utilização da água comporta a prática de diversos actos materiais: primeiro ela é captada e derivada do prédio onde existe até ao local da captação ou presa; seguidamente, ela é conduzida deste local do represamento para o prédio da sua utilização (finalmente, haverá que escoar as águas sobrantes porventura existentes).

Se os prédios da captação, derivação e condução das águas pertencerem ao mesmo dono não existirá obviamente qualquer servidão; se, porém, os prédios pertencerem a distintos donos, surgem as figuras da servidão de presa, da servidão de aqueduto e da servidão de escoamento.[29]

Na definição de Tavarela Lobo: “A servidão de presa consiste no direito de represar e derivar para o prédio dominante a água existente no prédio serviente, por meio de obras no prédio onerado (poça ou reservatório, açude, canal derivador ou obra semelhante). São essas obras permanentes designadas geralmente por presa ou represa”.[30]

Pois bem, há que distinguir o direito de presa da servidão de presa: o primeiro é o direito atribuído ao proprietário de poder efectuar no seu prédio uma presa e outras obras de derivação para aproveitamento de águas desse mesmo prédio. “Ao contrário do que se passa na servidão legal de presa, não há aqui uma limitação do direito de propriedade ou, vistas as coisas de outro ângulo, uma extensão do direito real para além do conteúdo normal, traduzido no exercício de poderes sobre um prédio vizinho. O direito de presa representa, antes, a manifestação do direito de propriedade na sua máxima projecção”.[31]

Feitas estas notas, e indo ao caso concreto, regista-se que bem andaram as instâncias ao decidir pela improcedência deste pedido das autoras/recorrentes.

Com efeito, as autoras necessitavam do prazo de 15 anos para adquirir os direitos de servidão de presa e de aqueduto ex vi do art. 1296.º do CC. Por isso, provando-se que os autores apenas utilizaram o tanque ... até 1987, não adquiriam a servidão de presa (não obstante, como supra se referiu, o direito de servidão de aqueduto se ter entretanto consolidado).

Improcede, assim, esta parte do recurso das autoras.

B7. Condenação dos réus a entregar às autoras as chaves ou autorizar o seu acesso.

De seguida, defendem as autoras/recorrente que “deve, ao contrário do decidido no acórdão recorrido, condenar-se os RR. a entregar imediatamente às autoras habilitadas um duplicado da chave própria para a fechadura do portão de ferro situado na confrontação sul do prédio descrito sob o n.º …, ou tomar as providências necessárias para que o referido portão nunca seja fechado à chave a fim de lhes permitir o acesso ao interior do referido prédio para as finalidades identificadas em B) b) da sentença de 1.ª instância”.

A Relação considerou – e bem (ao analisar a apelação dos réus) –, que na servidão de aqueduto apontam-se numerosos adminucula, entre os quais se conta a faculdade de passar no prédio serviente para inspecção, consertos e melhoramentos necessários, acabando por concluir que às autoras assiste o direito de entrar no prédio dos réus sempre que as circunstâncias concretas imponham a inspecção dos tubos, correspondendo aos réus a obrigação de facultar tal acesso, mas não de dar àquelas qualquer chave, ou manter aberta a sua propriedade.

Com efeito, emerge do art. 1565.º, n.º 1, do CC, que o direito de servidão compreende tudo o que é necessário para o seu uso e conservação.

Assim, in casu, pela servidão de aqueduto constituída a favor das autoras, o prédio serviente (dos réus) fica onerado com a condução da água a favor do prédio das primeiras, as quais, como titulares da servidão, ficam com o direito à prática dos actos que para o efeito sejam necessários

É usual considerar que no âmbito dos direitos conferidos ao titular da servidão, em que cabe tudo o que lhe é necessário para o uso e conservação da mesma, avulta o adminiculum da passagem pelo prédio serviente.

