Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
02P2814
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA GUIMARÃES
Descritores: IN DUBIO PRO REO
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
DETENÇÃO DE ESTUPEFACIENTES
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ200211070028145
Data do Acordão: 11/07/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T J PORTIMÃO
Processo no Tribunal Recurso: 1032/01
Data: 05/20/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário :
I - Se no recurso se questiona o uso feito pelo tribunal julgador dos seus poderes de livre convicção e de livre apreciação da prova, esse questionamento projecta o tema desse recurso para terrenos de facto; o mesmo sucedendo quando se trás à ribalta a não atenção pelo princípio
“in dubio pro reo”, uma vez que a liberdade na convicção adquirida e na apreciação da prova atestada é ao domínio factológico que pertence.

II - Se, destarte, se pode dizer que é estranho ao poder cognitivo do STJ o poder de ajuizar da justeza de tais convicção e apreciação, não se repudia, contudo, que, em hipóteses manifestas de uma convicção inadmissível ou de uma apreciação insensata ou arbitrária da prova
produzida, a caracterização do falado princípio se insira em sede de direito, cognoscível pelo STJ.

III - Poderá, desta forma, o STJ reconhecer uma possível violação do princípio “in dubio pro reo” quando da decisão recorrida (e do contexto desta) resultar que tendo o tribunal “a quo” chegado a uma situação de dúvida sobre a realidade factológica, ainda assim decidiu
em desfavor do arguido ou quando, não reconhecendo esse tribunal essa dúvida, ela resulte ou seja patente do ou no texto da decisão recorrida, por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum, ou seja, quando se torne verificável que a dúvida só não foi reconhecida
por via de qualquer dos vícios elencados no n.º 2 do art. 410.º do CPP, mormente no previsto na al. c) daquele n.º 2 - erro notório na apreciação da prova.

IV - E pode, igualmente, suceder que o STJ se confronte com a impossibilidade de seguramente decidir sobre a suscitada violação do princípio “in dubio pro reo”, quer pela ocorrência dos aludidos vícios, quer pela da prefiguração de nulidades (cfr. n.º 3 do art. 410.º do CPP),
em termos de que, somente o suprimento ou a superação de uns e de outros, permita a ultrapassagem das dúvidas (ou a sua confirmação) por modo e medida bastantes à aplicação do aludido princípio (ou ao bom e mau uso da sua aplicação ou não aplicação).

V - A detenção de droga, sobre a qual se não prove exclusivo consumo, tem de assumir um sentido de tráfico.

VI - O tipo legal previsto no art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93 apoia-se na suposição legal de que determinados comportamentos são geral e potencialmente perigosos para os bens e valores jurídicos tutelados pela incriminação, isto porque a perigosidade da acção, menos que elemento
do tipo, constitui, sobretudo, o próprio fundamento das disposições legais neste domínio.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Perante tribunal colectivo, na Comarca e Círculo Judicial de Portimão, respondeu, em processo comum, o identificado arguido AA, acusado, pelo Ministério Público, da prática de dois crimes de tráfico de estupefacientes, previstos e punidos no artigo 21º, n.º 1, do Decreto- Lei n.º 15/93, de 221 e da de um crime de falsas declarações, previsto e punido no artigo 359º, n.º 2, do Código Penal.

Realizado o julgamento, decidiu o Colectivo:
Condenar o arguido, como autor de um só crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido no artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de 8 anos de prisão e, como autor de um crime de falsidade de declarações, previsto e punido no artigo no artigo 359º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão, o que, tudo, operado em cúmulo jurídico destas penas parcelares, consubstanciou a pena única de 8 ( oito) anos e 4 (quatro) meses de prisão.
( cfr: Acórdão de fls 178 e seguintes, designadamente, fls 185)

Inconformado, recorreu o arguido para o Supremo Tribunal de Justiça e, após motivação ( cfr: Fls 192 a 194 v.), conclui como segue:
O tribunal “a quo” valorizou de forma errada, o CRC do arguido;
O arguido está inocente;
Não vendeu drogas;
Consumia drogas e precisa delas;
Não vendeu drogas a ninguém;
O tribunal “ a quo” ao condenar o arguido violou o princípio “ in dúbio pró reo”;
Revela-se do acórdão recorrido o facto de não ter sido feita qualquer tipo de prova quanto a actividade ilícita praticada pelo arguido, circunstância que resulta do referido acórdão considerar não ter ficado provado que o arguido fazia da actividade de venda de estupefacientes o seu modo de vida;
Deve o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que absolva o arguido do crime porque foi condenado.
( cfr: Fls 195)

