Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2963/17.8T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
CONTRATO DE EXPLORAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
BOA FÉ
USOS
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. A exploração de um efectivo pecuário consiste fundamentalmente na sua manutenção e frutificação e na apropriação dos ganhos daí advenientes, quer através da comercialização dos animais nascidos quer através do aumento do número de animais da manada, sendo que essa actividade pressupõe e depende da continuidade da capacidade de frutificação desse efectivo; o que quer dizer que se tem de alocar uma parte da frutificação na manutenção do efectivo, ou seja, que se tem de ir substituindo os efectivos pecuários de forma que o ‘capital produtivo’ mantenha o seu género e qualidade.

II. É nesse enquadramento e com esse sentido que haverá de entender-se a obrigação assumida de entrega da manada ‘nas mesmas condições em que a recebeu’.

III. A posição da Recorrente segundo a qual lhe era legítimo apropriar-se de todas as utilidades produzidas pela manada, à custa da sua depauperação e mesmo extinção, porque destituída de racionalidade económica e contrária aos usos honestos não pode ter acolhimento pelo direito.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA




NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE

ENTRE

A

HERDADE DE ALMADA – SOCIEDADE DE AGRICULTURA DE GRUPO, Ldª


(aqui patrocinada por AA, adv.)

Autora / Apelada / Recorrida



CONTRA

HERDADE DA QUINTA DE MANIQUE, S.A.G., Ldª


(aqui patrocinada por BB, adv.)

Ré / Apelante / Recorrente



I – Relatório

 A Autora intentou, em 25OUT2017, a presente acção pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de 85.485,00 € a título de indemnização pelo incumprimento de contrato que designaram de parceria, mas que na realidade é de cessão de exploração, entre elas celebrado, vigente entre 01MAR2009 e 28FEV2014, consistente na não entrega da manada nas mesmas condições em que a recebeu, apuradas por referência aos dados constantes do Sistema Nacional de Informação e Registo Animal (DL 142/2006, 27JUL).

A Ré contestou, qualificando o contrato como de parceria pecuária e invocando a caducidade da acção, não serem os dados do SNIRA fidedignos e não ter sido feito o apuramento da manada bem como abuso de direito. Em reconvenção pede a condenação da Autora a pagar-lhe, e em conformidade com o estipulado no referido contrato, 25.000 € de contribuição para despesas de manutenção, 20% do produto resultante de um outro contrato de parceria, bem como 35.000 € por benfeitorias que efectuou, acrescidos dos respectivos juros.

No despacho saneador foi julgada improcedente a excepção de caducidade da acção.

A final foi proferida sentença que, qualificando o contrato como de cessão de exploração agro-pecuária a que seriam aplicáveis as regras do arrendamento não habitacional das quais resultava a obrigação de restituição da coisa locada no final do contrato e que a diminuição do efectivo pecuário seria sempre imputável á Ré quer a título de risco quer a título de utilização imprudente, julgou a acção procedente condenando a Ré no pedido. Já quanto à reconvenção julgou a mesma improcedente, absolvendo a Autora do pedido reconvencional

Inconformada, apelou a Ré, invocando nulidade da sentença, erro na decisão de facto e erro de direito.

A Relação julgou improcedente a arguição de nulidade, manteve inalterado o elenco factual e, considerando que mais do que a qualificação jurídica do contrato relevava, em função da prevalência da liberdade contratual (que não é afastada na legislação do arrendamento rural, nos termos do nº 2 do art.º 1º do DL 385/88, 25OUT), a obrigação claramente definida de restituir a manada “nas mesmas condições que a recebeu”, julgou, unanimemente, a apelação improcedente.

Ainda irresignada veio a Ré interpor recurso de revista concluindo, em síntese e tanto quanto se depreende do arrazoado das suas alegação e conclusões, pela nulidade do contrato por se tratar de subarrendamento não autorizado, não poder ser responsabilizada pela perda, deterioração ou desvalorização dos animais por não ter procedido com culpa, e por ocorrer abuso de direito ao instaurar a acção 3 anos e 10 meses após o termo do contrato.

Houve contra-alegação onde se propugnou pela manutenção do decidido.

II – Da admissibilidade e objecto do recurso


A situação tributária mostra-se regularizada.

O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC).

Tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC.

Como é sabido o art.º 671º, nº 3, do CPC inviabiliza a possibilidade de revista no caso de o acórdão da Relação confirmar sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente a decisão proferida na 1ª instância.

Em face desse normativo vem sendo entendido que não descaracteriza a ‘dupla conforme’ a mera dissemelhança de fundamentação, sendo necessário que essa diferença de fundamentação seja essencial; sendo que se encontram várias formulações para caracterizar essa essencialidade (e.g., ‘que implica a mudança de qualidade ou extensão do efeito material da decisão’, ‘que assenta de modo radical ou profundamente inovatório, numa solução jurídica inovatória, que aporte preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros enunciados na sentença da 1.ª instância’), mas que se mostram insatisfatórias para objectivar, afastando significativamente a arbitrariedade, a apreciação da verificação da dupla conforme em todas as situações.