Socorrendo-nos, novamente, de Tavarela Lobo: “Se o aqueduto é subterrâneo, é óbvio que não assiste tal direito ao proprietário do prédio dominante, pois necessita apenas de, quando as circunstâncias o imponham, inspeccionar o aqueduto através dos apropriados óculos de observação ou caixas de visita./ Não assim tratando-se de aqueduto ou rego a descoberto, especialmente quando térreo, como é frequente verificar-se nas levadas e regos de soma tão vulgares em certas zonas do país, nomeadamente no Minho./ Nesses aquedutos existe normalmente, ao lado da levada ou rego, a passagem de pé para acompanhar a água, passagem implantada na parte superior da soma e suficiente para o trânsito de uma pessoa./ Só no uso deste adminiculum poderá o titular, no tempo de exercício da servidão, assegurar o livre curso das águas, removendo do leito do aqueduto a terra, pedras, areia e qualquer entulho que impeçam ou retardem aquele curso ou provoquem a diminuição do caudal.”[32]

A respeito do direito de acesso à propriedade serviente, por banda dos proprietários do prédio dominante, em caso de existência de servidão de aqueduto escreveu-se no Acórdão do STJ, de 14-05-2009, Proc. n.º 09A0661: “Estando provado que os autores, donos do prédio dominante, sempre utilizaram um portão para acederem directamente ao poço situado no prédio (serviente) dos réus, de onde extraem água, visando essa utilização e passagem apenas a conservação e reparação do motor aí instalado, adquiriram tal direito, para aquela estrita finalidade, por serem donos do prédio (dominante) que beneficia da servidão de água. Tal direito de passagem não configura, por isso, uma servidão autónoma daqueloutra, – direito à água do poço – mas tão só um meio necessário, funcionalizado ao inerente aproveitamento da utilidade proporcionada pela servidão; trata-se, pois, de adminicula servitutis. Por tal direito de passar não exprimir qualquer servidão não podem os donos do prédio serviente impedi-la, invocando o art. 1551.º do Código Civil, por este normativo se relacionar com o regime legal das servidões de passagem, conferindo ao dono de prédio urbano, que poderia ser onerado com tal encargo, o direito de se eximir à servidão, adquirindo o prédio”.

Indo ao nosso caso, estamos em crer que tratando-se de um caso em que a canalização pelo prédio dos réus é subterrânea, é injustificado estar a ordenar, por via judicial, que os réus sejam condenados a proceder à entrega imediata de um duplicado da chave própria para a fechadura do portão de ferro que dá acesso normal ao tanque ... ou que deixem o portão aberto, para permitir o acesso dos autores.

Com efeito, considera-se equilibrado que os réus apenas facultem o acesso ao seu prédio, por banda dos autores, quando as circunstâncias imponham a necessidade de inspeccionar os tubos que compõem o aqueduto, o que deverá ser feito mediante contacto das autoras com aqueles que, evidentemente, estão obrigados a permitir tal acesso nesse estrito condicionalismo.

Improcede, por conseguinte, esta questão do recurso, mantendo-se, outrossim, o decidido pela Relação.

B8. Determinação de indemnização a favor das autoras, relativamente aos prejuízos constantes dos pontos 25. a 27., 30., 32., 33., e 36. a 40., da fundamentação de facto na sentença de 1.ª instância

A terminar o recurso, referem as autoras que “deve, ao contrário do decidido no acórdão recorrido, condenar-se os RR. a pagar … a indemnização que vier a ser liquidada relativamente aos prejuízos decorrentes dos factos identificados nos pontos 25. a 27., 30., 32., 33. e 36. a 40. da fundamentação de facto na sentença de 1.ª instância”.

Relativamente a este aspecto, urge recordar os factos vertidos naqueles pontos (sendo certo que quedou por ficar provado o facto que constava do ponto 36):

- No final do Verão de 2002 os autores verificaram que, embora o caudal das águas se mantivesse, a pressão das mesmas na canalização era inferior à habitual.

- Tal determinou que ficassem privados de água nas habitações pelo facto de as mesmas terem deixado de ter “ponto” para lá chegarem.

- Desde essa altura os caseiros das habitações dos autores passaram a consumir exclusivamente água da rede municipal, o que implica despesas acrescidas.