Respondeu o digno magistrado do Ministério Público, o qual, após doutos considerandos ( cfr: Fls 204 a 210), assim conclui:
O recurso não apresenta qualquer fundamento, limitando-se o arguido a negar os factos dados como provados não especificando como lhe competia, o que determina o artigo 412º, n.º 3, do Código de Processo Penal;
A confissão apenas parcial do arguido não denota da sua parte qualquer arrependimento;
A droga que o arguido detinha e se destinava à venda a terceiros que o procurassem para tal fim, era em quantidade razoavelmente elevada;
O arguido tinha perfeito conhecimento de que ao prestar uma identificação que sabia não corresponder à sua incorria em responsabilidade criminal, bem como tinha inteira consciência do motivo pelo qual o fazia;
Agiu o arguido como dolo directo, daí que intenso, como elevada é a ilicitude dos factos;
Estão preenchidos os elementos subjectivos e objectivos dos crimes pelos quais o arguido foi condenado;
As penas aplicadas a cada um dos crimes são justas e adequadas, como adequada e justa é a pena única aplicada em cúmulo jurídico;
Deve negar-se provimento ao recurso e confirmar-se o Acórdão recorrido.
( cfr: Fls 210-211)

Expressou, oportuna e tempestivamente, o arguido recorrente, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 411º, do Código de Processo Penal, o seu desejo de alegar por escrito.
( cfr: Fls 191)

Devendo o processo seguir seus termos e não havendo oposição do Ministério Público recorrido, cumprimento se deu ao preceituado na parte final do n.º 5 do artigo 417º, do Código de Processo Penal.
( cfr: despacho de fls. 224 – 224 v. e cotas subsequentes).

Por escrito, alegaram, então, quer o Ex.mo Procurador Geral Adjunto
( cfr: Fls 226-227), que o arguido-recorrente ( cfr: Fls 229 a 231).

Assinalou aquele ilustre magistrado, entre o mais que doutamente debitou, que “ … o recurso carece manifestamente de fundamento, de tal forma que poderia ter sido rejeitado”, pois que “Na verdade, cingindo-se o recurso à matéria de direito, teremos que aceitar os factos fixados no acórdão recorrido. Ora ficou provado que o arguido no ano de 2001 por duas vezes foi encontrado com estupefacientes em seu poder para venda, não se fazendo qualquer referência ao arguido como consumidor. E na fundamentação da matéria de facto explica-se com clareza como chegou o tribunal a essa convicção”, observando, ainda, que “Desta forma, não tem o menor cabimento vir agora a arguido contestar factos que justificaram provados e alegar outros que não constam da decisão recorrida, num recurso que é restrito à matéria de direito” e que “ Também se estranha que a medida da pena não seja impugnada” pelo que "Não o tendo feito o recorrente é duvidoso que seja matéria do recurso” embora ressalvando que “ face aos factos apurados e aos antecedentes criminais ( além do mais, três condenações anteriores por tráfico de estupefacientes ) não se vêem motivos para que seja alterada”.
( cfr: Fls 226-227, sendo nosso o sublinhado)

Por seu turno, reiterou o arguido-recorrente o que, no seu recurso, motivara e concluíra, insistindo na alegada violação do princípio “ in dúbio pró reo” e persistindo na petição de absolvição
( cfr: Fls 231)

Recolhidos os vistos da lei e impulsionados os outros para decisão, a esta se passa.

Como é sabido, o âmbito do recurso, delimita-se em função das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação; no que interpôs, cinge-se o arguido-recorrente, com suporte numa pretendida ofensa do princípio “ in dúbio pró reo”, a impetrar decisão absolutória.
E se certo é que o recurso em apreço aparenta padecer de falta de fundamento, como vincou o Ministério Público, quer na resposta, quer nas alegações escritas, verificando-se, por acréscimo, que não obedeceu, sequer, na perspectiva de direito que lhe foi conferida, aos ditames do n.º 2 do artigo 412º, do Código de Processo Penal, não menos certo é que, apercebível num mínimo exigível o desiderato visado pelo arguido-recorrente, não nos inibiremos a apreciá-lo, nem o colocaremos fora da alçada cognitiva deste Supremo ( tal como ela se define na alínea d), parte final, do artigo 432º, do Código de Processo Penal ).

Recordemos a factualidade certificada pelo tribunal “ a quo”.

