Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
312/20.7T8BJA.E1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: COMPRA E VENDA
VENDA DE COISA DEFEITUOSA
LEI APLICÁVEL
NEXO DE CAUSALIDADE
DIREITOS DO CONSUMIDOR
DEFEITOS
DENÚNCIA
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 03/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
O regime jurídico da “Venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas” aprovado pelo DL 67/2003, de 8 de abril, não é aplicável à venda de um cavalo.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. AA intentou acção contra os Réus, Monte da Sernadinha, S.A., BB e CC, na mera qualidade de liquidatários, pretendendo que:

«a) Deverá ser a condenada à redução do preço em 24.305,00, acrescido de juros de mora;

b) Deverá a ser condenada a pagar à Autora uma indemnização por danos patrimoniais no valor de 11.243,45 (onze mil duzentos e quarenta e três euros e quarenta e cinco cêntimos;

c) Deverá a ser condenada a pagar à Autora uma indemnização por danos não patrimoniais no valor de 5.000,00 (cinco mil euros).»

2. Em virtude da extinção da sociedade C... Unipessoal Lda., adveniente do registo da sua dissolução e encerramento da liquidação, por despacho proferido em 09.06.2020 (cfr. fls. 170), foi admitida a substituição processual daquela sociedade pela sua única sócia, Monte da Sernadinha, S.A. e pelos liquidatários BB e CC).


3. A Autora intentou a presente acção sob a forma de processo comum contra os Réus, alegando, em síntese que, em Abril de 2019 adquiriu à C..., Unipessoal Lda. o cavalo DD, para fins exclusivamente lúdicos, isto é destinando-se, o animal a servir de cavalo de recreio, sendo que, o animal  padecia  de vários vícios/defeitos,  como  musculatura subdesenvolvida, cólicas e manqueira, à data da compra, mas só por aquela conhecidos aquando da entrega do animal na Alemanha.

Assim, invoca a Autora que ao caso sub judice deverá ser aplicado o regime jurídico atinente à compra e venda de animal defeituoso, peticionando, em consequência, que o Tribunal declare a redução do preço e ainda que condene os Réus ao pagamento dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em consequência do referido incumprimento.


4. Regularmente citados, os Réus contestaram a acção, impugnando os factos alegados pela Autora, arguindo, ainda, exceção peremptória da falta de denúncia atempada dos defeitos do cavalo, nos termos e para os efeitos do art. 916.º do Cód. Civil e ainda invocando a falta de realização de exame pericial ao animal nos 10 (dez) dias subsequentes à data da sua entrega, nos termos do disposto no art. 52.º do Decreto de 16 de Dezembro de 1886, circunstâncias que, no seu entender, obstam à procedência da pretensão da Autora, pedindo especificadamente que:

«a) A exceção peremptória ser julgada procedente por provada e os Réus serem totalmente absolvidos do pedido e a reconvenção ser provada, condenando-se a reconvinda a indemnizar os Réus no valor de 5.000,00 (cinco mil euros) e pagar a quantia de 4.600,00 (quatro mil e seiscentos euros) em dívida a título de IVA da factura ...68 acrescida de juros legais até efectiva restestituição desse valor ou, em alternativa,

b) a presente acção ser julgada totalmente procedente por não provada e, em consequência, as Rés serem totalmente absolvidas do pedido e a reconvinda ser condenada no pagamento do valor de 4.600,00 (quatro mil e seiscentos euros) acrescida de juros legais até efectiva restituição desse valor e, bem assim, no pagamento indemnizatório de 5.000,00€ pela ofensa do bom nome e da imagem das Rés causada;»

5. Através de articulado superveniente constante nos autos de fls. 232 a 238, veio a Autora alegar, por um lado, que o cavalo DD faleceu no dia 16.03.2021, e, por outro, requerer a ampliação do pedido, fundada no incremento de novas despesas hospitalares em que incorreu após a propositura da acção para o tratamento/internamento que o cavalo foi sujeito durante o período compreendido entre 14.03.2021 até 16.03.2021.

6. Por despacho datado de 14.04.2021 (cfr. fls. 239 e 241) foi admitido liminarmente o articulado superveniente e a ampliação do pedido formulados pela Autora.

7. Realizou-se a audiência final, com observância do formalismo legal conforme consta da respetiva acta.

8. Veio a ser proferida sentença, onde consta a seguinte decisão:

“A) Julgo a ação parcialmente procedente e, em consequência:

i. Condeno a Ré Monte da Sernadinha S.A., na qualidade de única sócia da sociedade C... Unipessoal, Lda. à data do encerramento da sua liquidação, ao pagamento à Autora AA da quantia de € 23.075,00, a título de redução do preço, acrescida de juros moratórios, vencidos e vincendos, calculados à taxa supletiva legal de 4.%, desde a data da citação até efetivo e integral pagamento;

ii. Condeno a Ré Monte da Sernadinha S.A., na qualidade de única sócia da sociedade C... Unipessoal, Lda. à data do encerramento da sua liquidação, ao pagamento à Autora AA, da quantia global de € 15.109,83, sendo € 14.109,83 referente a danos patrimoniais e € 1.000,00 a danos não patrimoniais, a título de indemnização.

B) Julgo a reconvenção totalmente improcedente e, em consequência, absolvo a Autora AA de todos os pedidos reconvencionais deduzidos pela Ré Monte da Sernadinha S.A.”

9. Veio a ser apresentado recurso de apelação pela Ré Monte da Sernadinha S.A., conhecido pelo Tribunal da Relação de Évora, que veio a decidir pela revogação da sentença recorrida no tocante aos segmentos i) e ii), ou seja, a condenação da Recorrida Monte da Sernadinha, S.A, no pagamento da quantia referente à redução do preço e da indemnização por danos sofridos.

10. Do acórdão do Tribunal da Relação foi interposto recurso de revista para o STJ, nos termos do disposto nos artigos 629.º n.º 1, 671.º, n.º 1, 674.º, n.º1, alínea a), 675.º, n.º 1, e 676.º,  admitido pelo tribunal recorrido ( I-Sobre requerimento de recurso apresentado pela Recorrente AA: 1. Por legalmente admissível, ser tempestivo, ter sido interposto por quem detêm legitimidade e resultar documentado o pagamento da respectiva taxa de justiça, admite-se o recurso de revista apresentado pela Recorrente, o qual sobe de imediato, nos próprios autos e com efeito devolutivo, ao abrigo do disposto nos artigos 627.º, 629.º, n.º 1, 631º, n.º 1, 637.º, 638.º, n.º 1, 671.º, n.º 1 e 3 a contrario, 674.º, n.º 1, a), 675.º, n.º 1 e 676.º, n.º 1, a contrario, todos do CPC.  2. Subam os autos ao Colendo Supremo Tribunal de Justiça, com os habituais cuidados de estilo.)

11. Nas conclusões do recurso da A. constam as seguintes conclusões (transcrição):

ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

I.    No âmbito da do processo foi proferida sentença, em 17.09.2021, julgando a ação proposta pela Autora, AA, ora Recorrente, parcialmente procedente e condenando, em consequência, a Ré Monte da Sernadinha S.A., aqui Recorrida, ao pagamento do valor global de 38.184,83 euros: o que corresponde às quantias de: i) 23.075,00, a título de redução do preço, acrescida de juros moratórios; ii) 14.109,83, a título de indemnização pelos danos patrimoniais; e iii) 1.000,00, a título de danos não patrimoniais;

II. As Apelantes Montes da Sernadinha, S.A., BB e CC, ora Recorridas, interpuseram recurso de Apelação para a Relação de Évora, na qual impugnaram a decisão relativa à matéria de facto e invocaram erro na determinação da norma aplicável.

III. A Relação de Évora, em 30 de junho de 2022, proferiu Acórdão em que improcedeu integralmente o recurso no que toca à impugnação da matéria de facto, mas julgou inteiramente procedente, no direito, o recurso de Apelação interposto, decidindo-se, em consequência, a revogação da sentença recorrida no tocante aos segmentos i) e ii), ou seja, a condenação da Recorrida Monte da Sernadinha, S.A, no pagamento da quantia referente à redução do preço e da indemnização por danos sofridos.

IV. No Acórdão entendeu que as ora Recorridas são irresponsáveis pelos vícios de que padecia o animal alienado, o cavalo DD, porque (1) os vícios redibitórios juridicamente relevantes desta espécie de animais são tão-somente os previstos no elenco taxativo do artigo 49.º do Decreto de 16/12/1886 e (2) a redução do preço e a indemnização pelos danos causados por vícios redibitórios de animais só podem ser pedidos até 10 dias depois da entrega do cavalo, mediante requerimento de exame ou vistoria de peritos ao tribunal competente, nos termos dos artigos 50.º, 52.º e 53.º do Decreto 16/12/1886.

V. Inconformada com a decisão, a Recorrente vem recorrer para o Douto Supremo Tribunal de Justiça, por incorrer a decisão ora impugnada em erro na interpretação e de aplicação de normas substantivas, e se encontrar em total oposição encontra-se em total oposição com o sentido decisório do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de novembro de 2004, processo 04B086, do Acórdão da Relação do Porto, de 16 de janeiro de 1996, processo 9520808, e do recente Acórdão da Relação do Porto, de 24 de novembro de 2020, no processo 35976/19.5YIPRT.P1.

VI. O presente recurso de revista deverá ser admitido uma vez que o valor da causa se fixa em 50.148,45 € e, no que concerne à sucumbência, a decisão aqui impugnada é desfavorável à recorrente em 38.184,83 € (artigo 629.º n.º 1 do CPC).

VII. Ademais, inexiste dupla conforme, verificando-se os pressupostos do Recurso de Revista nos termos do artigo 671.º n.º 1, e 3 a contrario sensu.

VIII. Não obstante, sempre seria recorrível nos termos do artigo 672.º n.º 1 c), por estar em contradição com os acórdãos supramencionados, no domínio da mesma legislação, os artigos 913.º e ss. do CC e o Decreto de 16/12/1886, e sobre a mesma questão fundamental de direito (regime aplicável à compra e venda de animais defeituosos).

DA INAPLICABILIDADE DO DECRETO DE 16 DE DEZEMBRO DE 1886

IX. A Recorrente considera que não está preenchido o âmbito de aplicação do Decreto de 16/12/1886, e como tal, nenhuma das normas aí previstas terá aplicação ao presente caso.

X. Primeiro, porque o diploma não se aplica à venda de animais de companhia, apenas à atividade pecuária.

XI. No preâmbulo do Decreto de 1886 escreve-se que está em causa a aprovação do “plano de organização dos serviços pecuários", serviços cuja extensão é definida no artigo 1.º.

XII. A conclusão de que o decreto visa regular o setor pecuário é legítima atendendo à extensa referência a esta atividade, em especial no artigo 4.º, e pelo facto de a preocupação do legislador oitocentista ter que ver com “[a]s funções económicas em que cada uma das espécie é principalmente utilizada” (Capítulo II, artigo 7.º n.º 5 e)) e a prevenção de doenças infeciosas capazes de contagiar outros animais ou até seres humanos (Capítulo II, artigo 8.º n.º 5, 6, 8, 11, 12 e 14 do Decreto de 1886).

XIII. Não se inclui neste setor, naturalmente, a comercialização de animais de companhia, que segundo o artigo 389.º n.º 1 do Código Penal “entende-se por animal de companhia qualquer animal detido ou destinado a ser detido por seres humanos, designadamente no seu lar, para seu entretenimento e companhia.”

XIV. Também não se confundem com animais domésticos, estes são os que “o homem amansou e aproveitou para sua utilidade”.

XV. Para os animais de companhia vigora, ou o regime estabelecido nos artigos 913.º e ss., ou o regime do DL 67/2003, de 8 de abril, conforme esteja ou não em causa uma relação de consumo, como se desenvolverá mais tarde.

XVI. A Recorrente “adquiriu o cavalo DD, para cavalo de recreio, visando fins exclusivamente lúdicos” (ponto 6 dos factos provados).

XVII. Segundo, porque o diploma não se aplica para os vícios não contemplados no artigo 49.º.

XVIII. Conforme disposto pelo artigo 920.º do Código Civil, estabelece-se que “Ficam ressalvadas as leis especiais ou, na falta destas, os usos sobre a venda de animais defeituosos”.

XIX. Da legislação especial existente importará apenas atender ao Decreto 16/12/1886 que estabelece o “Plano de Organização dos serviços pecuários”, na qual se reputa, no artigo 49.º, como vícios redibitórios algumas moléstias de que podem padecer certos animais.

XX. Da análise do preceito, resulta que ficaram por incluir uma série de doenças e uma série de animais fundamentais para a pecuária.

XXI. O tribunal a quo, entendeu que, nas situações em que o vício não se encontra previsto no art. 49., o comprador não teria qualquer tutela, uma vez que o artigo 920.º do Código Civil subtraía a venda de animais defeituosos ao regime geral da compra e venda de coisa defeituosa, sendo por isso o vício juridicamente irrelevante, seguindo de perto ANTÓNIO PINTO MONTEIRO.

XXII. O entendimento do Autor não procede, porém.

XXIII. O artigo 920.º inspira-se no 1496.º do CC Italiano, mas o facto de não fazer remissão expressão ao regime geral não significa excluir a sua aplicação subsidiária, uma vez que a construção do enunciado normativo é manifestamente diversa do artigo 1496.º do Código italiano. O nosso legislador utilizou o termo “ficam ressalvadas”, o que pressupõe que o mesmo seria de aplicar na ausência de lei especial ou usos.

XXIV. Ademais, admitir que os vícios juridicamente relevantes são somente aqueles que mostram enunciados no vetusto Decreto fere o mais elementar sentimento de Justiça e o próprio desenvolvimento legislativo que tem conferido uma superior tutela ao comprador, em especial ao comprador consumidor

XXV. Conforme pontos 23 e 26 dos factos provados, o equídeo sofria de candidose equina crónica, infeções intestinais causadas por vermes e sintomatologia crónica de cólicas recidivas. Neste contexto, originaram-se ainda outras patologias como: musculatura subdesenvolvida; insuficiência de selénio; mau estado de dentição; apatia; cólon cheio e gasificado; lesões no tendão flexor do osso membro traseiro direito; distensão óssea na articulação do tornozelo do membro traseiro esquerdo; dores nas partes traseiras, durante o movimento a trote; manqueira; conforme pontos 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29 e 30

XXVI. Na sequência destas doenças crónicas o cavalo DD acabou por ser eutanasiado (conforme pontos 22, 24, 25, 26, 31, 33, 34, 35 e 36).

XXVII. Ao contrário do decidido pelo tribunal a quo, também estes vícios devem reputar-se juridicamente relevantes.

XXVIII. Entendimento esse que é suportado pela doutrina, veja-se MENEZES LEITÃO que entende que “se, porém, também se verificar a inexistência de usos, parece que se deve aplicar o regime geral do Código Civil”.

XXIX. Igualmente nesse sentido decidiu a jurisprudência portuguesa.

XXX. O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 16 de janeiro de 1996 (Documentos I e II juntos ao presente Recurso) – que o tribunal a quo citou precisamente para dele inferir o inverso – que decidiu não poder aplicar-se o regime instituído pelo decreto oitocentista, uma vez que a doença não estava abrangida pela lista deste diploma, havendo que recorrer aos artigos 913.º e ss., se não estiver determinado o que os usos prescrevem.

XXXI. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de novembro de 2004, processo 04B086, entende como aplicável à brucelose o regime geral da compra e venda de bens de coisa defeituosa, tendo em conta a não previsão desta doença pelo Decreto 16/12/1886, excluindo a aplicação da legislação do consumo apenas pelo facto de o gado ter sido adquirido para fins comerciais a uma entidade pública.

XXXII. O Acórdão da Relação do Porto, de 24 de novembro de 2020, no processo 35976/19.5YIPRT.P1, para quem o comprador de animal defeituoso pode recorrer indistintamente à ação de cumprimento (art. 817.º), anulação (art. 913.º), resolução (432.º) e exceção de não cumprimento (art. 428.º).

XXXIII. Jurisprudência essa que só não aplica o DL 67/2003 por a relação jurídica em questão não configurar uma relação de consumo.

XXXIV. Terceiro, porque, sendo aplicável o Decreto-Lei 67/2003, de 8 de abril, este derroga integralmente o regime civil dos artigos 913.º e ss., nomeadamente o artigo 920.º e, por isso, a legislação especial avulsa aplicável por força desse preceito.

XXXV. Tal como havia decidido o tribunal de primeira instância na Sentença, é de aplicar ao caso sub judice regime jurídico da “Venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas” aprovado pelo DL 67/2003, de 8 de abril.

XXXVI. Já o tribunal a quo entendeu que a noção de bens de consumo do artigo 1.º-B do referido diploma não abrange, desde a entrada da Lei n.º 8/2017 de 3 de março, os animais.

XXXVII. Acrescentando que não pode valer o disposto na parte final do artigo 201.º-D do Código civil, por existir lei especial.

XXXVIII. A lei especial do Decreto de 1886 não é, contudo, aplicável ao caso vertido nos autos conforme já explanado.

XXXIX. Donde, não deixar de inexistir leis especial aplicável ao caso, donde, dever aplicar-se subsidiariamente aos animais o regime referente às coisas.

XL. A tutela a conferir aos animais com a lei de 2017 não é incompatível com a proteção da compradora do animal defeituoso através do regime das coisas impreterivelmente aplicável ao caso sub judice, antes pelo contrário.

XLI. Mais, a interpretação do artigo 920.º e do Decreto de 1886 realizada pelo tribunal a quo dá lugar, usando as palavras do Acórdão da Relação do Porto de 24 de novembro de 2020, a uma “situação estranhíssima de total ausência de direito que se passa a explicar”.

XLII. Em consequência, verifica-se uma violação ostensiva do artigo 60.º da Constituição da República Portuguesa, na medida em que aquela interpretação retira ao consumidor os direitos que a Constituição lhe confere (à qualidade dos bens e à reparação dos danos) pelo simples facto de os vícios, apesar de graves, não estarem previstos no vetusto Decreto de 1886.

XLIII. Já no que concerne ao regime da Diretiva 1999/44/CE, e seguindo de perto MENEZES DE LEITÃO, nada impede que o legislador estabeleça regime mais amplo àquele, tal como fez(na medida em que não efetuou as mesmas exclusões que a diretiva),considerando o regime igualmente aplicável à venda, ao consumidor, de animais defeituosos.

XLIV. Não se diga que o novo DL 84/2021, de 18 de outubro, por excecionar, hoje, no artigo 4.º n.º 1 b), os animais do novo regime da compra e venda de animais, venha anular este raciocínio; pelo contrário, constitui uma clara inovação, de entre outras, acabando, antes, por confirmar que anteriormente o regime venda de bens de consumo se devia aplicar às vendas de animais.

XLV. Sendo a Autora, ora Recorrente, consumidora (artigo 1.º-B a)), por se ter provado nos factos provados ter adquirido o cavalo para “fins exclusivamente lúdicos” (conforme ponto 6 dos factos provados), e o vendedor profissional (artigo 1.º-B c)) (conforme pontos 1, 2, 3, 4 e 5 dos factos provados), verifica-se uma relação de consumo e aplicam-se as disposições do referido DL n.º 67/2003.

XLVI. Nos termos do artigo 5.º, os vícios foram denunciados tempestivamente: (i) a sintomatologia de cólicas recidivas e candidose equina crónica chegaram ao conhecimento da Recorrente em início de agosto de 2019 (cfr. ponto 21 da matéria de facto) e foram denunciadas em 25 de agosto de 2019 (cfr. ponto 23 da matéria de facto); as infeções intestinais causadas por vermes chegaram ao conhecimento da Recorrente em 6 de outubro de 2019 (cfr. ponto 26 da matéria de facto), facto denunciado no dia seguinte (cfr. ponto ds 32 da matéria de facto).