- A averiguação do que se passa por parte dos autores ficou dificultada pelo facto de os réus terem substituído a cancela referida em 17) por um portão em ferro com cerca de 3 metros de largura provido de fechadura.

- Os réus mantêm o referido portão fechado à chave e não forneceram uma aos autores.

- Dessa forma os réus impedem os autores de verificar o trajecto da canalização referido em 16) e proceder à respectiva reparação.

- Desde o momento referido em 25) as águas que os autores recebem com a proveniência identificada em 6) a) têm menor pressão.

- Não é possível regar por aspersão o milho cultivado nos prédios dos Autores por falta de pressão da água.

- A fim de não perderem a água, os autores fizeram uma ligação na tubagem existente no caminho que confronta com os identificados em 11) e em 1) por forma a aproveitá-la no tanque nestes existente.

- Esta solução não permite abastecer as habitações existentes nos seus prédios.

Analisando estes factos, a Relação considerou que: “Relativamente à perda de «acesso directo» e sem prévia comunicação ao prédio dos réus, já acima se viu que carece de tutela jurídica. O mesmo se diga quanto às despesas acrescidas dos caseiros das habitações dos autores por passaram a consumir exclusivamente água da rede municipal, posto que os autores carecem de legitimidade para formular qualquer pedido por não terem sofrido esse dano./Do mesmo modo, não ficou provado de modo cabal que a diminuição de pressão, mas não de caudal, ficou a dever-se a actuação dos réus. Portanto, neste domínio, não fica demonstrada a necessária imputação do facto ao agente, pressuposto exigido pelo art. 483º do Código Civil e, também aqui, a apelação procede./E, pelos fundamentos que ficaram aduzidos, a sanção pecuniária compulsória, cujo valor se mantém, deverá reportar-se ao incumprimento, por parte dos réus, da obrigação de permitir aos autores o acesso ao prédio daqueles sempre que as circunstâncias concretas imponham a inspecção daqueles tubos”.

Como é sabido, em sede de responsabilidade civil, há que fazer a devida destrinça entre responsabilidade civil delitual ou extracontratual e responsabilidade obrigacional ou contratual: na primeira está em causa a violação de deveres genéricos de respeito, de normas gerais destinadas à protecção de outrem ou da prática de actos delituais específicos, ao passo que a responsabilidade contratual emerge do incumprimento das obrigações assumidas, estando a distinção entre as duas fontes de responsabilidade espelhada no Código Civil, que trata separadamente cada uma delas nos arts. 483.º e segs. e 798.º e segs. (embora sujeitando a obrigação de indemnização delas resultante a um regime unitário - cf. arts. 562.º e segs).

Esta diferenciação não é irrelevante, existindo importantes dissemelhanças entre os dois regimes, designadamente, no tocante ao ónus da prova do cumprimento da obrigação - cf. art. 799.º, n.º 1 -, e aos prazos de prescrição - cf. arts. 309.º e 498.º.

O art. 798.º do CC preceitua que “o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor”. “Desta norma resulta – como escreve Menezes Leitão – uma clara equiparação dos pressupostos da responsabilidade obrigacional aos pressupostos da responsabilidade civil delitual, uma vez que também aqui se estabelece uma referência a um facto voluntário do devedor (“o devedor que”), cuja ilicitude resulta do não cumprimento da obrigação (“falta (…) ao cumprimento da obrigação”), exigindo-se da mesma forma a culpa (“culposamente”), o dano (“torna-se responsável pelos prejuízos”) e o nexo de causalidade entre o facto e o dano (“que causa ao credor”)”, sendo certo, outrossim, que “[p]or outro lado, parece-nos que no art. 798.º existe igualmente uma clara distinção entre a ilicitude (o incumprimento da obrigação) e a culpa (a censurabilidade ao devedor desse incumprimento), a qual não é diferente da contraposição entre a violação do direito subjectivo e a culpa no art. 483.º”.[33]

Aplicando estes ensinamentos ao caso em apreço, não vemos como discordar da decisão da Relação, que, por isso, de mantém sem alterações, também neste ponto do recurso das autoras.