Foi ela, a seguinte:
1º ) No dia 2 de Maio de 2001, pelas 17 h 10, no interior de uma casa abandonada sita na Av. ..., junto à rotunda do “ Bairro ...”, em Portimão, local habitualmente frequentado por toxicodependentes e onde se transaccionam produtos estupefacientes, uma brigada da PSP encontrou na posse do arguido, dentro da sua carteira, duas saquetas de plástico contendo um produto em pó.
2º Uma vez revistado o arguido, foi ainda encontrado escondido nas cuecas que o mesmo vestia, um maço de tabaco com mais cinco saquetas idênticas às anteriores, contendo um produto em pó.
3º) Submetido tal produto a exame laboratorial pelo LPC da PJ, verificou tratar-se de cocaína, com o peso bruto de 2, 812 gramas (liquido de 2, 377 gramas).
4º ) No dia 3 de Maio de 2001, no Tribunal Judicial de Portimão, ao ser sujeito a interrogatório e inquirido acerca da sua identificação, após ter sido advertido pela Sra. Juiz de instrução de que estava obrigado a responder e com verdade acerca de tal matéria referiu chamar-se ..., identidade esta que não é verdadeira.
5º) Agiu o arguido com o intuito de induzir em erro a autoridade judiciária já que contra si tem pendente um processo de expulsão do território nacional.
6º) No dia 24 de Julho de 2001, pelas 11 horas, no bairro do ..., em Portimão, uma brigada da PSP constatou que o arguido se dirigiu junto à barraca n.º 23 e escondeu debaixo de um pneu um pequeno embrulho de plástico de cor preta.
7º) De imediato a autoridade policial ali se dirigiu e verificou que debaixo do referido pneu se encontrava o tal embrulho, que continha 120 saquetas de plástico contendo produtos em pó.
8.º) Submetidos tais produtos a exame laboratorial pelo IPC da PJ, revelou tratar-se de heroína distribuída por 58 saquetas, com o peso bruto de 15,256 gramas ( líquido de 7,776 gramas) e cocaína distribuída por 62 saquetas, com o peso bruto de 16,462 gramas ( líquido de 9, 901 gramas).
9.º) O arguido conhecia as características dos referidos produtos, designadamente a sua natureza estupefaciente e bem assim que a sua detenção, uso, oferta e venda são proibidas por lei.
10º) O arguido tencionava vender os produtos estupefacientes que lhe foram apreendidos a eventuais interessados que o procurassem para tal fim.
11.º) Em todas as suas condutas o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, bem sabendo que as mesmas não eram permitidas, antes proibidas por lei.
12º) O arguido foi julgado e condenado em 20/06/91, no Proc. 130/99 da 1.ª Secção da 6.ª Vara Criminal de Lisboa, pela prática em 23/7/84 de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 6 anos de prisão. Anteriormente havia sido condenado, em 28/10/88, no Proc. 820/88 do extinto 1.º Juízo, do TJ de Portimão pela prática em 15/04/88 de um crime de tráfico de estupefacientes, na pena de 8 anos de prisão e 100.0000$00 de multa e, em 26/4/85, no Proc. 1264 do 3.º Juízo Criminal, 1.ª Secção de Lisboa, pela prática em 28/08/84, de um crime de tráfico de quantidades diminutas na pena de 2 anos de prisão e 50.000$00 de multa. Em cúmulo jurídico de todas estas penas, por acórdão proferido em 21/6/94, foi o arguido condenado na pena única de 11 anos de prisão e 150.000$00 de multa e na expulsão do território nacional pelo período de 10 anos.
11º) O arguido cumpriu tal pena de prisão, que por força de perdões ficou reduzida a 8 anos e 6 meses de prisão, desde 15/4/88 até 13/03/95, data em que lhe foi concedida a liberdade condicional que foi convertida em definitiva em 13/10/96.
12º) Tal pena não se revelou suficiente para afastar o arguido da criminalidade
13.º) O arguido sofreu, ainda em 1995, uma condenação em 6 meses de prisão declarada totalmente perdoada por crime de falsificação e, em 10/01/2001, foi condenado neste 2.º Juízo Criminal de Portimão pela prática de um crime de violação da decisão de expulsão p. p. pelo art. 125º do DL 244/98 de 8/8 na pena de 1 ano de prisão e da sanção acessória de expulsão do território nacional por 8 anos, pena essa que o arguido actualmente cumpre.
14.º) O arguido confessou parcialmente os factos.
15º) Veio para Portugal em situação irregular nos finais de 2000 onde por vezes tem trabalhado como pedreiro na construção civil, tem um filho residente em Portugal mas actualmente internado numa instituição para jovens por ordem judicial, e possui como habilitações literárias a antiga 4.º classe.