XLVII. As demais disfunções de DD traduzem-se em manifestações e consequências dos vícios acabados de referir.

XLVIII. Terá a Recorrente direito à redução do preço pago, a ser reduzido para montante não superior a 2.500,00 euros acrescidos de IVA (3.075,00 euros já com IVA incluído), nos termos do artigo 4.º n.º 1 do DL 67/2003.

XLIX. Como tal, tendo a Recorrente pago o preço de 26.150,00 (IVA incluído) deverão as Recorridas ser condenadas a pagar 23.075,00 euros.

L. Acresce o direito à indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela Recorrente, nos termos gerais dos arts. 798.º e ss. do CC, por força do art. 12.º, n.º 1 da Lei de Defesa do Consumidor.

LI. Neste sentido, a Sentença em 1ª instância, o acórdão aí citado e o Acórdão da Relação do Porto de de 24-01-2022, processo 271/20.6T8MLD.P1.

LII. A Recorrente despendeu o valor de 14.109,83 euros por conta de exames e tratamentos (cfr. pontos 31, 37 e 38 da matéria de facto).

LIII. Provou-se que a Recorrente sofreu de ansiedade, stress e tristeza neste contexto, danos que se avaliam em não menos de 1.000,00 EUR.

LIV. Atento o exposto, havendo causalidade entre a venda do cavalo defeituoso e os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, devem as Recorridas ser condenadas nesses valores.

LV. O Douto Tribunal a quo deveria, por isso, ter atendido, no seu Acórdão, às normas do DL 67/2003, em especial os seus artigos 3.º e 4.º, ao invés do artigo 49.º do Decreto de 1886, uma vez que aquele diploma derroga, quando em causa esteja relação de consumo, a aplicação dos artigos 913.º e ss., incluindo o art. 920.º e, por isso, a aplicação do Decreto de 1886; violando, ainda, ostensivamente o artigo 60.º da Constituição da República Portuguesa.

LVI. O sentido com que o artigo 201.º-D do CC deveria ter sido interpretado e aplicado é o de que na ausência de lei especial que se aplique ao caso, i.e, cujo âmbito de aplicação esteja preenchido, são aplicáveis subsidiariamente aos animais as disposições relativas às coisas, notadamente, nas relações de consumo, o citado DL.

DA POTENCIAL APLICAÇÃO DO REGIME GERAL DOS ARTIGOS 913.º SS.

LVII. Subsidiariamente, também ao abrigo dos arts. 913.º e ss. se prevê a possibilidade de o comprador exigir a redução do preço e a ser indemnizado pelos danos causados na sequência de uma venda defeituosa.

LVIII. Tendo o vendedor demovido a Autora a realizar exame prévio à venda, assegurando que o referido exame era desnecessário, uma vez que o cavalo detinha as qualidades adequadas às finalidades de recreio (pontos 12 e 14 dos factos provados), atuou claramente com  dolo, entendido ,para  este efeito ,como má-fé subjetiva ética, segundo PEDRO DE ALBUQUERQUE,MENEZES CORDEIRO e GALVÃO TELES.

LIX. Os principais vícios que o cavalo apresentava não foram, desde logo, identificadas pela compradora, a candidose equina crónica, sintomatologia de cólicas recessivas chegaram ao conhecimento da Recorrente em inícios de agosto de 2019 e as infeções intestinais causadas por vermes em 6 de outubro de 2019, conforme factos 21, 23 e 26.

LX. As principais maleitas graves foram contraídas em momento prévio à aquisição (facto 26).

LXI. Todos os demais eram mera manifestação e consequência daquelas.

LXII. As maleitas causadoras das perturbações de que padecia o cavalo DD foram denunciadas oportunamente em 25.08.2019 no caso da candidose equina crónica, sintomatologia de cólicas recessivas, e em 07.10.2019 para as infeções intestinais causadas por vermes (pontos 23 e 32 dos factos provados).

LXIII. Daqui resulta que o cavalo era defeituoso uma vez que os vícios impediam a realização do fim para que foi adquirido e não apresentava as qualidades asseguradas pelo vendedor (art. 913.º do CC).

LXIV. A Recorrente tem, por isso, o direito à redução do preço nos termos do artigo 911.º, ex vi 913.º do CC, sendo certo um direito alternativo à anulação do negócio, conforme entende boa doutrina.

LXV. Por outro lado, a redução do preço não se sujeita aos requisitos da anulação do negócio por erro ou dolo nos termos do artigo 905.º do CC, ex vi 913.º.

LXVI. Ainda que assim não se entenda, decorrem dos factos provados 12 e 13 que o elemento sobre que recaiu o erro era essencial para a compradora e conhecido do vendedor.

LXVII. Adicionalmente, é devida também uma indemnização pelos danos causados, conforme entende MENEZES LEITÃO.

LXVIII. No caso, seguindo PEDRO DE ALBUQUERQUE, verifica-se dolo entendido como má fé ética, o abrigo do artigo 908.º do CC, provada que está o vendedor ter assegurado que o cavalo estava saudável, demovendo a compradora a efetuar exame, sendo certo que a culpa, e por isso, a má fé do vendedor, sempre se teria presumido, ao abrigo do art. 799.º, presunção esta que as Recorridas não lograram ilidir.

LXIX. Pelo que será devida uma indemnização pelos danos emergentes sofridos pela Recorrente pelo interesse contratual negativo, que se concretiza em: 14.109,83 euros por conta da medicação, internamentos, realização de exames e operações cirúrgicas; 1.000,00 euros por conta da angústia da Recorrente em consequência do sofrimento, lesões, tratamentos e operações a que cavalo DD foi sujeito

LXX. Subsidiariamente o cômputo da indemnização faz-se ao abrigo do art. 910.º (ex vi 913.º e 915.º), cujo resultado seria idêntico para o caso concreto

LXXI. Verifica-se erro do Acórdão em crise no que concerne às denúncias dos defeitos que considerou como intempestivas.

LXXII. Primeiro, porque havendo dolo, a compradora estava dispensada da denúncia dos mesmos (art. 916.º, n.º 1 CC).

LXXIII. Segundo, porque maleitas graves de que padecia o cavalo DD eram as cólicas recidivas crónicas, as infeções intestinais causadas por vermes e, secundariamente, a candidose equina crónica.

LXXIV. Estas foram todas denunciadas dentro do prazo previsto no artigo 916.º n.º 2 do Código Civil.

LXXV. Todos as demais disfunções decorreram das doenças e sintomatologias supramencionadas (ponto 30 dos factos provados.

LXXVI. O Douto Tribunal a quo deveria, por isso, ter atendido, no seu Acórdão, às normas dos artigos 913.º e ss. do CC, uma vez que, não constando o vício em causa da lista do artigo 49.º do Decreto de 1886, aqueles artigos se aplicam subsidiariamente ao caso, interpretando incorretamente o artigo 920.º do CC, que, incorretamente, interpreta como sendo uma norma remissiva excludente, violando-se, acima de tudo, com isso, 60.º da Constituição da República Portuguesa

LXXVII. O sentido com que o artigo 201.º-D do CC deveria ter sido interpretado e aplicado é o de que na ausência de lei especial que se aplique ao caso, i.e, cujo âmbito de aplicação esteja preenchido, são aplicáveis subsidiariamente aos animais as disposições relativas às coisas, notadamente, nas relações de consumo, o citado DL.

LXXVIII. Subsidiariamente

DA CORRETA INTERPRETAÇÃO DO DECRETO DE 1886 SE SE CONSIDERAR APLICÁVEL AO CASO SUB JUDICE

LXXIX. Se se considerar que o Decreto de 1886 se aplica em exclusivo à venda de todos os animais nele referidos sempre se dirá, por extrema cautela de patrocínio, que, especialmente devido ao desenvolvimento da ciência, deve realizar-se uma interpretação atualista.

LXXX. Por esta via, o comprador-consumidor não deixa de ter tutela por o animal afetado padecer de uma maleita não expressamente prevista no artigo 49.º do mencionado decreto e deixa de se aplicar o requisito da requisição de exame ou vistoria ao animal dentro do prazo de 10 dias, incluindo o da entrega.

LXXXI. A lista do art. 49.º não tem natureza taxativa, sob pena de se estar a passar um "cheque em branco” ao vendedor, atribuindo tratamento diferenciado a situações de incumprimentos apenas formalmente desiguais.

LXXXII. No elenco do artigo 49.º devem ser incluídas também aquelas moléstias ou defeitos que, entretanto: (i) surgiram, (ii) se tornaram mais graves com o passar do século, (iii) que a ciência, finalmente, permitiu detetar, bem assim como (iv) os defeitos ou moléstias igualmente ou mais graves do que aqueles expressamente previstos no artigo 49.º.

LXXXIII. A título de exemplo, serve o caso da brucelose, uma patologia que afeta tanto gado bovino como afeta cavalos, apenas descoberta em 1887, precisamente um ano depois do Decreto Oitocentista.

LXXXIV Na esteira de CALVÃO DA SILVA a legislação deve sofrer uma interpretação atualista, quer na enumeração das doenças para incluir outras mais modernas e suficientemente graves, quer no dies a quo do prazo de garantia.

LXXXV. Igualmente, MENEZES CORDEIRO e PEDRO ALBUQUERQUE entendem que a lista é exemplificativa/enunciativa/indicativa.

LXXXVI. Atendendo aos elementos sistemático, histórico e teleológico, compreende-se que o Decreto de 1886 visava a “organização dos serviços pecuarios”, denotando-se manifestamente a primazia do interesse público (na promoção de um mercado de gado, resistente a reclamações do comprador) sobre a tutela do interesse do comprador.

LXXXVII. Hoje contam preocupações no sentido da tutela do comprador e consumidor, da parte mais fraca.

LXXXVIII. Por conseguinte, tal como entendeu também o tribunal de 1ª instância, também as demais maleitas devem ser consideradas vícios redibitórios relevantes ao abrigo do artigo 49.º do Decreto de 1886, especialmente as infeções intestinais causadas por vermes, a sintomatologia crónica de cólicas recidivas e a candidose equina crónica, na sequência das quais DD teve de ser eutanasiado

Da não aplicação dos artigos 52.º e ss. do Decreto de 1886

LXXXIX. A aplicação irrestrita e literal dos artigos 52.º a 54 é inadmissível e constitui um retrocesso grave e um corte repentino naquilo que tem sido a linha seguida em matéria da proteção dos direitos do consumidor em Portugal e no mundo ocidental.

XC. Estes artigos consideram-se hoje tacitamente revogados, conforme se entendeu na Sentença, por força do artigo 5.º do referido DL 67/2003, em vigor ao tempo da compra e aplicável aos autos.

XCI. Além do mais, a interpretação (literal) que o Douto Tribunal a quo no seu Acórdão faz daqueles normativos (52.º, 53.º e 54.º) está ferida de inconstitucionalidade por violação do artigo 60.º e do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa (“CRP”).

XCII. A interpretação e aplicação literal daqueles normativos acaba por neutralizar o direito da Recorrente, consumidora (cfr. pontos 5 e 6 dos factos provados),excedendo a justa medida aceitável.

XCIII. Em face do exposto, tem-se por revogada ou por desconforme à Constituição a exigência de requisição do exame pericial ao tribunal no prazo de 10 dias compreendendo o da entrega

XCIV. Subsidiariamente, deverá sempre realizar-se uma interpretação atualista daquelas normas, considerado um prazo mais alargado para a realização do exame pericial em questão que se aproximedos prazos aplicáveis em matéria de consumo e considerando que os exames periciais efetivamente realizados e que identificaram e provaram os vícios fizeram jus à finalidade normativa subjacente ao art. 52.º.

XCV. Efetivamente, no final do séc. XIX, a deteção e determinação do tempo da origem da doença era difícil ou até impossível decorridos 10 dias sobre a entrega.

XCVI. As conclusões dos factos provados n.º 26, 22 a 31 não teriam sido possíveis na época.

XCVII. Pelo que admitir a prova pericial após 10 dias teria causado na visão do legislador desnecessários entraves ao regular funcionamento do comércio do gado.

Da paralisação, por verificação de abuso de direito, da faculdade das Recorridas em invocar a preterição do direito da compradora

XCVIII. Independentemente do entendimento a sufragar,facto é que a conduta das Recorridas é constitutiva de um caso claro de abuso de direito, na modalidade de venire contra factum proprium, ao abrigo do art. 334.º do CC.

XCIX. Na esteira de MENEZES CORDEIRO, entende-se aqui que há duas condutas do vendedor que, para mais, estão em clara contradição, uma com a outra: num primeiro momento, demove a compradora, ora Recorrente, da realização de exame prévio; num segundo momento, invoca o facto de não ter sido realizado um exame para daí se concluir pela preclusão do direito da compradora.

C. Tanto mais o vendedor deturpou a realidade ao assegurar a existência de qualidades com o fim de demovê-la da realização do exame, tornando, afinal, atento o carácter oculto dos vícios, inexequível à compradora o requerimento do exame nos termos do decreto oitocentista.

CI. Há uma manifesta contraditoriedade entre, de um lado, a posição jurídica de que se pretendem aproveitar os Recorridos (materializada na invocação da preclusão do direito da compradora por não requerimento da perícia ao tribunal nos termos do artigo 52.º) e, do outro lado, a conduta antes assumida ou proclamada pelo agente (materializada na garantia dada à compradora no sentido de ser desnecessário a realização de exame médico ao cavalo, conforme ponto 12 dos factos provados).

CII. O facto de as Recorridas fazerem uso da sua faculdade de invocar a não verificação do requisito formaldoart.52.º é abusivo por exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé e constitui um venire contra factum proprium por ferir o sentimento geral de justiça.


12. Foram apresentadas contra-alegações, onde constam as seguintes conclusões:



Colhidos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.

II. Fundamentação

De Facto

13. Factos Provados (na sentença, sem alteração pelo Tribunal da Relação)

1. A sociedade C..., Unipessoal, Lda., foi constituída em 21.03.2014, tendo por objeto social a criação, tratamento, cedência e comércio de equinos, exploração agrícola e florestal, organização de eventos, representações comerciais e industriais.

2. Pela Ap. ... de 20.12.2019 foi registada a dissolução e o encerramento da liquidação da sociedade referida em 1), sendo sua única sócia a sociedade por quotas Monte da Sernadinha, Lda.

3. Em 05.03.2015, pela Ap. ...0 foi registada a transformação da sociedade Monte da Sernadinha Lda. em sociedade anónima, sob a firma Monte da Sernadinha, S.A.

4. A sociedade Monte da Sernadinha S.A. tem como objeto social a promoção imobiliária, arrendamento, administração de condomínios e imóveis por conta de outrem, consultoria para a gestão de projeto e compra e venda de bens imobiliários e viaturas, exploração agrícola, pecuária e florestal, criação, tratamento, cedência e comércio de equinos, organização de eventos, representações comerciais e industriais, sendo seus sócios BB, titular de uma quota de € 12.500,00, e CC, titular de uma quota de € 12.500,00.

5. Em 26.04.2019, a Autora adquiriu o cavalo de raça puro-lusitano, de nome “DD” ou “...” (de ora em diante cavalo DD), nascido em 23.04.2012, à sociedade Coudelaria de ....

6. A Autora adquiriu o cavalo DD, para cavalo de recreio, visando fins exclusivamente lúdicos.

7. O preço acordado entre a Autora e a sociedade Coudelaria de ... pela aquisição do cavalo DD foi de € 21.260,26, acrescido de IVA à taxa legalmente em vigor, no montante de € 26.150,00.

8. Por conta de preço convencionado pela aquisição do cavalo DD, a Autora entregou as seguintes quantias monetárias: (i) em 21.09.2019, € 5.000,00, mediante transferência bancária para a conta com o IBAN  ...95, titulada por EE; (ii) em 21.09.2019, € 5.000, mediante transferência bancária para a conta com o IBAN  ...20, titulada por BB; (iii) em 21.09.2019, € 5.000,00, mediante transferência bancária para a conta com o IBAN  ...51, titulada por BB; (iv) em 21.09.2019, € 6.150,00, mediante transferência bancária para a conta com o IBAN  ...10, titulada por C... Unipessoal Lda.; (v) em 21.09.2019, € 5.000,00, mediante transferência bancária para a conta com o IBAN  ...46, titulada por CC.

9. Em 02.04.2019, a sociedade C..., Unipessoal, Lda. emitiu a factura «...68», com vencimento em 02.04.2019, em nome de AA, no montante total de € 6.150,00, sendo € 5.000,00 a título de capital, e o valor remanescente de € 1.150,00 a título de IVA, com a descrição «puro sangue lusitano com o nome DD DA ..., com o UELN ...89».

10. Em 29.10.2019, a Autora, através dos seus mandatários, solicitou, mediante carta registada por aviso de receção enviada a BB – Coudelaria SM, Unipessoal Lda., que a sociedade C... Unipessoal Lda. procedesse à emissão de factura por referência ao valor totalmente entregue pela primeira por conta do preço convencionado para aquisição do cavalo DD e não contemplado na factura referida em 9).

11. Em 31.10.2019, a sociedade C..., Unipessoal, Lda. emitiu a factura «...83», com vencimento em 31.10.2019, em nome de AA, no montante total de € 24.600,00, sendo € 20.000,00 a título de capital, e o valor remanescente de € 4.600,00 a título de IVA, com a descrição «puro sangue lusitano com o nome DD DA ..., UELN ...89».

12. A Autora, em momento prévio à aquisição do cavalo DD, referiu a BB, na qualidade de sócio e representante legal da sociedade C... Unipessoal, Lda., a sua intenção de realizar um exame médico ao cavalo DD, vulgarmente designado por «exame em ato de compra».

13. Nessa sequência, BB disse à Autora que era desnecessário realizar o referido exame médico ao cavalo DD, uma vez que este detinha as qualidades adequadas à finalidade para o qual seria adquirido, para fins exclusivos de recreio.

14. A Autora não realizou qualquer exame médico ao cavalo DD no ato da compra.

15. Em 02.05.2019, o cavalo DD foi entregue à Autora na Alemanha, tendo ficado instalado numa «paddockbox», no estábulo «gut heiligenberg».

16. Nessa ocasião, o cavalo DD encontrava-se emagrecido e apresentava uma dentição degradada.

17. Em consequência da sua dentição degradada, o cavalo DD foi sujeito a tratamento médico em clínica veterinária.

18. Em 29.05.2019, o cavalo DD apresentava insuficiência de selénio, tendo recebido uma injecção para suprir tal insuficiência.

19. Em 29.05.2019, ao cavalo DD foram administradas substâncias medicamentosas para o tratamento de candidose equina crónica, dores abdominais e úlceras gástricas.

20. Em 21.06.2019 e 27.07.2019 o cavalo DD denotava uma contração e bloqueio ao nível da musculatura das costas.

21. No início de agosto de 2019, o cavalo DD apresentava sintomatologia associada a cólicas recidivas, revelando dores, comportamento apático e recusa em ingerir alimentos.

22. Nessa sequência, em 15.08.2019, o cavalo DD foi submetido a operação cirúrgica, na clínica veterinária T..., Dieben, na Alemanha, devido a um episódio de cólicas, tendo-lhe sido dada alta em 26.08.2019 com indicação para tratamento pós-operatório em ambulatório.

23. Em 25.08.2019, a Autora comunicou telefonicamente a FF, na qualidade de representante da sociedade C..., Unipessoal Lda, que o cavalo DD padecia de musculatura subdesenvolvida, candidose equina crónica, insuficiência de selénio e denotava mau estado da sua dentição e sintomatologia associada a episódios de cólicas recidivas.

24. Em 14.09.2019, o cavalo DD foi sujeito a novo internamento na clínica T..., Dieben, em consequência de sintomatologia associada a episódios de cólicas recidivas, tendo tido alta no dia 16.09.2019.