Na defluência do exposto, conclui-se que ambas as revistas, dos réus e das autoras, deverão improceder, sendo de manter a decisão da Relação de Guimarães.

C.

Compilam-se, assim, as seguintes conclusões:

- Sobre a água (particular) existente ou nascida em prédio alheio podem-se constituir dois tipos de situações jurídicas distintas: (a) o direito de propriedade, que confere um direito pleno e ilimitado, permitindo o mais amplo aproveitamento de todas as utilidades que a água possa prestar; ou (b) o direito de servidão, que apenas concede a possibilidade de efectuar o tipo de aproveitamento da água previsto no título constitutivo e na estrita medida das necessidades do prédio dominante.

- A aquisição do direito, de propriedade ou de servidão, relativo à água, pode ocorrer por usucapião, implicando nessa situação, além da verificação dos requisitos gerais atinentes à posse, que a usucapião seja acompanhada da realização de obras, visíveis e permanentes, no prédio alheio, que revelem a captação e posse da água nesse prédio.

- O direito de servidão de aqueduto traduz-se na faculdade de conduzir, através de prédio alheio, as águas particulares a cujo aproveitamento se tem direito.

- A servidão de aqueduto adquirida por usucapião integra-se nas servidões voluntárias, não lhe sendo automaticamente aplicáveis os requisitos normativos das servidões legais, previstos no art. 1561.º do CC.

- A servidão de aqueduto apenas poderá ser declarada extinta, por desnecessidade, mediante declaração judicial, quando a sua utilização de nada aproveite ao prédio dominante.

- A existência de uma servidão de aqueduto é independente da existência da servidão de presa, podendo aquela ter-se constituído por usucapião e a segunda não.

- Se a servidão de aqueduto se traduz, em concreto, numa canalização subterrânea no prédio serviente, é injustificado estar a ordenar, por via judicial, que os servientes sejam condenados a proceder à entrega imediata de um duplicado da chave própria para a fechadura do portão de acesso normal ao seu prédio ou que deixem esse portão aberto, para permitir o acesso dos titulares da servidão, considerando-se equilibrado que apenas seja facultado aquele acesso quando as circunstâncias imponham a necessidade de inspeccionar os tubos que compõe o aqueduto e nesse estrito condicionalismo.

III.

Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedentes as revistas, mantendo, na íntegra, o teor do acórdão recorrido.

Custas a cargo de ambos os recorrentes, na proporção dos respectivos decaimentos.

Lisboa, 28 de Outubro de 2014

Martins de Sousa (Relator)

                       