Em julgamento, não ficou provado que o arguido fazia da actividade de venda de estupefacientes o seu modo de vida.

Posto isto, é altura de cuidar da razoabilidade do recurso interposto cuja temática, como já antecedentemente identificámos, se confina à invocação do princípio “ in dúbio pró reo” ( e tão só em reporte ao crime de tráfico de estupefacientes), violação essa que daria razão de ser à absolvição aventada.

Vejamos pois:
Somos sensíveis à ideia de que se, no recurso, se questiona o uso feito pelo tribunal julgador dos seus poderes de livre convicção e de livre apreciação da prova ( cfr: artigo 127º, do Código de Processo Penal), esse questionamento projecta o tema desse recurso para terrenos de facto, o mesmo sucedendo quando se trás à ribalta a não atenção pelo princípio “ in dúbio pró reo”, uma vez que a liberdade na convicção adquirida e na apresentação da prova atestada é ao domínio factológico que pertina; e se, destarte, se pode dizer que é estranho ao poder cognitivo do Supremo Tribunal de Justiça o poder de ajuizar da justeza de tal convicção e apreciação, não se repudia, contudo, que, em hipóteses manifestas de uma convicção inadmissível ou de uma apreciação insensata ou arbitrária da prova produzida ( tornando-a, de todo em todo imotivável e conducente, portanto à não aceitação das ditas livres apreciação e convicção), a caracterização do falado princípio se insira em sede de direito, cognoscível pelo Supremo Tribunal de Justiça ( cfr: a este respeito, o Acórdão deste S.T.J., de 2.5.2002, de que fomos relator, processo n.º 1257/02, 5.ª Secção, com a declaração de voto, nele aposta, pelo Ex.mo Conselheiro Carmona da Mota).
Leva-nos isto à seguinte perspectiva:
Perante o circunstancialismo fáctico que haja sido fixado, há que ponderar se dele, concludentemente, dimana uma postergação do princípio “ in dúbio pró reo”, em termos de afectar aquele outro princípio da presunção de inocência, pedra basilar que é este de um Estado democrático de Direito.
Daqui – pese que, em regra, a aplicabilidade do princípio “ in dúbio pró reo” diga respeito (ou se restrinja) à decisão de facto ( ou à decisão sobre a matéria de facto).
- não estar forçosamente vedada ao Supremo Tribunal de Justiça a sindicância, em recurso, da aplicação do dito princípio, naqueles casos em que se esteja perante uma mera questão de direito, por se reconduzir a ajuizar, face ao factualismo tido por provado, se foi respeitado ou violado o mesmo princípio.(1)
Poderá, desta forma, o Supremo Tribunal de Justiça ( sem embargo dos limites impostos aos seus poderes de cognição pela alínea d), parte final, do artigo 432º, do Código de Processo Penal e pela regra geral contida no artigo 434º, do citado Diploma) reconhecer uma possível violação do princípio “ in dúbio pró reo”, quando, da decisão recorrida (e do contexto da decisão recorrida), resultar que tendo o tribunal “ a quo” chegado a uma situação de duvida sobre a realidade factológica, ainda assim decidiu em desfavor do arguido ou quando, não reconhecendo esse tribunal essa dúvida, ela resulte ou se divise patente do ou no texto da decisão recorrida, que por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum ou seja quando se torne verificável que a dúvida só não foi reconhecida por via de qualquer dos vícios no n.º 2 do artigo 410º, do Código de Processo Penal, mormente o previsto na alínea c) daquele n.º 2 ( erro notório na apreciação da prova).
E pode, igualmente, suceder que o Supremo Tribunal de Justiça se confronte com a impossibilidade de seguramente decidir sobre a suscitada violação do princípio “ in dúbio pró reo”, quer pela ocorrência dos aludidos vícios, quer pela da prefiguração de nulidades ( cfr: n.º 3 do artigo 410º, do Código de Processo Penal), em termos de que, somente o suprimento ou a superação de uns e de outros, permita a ultrapassagem das dúvidas ( ou a sua confirmação) por modo e medida bastantes à aplicação do aludido princípio ( ou ao bom e mau uso da sua aplicação ou não aplicação).