25. Em 28.09.2019, o cavalo DD foi sujeito a novo internamento, na clínica T..., Dieben, por manifestar dores relacionadas com episódio de cólicas recidivas, tendo sido submetido a nova operação cirúrgica no dia 06.10.2019 em consequência de tal quadro clínico.

26. Durante a operação realizada no dia 06.10.2019 foram identificados pontos isquémicos no cólon e no intestino delgado do cavalo DD, compatíveis com antigas infeções intestinais causadas por vermes, tendo o animal contraído tais infecções em momento prévio à sua aquisição pela Autora.

27. Em 17.09.2019, o cavalo DD apresentava-se apático, e denotava o cólon cheio e gaseificado.

28. Em 18.11.2019, o cavalo DD foi submetido a exame médico, na cavalariça ... em Herrsching, e apresentava lesões no tendão flexor do osso do membro traseiro direito, com cerca de 2 dedos de espessura e comprimento, e ainda distensão óssea na articulação do tornozelo do membro traseiro esquerdo.

29. As lesões existentes no tendão flexor do membro traseiro direito e, bem assim, a distensão óssea na articulação do tornozelo do membro traseiro esquerdo referidas em 28) são compatíveis com um quadro clínico pré-existente à data em que a Autora adquiriu o cavalo DD.

30. Em consequência das lesões supra referidas, o cavalo DD, durante o movimento a trote, apresentava dores nas patas traseiras e denotava manqueira.

31. Em consequência dos tratamentos veterinários e das operações cirúrgicas a que foi sujeito o cavalo DD, a Autora expendeu o montante global de € 11.243,45, emergente da realização de exames e tratamentos veterinários, administração de substâncias medicamentosas, internamento em clínica veterinária, consultas veterinárias e operações cirúrgicas.

32. Em 07.10.2019, a Autora enviou mensagem por correio eletrónico para EE, com o seguinte teor: «Caro Sr. BB, Eu comprei-lhe DD (...) em 1 de abril de 19. Estou com ... num estábulo de exibição com as melhores condições, conhecimento e alimentação dos cavalos. No dia 15.8.19 ele foi operado pela primeira vez em virtude das cólicas. A segunda vez ontem, em 6.10.2019. (…) O cavalo chegou aqui na Alemanha com uma úlcera gástrica, bem como podridão nos cascos. Tive que dispender muito dinheiro para reparar os dentes porque estavam em um estado desastroso. Entretanto, os custos ascendem a mais de 10.000 euros de despesas médicas. (…) foi diagnosticado com enterite linfo-plasmacellular. O Intestino delgado foi diagnosticado com enterite linfo-plasmacellular.»

33. Em consequência das lesões, tratamentos veterinários, e operações a que o cavalo DD foi sujeito e do sofrimento manifestado pelo animal, a Autora sentiu-se ansiosa, nervosa e transtornada.

34. No dia 14.03.2021, o cavalo DD foi internado de urgência na clínica T... em Dieben, devido a um novo episódio de cólica.

35. Durante o referido internamento, a sintomatologia associada às cólicas de que padecia o cavalo DD foi-se agravando, tendo-lhe sido administrada medicação para esse efeito e realizados exames a amostras fecais.

36. Em face do agravamento do estado clínico do cavalo DD, a Autora assentiu que o animal fosse submetido a eutanásia, tendo esta lhe sido administrada e, consequentemente, foi declarado o seu falecimento no dia 16.03.2021.

37. A Autora despendeu o montante de € 2.509,38, com o internamento do cavalo DD, com a realização dos tratamentos, administração de medicação e eutanásia.

38. A Autora despendeu o montante de € 357,00, por conta da elaboração do relatório médico.

14. Factos não provados (na sentença)

A) O preço acordado entre a Autora e sociedade C... Unipessoal pela aquisição do cavalo DD foi de € 30.750,00, já com IVA incluído.

B) Que na ocasião referida em 13), EE invocou ainda a descendência do cavalo DD, nomeadamente o seu pai “...” e o seu avô “...”, referindo que ambos também eram cavalos de 1.ª classe.

C) Que nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 20), o cavalo DD claudicava.

D) Após a sua entrega na Alemanha, o cavalo DD recusou-se a comer, rolava incessantemente sobre o chão e não se deixava montar.

E) As cólicas sofridas pelo cavalo DD na Alemanha deveram-se ao tipo e excesso de alimentação que lhe foi administrada pela Autora e ao consumo insuficiente de água.

F) Todas as lesões e patologias sofridas pelo cavalo DD desde a data da sua entrega à Autora (em 02.05.2019) deveram-se às condições em que o animal foi transportado de Portugal para a Alemanha, às condições em que foi estabulado na Alemanha, ao treino excessivo a que foi sujeito pela Autora e ainda à falta de cuidados, em particular no maneio, a que foi submetido.

G) A Autora, perante terceiros, imputa factos, formula juízos e reproduz suspeitas sobre a C... Unipessoal Lda, bem sabendo que tais factos, juízos e suspeitas são desfavoráveis para a prossecução do seu objeto comercial e não correspondem à verdade.


De Direito

15. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recurso, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso e devendo limitar-se a conhecer das questões e não das razões ou fundamentos que àquelas subjazam, conforme previsto no direito adjetivo civil - arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

No presente recurso está em causa saber qual o regime jurídico que se aplica à venda de um cavalo que veio a apresentar problemas de saúde, pedindo a compradora a redução do preço e indemnização por danos, patrimoniais e morais.


16. O Acórdão recorrido, ao contrário da douta sentença, considerou não ser de aplicar o regime jurídico da “Venda de bens de consumo e das garantias a elas relativas”, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril.

Mais, considerou que a compra e venda de animais defeituosos é, sem excepção, regulado pelo disposto no Decreto de 16/12/1886, cujas normas se mantêm plenamente em vigor.

Nesta sequência, determinou que, no caso sub judice, as RR não são responsáveis pelos vícios de que padecia o animal alienado, o cavalo DD, por dois motivos:

i) os vícios redibitórios juridicamente relevantes desta espécie de animais são tão-somente os previstos no artigo 49.º do Decreto de 16/12/1886;

ii) que a redução do preço e a indemnização pelos danos causados por vícios redibitórios de animais só podem ser pedidos até 10 dias depois da entrega do cavalo, mediante requerimento de exame ou vistoria de peritos ao tribunal competente, nos termos dos artigos 50.º, 52.º e 53.º do Decreto 16/12/1886.

O Tribunal considerou, portanto, que o artigo 49.º deste diploma do século XIX apresenta um elenco taxativo de vícios redibitórios que responsabilizam o vendedor, e que para os casos não contemplados neste diploma não seria de aplicar as regras gerais civis (dos artigos 913.º e ss. do CC) ou o DL 67/2003.

Simultaneamente, considerou que o comprador terá de, sob pena de ter o seu direito precludido, requer a realização de um exame pericial no prazo de 10 dias a contar da entrega ao tribunal competente (independentemente do vício estar expressamente previsto no artigo 49.º).


17. Por sua vez na sentença, considerou-se que:

- A venda de animais defeituosos encontra-se expressamente prevista no art. 920.º e ss. do

Cód. Civil. Dispõe o art. 920.º do referido diploma legal que «Ficam ressalvadas as leis especiais ou, na falta destas, os usos sobre a venda de animais defeituosos»;

- Com efeito, decorre do referido normativo legal que à venda de animais defeituosos aplica-se o regime geral atinente à venda de coisas defeituosas, previsto nos artigos 913.º e ss. do Cód. Civil, sem prejuízo de legislação especial ou, na falta desta, sobre os usos observados;

- Com respeito a legislação especial importará, em primeira linha, atender ao regime jurídico instituído pelo Decreto de 16 de Dezembro de 1886, que expressamente regula a «a compra e venda de animais domésticos», enumerando, por um lado, no seu artigo 49.º os vícios redibitórios de que podem padecer os animais, em concreto os cavalos, os quais a verificarem-se podem dar azo à resolução do contrato e, por outro, à exigência estabelecida no seu artigo 52.º, quanto à necessidade da realização de exame pericial no prazo de 10 (dez) dias a contar da entrega do animal, caso a parte pretenda pedir a redução do preço com fundamento na existência de tal vício;

- Preceitua, assim, o art. 52.º do referido Decreto de 16 de Dezembro de 1886 que «quando qualquer entender que tem fundamento legal para pedir a rescisão da venda ou da troca, ou a reducção de preço, por vício redhibitorio do animal ou animaes comprados ou trocados, terá de requerer, dentro de dez dias completos, comprehendendo o da entrega do animal, exame ou vistoria de peritos, para se averiguar o facto de que quizer deduzir o seu direito». Por seu turno, dispõe o art. 53.º do referido Decreto que «O exame deverá ser requerido nos termos do codigo de processo civil, artigo 247.º e seu paragrapho, e será competente para o exame o juízo do domicílio do comprador ou d’aquelle dos permutadores que requerer o exame.»;

- A propósito da tramitação que haverá que ser observada na realização do referido exame pericial, determina o art. 54.º do referido Decreto que «o juiz nomeará, em harmonia com & único do artigo 236.º do codigo do processo civil, para procederem ao exame a que se referem os artigos 52.º e 53.º d’este decreto, um ou dois peritos, e, em caso de empate, nomeará terceiro. Aos peritos cumpre verificar o estado do animal ou animaes, recolher todos os esclarecimentos uteis e afirmar, sob juramento, a sua opinião.»;

- Feito que está o excurso pelo normativo constante de tal diploma, resulta claro o carácter desatualizado do mesmo, o qual (aparentemente) se manteve em vigor até aos dias de hoje, não refletindo, minimamente, as alterações legislativas que foram sendo operadas na ordem jurídica portuguesa, em especial, no domínio da compra e venda de bens de consumo.;

- Neste sentido, importa sublinhar as considerações expendidas pelo autor Calvão da Silva, na sua obra «Compra e venda de coisas defeituosas, conformidade e segurança», 5.ª edição, página 97, especificamente qualificando tal legislação como sendo antiquada, sublinhando a necessidade da sua modificação ou mesmo da sua supressão;

- Destarte, acompanhamos na íntegra o entendimento propugnado, sendo, em nossa opinião, especialmente evidenciada a conclusão de que a referida legislação, no que respeita a alguns dos seus normativos, deverá considerar-se tacitamente revogada pela entrada em vigor do DL n.º 67/2008, de 08 de Abril, pelas razões que infra se enunciarão;

- Com efeito, o DL n.º 67/2003, de 8 de Abril procedeu à transposição para o ordenamento jurídico português da Diretiva n.º 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, procedendo à aprovação de um novo regime jurídico para a conformidade dos bens móveis com o respectivo contrato de compra e venda, celebrado entre um profissional e um consumidor;

- No caso dos autos, mostra-se provado que a Autora adquiriu, a uma sociedade comercial, que tinha por escopo a criação, cedência e comércio de equinos, um cavalo de raça puro-lusitano, para fins exclusivamente recreativos, isto é, não destinou a Demandante o cavalo DD a qualquer fim profissional ou comercial;

- Assim sendo, e tendo em mente quer o objeto do contrato, quer a qualidade de ambas as partes contraentes, e ainda a finalidade destinada ao referido animal, dúvidas inexistem que ao caso ora em apreço deverá ser aplicado o DL n.º 67/2003, de 8 de abril, conforme imposto pelo seu artigo 1.º-A, n.º 1, com as devidas adaptações;

- Ora, feito um excurso pelo referido diploma legal, constata-se que o DL n.º 67/2003, de 8 de Abril prevê um prazo de garantia para o consumidor de 2 anos a contar da data da entrega da coisa móvel. Com efeito, determina o art. 5.º do n.º 1 do referido diploma legal que «o consumidor pode exercer os direitos previstos no artigo anterior quando a falta de conformidade se manifestar dentro do prazo de 2 (dois) anos a contar da entrega do bem (…) móvel».

- Tal prazo de garantia conferido aos consumidores, no caso de venda de bem móvel defeituoso, instituído pelo DL n.º 67/2003, de 8 de abril é, a nosso ver e salvo melhor opinião, absolutamente incompatível com o regime prescrito pelos artigos 52.º, 53.º e 54.º do Decreto de 16 de dezembro de 1886, pelo que forçoso é concluir que tais normativos foram (tacitamente) revogados pelo regime jurídico atinente à venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas;

- De facto, não vislumbramos que não seja esta a conclusão a ser extraída, seja pela evidente incompatibilidade entre os dois diplomas legais, seja pelo carácter imperativo que denota o DL n.º 67/2003, de 8 de abril (cfr. art. 10.º de tal diploma legal). Ora, de acordo com o citado art. 10.º padece de nulidade todo o acordo ou cláusula contratual pelo qual antes da denúncia da falta de conformidade ao vendedor se excluam ou limitem os direitos do consumidor previstos no presente diploma. Assim, e por um argumento de maioria de razão, se as partes contraentes não podem afastar a disciplina ínsita no referido diploma legal, forçoso é concluir que tais garantias não poderão ser limitadas por um decreto aprovado em 1886, e de carácter marcadamente desatualizado;

- Como tal, consideramos que o Decreto de 16 de Dezembro de 1886 se encontra parcialmente revogado, no que respeita aos seus artigos 52.º, 53.º e 54.º, revogação essa que operou de forma tácita, com a entrada em vigor do DL n.º 67/2003, de 8 de Abril, razão pela qual é inaplicável ao caso ora em apreço a disciplina ínsita em tais normativos;

Face às razões aduzidas, improcederá a excepção peremptória invocada quanto à (não) realização de exame pericial ao cavalo DD nos 10 (dez) dias subsequentes à data da sua entrega à Autora.

18. Na revista a Recorrente considera que não está preenchido o âmbito de aplicação do Decreto de 16/12/1886, e como tal, nenhuma das normas aí previstas terá aplicação ao presente caso.

O caso sub judice não deixará, no entanto, de ter solução ao abrigo de um regime do consumo.

O não preenchimento do âmbito do referido Decreto motiva-se em três ordens de razões:

i) O diploma não se aplica à venda de animais de companhia, apenas à atividade pecuária;

ii) O diploma não se aplica para os vícios não contemplados no artigo 49.º (sem prejuízo da defesa subsidiária apresentada no capítulo VI);

iii) Quando em causa esteja uma relação de consumo, o Decreto-Lei 67/2003, de 8 de abril, derroga integralmente o regime civil dos artigos 913.º e ss., nomeadamente o artigo 920.º e, por isso, a legislação especial avulsa aplicável por força desse preceito.

O caso sub judice está incluído no âmbito de aplicação do DL 67/2003 a venda de animais defeituosos, objeto de contrato celebrado antes da entrada em vigor do DL 84/2021, por tal exclusão não estar anteriormente prevista.

Por outro lado, a A. deverá ser qualificada como consumidor, nos termos do artigo 1.º-B a), por ter adquirido o cavalo para “fins exclusivamente lúdicos” (conforme ponto 6 dos factos provados).

Por sua vez, o cavalo foi adquirido a um profissional, nos termos do artigo 1.º-B c), (conforme pontos 1, 2, 3, 4 e 5 dos factos provados).

Por efeito da aplicação do referido diploma, o consumidor (leia-se: a Autora, aqui Recorrente) pode, nos termos do art. 5.º desse diploma, “exercer os direitos previstos no artigo anterior [art. 4.º] quando a falta de conformidade se manifestar dentro de um prazo de dois ou de cinco anos a contar da entrega do bem, consoante se trate, respectivamente, de coisa móvel ou imóvel”, sendo que, nos termos do art. 5.º-A, n.º 2, “para exercer os seus direitos, o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que a tenha detectado”.

O prazo de denúncia foi integralmente cumprido pela compradora.

Com efeito, os defeitos, que motivaram múltiplos tratamentos, cirurgias e, em última análise, resultaram na morte do cavalo DD (infeções intestinais causadas por vermes e sintomatologia de cólicas recidivas), foram todos denunciados muito antes de ter decorrido o prazo de 2 meses estabelecido por lei:

i. A sintomatologia de cólicas recidivas e candidose equina crónica chegaram ao conhecimento da Recorrente em início de agosto de 2019 (cfr. ponto 21 da matéria de facto) e foram denunciadas em 25 de agosto de 2019 (cfr. ponto 23 da matéria de facto)

ii. As infeções intestinais causadas por vermes chegaramao conhecimento da Recorrente em 6 de outubro de 2019 (cfr. ponto 26 da matéria de facto), facto denunciado no dia seguinte (cfr. ponto ds 32 da matéria de facto).

Desta forma, terá a Autora, direito à redução do preço pago, o qual deverá e concreto ser reduzido para montante não superior a 2.500,00 euros acrescidos de IVA, ou 3.075,00euros já com o IVA incluído, nos termos do artigo 4.º,n.º1doDL67/2003,atendendo aos diversas maleitas que o cavalo DD apresentava.

Tendo a Recorrente pago o valor acordado de 26.150,00 (IVA à taxa legalmente aplicável incluído) deverão as Recorridas ser condenadas a pagar 23.075,00 euros.

Aos direitos previstos no DL 67/2003, acresce o direito de a Recorrente ser indemnizada danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pela Recorrente, nos termos gerais dos artigos 798.º e ss. do Código Civil.

Por outro lado, a recorrente também tece considerações acerca do erro do Acórdão recorrido no que concerne à denúncia dos defeitos por parte da compradora, que o tribunal da Relação considerou como intempestiva:

- Em primeiro lugar, na sequência do ensinamento de PEDRO DE ALBUQUERQUE, deverá entender- se que o comprador estava inclusive dispensado da denúncia dos defeitos, como disposto no artigo 916.º n.º 1 parte final do Código Civil, por ter o vendedor agido com dolo, entendendo- se dolo como má-fé subjetiva ética nos termos já enunciados;

- Em segundo lugar, as maleitas graves de que padecia o cavalo DD eram as cólicas recidivas crónicas, as infeções intestinais causadas por vermes e, secundariamente, a candidose equina crónica.

Todos as demais disfunções decorreram das doenças e sintomatologias supramencionadas, conforme ponto 30 dos factos provados.

Realizado esse contexto, como as cólicas recidivas e candidose equina crónica foram denunciadas no mês de agosto, que coincide com o mês da descoberta do vício, têm-se por denunciados no prazo previsto no artigo 916.º, n.º 2 do Código Civil.

O mesmo sucede com as infeções intestinais causadas por vermes que foram logo no dia seguinte ao do seu conhecimento comunicadas, através de email, aos Recorrentes, na qual se indica expressamente que o “intestino delgado foi diagnosticado com enterite linfo-plasmacellular” (cfr. pontos 26 e 32 dos factos provados).

19. Nos presentes autos as partes divergem quanto à aplicação do decreto de 1886 – a A. entende que não se aplica; a Ré que sim.

19.1. No dizer da A. este diploma está revogado, ao menos em parte, quando se trate de venda de um animal que possa ser considerado “bem de consumo”, alienado por profissional a consumidor, por serem aplicáveis as disposições protetoras do regime dos consumidores, fruto da transposição das regras comunitárias – in casu, Dec.-Lei n.º 67/2003, de 08/04 – devendo excluir-se a aplicação do regime do decreto em favor de diplomas mais modernos e com maior enfoque na posição merecedora de tutela do consumidor adquirente. Chamam também a atenção para o facto do decreto ser relativo à pecuária e conter um elenco de vícios desatualizado, face à moderna ciência médica animal.

A ré defende a posição oposta – o decreto é antigo mas não se encontra desactualizado, nem revogado, contendo um elenco de vícios taxativos e um procedimento de denúncia que é próprio do “bem” em causa, que o cavalo não é um animal doméstico, e que os vícios indicados foram os pretendidos pelo legislador, excluindo-se outros já conhecidos à época da sua feitura.

Quer a A. quer a Ré invocam jurisprudência a defender a sua posição.