Gabriel Catarino

Maria Clara Sottomayor

__________________________
[1] Constava deste ponto de facto: A união de tubos referida em 19) foi cortada pelo filho dos réus em momento subsequente ao referido em 29) e a restante canalização foi posteriormente removida no momento da abertura dos alicerces da casa aludida em 34).
[2] Trata-se, seguramente, de lapso dos recorrentes já que o normativo é o do art.º 615.º do NCPC. .
[3] A este propósito, cf. Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, I, 1981, p. 203.
[4] Este tanque situa-se no prédio actualmente pertencente aos réus descrito sob o n° … -... e inscrito na matriz urbana sob o artigo 1514, tendo 6,38 metros de comprimento, 5,23 metros de largura e 1,1 metro de profundidade.
[5] Descritos na Conservatória do Registo Predial de ... sob os n.°s 63/19870306, 65/060387, 00995/111004 e 00994/111004, da freguesia de ... de ....
[6] Entre outros, cf. Henrique Mesquita, Direitos Reais, pp. 163/164, e Santos Justo, Direitos Reais, 2012, p. 293.
[7] Manual do Direitos de Águas, Volume II, 2.ª edição, 1999, pp. 9 a 11.
[8] Importa salientar que a circunstância de a água pertencer ao prédio onde se encontra a fonte ou nascente, podendo o proprietário, a todo o tempo, fazer uso diferente e privar os prédios inferiores da água sobeja não afasta a possibilidade de ele incorrer em abuso do direito.
[9] As Águas no Código Civil, 1985, pp. 60 e 63, respectivamente. O mesmo autor refere que “todo o subsolo, de que a água é um imediato elemento, é parte integrante do prédio rústico” (cf. p. 31).
[10] Anotação ao Acórdão do STJ, de 15-01-1981, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 115.º, n.º 3700, pp. 219-220.
[11] Cf., entre outros, o Acórdão do STJ, de 12-07-2011, Proc. n.º 364/05.0TBCMN.G1.S1. como aí se desenvolve: “Diversamente da opinião de Guilherme Moreira – para quem o direito à água que nasce em prédio alheio era sempre um direito de propriedade e nunca um direito de servidão - entende-se hoje, na vigência do Código Civil, que “o direito à água que nasce em prédio alheio, conforme o título da sua constituição, pode ser um direito ao uso pleno da água, sem qualquer limitação, e pode ser apenas o direito de a aproveitar noutro prédio, com as limitações inerentes, por conseguinte, às necessidades deste. No primeiro caso, a figura constituída é a da propriedade da água; no segundo, é a da servidão” (cf. Pires de Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Vol III, 2.ª ed., p. 305)”.
[12] Também assim, cf. Acórdão do STJ, de 21-06-2012, Proc. n.º 373/07.4TBVPA.P1.S1.
[13] Entre vários outros, cf. o Acórdão do STJ, de 31-05-2011, Proc. n.º 3252/03.0TBVCT.G1.S1.

[14] Cf., entre outros, Acórdão do STJ, de 02-07-2007, Proc. n.º  08B3995.
[15] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª edição, 1987, p. 657.

[16] Assim, Acórdão do STJ, de 29-11-2005, Proc. n.º 05B3525.
[17] Direitos ReaisSumários das Lições, 1967, p. 204.
[18] Santos Justo, Direitos Reais, 4.ª edição, 2012, pp. 424-425.
[19] Op. cit. (nota 26) p. 629.
[20] Op. cit., p. 81 e 195.

[21] Proc. n.º 1351/07.9TBAMT.P1.S2 e, mais recentemente, veja-se o Acórdão do STJ, de 08-05-2013, Proc. n.º 2915/06.3TBOAZ.P1.S1.
[22] A este propósito, em matéria de águas, cf. Tavarela Lobo, Manual do Direito de Águas, Volume II, 2.ª edição, 1999, pp. 186 e segs..
[23] Op. cit., p. 194.
[24] Parafraseando, Antunes Varela e Pires de Lima, op. cit., p. 651 (em anotação ao art. 1557.º do CC): “Nos termos do n.º 2, a servidão não abrange as águas das nascentes ou reservatórios integrados em prédios urbanos ou incorporados naqueles prédios rústicos a que se refere o n.º 1 do art. 1551.º (...s muradas, ...is, jardins ou terreiros adjacentes a prédios urbanos)”.
[25] Neste sentido, cf. Tavarela Lobo, op. cit., p. 415.
[26] Desnecessidade e Extinção de Direitos Reais, “Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa”, Vol. XVIII, 1964, p. 244.
[27] Também é certo que incumbe ao proprietário do prédio serviente que pretende a declaração judicial da extinção da servidão o ónus da prova em relação a essa desnecessidade – n.º 1 do art. 342.º do CC.
[28] A este respeito, cfr Antunes Varela – Das Obrigações em Geral, 7.ª edição, p. 536.

[29] A este respeito, Tavarela Lobo, op. cit., p. 341, que acrescenta: “Constituem hoje servidões autónomas, o que não exclui a necessidade de servidão de aqueduto para a servidão de presa poder actuar devidamente sempre que os dois prédios dominante e serviente não sejam contíguos”.
[30] Op. cit., p. 342.
[31] José Cândido de Pinho, op. cit., p. 177/178.
[32] Op. cit, pp. 404/407.
[33] Op. cit., pp. 329/330.