In casu:
Como decorre das peças alegatórias que, aos outros, o Ministério Público trouxe ( resposta e alegações escritas), e, sobretudo, do próprio acórdão recorrido ( prova certificada e fundamentação a partir dela tecida), não se dá conta que o tribunal “ a quo” tenha ficado numa situação de dúvida (ou que por qualquer dúvida houvesse sido atormentado) a respeito do factualismo integrador do ilícito ( tráfico de estupefacientes) que deu por configurado e que, apesar disso, se decidisse por entendimento desfavorável ao arguido ao arrepio de um sentimento de dúvida reconhecidamente inafastável ( ou que, curialmente, lhe não seria lícito afastar); ao invés, a qualificação jurídico-criminal dos factos a que, sem reservas, chegou ( subsumindo-os ao tipo legal do artigo 21º, n.º 1, do Decreto- Lei n.º 15/93, de 22.1) demonstra, quanto basta, que nenhuma situação de dúvida o ensombrou na definição daquela qualificação, designadamente em termos de não considerar comprovada uma finalidade exclusiva de consumo de droga ou de tráfico exclusivamente motivado para esse consumo (aquela descriminalizada e, esta, alvo de sanção mais mitigada do artigo 26º, n..º 1).
E, também, não deriva do texto do aresto impugnado – por si só ou conjugado com as regras da experiência comum – a existência de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou de erro notório na apreciação da prova ( cfr: alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 410º, do Código de Processo Penal), por algum modo influentes de uma não avisada atenção pelo princípio “ in dúbio pró reo”, tampouco se divisando nulidade não sanada para efeitos do n.º 3 do artigo 410º, do Código de Processo Penal sendo que, aliás, nenhuma foi arguida.
Se o arguido – recorrente, ao arrepio do que foi dado por provado (cfr: Ponto 10 da matéria de facto atestada) quer excluir a “ destinação a venda”, parecendo destarte, querer, antes, reconduzir a sua acção a uma mera detenção de droga para “ exclusivo consumo pessoal”, veicula, apenas, um modo de ver de todo em todo contrário ao conspecto facticial em que o Colectivo assentou; ora, esta simples discordância não é passível de colocar em crise – pois que de simples discordância se trata – o acervo factual certificado; e importa mesmo acentuar que o dito arguido se esquece da própria natureza do crime de tráfico de estupefacientes, como delito de perigo abstracto, perfectibilizável tipicamente pelo preenchimento de qualquer dos múltiplos itens em que se diversifica e sediado num terreno ( ou encarado sob um prisma) onde a mera detenção do produto tóxico se deve precípuamente aferir em função de uma relação finalística com o tráfico; (2) e olvida, igualmente, que tem sido preocupação transmitida aos legisladores a de seguirem o “ caminho útil” de formularem “ presunções de destinação à distribuição” (Convenção Única sobre Estupefacientes, concluída em Nova Iorque a 30 de Maio de 1961).
De-resto, em boa verdade, a detenção de droga, sobre a qual se não prove exclusivo consumo, tem de assumir um sentido de tráfico; não se trata aqui - convém que se diga - exactamente de uma presunção de culpa mas de sublinhar que, por via do tipo de crime do artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.1, é posto a cargo do agente um certo risco pela sua conduta e pelo desenvolvimento dessa conduta, já que, no que de essencial o informa e lhe subjaz, o referido tipo legal se apoia, visivelmente, na suposição legal de que determinados comportamentos são geral e potencialmente perigosos para os bens e valores jurídicos tutelados pela incriminação, isto porque a perigosidade da acção, menos que elemento do tipo, constitui, sobretudo, o próprio fundamento das disposições legais neste domínio.
No caso “ sub-júdice”, não se colheram sinais de consumo e, muito menos, de exclusividade de consumo.
Pelo contrário, por comprovada se deu “ uma intenção de venda” ( cfr: Ponto 10 da matéria de facto) mesmo que concretizado não tivesse ficado em que moldes ( e a quem) o arguido - recorrente se disporia a uma subsequente venda dos estupefacientes que detinha e dos que foram encontrados ( cfr: Pontos 1, 2, 6 e 7 da matéria de facto), caso se não acontecesse a intervenção das autoridades, nem provado que fizesse da actividade de venda de estupefacientes o seu modo de vida ( cfr: Facto não provado).
Ora, se tal inconcretização e não comprova poderiam, em tese, funcionar como factores redutoramente influentes para uma desgraduação da ilicitude e do dolo, logo da própria culpa, já não assumem relevância propiciadora de uma total exclusão de responsabilidade criminal.
Por isso é que nenhuma violação do princípio “ in dúbio pró reo” se descortina, sendo que tal pretensão soçobra e se desfaz perante e contra a barreira do factualismo provado e certo sendo, também que este, não se mostrando inquinado por qualquer vício, se tem de haver como definitivamente fixado e a coberto de mais sindicância.
Donde que, carecendo de razão válida e atendível a violação que o arguido recorrente aventou, seja de recusar viabilidade à reclamada absolvição.