19.2. As instâncias também divergiram na decisão e na fundamentação, considerando-se na sentença que devia haver aplicação do regime de protecção do consumidor ao adquirente do cavalo destinado a recreio, e o Tribunal recorrido que a protecção e a do decreto e só essa.

20. O Decreto-Lei n.º 67/2003, transpôs para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 1999/44/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, sobre certos aspectos da venda de bens de consumo e das garantias a ela relativas, alterando a Lei n.º 24/96, de 31 de Julho. Na sua vigência sofreu alterações pelo  Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21/05 e pelo Decreto-Lei n.º 9/2021, de 29/01. Esteve em vigor até ser revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro.

Na data em que a A. comprou o cavalo estava em vigor a versão aprovada pelo diploma de 2008, sendo relevantes os seguintes artigos:


Artigo 1.º-A

Âmbito de aplicação



1 - O presente decreto-lei é aplicável aos contratos de compra e venda celebrados entre profissionais e consumidores.

2 - O presente decreto-lei é, ainda, aplicável, com as necessárias adaptações, aos bens de consumo fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada ou de outra prestação de serviços, bem como à locação de bens de consumo.


Aditado pelo seguinte diploma: Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio


Artigo 1.º-B

Definições

Para efeitos de aplicação do disposto no presente decreto-lei, entende-se por:

Para efeitos de aplicação do disposto no presente decreto-lei, entende-se por:

a) «Consumidor», aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho;

b) «Bem de consumo», qualquer bem imóvel ou móvel corpóreo, incluindo os bens em segunda mão;

c) «Vendedor», qualquer pessoa singular ou colectiva que, ao abrigo de um contrato, vende bens de consumo no âmbito da sua actividade profissional;

d) «Produtor», o fabricante de um bem de consumo, o importador do bem de consumo no território da Comunidade Europeia ou qualquer outra pessoa que se apresente como produtor através da indicação do seu nome, marca ou outro sinal identificador no produto;

e) «Representante do produtor», qualquer pessoa singular ou colectiva que actue na qualidade de distribuidor comercial do produtor e ou centro autorizado de serviço pós-venda, à excepção dos vendedores independentes que actuem apenas na qualidade de retalhistas;

f) «Garantia legal», qualquer compromisso ou declaração assumido por um vendedor ou por um produtor perante o consumidor, sem encargos adicionais para este, de reembolsar o preço pago, substituir, reparar ou ocupar-se de qualquer modo de um bem de consumo, no caso de este não corresponder às condições enumeradas na declaração de garantia ou na respectiva publicidade;

g) «Garantia voluntária», qualquer compromisso ou declaração, de carácter gratuito ou oneroso, assumido por um vendedor, por um produtor ou por qualquer intermediário perante o consumidor, de reembolsar o preço pago, substituir, reparar ou ocupar-se de qualquer modo de um bem de consumo, no caso de este não corresponder às condições enumeradas na declaração de garantia ou na respectiva publicidade;

h) «Reparação», em caso de falta de conformidade do bem, a reposição do bem de consumo em conformidade com o contrato.



Artigo 2.º

Conformidade com o contrato

1 - O vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda.

2 - Presume-se que os bens de consumo não são conformes com o contrato se se verificar algum dos seguintes factos:

a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor ou não possuírem as qualidades do bem que o vendedor tenha apresentado ao consumidor como amostra ou modelo;

b) Não serem adequados ao uso específico para o qual o consumidor os destine e do qual tenha informado o vendedor quando celebrou o contrato e que o mesmo tenha aceitado;

c) Não serem adequados às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo;

d) Não apresentarem as qualidades e o desempenho habituais nos bens do mesmo tipo e que o consumidor pode razoavelmente esperar, atendendo à natureza do bem e, eventualmente, às declarações públicas sobre as suas características concretas feitas pelo vendedor, pelo produtor ou pelo seu representante, nomeadamente na publicidade ou na rotulagem.

3 - Não se considera existir falta de conformidade, na acepção do presente artigo, se, no momento em que for celebrado o contrato, o consumidor tiver conhecimento dessa falta de conformidade ou não puder razoavelmente ignorá-la ou se esta decorrer dos materiais fornecidos pelo consumidor.

4 - A falta de conformidade resultante de má instalação do bem de consumo é equiparada a uma falta de conformidade do bem, quando a instalação fizer parte do contrato de compra e venda e tiver sido efectuada pelo vendedor, ou sob sua responsabilidade, ou quando o produto, que se prevê que seja instalado pelo consumidor, for instalado pelo consumidor e a má instalação se dever a incorrecções existentes nas instruções de montagem.


Artigo 3.º

Entrega do bem

1 - O vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue.

2 - As faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade.



21. A discussão deve centrar-se assim na problemática de saber se o cavalo, para efeitos do DL de 2008, poderia ser qualificado como coisa móvel.

Antes de explicitar que, a nosso ver, essa possibilidade não estaria excluída, começamos por dizer que a solução à luz do novo regime da venda de bens de consumo (DL n.º 84/2021, de 18 de Outubro) se afigura diversa, estando claro – na interpretação conjunta da Directiva e da nova lei – que os animais não estão incluídos nos bens de consumo, para efeitos de lhes serem aplicáveis as regras deste regime.

21.1. Na verdade, a Directiva (UE) 2019/771 - sendo uma diretiva de harmonização máxima, parece admitir que os Estados-membros possam decidir se incluem no âmbito de relevância do diploma que a transponha, abrangendo na compra e venda de consumo, quer as vendas em segunda mão, quer a venda de animais, como se lê no seu articulado.

Artigo 3.o Âmbito de aplicação

1. A presente diretiva é aplicável aos contratos de compra e venda entre um consumidor e um vendedor.

2. Os contratos celebrados entre um consumidor e um vendedor para o fornecimento de mercadorias a fabricar ou a produzir devem ser igualmente considerados contratos de compra e venda para efeitos da presente diretiva.

3. A presente diretiva não é aplicável aos contratos para o fornecimento de conteúdo ou serviços digitais. No entanto, é aplicável a conteúdos ou serviços digitais que estejam incorporados em bens, ou com eles estejam interligados com esses bens, na aceção do artigo 2.o , ponto 5), alínea b), e sejam fornecidos com os bens nos termos de um contrato de compra e venda, independentemente de os conteúdos ou serviços digitais serem fornecidos pelo vendedor ou por um terceiro. Em caso de dúvida sobre se o fornecimento de conteúdos ou serviços digitais incorporados ou interligados fazem parte do contrato de compra e venda, presume-se que os conteúdos ou serviços digitais estão abrangidos pelo contrato de compra e venda.

4. A presente diretiva não é aplicável:

 a) A qualquer suporte material que sirva exclusivamente de portador de conteúdos digitais; ou

b) A bens vendidos por via de penhora, ou qualquer outra forma de execução judicial.

5. Os Estados-Membros podem excluir do âmbito de aplicação da presente diretiva os contratos de compra e venda de:

a) Bens em segunda mão vendidos em hasta pública; e

 b) Animais vivos.


21.2. Esta Diretiva foi transposta nos seguintes termos:

Artigo 1.º

Objeto

1 - O presente decreto-lei:

a) Reforça os direitos dos consumidores na compra e venda de bens de consumo, transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva (UE) 2019/771, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2019, relativa a certos aspetos dos contratos de compra e venda de bens, que altera o Regulamento (UE) 2017/2394 e a Diretiva 2009/22/CE e que revoga a Diretiva 1999/44/CE;

b) Estabelece o regime de proteção dos consumidores nos contratos de fornecimento de conteúdos ou serviços digitais, procedendo à transposição para a ordem jurídica interna da Diretiva (UE) 2019/770, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2019, sobre certos aspetos relativos aos contratos de fornecimento de conteúdos e serviços digitais.

2 - O presente decreto-lei estabelece ainda:

a) O regime aplicável à compra e venda de bens imóveis em caso de falta de conformidade;
b) A responsabilidade direta do produtor em caso de falta de conformidade dos bens, conteúdos ou serviços digitais;

c) A responsabilidade dos prestadores de mercado em linha;

d) O regime sancionatório aplicável ao incumprimento dos deveres do profissional.

Artigo 2.º

Definições

Para efeitos do presente decreto-lei, entende-se por:

a) «A título gratuito», livre dos custos necessários incorridos para repor os bens em conformidade, nomeadamente o custo de porte postal, transporte, mão-de-obra ou materiais;
b) «Ambiente digital», o equipamento informático, o software e qualquer ligação à rede utilizada pelo consumidor para aceder a conteúdos ou serviços digitais ou para os utilizar;
c)«Bens»:

i) Qualquer bem móvel corpóreo, incluindo os bens em segunda mão e a água, o gás e a eletricidade quando colocados em venda num volume limitado ou em quantidade determinada;

ii) Qualquer bem móvel corpóreo que incorpore ou esteja interligado com um conteúdo ou serviço digital, de tal modo que a falta destes impeça os bens de desempenharem as suas funções («bens com elementos digitais»);

d) «Bens imóveis», prédios urbanos para fins habitacionais, entendendo-se como tal qualquer edifício incorporado no solo, com os terrenos que lhe sirvam de logradouro, sendo parte integrante toda a coisa móvel ligada materialmente ao prédio com carácter de permanência;

e) «Bens recondicionados», bens que foram objeto de utilização prévia ou devolução e que, após inspeção, preparação, verificação e testagem por um profissional, são novamente colocados para venda no mercado nessa qualidade;

f) «Compatibilidade», a capacidade de os bens, conteúdos ou serviços digitais funcionarem com o hardware ou o software com que os bens, conteúdos ou serviços digitais do mesmo tipo são normalmente usados, sem necessidade de conversão;

g) «Consumidor», uma pessoa singular que, no que respeita aos contratos abrangidos pelo presente decreto-lei, atue com fins que não se incluam no âmbito da sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional;

h) «Conteúdo digital», os dados produzidos e fornecidos em formato digital;
i) «Durabilidade», a capacidade de os bens manterem as suas funções e desempenho previstos através da utilização normal;

j) «Funcionalidade», a capacidade de os bens, conteúdos ou serviços digitais desempenharem as suas funções tendo em conta a sua finalidade;

k) «Garantia comercial», um compromisso ou declaração, de carácter gratuito ou oneroso, assumido pelo profissional, pelo produtor, ou por qualquer intermediário («o garante») perante o consumidor, para além das obrigações legais do profissional de garantia de conformidade, de reembolsar o preço pago, substituir, reparar ou ocupar-se de qualquer modo de um bem, conteúdo ou serviço digital no caso de este não ser conforme com as especificações ou qualquer outro elemento não relacionado com a conformidade estabelecidos na declaração de garantia ou na respetiva publicidade divulgada na celebração do contrato ou antes desta;

l) «Interoperabilidade», a capacidade de os bens, conteúdos ou serviços digitais funcionarem com hardware ou software diferentes dos normalmente usados com bens, conteúdos ou serviços digitais do mesmo tipo;

m) «Mercado em linha», um serviço com recurso a software, nomeadamente um sítio eletrónico, parte de um sítio eletrónico ou uma aplicação, explorado pelo profissional ou em seu nome, que permita aos consumidores celebrar contratos à distância;

n) «Prestador de mercado em linha», a pessoa singular ou coletiva que forneça um mercado em linha aos consumidores;

o) «Profissional», uma pessoa singular ou coletiva, pública ou privada, que atue, inclusivamente através de qualquer outra pessoa em seu nome ou por sua conta, para fins relacionados com a sua atividade comercial, industrial, artesanal ou profissional, no que respeita aos contratos abrangidos pelo presente decreto-lei;

p) «Produtor», o fabricante de bens, conteúdos ou serviços digitais, o importador de bens na União Europeia ou qualquer outra pessoa que se apresente como produtor, através da indicação, nos bens, do seu nome, marca ou outro sinal distintivo;

q) «Representante do produtor», qualquer pessoa singular ou coletiva que atue na qualidade de distribuidor comercial do produtor e ou de centro autorizado de serviço pós-venda, à exceção dos profissionais independentes que atuem apenas na qualidade de retalhistas;

r) «Serviço digital»:

i) Um serviço que permite ao consumidor criar, tratar, armazenar ou aceder a dados em formato digital;

 ou

ii) Um serviço que permite a partilha ou qualquer outra interação com os dados em formato digital carregados ou criados pelo consumidor ou por outros utilizadores desse serviço;

s) «Suporte duradouro», qualquer instrumento que possibilite ao consumidor ou ao profissional armazenar informações que lhes sejam pessoalmente dirigidas, em termos que lhes permitam, no futuro, aceder às mesmas durante um período adaptado aos fins a que as informações se destinam e que possibilite a reprodução inalterada das informações armazenadas.


Artigo 4.º

Exclusões


1 - O presente decreto-lei não é aplicável:

 a) A bens vendidos por via de penhora ou qualquer outra forma de execução judicial ou levada a cabo por uma autoridade pública;

 b) À compra e venda de animais.



21.3. Tendo o legislador português inserido no âmbito do regime transposto a exclusão da categoria dos animais vivos é claro que os mesmos estão excluídos.

Mas a situação não tinha de ser a mesma no domínio do DL. De 2008, pois a Directiva que o mesmo acolhia não excluía os animais vivos – que omitia – dizendo apenas:

Artigo 1.o Âmbito de aplicação e definições

(…)

2. Para efeitos da presente directiva, entende-se por:

 a) Consumidor: qualquer pessoa singular que, nos contratos abrangidos pela presente directiva, actue com objectivos alheios à sua actividade comercial ou profissional;

b) Bem de consumo: qualquer bem móvel corpóreo, com excepção:

 — dos bens vendidos por via de penhora, ou qualquer outra forma de execução judicial,

— da água e do gás, quando não forem postos à venda em volume delimitado, ou em quantidade determinada,

— da electricidade;

(…)

3. Os Estados-Membros podem prever que a definição de «bem de consumo» não abranja os bens em segunda mão adquiridos em leilão, quando os consumidores tenham oportunidade de assistir pessoalmente à venda.

4. Para efeitos da presente directiva, são igualmente considerados contratos de compra e venda os contratos de fornecimento de bens de consumo a fabricar ou a produzir.

21.4. No entanto, na interpretação desta Diretiva – e do diploma de transposição – já defendiam a exclusão dos animais vivos alguns autores, como Mafalda Miranda Barbosa, p. 735, no escrito “O futuro da compra e venda (de coisas defeituosas)”, disponível em https://portal.oa.pt/media/130342/mafalda-miranda-barbosa_roa-iii_iv-2019-14.pdf.

Em sentido oposto se pronunciou Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, Vol. III, Almedina, 13ª Edição, 2019, pp. 140 e 141m no âmbito da vigência da Directiva de 99:

“O âmbito de aplicação do regime da garantia contratual de bens de consumo,

instituído pelo D.L. 67/2003, alterado pelo D.L. 84/2008, vai, no entanto, muito mais longe do que o da Directiva1999/44/CE, a cuja transposição procedeu. Efectivamente, esta Directiva abrange apenas os bens móveis corpóreos, (cfr. art. 205.º do nosso Código Civil), sejam eles novos ou usados, duradouros ou não duradouros, excluindo-se os bens objecto de venda judicial, o fornecimento de água e gás, quando não forem postos à venda em volume determinado, ou em quantidade determinada e o fornecimento de electricidade (art. 1.º, n.º 2 b) da Directiva). Os fornecimentos continuados de bens essenciais são assim excluídos da Directiva, a qual apenas permite abranger a sua compra em quantidades determinadas (ex: garrafas de água mineral ou botijas de gás).

O nosso legislador não apenas previu expressamente a aplicação desta garantia a bens móveis (cfr. 3.º, n.º 2 do D.L. 67/2003), como também não efectuou qualquer das exclusões acima referidas, o que implica naturalmente que fiquem abrangidas pela garantia contratual. Essa garantia passa abranger igualmente a venda ao consumidor de animais defeituosos,entre nós exceptuada do regime geralda garantia contra vícios da coisa pelo art. 920.º do Código Civil, ainda que anteriormente se pudesse considerar abrangida pela lei de Defesa do Consumidor.”

Mas já no que respeita ao âmbito da vigência da nova Directiva e do DL de 2021 a posição deste A. aponta em sentido diverso (Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, Vol. III, Almedina, 14ª Edição, 2022, p. 141):

“… assim, para além da referida exclusão da aplicação da garantia aos suportes materiais de conteúdo digital (…) o legislador nacional exclui ainda da aplicação da garantia (…) a compra e venda de animais (art.º 4º, n.º1, do DL 84/2021)”.

E neste escrito, na nota 315, p. 141, afirma ainda:

Uma vez que os defeitos dos animais são entre nós exceptuados do regime geral da garantia contra vícios da coisa pelo art.º 920.º do CC, haverá que aplicar o regime especial da garantia contra vícios redibitórios na venda ou troca de animais domésticos, que consta ainda hoje dos art.ºs 49.º e ss do decreto de 16 de Dezembro de 1886. De notar que tal representa um retrocesso relativamente ao regime do DL 67/2003, o qual abrangia a venda dos animais.”

Parecendo admitir a consideração da aplicação do DL n.º 67/2003, de 8 de Abril, cf. Jorge Morais Carvalho, in CC Anotado (Ana Prata, Coord.), art.º 920.º, Vol. I, 2017, p. 1137.

21.5. Atento o exposto, não se pode sustentar uma solução inequívoca no sentido da exclusão dos animais vivos do regime de 2008, por não serem coisas móveis, ainda que se possa chegar a idêntica solução da ali estabelecida, por outras vias.

22. Vejamos.

22.1. Na época em que o A. comprou o cavalo DD é certo que o mesmo não era considerado, à luz do CC, uma coisa – como sucedeu até 2017, sendo verdade o que se diz no acórdão recorrido:

“artigo 201.º

“Os animais são seres vivos dotados de sensibilidade e objeto de proteção jurídica em virtude da sua natureza.”

Por conseguinte, os animais que até à entrada em vigor da mencionada Lei n.º 8/2017 eram classificados como coisas, concretamente coisas móveis ao abrigo do disposto no artigo 205.º do CC, deixaram de o ser passando a ser considerados como seres vivos.

Mas também é certo que o cavalo sendo um ser vivo não perde a natureza corpórea e quando o mesmo constitui o objecto de um contrato de compra e venda tem de ser classificado como coisa – e coisa móvel – pois não se enquadra na categoria dos imóveis, sendo a dos móveis delimitada por exclusão de partes.

Assim como a definição de bens de consumo para efeitos do DL de 2008 abrange bens que não se destinam a ser destruídos ou alienados com o seu uso (como bens consumíveis no sentido do art.º 208.º do CC), também o cavalo se deve poder considerar um bem móvel – e de consumo – no sentido de ser um bem não destinado a uso profissional.

Por outro lado, a alteração da qualificação dos animais como coisa para a classificação como ser vivo não parece colidir com esta interpretação, por não estar em causa a aplicação de nenhum regime que vise o tratamento jurídico do ser vivo animal, mas a protecção da posição jurídica do adquirente do mesmo na sua relação com a qualidade que o bem adquirido deve ter para o fim visado com a aquisição.

Questão diversa é a de saber se se pode afirmar peremptoriamente que o cavalo, enquanto ser vivo, beneficia da tutela do regime do diploma de 2008, nomeadamente por haver um regime especial previstos para a venda de animais vivos – o referido Decreto de 16.12.1886.

Nesta dúvida estará em causa a relação entre leis especiais: o DL de 2008 é lei especial, face ao regime do CC; mas o Decreto de 1886 também. Na relação entre estas duas leis especiais, o DL de 2008 também será lei “especialíssima”, no sentido de se sobrepor a lei especial (o Decreto de 1886)?

Para que a questão releve, importa em primeiro lugar aferir se o Decreto de 1886 ainda está em vigor.

Em 2007, o TRL teve oportunidade de se pronunciar sobre a vigência deste Decreto de 1886, cujo regime considerou aplicável à venda viva de animais realizada em 2005 – já depois da transposição da Diretiva de 99 (embora isso pudesse ser irrelevante porque o contrato em causa se reportava ao exercício da actividade das partes – conforme factos provados – “Em 27.05.2005, o requerido no exercício da sua actividade, comprou à requerente gado vivo,constante da factura n° ...42, junta a fls. 71.”)

Nesse aresto decidiu-se que o regime civilista da venda de coisa defeituosa não se aplicaria aos animais vivos, abrangidos pelo regime especial do referido decreto, e deu-se nota da divergência doutrinal sobre a possibilidade de aplicação subsidiária do regime civilista para vícios do animal não especificamente previstos no decreto.

Fez-se aí alusão à posição oposta entre Pinto Monteiro e Calvão da Silva, dizendo:

António Pinto Monteiro [1] a este propósito escreve, nomeadamente, que: (…) Uma análise comparativa do art. 920º do Código Civil com o art. 1496º do Código Civil italiano mostra que o legislador português, ao contrário do legislador italiano, pretendeu subtrair de todo a questão da venda de animais defeituosos do âmbito de aplicação das normas gerais. De facto, não pode ser outro o sentido da omissão no que se refere à possibilidade de aplicação das normas gerais (que são as normas precedentes no Código Civil italiano, ou seja, as que regulam a garantia por vícios) presente no nosso art. 920º do Código Civil. O legislador quis, verdadeiramente, que a venda de animais defeituosos, no que diz respeito aos vícios juridicamente relevantes e ao exercício dos direitos do comprador, fosse exclusivamente cometida às leis especiais e aos usos.” Já Calvão da Silva [2] entende sobre esta a matéria que: “só nos aspectos não regulados pelas leis especiais existentes encontrarão aplicação as normas do Código Civil relativas à venda de coisas viciadas (art. 913º e segs.)”

Mas explicitou-se que, no caso a decidir, tratando-se de um vício especificamente previsto no decreto, não haveria necessidade de tomar posição sobre a controvérsia.

Também aqui se faz uma referência à possível justificação para a relevância de alguns vícios – os enumerados na lei – e para a irrelevância dos outros, avançando que o motivo pode ter tido a ver com o facto de “que qualquer animal tem pequenos defeitos, pelo que a lei dá relevância apenas aos que considera principais e por eles responsabiliza o vendedor quando se manifestem dentro do prazo de garantia.” (citando calvão da Silva).


Em trabalho escolar de mestrado, Gonçalo Pereira, em 2019, na Universidade de Coimbra, também abordou a questão dos animais vivos e a venda de bens defeituosos (disponível em https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/90418/1/DISSERTA%c3%87%c3%83O.pdf), dizendo (p. 43 e ss):

“Venda de animais defeituosos

 “A matéria constante do art. 920º é regulada por diploma especial, atinente à venda de animais defeituosos, o Decreto de 16 de Dezembro de 1886, não obstante o espaçamento temporal que nos separa dele. Quanto à questão da aplicação das normas relativas à compra e venda de coisa defeituosa, Calvão da Silva (91) pugna que nas matérias em que não haja regulação por parte do Decreto de 1886, aplicar-se-ão as normas contidas no CC supletivamente. Já Pinto Monteiro (92) segue uma linha de pensamento diferente, propondo que o legislador quis que a venda de animais defeituosos fosse do âmbito exclusivo das leis especiais e usos, não havendo lugar à aplicação subsidiária do CC. Após uma atenta análise ao art. 1496º do Código Civil italiano (93), determina-se que houve um intuito do legislador italiano em prever específica e explicitamente que na hipótese de não se ter leis especiais ou costumes locais que se coadunem com o problema erguido, deverá ser aplicado de forma subsidiária o regime da garantia para defeitos da coisa vendida, contrariamente ao que aconteceu no nosso ordenamento jurídico, em que o legislador nacional omitiu propositadamente tal remissão, confinando esta matéria apenas a lei especial ou usos. Ao prever núcleos taxativos para os vícios que podem afectar os animais, o legislador do Decreto parece não ter dado margem de conformação para a interpretação com recurso a outros instrumentos jurídicos – in casu, o Código Civil. Não é, como tal, possível a regulação de um caso através das regras que concernem à venda de coisa defeituosa, isto porque o Decreto, diploma especial, afasta a aplicação do regime geral constante dos arts. 913º e segs. O art. 49º do referido Decreto elenca a lista de doenças reputadas como vícios redibitórios que “tornam resoluvel o contrato de compra e venda ou troca dos animaes domésticos”, fazendo uma enumeração taxativa dos defeitos para as quatro categorias de animais referidas: “cavallos, jumentos e mulos”, “bois”, “carneiros” e “porcos”. O art. 50º institui a acção de redução do preço, que terá lugar quando seja deduzida pelo comprador e o vendedor não prefira reaver o animal vendido, restituindo o preço e indemnizando o comprador pelas perdas e danos sofridos, optando-se então por uma redução proporcional do valor pago pelo animal que se encontra desvalorizado por estar afectado por um vício, mantendo-se este na posse do adquirente. O art. 51º constitui uma excepção ao que está aduzido no art. 52º, dado que sustenta que a acção redibitória só poderá ser intentada nos casos de venda ou troca de animais domésticos quando o valor em consideração exceda os “9000 réis”. Tal como resulta do constante no art. 52º, quando o comprador entenda que tem fundamento legal, pela existência de um vício redibitório do animal, pode pedir a rescisão da venda ou da troca ou a redução do preço94, pese embora que, para a dedução do seu direito, terá de requerer, no prazo de dez dias - sendo que há uma excepção no caso de a maleita ser a “fluxão periódica dos olhos”, cujo prazo será alargado para trinta dias -, um exame ou vistoria de peritos que devem verificar o estado do animal, recolher os esclarecimentos úteis e afirmar a sua opinião, nos termos do art. 54º. Segundo o art. 55º, quando após o exame ou vistoria se concluir que os animais sofrem de doença reputada como vício redibitório, haverá uma conferência entre as partes para se resolver se há rescisão da venda e redução do preço, sendo que após tal acontecer a acção redibitória poderá ser efectivamente intentada. Porém, o comprador do animal só gozará da garantia contra os vícios redibitórios prevista no Decreto no caso de os animais morrerem, se tiver requerido o exame ou vistoria dentro dos prazos já contemplados – trinta dias para a “fluxão periódica dos olhos” e dez dias para as restantes – e se se provar que a morte procedeu de alguma moléstia ou lesão especificada no art. 49º e nas suas diversas alíneas. Assim, o vendedor ficará desonerado e desresponsabilizado se porventura estes pressupostos cumulativos não tenham sido observados. Na perspectiva de Calvão da Silva (95), paira sobre este regime jurídico uma ideia de que qualquer animal tem pequenos defeitos, pelo que a lei elenca taxativamente uma série deles, sendo só e apenas esses previstos juridicamente relevantes, capazes de fundar quer a resolução do contrato quer a excepção de não cumprimento do contrato, uma vez que é obrigação do vendedor a entrega do animal isento de defeitos, sendo essa isenção conteúdo do dever de prestação e, simultaneamente, objecto do contrato (96).

Calvão da Silva entende que o Decreto de 1886 deveria ser, pela sua vetustez, alvo de uma interpretação actualista (97): para inclusão de doenças que entretanto surgiram e/ou se tornaram mais graves e que justificariam a resolução do contrato ou a redução do preço, podendo haver igualmente direito à reparação das doenças do animal ou substituição do mesmo e para o alargamento do prazo de garantia, por forma a ir ao encontro do período de incubação de certas doenças graves. Relativamente à consideração jurídica que devemos dar a esta situação, impõe-se novamente um dualismo de soluções: vícios redibitórios ou são entendidos como um problema que se levanta em sede de perfeição da vontade negocial, constituindo assim uma especialidade do regime do erro e do dolo, ou, pelo contrário, apresentam-se como uma questão a enquadrar na problemática mais ampla do incumprimento do contrato(98) . O tratamento dado a estas situações é mais um indício que se deve abdicar da teoria dos institutos do erro e do dolo para explicar este tipo de casos. Os seguidores da doutrina tradicional do erro conceituavam estas situações no âmbito do erro sobre os motivos do negócio, ou seja, a vontade negocial do adquirente pressupunha que o animal não sofreria de vício algum que o desvalorizasse, possuindo todas as qualidades asseguradas pelo vendedor e adequadas para a prossecução do fim que ele lhe queria dar. Assim, a consequência jurídica prevista para este tipo de situações seria a anulabilidade do negócio, contudo não é isso que se verifica após a análise do respectivo Decreto, que prevê a resolução do contrato, sendo esta uma consequência típica do regime do incumprimento das obrigações, pelo que tal regime terá de ser afastado. Os pressupostos do regime dos arts. 913º e seguintes, apesar de considerarem o vício redibitório como um problema de perfeição da vontade negocial, dão maior relevância às conotações objectivas que lá são tipificadas – não aptidão à realização do fim, desvalorização e falta de conformidade com as qualidades prometidas - do que à situação subjectiva do erro do comprador, criando-se um regime com direitos concedidos pela lei que não se coadunam com a existência de erro (cfr. arts. 914º, 911º, 915º, 918º) (99).

Infere-se então que o diploma convocado adscreve o problema dos vícios redibitórios na temática do inadimplemento contratual, na qual se considera que as qualidades da coisa são parte integrante do objecto do acordo negocial, o que significa que a declaração negocial não designa a “coisa em si” mas a “coisa como deve ser”, com as qualidades naturais dos bens do mesmo género, valendo o contrato com o sentido que os compradores lhes atribuíram, sendo que garante que o contrato obriga o vendedor a entregar o objecto como o comprador deseja que ele seja e não como o bem é concretamente. Sobre este assunto, dispõe o Ac. TRP de 13/05/1993, nº 9340069: “I - À compra e venda de animais domésticos defeituosos não se aplica o regime geral do erro sobre os motivos do negócio, porque a matéria dos vícios redibitórios relativos àqueles animais é regulada pelo Decreto de 16/12/1886, como lei especial ressalvada pelo artigo 920º do Código Civil; II - Por isso, ao pedido de anulação do contrato de compra e venda por erro acerca da aptidão de um cavalo para salto de obstáculos, inapto por vício de claudicação por artrose congénita, não é aplicável o regime geral constante dos artigos 247º e 251º do Código Civil.”[1]

Também Menezes Leitão, in Direito das Obrigações, Vol. III, Almedina, 14ª Edição, 2022, p. 132 e ss defende estar em vigor o Decreto de 1886, dizendo:

Há, no entanto, leis especiais relativas à venda de animais defeituosos, sendo a mais importante o Decreto de 16/12/1886, cujos art.ºs 49.º e 58.º regulam a compra e venda – ou troca – de animais domésticos defeituosos.”

22.2. Os elementos apresentados até agora permitem já avançar num certo sentido lógico:

i) em primeiro lugar, considerar que que o Decreto de 1886 é norma especial para efeitos do regime do art.º 913.º do CC, não tendo sido revogado expressamente, não se identificando norma jurídica que o revogue e tendo o mesmo sido aplicado já por diversas vezes pela jurisprudência e objecto de tratamento doutrinal. Também não parece ter ocorrido uma revogação tácita;

ii) em segundo lugar, a venda do cavalo enquanto animal vivo não estava prevista expressamente como sendo sujeita a ser abarcada pelo regime da Directiva de 99, o que terá levado o legislador a não prever a sua inclusão directa  e expressa como bem de consumo (não obstante o problema não ser desconhecido - cf. trabalhos preparatórios da transposição da Directiva de 1999, da autoria de Paulo Mota Pinto, https://www.fd.uc.pt/cdc/pdfs/rev_2_completo.pdf, p. 218-219); a Directiva que originou a transposição do novo regime de 2021 ao admitir a inclusão dos animais vivos, mas não obrigando a tal, teve por parte do legislador uma resposta de continuidade[2], ao não incluir expressamente os animais vivos no seu âmbito, como deveria se os pretendesse incluir no âmbito da nova lei; o sentido da evolução legal é o de incluir mais bens no regime da protecção do consumo e não de os excluir, o que levou o legislador comunitária a alargar o leque dos bens abarcados na protecção, incluindo alguns dos anteriormente excluídos (electricidade, v.g.) expressamente e acrescentados bens novos, frutos da época moderna;

iii) o Decreto de 1886 é lei especialíssima, na sua relação com o DL de 2008, e lei especial na sua relação com o regime civilista da venda da coisa defeituosa (art.º 920.º do CC).

22.3. Quanto à alegação no sentido de o Decreto de 1886 não poder ser aplicado à situação dos autos, por regular aspectos da pecuária, importa dizer o seguinte.

Nos termos mesmo diploma a regulação que aí está contida é, num primeiro plano, de ordem funcional, e por isso se alude aos serviços de pecuária, que à época se enquadravam no âmbito do ministério das obras públicas, comércio e serviço, do art.º1º do decreto (corpo da norma), mas daí não decorre que não se incluam no diploma normas de direito material relativas ao comércio de animais, pois o 3ª ponto desta mesma norma é clara no sentido de os indicados serviços de pecuária incluírem os “serviços atinentes a garantir o comercio dos animais domésticos contra os vícios redibitórios”, assim como também resulta das disposições contidas nos art.ºs 49.º e ss, integrados no cap. IX – Garantias contra os vícios redibitórios, onde constam indicados animais como os cavalos, que não constituem, nos dizeres actuais, animais domésticos, mas que à época do diploma se integravam na categoria e no âmbito pecuário

[no art.º 49.º, diz-se: “são reputados vícios redibitórios e tornam resilível o contrato de compre e venda ou troca dos animais domésticos, salvo convenção em contrário estabelecida pelos contraentes, as moléstias ou defeitos seguintes:

Para os cavalos, jumentos e mulos:

a) O mormo, o laparão;

b) A imobilidade;

c) O empysema pulmonar;

d) O sybilo chronico da respiração;

e) A birra;

f) As manqueiras intermitentes devidas a moléstia antiga;

g) A fluxão periódica dos olhos;

h) As manhas, que tornem o animal improprio para os usos a que é destinado.»

(…)”].


22.3. Quanto a saber se os vícios não incluídos no regime do decreto de 1886 podem permitir a invocação, subsidiária, do regime civilista, não estamos seguros da resposta, embora nos inclinemos para uma solução negativa, na esteira de Pinto Monteiro, sendo sensíveis ao facto de o legislador português se ter querido afastar da solução italiana e de considerar que a especialidade do bem envolve a possibilidade de o mesmo ter alguns vícios não revelados ou reveláveis em tempo útil.

A exclusão será para nós clara relativamente a vícios já existentes (ou conhecidos como tal pela ciência) à época da feitura do Decreto de 1886, e menos clara relativamente a possíveis evoluções da medicina veterinária, onde se admite que possa haver necessidade de efectuar uma interpretação actualista da norma (agora na vertente dos vícios, mas porventura na vertente dos prazos, conforme sugere Calvão da Silva, Venda de Coisas Defeituosas, 4ª ed., p. 94).

O sentido dessa interpretação actualista também não se afigura inequívoco: poder-se-ia admitir que outros vícios dos animais (os novos) fossem sujeitos ao mesmo tratamento dos vícios indicados no decreto, ou, em alternativa que os vícios novos fossem sujeitos à aplicação subsidiária do regime civilista do art.º 913.º do CC.

De qualquer modo, o recurso ao regime do decreto ou ao código civil para vícios não previstos (novos) estaria ainda limitada à inexistência de usos que pudesse regular o caso.

Esta interpretação do decreto de 1886 e do código civil, que se propõe, é assim ligeiramente diversa da sugerida por MENEZES LEITÃO, citada pela recorrente, in Direito das Obrigações, Vol. III, Almedina, 13ª Edição, 2019, p. 133 (mantida na versão de 2022, p. 133) – quando este autor defende que:

A nosso ver, do art. 920.º resulta a intenção de não regular a compra e venda de animais defeituosos pelas regras do Código Civil, mas apenas pelas leis especiais ou, na falta destas, pelos usos. Assim, quanto aos animais e doenças abrangidas pelas leis especiais, haverá que aplicar o regime destas. No caso de o animal ou a doença não se encontrar regulada em legislação especial, não parece, porém, que se possa sustentar a sua aplicação analógica, uma vez que o art. 920.º manda nesse caso remeter para os usos. Haverá assim que aplicar antesos usos relativos à venda desses animais. Se, porém, também se verificar a inexistência de usos, parece que se deve aplicar o regime geral do Código Civil”.

Com a interpretação propugnada pensamos que se acolhem as situações de gritante injustiça que serão as situações em que a evolução técnica ( do âmbito veterinário) permite reconhecer que novos vícios não são totalmente ignorados – sendo para eles encontrada uma solução de relevância jurídica e tutela do adquirente – mantendo-se a ideia de que o animal pode padecer de outros problemas de saúde cuja relevância é excluída pelo legislador em termos de afectar o valor e execução do contrato de aquisição, mas sempre com possibilidade de os usos darem ao vício em causa o relevo que a prática exige e que o legislador pode parece ter esquecido ou desconsiderado.

Na solução aventada os “novos” vícios teriam acolhimento, quer porque seriam sujeitos ao regime do Decreto de 1886, quer porque facultariam o recurso ao regime civilista.

Em qualquer dos casos, quem pretendesse invocar um determinado vício não coberto pelo Decreto de 1886 teria o ónus de demonstrar que se tratava de vício “novo”, não abarcado pelo Decreto e não se vício “já conhecido” mas dele “excluído”. E se o interessado não quisesse que lhe fosse aplicada a solução jurídica imposta pela lei (seja o Decreto, seja o regime civil), poderia ainda demonstrar que o vício estava coberto por uma solução jurídica diversa reconhecida pelos usos.

Na opção entre o recurso ao regime do Decreto de 1886 ou o regime civilista para os novos vícios, por força da aplicação do princípio da analogia, ainda que partindo de lei especial, propendemos a considerar aplicável o regime do Decreto de 1886 – quer no que se reporta à denuncia, quer aos prazos e procedimentos respectivos.

Aplicando esta interpretação ao caso concreto a solução seria a seguinte:

- o comprador estaria onerado com o ónus de requerer, dentro de dez dias completos, um exame ou vistoria de peritos para se averiguar a existência do facto de onde o mesmo comprador deduz o direito reclamado;

- os vícios que relevam são os elencados no Decreto de 1886, para o cavalo;

- outros vícios (novos) resultantes da evolução técnica (veterinária) podem ser considerados análogos aos vícios especificamente elencados no Decreto de 1886.

23. No caso dos autos, mostra-se provado no ponto 12., que a Autora tinha a intenção de realizar um exame médico ao cavalo DD, em momento prévio à sua aquisição, comumente designado por «exame em ato de compra». Mais se provou que a Autora deu conhecimento dessa sua intenção ao representante da compradora, EE. Também se mostra provado que o representante da vendedora disse à Autora que era desnecessário realizar qualquer exame em ato de compra ao cavalo DD, asseverando que o animal detinha todas as qualidades adequadas à finalidade para o qual seria adquirido, para fins exclusivos de recreio (cfr. ponto de facto dado como provado em 13.).

Na sentença o tribunal valorou estes factos no sentido de considerar que tinha havido dolo do vendedor, o que dispensaria a denúncia.

Não acompanhamos a conclusão.

O facto de o representante da vendedora ter dito à Autora que era desnecessário realizar qualquer exame em acto de compra ao cavalo e que o mesmo detinha as qualidades adequadas à finalidade para o qual seria adquirido não significa que o mesmo soubesse que o cavalo tinha problemas que afectariam a sua utilização e que tenha agido com a intenção de enganar a A.

E mesmo que assim não fosse, não é a afirmação do representante da vendedora que terá inibido a A. de reclamar o exame em que chegou a pensar, mas uma decisão própria, onde se deve assumir que ponderou as vantagens e desvantagens do recurso ao mesmo, optando por não o realizar.