Deixou o arguido – recorrente por questionar, no recurso intentado, quer a qualificação jurídico-criminal realizada ( pelo tipo legal do artigo 21º, n.º 1, do Decreto- Lei n.º 15/93, de 22.1), quer a medida concreta da pena única que se lhe cominou ( 8 anos e 4 meses de prisão), atitude que apresenta consonância lógica com o sentido que conferiu à sua impugnação recursória e aos objectivos a que a circunscreveu; mas se, no tocante à questão da subsunção jurídica, não é de tecer reserva ao entendimento preferenciado, já, no que tange à medida da pena única atribuída ( mesmo que não haja sido alvo de discordância directa, em de se lhe apontar peso excessivo, está essa discordância implícita no cariz envolvente do alegado), se pode justificar alguma ponderação, mau grado o Ex.mo Procurador Geral Adjunto, nas suas doutas alegações escritas, haver manifestado dúvidas quanto a dever constituir esta faceta “ matéria do recurso” ( cfr: Fls 227).
Cabe, pois, no âmbito do desiderato recursório, também a hipótese da redução punitiva; não contudo a da pena única – senão indirectamente – mas a da correspondência ao crime de tráfico de estupefacientes cuja absolvição se impetrou.
Sendo que, in casu, a dita pena única – face às penas parcelares estabelecidas – até se poderia avalizar como equilibrada, não é, porém, de excluir a redução da pena que foi cominada pelo crime de tráfico, mesmo tendo em atenção o passado criminal do arguido – recorrente (que, de todo o modo, não chegou para o considerar reincidente) e a gravidade ( já) expressiva dos factos praticados; é que, a aludida pena apresenta-se como algo excessiva, designadamente em função de um critério ( nunca a postergar) de justiça relativa e em cotejo com outras menos gravosas que se tem visto aplicar em condicionalismos de maior ou idêntica relevância criminal.
Donde que, trazendo à colação os comandos dos artigos 40º, n.ºs 1 e 2, 71º, n.ºs 1 e 2 do Código Penal, se propenda para baixar a pena aplicada, pelo crime de tráfico de estupefacientes, para 6 anos de prisão.
Diga-se, de-resto e em remate, não fazer grande sentido que, tratando-se de cidadão estrangeiro ( que, aliás, em outro processo, até, aguarda expulsão), ele se mantivesse, por elevado período, sob a alçada prisional portuguesa ( mormente, se se ponderar que, aos 2/3 da pena, a acção dos serviços de reinserção social terminaria a sua intervenção), pois que, sendo a reintegração uma das (primaciais) funções das penas, a inviabilidade de um accionamento integral dessa tarefa estadual, não poderá deixar de repercutir-se, pragmática e redutoramente, na quantificação sancionadora.

Em síntese conclusiva:
Não se possibilita conceder ganho de causa ao recurso interposto, sem embargo, porém, da redução consignada, deixando-se, embora, anotado que, quanto à reformulação da pena única estabelecida ( 8 anos e 4 meses de prisão, deverá ela remeter-se para a primeira instância (nomeadamente por haver uma terceira pena – a que o arguido presentemente cumpre – e que haverá que integrar na citada reformulação).
Desta sorte e pelos expostos fundamentos:
Nega-se provimento ao recurso do arguido AA, alterando-se, contudo, redutoramente, a medida da pena que lhe havia sido aplicada pela autoria de um crime de tráfico de estupefacientes ( artigo 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.1) e que , assim, se baixa de 8 anos de prisão para 6 ( seis) anos de prisão, tudo sem prejuízo da reformulação oportuna da medida da pena única, como se deixou consignado.

Para além das custas que couberem e do mínimo de procuradoria, vai o recorrente, por via do seu decaimento, tributado em 3 ( três) Ucs de taxa de justiça.

Lisboa, 7 de Novembro de 2002

Oliveira Guimarães (Relator)
Dinis Alves
Carmona da Mota
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(1) Cfr, a este propósito, Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, volume I, pags 217-218.
(2) Cfr: Cons. Lourenço Martins, in Droga, pág. 103.