Acresce ainda que se A. pensou na realização do exame é porque tinha a percepção da sua importância, no quadro do contrato que celebrou.

É assim de acompanhar o decidido no acórdão recorrido sobre o ponto, ao afirmar:

“Na verdade, a mera intenção, dada a conhecer pela Apelada ao legal representante da sociedade C..., Unipessoal, Lda., (…), de realizar em momento prévio à sua aquisição um exame médico ao animal não pode subsumir-se juridicamente à figura do requerimento para exame médico previsto no artigo 52.º do Decreto de 1886 e menos ainda a resposta conferida por aquele representante à Apelada pode ser interpretada como um qualquer indeferimento a um tal requerimento.

Com efeito, confrontada com a opinião manifestada pelos Apelantes de que não seria necessária a realização de exame médico ao cavalo “(…)” pelo facto do mesmo deter as qualidades adequadas à finalidade para que seria adquirido (recreio), a Apelada não ficou de forma alguma impossibilitada de prosseguir com as diligências necessárias à realização do “exame em ato de compra”, não tendo resultado minimamente comprovado que tenha sido física, ou moralmente, coagida a não o fazer.

Da conjugação entre si da matéria de facto vertida designadamente nos pontos 13 e 14 apenas se pode retirar, por presunção, que a Apelada terá confiado que seria desnecessário no acto de compra realizar o exame médico ao cavalo, não se afigurando, ao invés, adequado presumir que os Apelantes tenham agido com dolo, consubstanciado na intenção de esconder problemas de saúde e maleitas de que o cavalo “(…)” já padecesse e que fossem, ou devessem necessariamente ser, do seu conhecimento.

Pensamos que para se poder concluir inequivocamente no sentido de uma tal actuação dolosa por parte dos Apelantes seria necessário que tivesse resultado provado na sentença recorrida que o cavalo “(…)” já padecera anteriormente à compra e venda celebrada com a Apelada de problemas de saúde reconhecidos em exames ou relatórios médicos, o que não decorre da matéria de facto que resultou assente na dita sentença, não nos parecendo suficiente extrair tal comportamento doloso da singela referência constante da parte final dos factos vertidos sob os pontos nºs 26 e 29 do segmento atinente à matéria de facto considerada como provada na sentença recorrida. A mera sugestão quanto à desnecessidade de realização do exame pericial médico ao cavalo “(…)” à data da compra e venda sem arrimo noutros factos concretos provados ilustradores de anterior situação documentada de saúde do animal não deve, salvo melhor opinião, ser entendida a nível de actuação dolosa, conforme o concluiu o Tribunal a quo na sentença recorrida.

24. Adicionalmente.

Mostra-se provado que a Autora comprou o cavalo DD à já extinta C... Unipessoal, Lda. em 26.04.2019, tendo o animal sido entregue em 02.05.2019 (vide factos dados como provados nos pontos 5. e 15. dos factos dados como provados).

Por outro lado, mostra-se igualmente provado que o cavalo DD apresentou sintomatologia associada a cólicas recidivas desde o início de agosto de 2019, tendo em consequência de tal patologia sido internado em clínica veterinária e submetido a operação cirúrgica, em 15.08.2019. (vd. factos provados em 21. e 22.).

A dilação entre a data da recepção do cavalo pela A. e a sintomatologia associada a cólicas recidivas não é despicienda, estando em causa cerca de três meses.

Teria o cavalo um problema de saúde à data da entrega que o conduzisse a estar três meses bem e passado esse período a revelar-se?

Não sabemos a resposta.

Mas sabemos que a ser esse o cenário, incumbiria à A. a alegação e prova do mesmo, pois a invocação em causa pressupõe o nexo de causalidade entre a sintomatologia evidenciada em Agosto e o eventual problema prévio, sendo possível que a sintomatologia apresentada em Agosto fosse fruto de outra razão, até porventura derivada do tratamento dado pela A. ao animal entre o momento da recepção e a revelação dos sintomas. Neste quadro de incerteza, é evidente que teria de ser a A. a provar o facto em causa, até porque o cavalo estava ao seu cuidado e era ela que a ele tinha acesso.

E como veio provado (16. Nessa ocasião, o cavalo DD encontrava-se emagrecido e apresentava uma dentição degradada; 17. Em consequência da sua dentição degradada, o cavalo DD foi sujeito a tratamento médico em clínica veterinária; 18. Em 29.05.2019, o cavalo DD apresentava insuficiência de selénio, tendo recebido uma injecção para suprir tal insuficiência; 19. Em 29.05.2019, ao cavalo DD foram administradas substâncias medicamentosas para o tratamento de candidose equina crónica, dores abdominais e úlceras gástricas) nesse período foram administrados medicamentos ao cavalo cujos efeitos não sabemos se estão relacionados com a sintomatologia evidenciada em Agosto, não podendo descurar-se que um cavalo é um ser vivo e a aplicação de medicamentos pode surtir efeitos adversos, não obstante poder ser destinada a debelar um certo problema – como é facto notório.

Porém o nexo de causalidade entre a sintomatologia evidenciada em Agosto e o eventual problema prévio não se apresenta como demonstrado embora a autora pretenda ter um desconto no preço de aquisição do cavalo por este ter um vício relacionado com a indicada sintomatologia.

Note-se a diferença entre os factos provados relativos à sintomatologia “cólicas” e problemas nos membros, onde há uma alusão – mas não certeza – da possibilidade de as lesões no tendão flexor do membro traseiro direito serem pré-existentes à compra – conforme resulta dos factos provados:

28. Em 18.11.2019, o cavalo DD foi submetido a exame médico, na cavalariça ... em Herrsching, e apresentava lesões no tendão flexor do osso do membro traseiro direito, com cerca de 2 dedos de espessura e comprimento, e ainda distensão óssea na articulação do tornozelo do membro traseiro esquerdo.

29. As lesões existentes no tendão flexor do membro traseiro direito e, bem assim, a distensão óssea na articulação do tornozelo do membro traseiro esquerdo referidas em 28) são compatíveis com um quadro clínico pré-existente à data em que a Autora adquiriu o cavalo DD.

30. Em consequência das lesões supra referidas, o cavalo DD, durante o movimento a trote, apresentava dores nas patas traseiras e denotava manqueira.

25. Ao contrário do que diz a A., a aplicação do regime da denúncia do vício em causa - 30 dias subsequentes ao seu conhecimento, da 1.ª parte do n.º 2 do art. 916.º do Cód. Proc. Civil e prazo de 6 (seis) meses desde a compra, estabelecido no art. 916.º, nº 2, do Cód. Proc. Civil - a ser aplicado (no pressuposto de sujeição ao regime do CC) nunca dispensaria a indicada prova de que o defeito já existia antes.

Quanto a esta prova caber à A., entendemos que a conclusão resulta inequivocamente da lei:

a) Quem invoca o vício tem de provar a sua existência, por se tratar de elemento constitutivo do seu direito;

b) O exame previsto no art.º 52 do decreto de 1886 está em consonância com essa ideia – exige-se a sua realização e num prazo curto, a fim de não se poderem invocar problemas de saúde que não tivessem já alguma forma de serem detectados na data do negócio.


26. No caso dos autos não só a A. não requereu o exame previsto no Decreto de 1886, como também não provou que o cavalo tinha já um problema de saúde à data da aquisição que só se veio a revelar mais tarde e que afectava a qualidade do mesmo e a finalidade com que havia sido adquirido pela A.

É assim de concluir que as normas aplicáveis são assim as do Decreto de 1886, uma vez que o regime civil da venda de animais defeituosos encontra-se previsto no art.º 920.º do CC, onde se diz:

Ficam ressalvadas as leis especiais ou, na falta destas, os usos sobre a venda de animais defeituosos”.

Ao assim afirmar que ficam ressalvadas as regras constantes de leis especiais, o legislador remete-nos para a procura dessas mesmas leis.

É aqui que surge o Decreto de 16/12/1886.

Neste decreto encontram-se previstas regras especiais sobre a compra e venda, ou troca, de animais domésticos defeituosos (artigos 49.º a 58.º).

As normas do decreto de 1886 relevantes indicam/estatuem:

-  artigo 49.º - “são reputados vícios redibitórios e tornam resilível o contrato de compre e venda ou troca dos animais domésticos, salvo convenção em contrário estabelecida pelos contraentes, as moléstias ou defeitos seguintes:

Para os cavalos, jumentos e mulos:

a) O mormo, o laparão;

b) A imobilidade;

c) O empysema pulmonar;

d) O sybilo chronico da respiração;

e) A birra;

f) As manqueiras intermitentes devidas a moléstia antiga;

g) A fluxão periódica dos olhos;

h) As manhas, que tornem o animal improprio para os usos a que é destinado.»

(…)”.

- artigo 50.º - “Será permitida a acção de redução de preço quando, sendo pedida pelo comprador, o vendedor não preferir antes reaver o animal ou animais vendidos, restituindo o custo da venda e indemnizando o comprador pelas perdas e damnos soffidos.”;

- artigo 52.º - “Quando qualquer entender que tem fundamento para pedir a rescisão da venda ou da troca, ou a redução do preço, por vício redhibitório do animal ou animaes comprados ou trocados, terá de requerer, dentro de dez dias completos, comprehendendo o da entrega do animal, exame ou vistoria de peritos, para se averiguar o facto de que quizer deduzir o seu direito.”;

- artigo 53.º - “O exame deverá ser requerido nos termos do código de processo civil…”;

- artigo 54.º - ficou previsto que a nomeação dos peritos (um ou dois), para a realização do aludido exame ficaria a cargo do juiz, o qual nomearia um terceiro “em caso de empate”, cumprindo aos ditos peritos nomeados “verificar o estado do animal ou animaes, recolher todos os esclarecimentos uteis e afirmar, sob juramento, a sua opinião.”

E por força destas normas e do regime do CPC relativo às perícias, a solução defendida no acórdão recorrido afigura-se acertada ao dispor:

“Ora da leitura do artigo 52.º acima transcrito resulta que o exercício pelo comprador do direito, através da competente acção judicial, à redução do preço de animal adquirido fundada em alguma das moléstias descriminadas no artigo 49.º do Decreto de 1886 (vícios redibitórios), depende da realização de exame pericial feito ao animal com vista a averiguar da existência daquela(s), a requerer no prazo de dez dias (inclusive), a contar da entrega do animal ao comprador, pelo que a ausência de prova por banda deste último interessado de que requereu a realização desse exame no dito prazo preclude, ou torna impeditivo, o exercício do mencionado direito à redução do preço com base em vicio redibitório típico.”


27. Em síntese, a solução que nos parece ser consentânea com o ordenamento jurídico no seu todo é a de se impor ao comprador que pretenda invocar vícios do bem que proceda a um exame pericial do animal, em prazo curto, a fim de a partir desse meio de prova poder demonstrar que o animal já tinha um vício não compatível com o fim visado com a sua aquisição.

Na situação dos autos não foi tal exame realizado, nem pedido pela A, e muito menos nos prazos previstos na lei, ainda que pela leitura da sentença se verifique que o animal foi observado por veterinário à chegada ao destino, tendo este considerado que o animal estava de boa saúde.

Na situação dos autos, acresce ainda que: i) as cólicas não são vícios redibitórios no âmbito do Decreto de 1886; ii)  não vem demonstrado que o cavalo já padecia de problemas relevantes na data da aquisição e que tenham impedido que fosse usado para o fim para o qual foi adquirido ou que lhe tenham causado a morte; iii) não vem provado que o cavalo sofresse de um vicio “novo”, à luz do Decreto de 1886, que deva merecer a sujeição a uma aplicação analógica; iv) não vieram demonstrados usos que pudessem ser invocados como acolhedores da pretensão da A..; v) não foi requerido qualquer exame ao animal, nos termos do Decreto de 1886, seja no prazo aí previsto, seja noutro.


28. Apesar do exposto, vejamos ainda se a solução seria diversa caso fosse aplicável a Directiva de 1999 ou a lei interna que a transpôs, uma vez que os elementos indicados anteriormente sugerem dúvida da sua aplicabilidade e podem levar a questionar da oportunidade de um reenvio prejudicial para o TJUE, sobre a inclusão dos animais vivos no âmbito da aplicação da Directiva[3].


29. Regime da Diretiva 1999/44/CE

A admitir-se que o cavalo seja um bem sujeito ao regime da Directiva 1999/44/CE, desse regime decorreria o seguinte:

- o comprador teria de demonstrar que celebrou um contrato de aquisição com finalidade de “consumo” e que o cavalo foi entregue em moldes diversos do acordado – e com a lei – em termos de conformidade, nomeadamente porque teria problemas que não eram evidentes, nem foram comunicados pelo vendedor ao comprador aquando da aquisição.

Para a identificação dessas desconformidades teria o comprador o prazo de 2 anos a contar da entrega do bem, mas ainda assim teria de avisar o vendedor dos problemas surgidos no prazo de 2 meses a contar do momento em que se apercebesse da não conformidade. E se a não conformidade se evidenciasse no prazo de 6 meses a contar da entrega, presumir-se-ia que elas já existiam na data da entrega, excepto se essa presunção fosse incompatível com a natureza do bem ou com as características da falta de conformidade – art.º 5º, n.º1, 2 e 3.

Ora, os factos provados relevantes nos autos foram os seguintes:

5. Em 26.04.2019, a Autora adquiriu o cavalo de raça puro-lusitano, de nome “DD” ou “...” (de ora em diante cavalo DD), nascido em 23.04.2012, à sociedade Coudelaria de ....

6. A Autora adquiriu o cavalo DD, para cavalo de recreio, visando fins exclusivamente lúdicos.

7. O preço acordado entre a Autora e a sociedade Coudelaria de ... pela aquisição do cavalo DD foi de € 21.260,26, acrescido de IVA à taxa legalmente em vigor, no montante de € 26.150,00.

12. A Autora, em momento prévio à aquisição do cavalo DD, referiu a BB, na qualidade de sócio e representante legal da sociedade C... Unipessoal, Lda., a sua intenção de realizar um exame médico ao cavalo DD, vulgarmente designado por «exame em ato de compra».

13. Nessa sequência, BB disse à Autora que era desnecessário realizar o referido exame médico ao cavalo DD, uma vez que este detinha as qualidades adequadas à finalidade para o qual seria adquirido, para fins exclusivos de recreio.

14. A Autora não realizou qualquer exame médico ao cavalo DD no ato da compra.

15. Em 02.05.2019, o cavalo DD foi entregue à Autora na Alemanha, tendo ficado instalado numa «paddockbox», no estábulo «gut heiligenberg».

16. Nessa ocasião, o cavalo DD encontrava-se emagrecido e apresentava uma dentição degradada.

17. Em consequência da sua dentição degradada, o cavalo DD foi sujeito a tratamento médico em clínica veterinária.

18. Em 29.05.2019, o cavalo DD apresentava insuficiência de selénio, tendo recebido uma injecção para suprir tal insuficiência.

19. Em 29.05.2019, ao cavalo DD foram administradas substâncias medicamentosas para o tratamento de candidose equina crónica, dores abdominais e úlceras gástricas.

20. Em 21.06.2019 e 27.07.2019 o cavalo DD denotava uma contração e bloqueio ao nível da musculatura das costas.

21. No início de agosto de 2019, o cavalo DD apresentava sintomatologia associada a cólicas recidivas, revelando dores, comportamento apático e recusa em ingerir alimentos.

22. Nessa sequência, em 15.08.2019, o cavalo DD foi submetido a operação cirúrgica, na clínica veterinária T..., Dieben, na Alemanha, devido a um episódio de cólicas, tendo-lhe sido dada alta em 26.08.2019 com indicação para tratamento pós-operatório em ambulatório.

23. Em 25.08.2019, a Autora comunicou telefonicamente a FF, na qualidade de representante da sociedade C..., Unipessoal Lda, que o cavalo DD padecia de musculatura subdesenvolvida, candidose equina crónica, insuficiência de selénio e denotava mau estado da sua dentição e sintomatologia associada a episódios de cólicas recidivas.

24. Em 14.09.2019, o cavalo DD foi sujeito a novo internamento na clínica T..., Dieben, em consequência de sintomatologia associada a episódios de cólicas recidivas, tendo tido alta no dia 16.09.2019.

25. Em 28.09.2019, o cavalo DD foi sujeito a novo internamento, na clínica T..., Dieben, por manifestar dores relacionadas com episódio de cólicas recidivas, tendo sido submetido a nova operação cirúrgica no dia 06.10.2019 em consequência de tal quadro clínico.

26. Durante a operação realizada no dia 06.10.2019 foram identificados pontos isquémicos no cólon e no intestino delgado do cavalo DD, compatíveis com antigas infeções intestinais causadas por vermes, tendo o animal contraído tais infecções em momento prévio à sua aquisição pela Autora.

27. Em 17.09.2019, o cavalo DD apresentava-se apático, e denotava o cólon cheio e gaseificado.

28. Em 18.11.2019, o cavalo DD foi submetido a exame médico, na cavalariça ... em Herrsching, e apresentava lesões no tendão flexor do osso do membro traseiro direito, com cerca de 2 dedos de espessura e comprimento, e ainda distensão óssea na articulação do tornozelo do membro traseiro esquerdo.

29. As lesões existentes no tendão flexor do membro traseiro direito e, bem assim, a distensão óssea na articulação do tornozelo do membro traseiro esquerdo referidas em 28) são compatíveis com um quadro clínico pré-existente à data em que a Autora adquiriu o cavalo DD.

30. Em consequência das lesões supra referidas, o cavalo DD, durante o movimento a trote, apresentava dores nas patas traseiras e denotava manqueira.

32. Em 07.10.2019, a Autora enviou mensagem por correio eletrónico para EE, com o seguinte teor: «Caro Sr. BB, Eu comprei-lhe DD (...) em 1 de abril de 19. Estou com ... num estábulo de exibição com as melhores condições, conhecimento e alimentação dos cavalos. No dia 15.8.19 ele foi operado pela primeira vez em virtude das cólicas. A segunda vez ontem, em 6.10.2019. (…) O cavalo chegou aqui na Alemanha com uma úlcera gástrica, bem como podridão nos cascos. Tive que dispender muito dinheiro para reparar os dentes porque estavam em um estado desastroso. Entretanto, os custos ascendem a mais de 10.000 euros de despesas médicas. (…) foi diagnosticado com enterite linfo-plasmacellular. O Intestino delgado foi diagnosticado com enterite linfo-plasmacellular.»

34. No dia 14.03.2021, o cavalo DD foi internado de urgência na clínica T... em Dieben, devido a um novo episódio de cólica.

35. Durante o referido internamento, a sintomatologia associada às cólicas de que padecia o cavalo DD foi-se agravando, tendo-lhe sido administrada medicação para esse efeito e realizados exames a amostras fecais.

36. Em face do agravamento do estado clínico do cavalo DD, a Autora assentiu que o animal fosse submetido a eutanásia, tendo esta lhe sido administrada e, consequentemente, foi declarado o seu falecimento no dia 16.03.2021.

Não se provou:

F) Todas as lesões e patologias sofridas pelo cavalo DD desde a data da sua entrega à Autora (em 02.05.2019) deveram-se às condições em que o animal foi transportado de Portugal para a Alemanha, às condições em que foi estabulado na Alemanha, ao treino excessivo a que foi sujeito pela Autora e ainda à falta de cuidados, em particular no maneio, a que foi submetido.


29.1. E, em síntese, relevam por agora os seguintes:

Data da aquisição: 26.04.2019

Data da entrega: 02.05.2019 (mais 6 meses = 2.9.2019); mais 2 anos – 02.05.2021


29.2. Quanto à denúncia dos problemas – vigorando o prazo de 2 meses após conhecimento – encontramos o seguinte cenário:

a) problemas identificados e que estão fora do regime de tutela legal, por falta de denúncia ou denúncia atempada:

i) cavalo emagrecido - conhecida a 2.05.2019 – – não referenciado ao vendedor;

ii) cavalo com dentição em mau estado – conhecida a 2.05.2019 – referenciado ao vendedor em 25.08.2019 – tendo sido ultrapassando os dois meses após conhecimento;

iii) cavalo com insuficiência de selénio – conhecido a 29.05.2019 – – referenciado ao vendedor em 25.08.2019 tendo sido ultrapassando os dois meses após conhecimento;

iv) candidose equina crónica, dores abdominais – conhecido a 29.05.2019 – referenciado ao vendedor em 25.08.2019 tendo sido ultrapassando os dois meses após conhecimento;

v) úlceras gástricas - – conhecido a 29.05.2019 – referenciado ao vendedor quando já haviam sido ultrapassados os 6 meses após entrega (terminavam a 2/9/2019) e mais de 2 meses após conhecimento;

vi) podridão nos cascosconhecida na chegada à Alemanha - Já haviam sido ultrapassados os 6 meses após entrega (terminavam a 2/9/2019) quando a A. denunciou por escrito diversos problemas e mais de 2 meses após conhecimento;

vii) lesões no tendão flexor do osso do membro traseiro direito, com cerca de 2 dedos de espessura e comprimento, e ainda distensão óssea na articulação do tornozelo do membro traseiro esquerdo – lesões que só surgem em 18/11/2019 – não há referencias à sua denúncia, são problemas detetados mais de 6 meses após entrega.


b) problemas identificados com possível tutela:

i) uma contração e bloqueio ao nível da musculatura das costas  - conhecida a 21.06.2019 e 27.07.2019  – dentro do prazo de 2 meses se tomarmos por referencia 27.7.2019 - referenciado ao vendedor em 25.08.2019 (a Autora comunicou telefonicamente a FF, na qualidade de representante da sociedade C..., Unipessoal Lda, que o cavalo DD padecia de musculatura subdesenvolvida, candidose equina crónica, insuficiência de selénio e denotava mau estado da sua dentição e sintomatologia associada a episódios de cólicas recidivas.) – manifestada dentro do prazo de 6 meses desde entrega;

ii) sintomatologia associada a cólicas recidivas, revelando dores, comportamento apático e recusa em ingerir alimentos – conhecida em agosto de 2019 - referenciado  ao vendedor em 25.08.2019 –  não ultrapassando os dois meses após conhecimento  (a Autora comunicou telefonicamente a FF, na qualidade de representante da sociedade C..., Unipessoal Lda, que o cavalo DD padecia de musculatura subdesenvolvida, candidose equina crónica, insuficiência de selénio e denotava mau estado da sua dentição e sintomatologia associada a episódios de cólicas recidivas.) .) – manifestada dentro do prazo de 6 meses desde entrega


29.3. Considerando os problemas identificados no ponto 29.2. b), em que se admite poder haver tutela, por terem sido problemas denunciados em prazo e surgidos no prazo de 6 meses a contar da entrega, pode questionar-se se a este problemas se aplica a presunção de falta de conformidade para efeitos de aplicação do art.º 5.º, n.º3, atento o tipo de bem em causa.

E, a nosso ver, a tutela do art.º 5º não poderia aqui ser aplicável, porque:

- quanto à contração e bloqueio ao nível da musculatura das costas, à luz dos factos provados neste autos, em que nada se prova sobre poder ser problema anterior à compra, não pode ser descartada a possibilidade de ser um problema que tenha surgido ao animal já na Alemanha, fruto de tratamento que lhe tenha aí sido dado;

- quanto às cólicas recidivas, à luz dos factos provados neste autos, não é de excluir que possam ser anteriores à aquisição e apenas manifestadas depois, porquanto vem provado que:

  “26. Durante a operação realizada no dia 06.10.2019 foram identificados pontos isquémicos no cólon e no intestino delgado do cavalo DD, compatíveis com antigas infeções intestinais causadas por vermes, tendo o animal contraído tais infecções em momento prévio à sua aquisição pela Autora.”

- mas mesmo para estas cólicas não há uma prova clara no sentido de as mesmas estarem relacionadas com antigas infeções intestinais causadas por vermes – ainda que estas fossem compatíveis com infecções contraídas em momento prévio à aquisição – nexo de causalidade em falta.

Ora, o tipo de bem que está em causa (um animal vivo) permite que não se aplique a disposição presuntiva da Directiva, exigindo-se aqui a prova pelo A. de que as lesões em causa já existiam antes da sua entrega e que não estão relacionadas com o tratamento a que o animal foi sujeito pela compradora.

Não esqueçamos que solução da Directiva ao facilitar a posição do comprador na denúncia dos problemas de não conformidade não dispensou o mesmo de toda e qualquer prova da desconformidade, e mesmo na situação de presunção que estabeleceu teve uma lógica própria e compreensível pensada para bens de outro tipo que não os animais vivos. Estariam ali em causa bens corpóreos produzidos ou vendidos por um profissional, que os conheceria e teria as melhores condições para poder identificar problemas de conformidade – como vícios ou defeitos de produção, materiais defeituosos ou de qualidade inferior empregues nos seus componentes, etc – sendo o bem entregue ao vendedor para reparação ou substituição, entrega essa que lhe facultaria uma análise, se necessária pericial, para poder demonstrar ao comprador que não tinha responsabilidade no defeito identificado.

No caso dos autos, o bem transmitido não é susceptível de idêntico tratamento, nem pode ser entregue ao vendedor para essa análise até porque foi eutanasiado na Alemanha, quando estava sob domínio da compradora.


30. Vejamos agora o regime resultante do DL 67/2003, de 8 de abril, na versão vigente à data da aquisição

Relevam aqui as seguintes disposições legais:

Artigo 3.º

Entrega do bem

1 - O vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue.

2 - As faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade.

Artigo 4.º

Direitos do consumidor

1 - Em caso de falta de conformidade do bem com o contrato, o consumidor tem direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição, à redução adequada do preço ou à resolução do contrato.

2 - Tratando-se de um bem imóvel, a reparação ou a substituição devem ser realizadas dentro de um prazo razoável, tendo em conta a natureza do defeito, e tratando-se de um bem móvel, num prazo máximo de 30 dias, em ambos os casos sem grave inconveniente para o consumidor.

3 - A expressão «sem encargos», utilizada no n.º 1, reporta-se às despesas necessárias para repor o bem em conformidade com o contrato, incluindo, designadamente, as despesas de transporte, de mão-de-obra e material.

4 - Os direitos de resolução do contrato e de redução do preço podem ser exercidos mesmo que a coisa tenha perecido ou se tenha deteriorado por motivo não imputável ao comprador.

5 - O consumidor pode exercer qualquer dos direitos referidos nos números anteriores, salvo se tal se manifestar impossível ou constituir abuso de direito, nos termos gerais.

6 - Os direitos atribuídos pelo presente artigo transmitem-se a terceiro adquirente do bem.

Artigo 5.º

Prazo da garantia

1 - O consumidor pode exercer os direitos previstos no artigo anterior quando a falta de conformidade se manifestar dentro de um prazo de dois ou de cinco anos a contar da entrega do bem, consoante se trate, respectivamente, de coisa móvel ou imóvel.

2 - Tratando-se de coisa móvel usada, o prazo previsto no número anterior pode ser reduzido a um ano, por acordo das partes.
3 - (Revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio.)

4 - (Revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio.)

5 - (Revogado pelo Decreto-Lei n.º 84/2008, de 21 de Maio.)

6 - Havendo substituição do bem, o bem sucedâneo goza de um prazo de garantia de dois ou de cinco anos a contar da data da sua entrega, conforme se trate, respectivamente, de bem móvel ou imóvel.

7 - O prazo referido no n.º 1 suspende-se, a partir da data da denúncia, durante o período em que o consumidor estiver privado do uso dos bens.

Artigo 5.º-A

Prazo para exercício de direitos

1 - Os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam no termo de qualquer dos prazos referidos no artigo anterior e na ausência de denúncia da desconformidade pelo consumidor, sem prejuízo do disposto nos números seguintes.

2 - Para exercer os seus direitos, o consumidor deve denunciar ao vendedor a falta de conformidade num prazo de dois meses, caso se trate de bem móvel, ou de um ano, se se tratar de bem imóvel, a contar da data em que a tenha detectado.

3 - Caso o consumidor tenha efectuado a denúncia da desconformidade, tratando-se de bem móvel, os direitos atribuídos ao consumidor nos termos do artigo 4.º caducam decorridos dois anos a contar da data da denúncia e, tratando-se de bem imóvel, no prazo de três anos a contar desta mesma data.

4 - O prazo referido no número anterior suspende-se durante o período em que o consumidor estiver privado do uso dos bens com o objectivo de realização das operações de reparação ou substituição, bem como durante o período em que durar a tentativa de resolução extrajudicial do conflito de consumo que opõe o consumidor ao vendedor ou ao produtor, com excepção da arbitragem.

5 - A tentativa de resolução extrajudicial do litígio inicia-se com a ocorrência de um dos seguintes factos:

a) As partes acordem no sentido de submeter o conflito a mediação ou conciliação;

b) A mediação ou a conciliação seja determinada no âmbito de processo judicial;

c) Se constitua a obrigação de recorrer à mediação ou conciliação.

As indicadas disposições legais têm de ser lidas à luz da Directiva de 1999, ainda que a transposição não obedecesse a uma lógica de tutela máxima, o que permitia ao legislador interno criar soluções mais favoráveis ao consumidor do que as constantes da Directiva que estava obrigado a transpor.

Nas indicadas disposições salientamos o dever de denúncia – 2 meses (Artigo 5.º-A, n. º2) e o prazo da desconformidade (art.º 3.º, n.º2).

E porque estas normas têm de ser lidas à luz da Directiva e comportam um teor literal mínimo de adequação aos seus termos, no art.º 3º, n. º2, encontramos aqui também a ressalva do tipo de bem de em causa, o que nos leva a afirmar que:

- não seria dispensável a prova pelo comprador de que o problema denunciado tinha origem em facto anterior à aquisição do animal, prova que não poderia ser efectuada pelo vendedor sem que o cavalo lhe fosse devolvido, por falta de condições para exercer a sua defesa perante a alegação de um qualquer vício ou problema detectado no animal;

- as normas do DL interno, ainda que aparentem apontar na direcção de ser o vendedor que tem de provar o contrário, devem ser lidas de outro modo, como nos explicita JORGE MORAIS CARVALHO e MICAEL MARTINS TEIXEIRA, no estudo “DUAS PRESUNÇÕES QUE NÃO SÃO PRESUNÇÕES: A DESCONFORMIDADE NA VENDA DE BENS DE CONSUMO EM PORTUGAL”, Revista de Direito do Consumidor, 2018.

Seguindo esta interpretação, diríamos:

“Tal como na Diretiva 1999/44/CE, o diploma português de transposição consagra um sistema de presunções. No entanto, enquanto os critérios na Diretiva são formulados pela positiva, os do DL 67/2003 são formulados pela negativa.

Na formulação pela positiva, prescreve-se que, caso o bem tenha as qualidades indicadas pelo vendedor, seja adequado ao uso específico e às utilizações habitualmente dadas aos bens do mesmo tipo e apresente as qualidades e desempenho habituais nesses bens, então o mesmo é presumivelmente conforme com o contrato.

Trata-se, neste caso, de uma presunção legal, porque se determina que a ocorrência de todos os factos elencados no art. 2.º-2 da Diretiva 1999/44/CE (factos base da presunção) implica a provável conformidade do bem com o contrato, de acordo com as regras de experiência.

Assim, a presunção significa que o consumidor ainda pode provar a desconformidade do bem com o contrato, demonstrando uma causa de desconformidade cuja ocorrência se confirme apesar da verificação dos factos base da presunção. Assim, por exemplo, se o consumidor provar que não foram cumpridas as regras de que depende a introdução no mercado do bem vendido (regras relativas a segurança, proteção do ambiente, etc.), ilide a presunção de conformidade.

Na formulação pela negativa, a presunção deixa de fazer sentido enquanto presunção. Isto porque, ao verificar-se a ocorrência de uma das causas de desconformidade exclui-se a possibilidade de conformidade com o contrato, ainda que não se verifiquem todas as outras causas de desconformidade, previstas ou não na lei.

Efetivamente, a conformidade pressupõe a concorrência de várias qualidades do bem, enquanto a desconformidade se basta com a ocorrência de uma. Por outras palavras, um bem conforme é um bem que reúne um conjunto alargado de qualidades; para um bem ser desconforme basta que lhe falte apenas uma dessas qualidades. É incompatível com a qualificação do bem como conforme a verificação de qualquer uma das causas de desconformidade. É compatível com a qualificação de desconformidade a verificação de várias causas de conformidade, na medida em que existe a possibilidade de ainda se verificarem (outras) causas de desconformidade, que conduzem a essa mesma qualificação. Por hipótese, imaginemos que, em abstrato, um bem tem mil qualidades: um bem será conforme se, em concreto, tiver essas mil qualidades e desconforme se lhe faltar apenas uma delas. Na formulação pela positiva, a prova pelo profissional de cem dessas mil qualidades permite presumir a verificação das mil, ou seja, a conformidade. Na formulação pela negativa, a prova pelo consumidor da falta de uma dessas mil qualidades é suficiente para demonstrar a desconformidade.

Por esta razão, no direito português, que adota a formulação pela negativa, a verificação da desconformidade por referência aos critérios definidos afasta a possibilidade de prova em contrário, não sendo possível ao profissional provar a conformidade de um bem desconforme. Se, por exemplo, o bem não corresponder à descrição feita pelo vendedor, este nada pode alegar no sentido de que o bem é conforme com o contrato.

Portanto, o art. 2.º-2 do DL 67/2003 deve ser interpretado no sentido de não consagrar uma presunção. O facto de não estarmos perante um raciocínio indutivo baseado em regras de experiência (contrariamente ao que sucede no caso da formulação pela positiva, na qual, da verificação dos factos constantes das quatro alíneas do art. 2.º-2 da Diretiva 1999/44/CE, se induz a verificação de todos os factos dos quais resultaria a conformidade) faz com que não estejamos perante uma presunção, mas antes perante a enunciação dos factos integrantes da previsão da norma que estatui a desconformidade do bem com o contrato. A relação entre previsão e estatuição não envolve um raciocínio indutivo entre a ocorrência de um facto e a suposição da ocorrência de outro facto, mas apenas – pelo menos segundo o entendimento tradicional cuja adequação ao direito não pretendemos aqui analisar – a aplicação de uma consequência jurídica em função da prova do facto constante da previsão.

Se se tratasse de uma presunção, os factos-base dessa presunção seriam os factos indicados no art. 2.º-2 (por exemplo, a descrição feita pelo vendedor e a não correspondência do bem com essa descrição) e o facto presumido (ou facto principal) seria a desconformidade (que é, na verdade, uma qualificação jurídica e não um facto). O vendedor teria de provar, para ilidir a presunção, que, apesar de o bem não corresponder à descrição, este é conforme com o contrato. Ora, como é que o vendedor pode provar que, não correspondendo o bem à descrição que dele fez, este é conforme? É uma prova inconcebível, pois se não corresponde à descrição, a desconformidade encontra-se verificada.

A única forma que o vendedor tem de afastar a sua responsabilidade é pôr em causa a previsão normativa, ou seja, alegar, continuando no mesmo exemplo, que não fez a descrição em causa ou, tendo-a feito, que o bem a ela corresponde.

Defende-se, em sentido contrário, que “nem sempre, por exemplo, a mera discrepância com a descrição se refletirá necessariamente no desempenho efetivo do bem, pelo que é duvidoso que em todos esses casos haja necessariamente desconformidade”. Parece-nos que, face ao diploma em análise, não se pode falar em “mera discrepância” (itálico nosso), recaindo um juízo negativo sobre qualquer discrepância com a descrição. Acrescente-se que não são apenas tuteladas as desconformidades que afetem o desempenho do bem.

Assim, por exemplo, um risco não afeta o desempenho de um carro, mas o carro será desconforme com o contrato se o objeto do contrato não for um carro riscado. Note-se que a desconformidade pode resultar de um dos factos referidos nas várias alíneas da norma ou de qualquer outro facto que o consumidor consiga provar. O art. 2.º-2 do DL 67/2003 contém apenas alguns critérios para ajudar a determinar quais os elementos que integram o contrato e que, portanto, são utilizados para aferir a desconformidade, caso, em concreto, não se verifiquem.

4. Presunção de anterioridade da desconformidade?

Em comparação com a norma paralela da Diretiva 1999/44/CE (art. 5.º-3), o art. 3.º-2 do DL 67/2003 alarga o prazo da presunção de seis meses para dois anos, aumentando assim de forma significativa o nível de proteção do consumidor. Esta suposta presunção liberta o consumidor da difícil prova da existência de falta de conformidade no momento da entrega do bem, não deixando, no entanto, de ter de provar a falta de conformidade (e, naturalmente, a celebração do contrato). Se o bem (por exemplo, um computador) deixa de funcionar um ano depois da entrega, o consumidor tem de provar o defeito de funcionamento (falta de conformidade com o

contrato, uma vez que este incidia num bem que funcionasse) e, conseguindo fazer essa prova, a lei assume que esse defeito de funcionamento já existia no momento da entrega, embora apenas se tenha manifestado posteriormente. O vendedor pode ilidir a suposta presunção, provando que a falta de conformidade não existia no momento da entrega, devendo-se a facto posterior que não lhe seja imputável. O vendedor tem de provar – e não basta alegar, muito menos de forma vaga e indeterminada – o facto concreto, posterior à entrega, que gerou a falta de conformidade. Por exemplo, poderá fazer prova de que o mau funcionamento do bem

resulta de uma queda, facto que pode resultar de uma perícia ao bem, que mais facilmente pode ser efetuada por este. O principal meio utilizado pelos profissionais para ilidir esta suposta presunção consiste precisamente na prova do mau uso ou do uso incorreto do bem pelo consumidor. Note-se que o mau uso apenas pode ser invocado pelo profissional se a falta de conformidade dele resultar diretamente, não podendo servir para evitar a responsabilidade em relação a outras anomalias relativas ao bem, que não tenham conexão com o mau uso.

Não se aplica a suposta presunção se ela for incompatível com a natureza da coisa ou com as caraterísticas da falta de conformidade.

Verifica-se uma incompatibilidade com a natureza da coisa se se tratar de um bem de desgaste rápido ou sujeito a um prazo de validade. No primeiro caso, deve analisar-se qual é a validade normal dos bens daquele tipo, apenas valendo a chamada presunção durante esse período. No segundo caso, esta apenas é aplicável enquanto o prazo de validade associado ao bem não expirar. Deve notar-se que não se exclui a suposta presunção relativamente aos bens sujeitos a desgaste com a utilização, como as baterias dos telemóveis ou dos portáteis, mas neste caso apenas se deve considerar que a falta de conformidade é relevante no que respeita aos defeitos que vão além do desgaste normal do bem tendo em conta o tempo decorrido, cabendo ao profissional a prova de que, na situação concreta, está em causa um desgaste normal. Assim, a garantia de conformidade abrange todas as peças do bem, principais ou acessórias, não se limitando a uma parte ou excluindo qualquer outra do seu âmbito.

A suposta presunção é incompatível com as caraterísticas da falta de conformidade quando resultar de forma evidente que esta não se ficou a dever a circunstâncias relativas ao próprio bem e à sua utilização segundo os termos normais ou fixados pelas partes.

Assim, se o bem se incendeia, sendo certo que não está em conformidade com o contrato, uma vez que o objeto do contrato não era aquele bem queimado, as caraterísticas da falta de conformidade podem demonstrar que o incêndio se ficou a dever a um facto externo ao bem e posterior à entrega, não se aplicando a regra do art. 3.º-2. Se as caraterísticas da falta de conformidade não forem claras no sentido de que o incêndio se ficou a dever a um facto externo ao bem, apontando até no sentido de que a origem se encontra no próprio bem, mantém-se a chamada presunção da existência de falta de conformidade no momento da entrega do bem, cabendo ao vendedor provar que se deve a facto posterior que não lhe seja imputável, nomeadamente por ser imputável ao comprador ou a um terceiro.

O Ac. do TJUE, de 4/6/2015, é claro no sentido de que a regra segundo a qual se presume que a falta de conformidade existia no momento da entrega do bem se aplica “quando o consumidor faça prova de que o bem vendido não está em conformidade com o contrato e que a falta de conformidade em causa se manifestou, isto é, se revelou materialmente, num prazo de [… dois anos] a contar da entrega do bem. O consumidor não está obrigado a provar a causa dessa falta de conformidade nem que a origem da mesma é imputável ao vendedor”. Acrescenta-se que a responsabilidade “só pode ser excluída se o vendedor demonstrar cabalmente que a causa ou a origem da referida falta de conformidade reside numa circunstância ocorrida depois da entrega do bem”.

A circunstância de o bem funcionar normalmente durante algum tempo não torna, naturalmente, a falta de conformidade incompatível com a designada presunção.

Descrito o regime legal, importa verificar se o art. 3.º-2 do DL 67/2003 consagra efetivamente uma presunção.

Como já referimos, a presunção legal consiste numa inferência factual realizada pelo legislador entre um facto, cuja hipótese de ocorrência se assume (facto base da presunção), e outro facto cuja hipótese de ocorrência se infere da do primeiro, segundo as regras de experiência (facto presumido).

A doutrina e a jurisprudência têm entendido, em cumprimento do disposto no art. 344.º-1 do CC, que as presunções legais influem na distribuição do ónus da prova, invertendo-o, essencialmente, em relação à repartição que decorre do critério do art. 342.º do CC no que toca ao facto presumido. Não partilhamos, contudo, deste entendimento.

Com efeito, a aplicação das presunções legais pressupõe que já se tenha demonstrado uma base factual indiciadora, muitas vezes até fortemente indiciadora, da verificação de outro facto: o facto presumido. Por isso, em regra, ao se aplicarem as presunções legais (pressupondo, portanto, que não estavam ilididas) seria não só possível como exigível que o julgador considerasse o facto presumido como estando provado, por força da apreciação das provas segundo as regras de experiência, independentemente do que a presunção legal prescrevesse e mesmo que esta não estivesse legalmente consagrada. Como tal, não encontramos qualquer situação em que as presunções legais funcionem como forma de distribuir o ónus da prova do facto presumido: ou elas se aplicam porque o facto base ficou demonstrado e, nesse caso, o facto presumido fica, desde logo, demonstrado; ou elas não se aplicam seja porque o facto base não ficou demonstrado, caso em que a questão não se coloca, seja porque o facto alegadamente presumido se provou não ter ocorrido (elisão da presunção), caso em que este será dado como não provado. Em qualquer dos casos não se verifica o pressuposto essencial da decisão de ónus da prova: a dúvida em relação à ocorrência de um facto, neste caso ao facto, alegadamente, presumido.

Efetivamente, o disposto no art. 344.º-1 do CC, a propósito das presunções legais, afigura-se-nos impossível de aplicar.

Por isso, consideramos as presunções legais como orientações ao julgador na apreciação da prova que, inclusivamente, não implicam nada de novo relativamente à apreciação da prova que o julgador está sempre obrigado a fazer, de acordo com as regras da experiência. A sua existência apenas confere mais previsibilidade no resultado da aplicação daquelas regras, tendo o legislador optado por este mecanismo nos casos em que quis certificar-se de que o regime legal associado à qualificação de alguma coisa, ação ou pessoa em certa classe ou estado era aplicado.

Por tudo isto, poderemos concluir que as presunções legais não constituem um critério de distribuição do ónus da prova.

Ora, neste caso, a ocorrência do facto base da suposta presunção de anterioridade – o facto demonstrativo da desconformidade – não permite necessariamente induzir, com base nas regras de experiência, que esse facto já se verificava no momento da entrega do bem – facto suposta, mas erradamente presumido. Com efeito, da desconformidade não se retira necessariamente a existência do vício no momento da entrega. Por exemplo, se o automóvel vendido deixa de trabalhar, daí não se pode inferir necessariamente nem que o problema já existia no momento da entrega nem que foi provocado por algum facto posterior.

Assim, visto que não estamos perante uma presunção, como qualificar a regra constante do art. 3.º-2 do DL 67/2003?

Para responder a esta questão, vejamos então, agora, os casos de dispensa ou liberação legal do ónus da prova, referidos genericamente no art. 344.º-1 do CC. Nestes casos, ao contrário dos anteriores, não existe uma relação de verossimilhança factual entre um facto e outro, inexistência essa que, como vimos, caracteriza o caso em análise, antes consistindo em situações em que o legislador regula efetivamente, de forma casuística, a distribuição do ónus da prova.

Com efeito, uma razão surge, nos casos de dispensa ou liberação legal do ónus da prova, como sendo a que justifica essa repartição casuística do ónus da prova: a maior facilidade

relativa que a parte onerada tem de produzir a prova.

É o que se verifica neste caso, uma vez que o profissional tem mais facilidade em provar que a desconformidade não se verificava no momento da entrega do bem (versão factual cuja prova é exigida) do que o consumidor tem em provar que a mesma se verificava naquele momento (versão factual cuja prova é dispensada ou liberada). Por exemplo, como já referimos, a prova de que o mau funcionamento do bem é a consequência de uma queda pode resultar de uma perícia ao bem. Ora, o profissional está em muito melhores condições do que o consumidor para promover essa perícia. Não só tem mais conhecimentos técnicos sobre o bem, como também tem um contacto mais próximo com os factos, nomeadamente com o estado em que se encontrava o bem no momento da entrega, e com aquele de quem adquiriu o bem, nomeadamente o produtor.

Além desta razão, a distribuição casuística do ónus da prova, realizada por este caso de dispensa ou liberação, também se justifica pela finalidade de proteção do consumidor, subjacente à Diretiva 1999/44/CE e ao DL 67/2003. O DL 67/2003 vai ainda mais longe neste

objetivo de proteção do consumidor, alargando para dois anos o prazo até ao qual funciona a dispensa ou liberação do ónus da prova.”


Sintetizando, através das palavras de Blanche de Granvilliers[4]

Un cheval n’est pas une voiture, ni un immeuble ; il n’existe pas de « contrôle technique » ni d’expertise suffisamment complète qui permette à l’acheteur de lui garantir que le cheval n’aura pas de lésion postérieurement à l’achat. Si le caractère « sensible » de l’animal a droit de cité depuis peu dans le Code civil, les Juges doivent également admettre que cette matière vivante a des spécificités qui rendent délicates la transposition aux animaux des règles applicables à des biens de consommation.”

III. Decisão

Pelos fundamentos indicados, é negada a revista.

Custas pela A.


Lisboa, 7 de Março de 2023


Fátima Gomes (Relatora)

Oliveira Abreu

Nuno Pinto Oliveira, vencido, conforme declaração de voto que segue.


DECLARAÇÃO DE VOTO

Vencido. Entendo que a Directiva n.º 1999/44/CE, de 25 de Maio de 1999, e que, em transposição da Directiva, o Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, devem aplicar-se à venda de animais; que, entre as disposições do Decreto-Lei n.º 67/2003 aplicáveis à venda de animais está a presunção de anterioridade do defeito do art. 3.º, n.º 2; e que o facto de o vendedor não ter ilidido a presunção de anterioridade do defeito determinaria que devesse revogar-se o acórdão recorrido e repristinar-se a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância.

I. — Entendo, em primeiro lugar, que a Directiva n.º 1999/44/CE e, em transposição da Directiva, o Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, devem aplicar-se à venda de animais.

O autor do anteprojecto de diploma de transposição começava por afirmar que a venda de animais devia considerar-se abrangida pela Lei de Defesa do Consumidor [5] para continuar dizendo que a Directiva 1999/44 continha uma confirmação do regime legal, ao colocar os animais entre os bens móveis corpóreos no sentido do art. 2.º, n.º 2, alínea b) [6] [7].

Em consequência, a compatibilidade da interpretação preconizada no acórdão com a Directiva n.º 1999/44/CE é duvidosa — e, ainda que tal interpretação fosse compatível com a Directiva, sempre conflituaria com todos os elementos capazes de contribuir para a reconstituição da vontade real do legislador histórico resultantes dos trabalhos preparatórios da transposição. 


II. — Entendendo-se, como entendo, que  o Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, deve aplicar-se à venda de animais, o critério de decisão deveria procurar-se no art. 3.º, n.º 2:

“As faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou de cinco anos a contar da data de entrega de coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respectivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando tal for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade”.

O alcance das excepções do art. 3.º, n.º 2, in fine, não deve generalizar-se, em termos de a presunção de anterioridade do defeito não se aplicar a nenhuma venda de animais — e, não podendo generalizar-se o alcance das excepções do art. 3.º, n.º 2, in fine, sempre seria necessário que o vendedor fizesse a prova de que a presunção era incompatível com a natureza do bem, ou com a natureza da falta de conformidade.

Independentemente de não dever generalizar-se o alcance das excepções do art. ,3.º, n.º 2, in fine em termos de a presunção de anterioridade do defeito não se aplicar a nenhuma venda de animais, considero que a decisão legislativa de aplicar a presunção de anterioridade durante todo o prazo de garantia (dois anos) não deve ser deve ser derrogada, substituindo-se o prazo de dois anos do Decreto-Lei n.º 67/2003 pelo prazo de seis meses da Directiva 1999/44 [8].


III. — Entendo, em terceiro lugar, que o facto de o vendedor não ter ilidido a presunção de anterioridade do defeito determinaria que devesse revogar~se o acórdão recorrido e repristinar-se a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância.

Os defeitos do animal manifestaram-se dentro do prazo de dois anos a contar da entrega — daí que a presunção de anterioridade do defeito fizesse com que o vendedor tivesse o ónus da prova de que os defeitos do animal eram posteriores à entrega.

Em concreto, o vendedor nem fez nem a prova de nenhum facto que impedisse a aplicação da presunção nem tão-pouco a prova de nenhum facto que permitisse ilidi-la.

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[1] **Notas de rodapé:

91 CALVÃO DA SILVA, João, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, p. 85

92 PINTO MONTEIRO, António/CARDOSO GUEDES, Agostinho, Venda de animal defeituoso: parecer, in CJ, Ano XIX, t. 5, 1994, p. 5 e segs.

 93 “Na venda de animais, a garantia de defeitos é regulada por leis especiais ou, na falta desta, por costumes locais. Se mesmo estes não existirem, as regras precedentes (1490º e seguintes) são observadas.”

94 Este Decreto é, de igual forma, fortemente influenciado pelo antigo Direito Romano, como se pode verificar pela consagração das antigas actio redhibitoria e actio quanti minoris, respectivamente.

95 CALVÃO DA SILVA, João, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, pág. 88.

96 CALVÃO DA SILVA, João, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, pág. 88.

97 CALVÃO DA SILVA, João, Venda de Coisas Defeituosas, p. 89.

98 PINTO MONTEIRO, António/CARDOSO GUEDES, Agostinho, Venda de animal defeituoso, p. 5.

99 Anotação de VAZ SERRA ao Ac. STJ de 11/12/1970, RLJ, ano 104º, p. 260 e segs: “São estas conotações de carácter objectivo – mais do que o erro do comprador ou o acordo negocial das partes – que servem de real fundamento aos direitos concedidos pela lei ao comprador e que justificam, pela especial perturbação causada na economia do contrato, os desvios contidos nesta secção ao regime comum do erro sobre as qualidades da coisa”.
[2] Outras justificações podem ser apresentadas. Não se desconhece uma diferença significativa entre as directivas, consistente em “ (…) Entre a Directiva 1999/44/CE e a Directiva 2019/771/UE há uma divergência fundamental — a Directiva 1999/44/CE era uma directiva de harmonização mínima; dava aos Estados-membros da www.revistadedireitocomercial.com 2020-06-30 1233 União Europeia a faculdade de adoptarem ou de conservarem disposições mais estritas, mais rigorosas ou, simplesmente, mais favoráveis à protecção do consumidor; a Directiva 2019/771/UE é uma directiva de harmonização máxima, completa ou total, ainda que de uma harmnização completa ou total orientada” – como explica Nuno Pinto Oliveira, in https://www.revistadedireitocomercial.com/o-direito-europeu-da-compra-e-venda-20-anos-depois - p. 1233.
 Para a comparação entre as directivas cf. a bibliografia citada por Sandra Passinhas, p. 1445-6, no texto “O novo regime da compra e venda de bens de consumo – exegese do novo regime legal “, in revista de direito comercial, disponível em https://www.revistadedireitocomercial.com/o-novo-regime-da-compra-e-venda-de-bens-de-consumo - 4/12/2021.
[3] Houve oportunidade de indagar as soluções de países da Europa, no sentido de saber se aplicam a Directiva aos animais vivos e que soluções jurisprudenciais aí foram aplicadas e as respostas não foram unívocas, nem antes da nova directiva, nem no presente, após a Directiva mais recente.

Usando apenas dois exemplos:

Em frança encontramos a matéria regulada no CC e no Code rural. No CC existem as regras sobre os vícios ocultos e no code rural os vícios dedibitórios. E os tribunais têm posições contraditórias, uns aplicando o CC e outros apenas o code rural, só admitindo que se já buscar as regras do CC se as partes o tiverem previsto (expressa ou tacitamente) – uma enumeração de algumas decisões judiciais contraditórias pode ser vista em https://www.dalloz.fr/documentation/Document?id=CASS_LIEUVIDE_2015-12-09_1425910&FromId=DZ_OASIS_000501#enteteDePage.

Assim, no direito Belga: no CC os animais eram, atá há pouco tempo, considerados bens móveis, situação eu veio alterada em 2022, quando foi aprovada L 2020-02-04/16, em vigor desde 01-09-2021, e que revogou o art.º 528.º do CC.

Também até recentemente a protecção dos adquirentes consumidores estava prevista no CC, nos art.ºs 1649.º-bis e ss, sem que aí se excluísse a aplicação deste regime à aquisição dos animais.

Contudo, tendo de ser transposta a nova Directiva de protecção dos consumidores e facultando esta aos legisladores a exclusão do regime me causa dos animais vivos, por força da L2022-03-20/05, foi alterado o regime do art.º 1649.º bis do CC, introduzindo-se um §3, onde no ponto 4ª se exclui esta secção da aplicação aos contratos relativos à venda dos animais vivos.

Para uma informação sobre as normas aplicáveis na Bélgica, França, Itália, Alemanha, Aústria e Suíça, vd. “Gewährleistung beim Kauf lebender Tiere. Rechtslage in ausgewählten europäischen Staaten”, 2021 Deutscher Bundestag, WD 7 - 3000 - 033/21onde se conclui “Die kursorische Betrachtung der für Tierkäufe relevanten Regelungen in den verschiedenen Staa-ten hat ergeben, dass in Belgien, Schweden und Deutschland keine spezifischen Regelungen für Tierkäufe bestehen, während dies in Frankreich, Italien und Österreich der Fall ist. Mit Aus-nahme von Frankreich treten die speziellen, für Tierkäufe geltenden Regelungen in diesen Staa-ten jedoch insgesamt hinter die einschlägigen Vorschriften zum Verbraucherkauf zurück, soweit deren Anwendungsbereich eröffnet ist. In Frankreich gilt insoweit zwar grundsätzlich auch ein Vorrang der Vorschriften zum Verbraucherkauf, die – mit 24 Monaten besonders weit reichende – Mangelvermutung ist hiervon jedoch ausdrücklich ausgenommen, so dass sie auch bei Tierkäu-fen durch Verbraucher nicht greift. Im Ergebnis findet damit die im Verbraucherrecht fußende Mangelvermutung innerhalb der ersten sechs Monate ab Lieferung derzeit in sämtlichen betrach-teten Staaten mit Ausnahme Frankreichs auch beim Tierkauf potentiell Anwendung. Dieser Befund könnte sich im Zuge der Umsetzung der Warenkaufrichtlinie jedoch ändern: Wäh-rend Frankreich an der ohnehin bereits bestehenden Ausnahme festhält, wird in Belgien, Öster-reich und Schweden derzeit offenbar erwogen, von der Abweichungsbefugnis nach Artikel 3 Ab-satz 5 lit. b Warenkaufrichtlinie Gebrauch zu machen.” (tradução: Um exame superficial dos regulamentos relevantes para a compra de animais nos vários países mostrou que na Bélgica, Suécia e Alemanha não existem regulamentos específicos para a compra de animais, enquanto este é o caso da França, Itália e Áustria. Com exceção da França, no entanto, os regulamentos especiais aplicáveis ​​à compra de animais nesses estados ficam em segundo plano em relação aos regulamentos relevantes sobre compras de consumidores, na medida em que seu escopo de aplicação é aberto. Na França, a regulamentação sobre compras de consumidores também tem prioridade a esse respeito, mas a presunção de defeito - que é particularmente abrangente aos 24 meses - é expressamente excluída, de modo que também não se aplica às compras de animais pelos consumidores. Como resultado, a presunção de defeito com base no direito do consumidor é potencialmente aplicável nos primeiros seis meses após a entrega em todos os países considerados, com exceção da França, também na compra de animais.

No entanto, esta constatação pode mudar no decorrer da implementação da diretiva de compra de bens: enquanto a França mantém a exceção já existente, a Bélgica, a Áustria e a Suécia estão aparentemente considerando usar o poder de desvio de acordo com o artigo 3, parágrafo 5 lit. b para fazer uso da Política de Compra de Mercadorias.”

[4] Advogada especialista em animais em França, com vários textos e comentários a decisões judiciais efectuada no âmbito do direito francês (disponíveis online, nomeadamente o mais recente - https://www.degranvilliers.com/medias/org-335/shared/p08-09-10_dv1631.pdf).

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Notas de rodapé da declaração de voto:

[5] Paulo Mota Pinto, Cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda. Anteprojecto de diploma de transposição da Directiva 1999/44/CE para o direito português. Exposição de motivos e articulado, Instituto do Consumidor, Lisboa, 2002, pág. 45 (nota n.º 76) = “Anteprojecto de diploma de transposição da Directiva 1999/44/CE para o direito português. Exposição de motivos e articulado”, in: Estudos de direito do consumidor, n.º 3 — 2001, págs. 165-280, em especial na pág. 218 (nota n.º 76).

[6] Paulo Mota Pinto, Cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda, cit., págs. 45-46 = “Anteprojecto de diploma de transposição da Directiva 1999/44/CE para o direito português”, cit., págs. 218-219.

[7] A aplicação das regras sobre a venda de bens de consumo aos animais é a regra nos sistemas mais próximos, como o direito alemão, o direito francês ou o direito italiano [cf. Deutscher Bundestag. Wissenschaftliche Dienste, “Gewährleistung beim Kauf lebender Tiere. Rechtslage in ausgewählten europäischen Staaten” (2021) — disponível in: WWW: < https://www.bundestag.de/resource/blob/844326/94edfe9afbf27be8f5a6e5d87ac4579f/WD-7-033-21-pdf-data.pdf >].

[8] Entre as razões por que não deve derrogar-se a decisão legislativa está a de que o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 67/2003 dizia que a “[p]reocupação central que se procurou ter sempre em vista foi a de evitar que a transposição da directiva pudesse ter como consequência a diminuição do nível de protecção já hoje reconhecido entre nós ao consumidor” — ora, considerando que a venda de animais devia ter-se por abrangida pela Lei de Defesa do Consumidor, a interpretação preconizada no acórdão conduz a uma diminuição, e a uma diminuição grave, do nível de protecção reconhecido ao consumidor.