No caso dos autos ocorre identidade decisória nas instâncias fundada num tronco comum: a obrigação de entrega da coisa. Só que, enquanto a 1ª instância densifica essa obrigação através da qualificação do contrato e da aplicação das regras legais aplicáveis a esse tipo de contrato, a Relação basta-se com a específica cláusula contratual estipulada entre as partes.

Sendo que essa circunstancial diferenciação se nos afigura susceptível, como foi reconhecido no despacho de admissão do recurso na Relação, de descaracterizar a ‘dupla conforme’.

O acórdão impugnado é, assim, pela sua natureza, pelo seu conteúdo, pelo valor da causa e da respectiva sucumbência, recorrível (artigos 629º e 671º do CPC).

Mostra-se, em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, correctamente fixado o seu modo de subida (nos próprios autos) e o seu efeito (meramente devolutivo).

Destarte, o recurso merece conhecimento.

Vejamos se merece provimento.           


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Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.

Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:

- do incumprimento da obrigação de restituição;

- do abuso de direito.


III – Os factos


Das instâncias vêm fixada a seguinte factualidade:

Factos Provados

1. A autora é uma sociedade comercial por quotas cujo objecto social é a exploração agro - pecuária realizada em comum pelos sócios.

2. A ré é uma sociedade comercial por quotas cujo objecto social é a exploração agrícola e agro - pecuária em comum, incluindo atividades complementares e acessórias exclusivamente respeitantes à exploração associada ou aos produtos dela provenientes.

3. A autora tem a exploração agrícola e pecuária do prédio rústico denominado por Herdade do Almada, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz rústica sob o artigo ...4, da secção CC, com a área aproximada de 800 hectares e aqui explora, entre outras atividades, uma manada de gado bovino de sua propriedade.

4. A autora contratou os serviços de apoio à gestão da sua exploração à “L..., Lda.”, entre os anos de 2003 e 2015.

5. Datado de 1 de março de 2009, a autora, enquanto primeira outorgante, e a ré, como segunda outorgante, subscreveram o acordo vertido no documento denominado “CONTRATO DE PARCERIA”, relativo ao prédio rústico, denominado por Herdade do Almada, sito em ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz rústica da freguesia ..., sob o artigo ...4, da secção CC.

6. O acordo referido em 5 regeu-se pelas seguintes cláusulas:

Primeira: Este contrato tem o prazo de cinco anos a começar no dia 1 de março de 2009 e a terminar a 28 de fevereiro de 2014, sendo prorrogável por iguais períodos, até denúncia, a qual será comunicada obrigatoriamente com a antecedência mínima de um ano.

Segunda: O presente contrato abrange a exploração pecuária e agrícola de uma área aproximada de 800 hectares, do acima identificado prédio, mais concretamente nos seguintes termos e condições:

a) A exploração pecuária da manada existente, pertença da primeira, com as cabeças de gado a apurar em manga a realizar em data a acordar entre as partes,incluindo o comércio das novas cabeças de gado nascidas, serão por conta e a favor da
segunda, assim como serão assumidas integralmente pela segunda as responsabilidades sanitárias, administrativas e legais inerentes à referida manada. A segunda, no final
deste contrato, entregará a manada à primeira, nas mesmas condições que a recebeu;

b) Excetua-se das acima referidas obrigações relativas à manada e da responsabilidade da segunda, as despesas com veterinário, que serão por conta da primeira;

c) A segunda poderá aumentar livremente a manada existente, bem como introduzir outras raças de animais e espécies pecuárias, acautelando as quarentenas e defesas, sendo estas novas cabeças de gado sua pertença;

d) Reverterá a favor da segunda, os produtos resultantes do Contrato de Parceria da Primeira com a empresa “B...”, numa área aproximada de 40 hectares do prédio, mais concretamente 20% da produção anual.

c) Do presente contrato fica excluída a exploração florestal, a exploração cinegética, a área da parceria atrás referida, uma área de aproximada 20 hectares, com o parcelário ...01, destinada ao cultivo de morangos, e a área do pivot com 50 hectares, com os parcelários ...01, ...02 e ...03;

d) O pessoal ao serviço da propriedade e da primeira, não se incluem no presente contrato;

e) A primeira e a segunda terão livre acesso às áreas incluídos no presente contrato;

f) A segunda terá pleno usufruto dos bens móveis, pertença da primeira, nomeadamente tratores, alfaias, reboques, sistemas de regas e dos pivots existentes nas áreas abrangidas por este contrato, bens os quais encontram-se identificados na listagem anexa, correndo por sua conta as despesas relativas combustíveis, manutenções e reparações;

g) Os bens referidos no ponto anterior, serão restituídos à primeira no final do contrato, em bom estado de funcionamento;

h) Os consumos dos contratos de fornecimento de energia elétrica, titulados pela primeira cujos contadores sirvam as áreas objeto deste contrato, serão da responsabilidade da segunda, os respetivos pagamentos e taxas;

i) A exploração agrícola das áreas abrangidas por este contrato são da responsabilidade da segunda, que deverá comunicar à primeira quais as culturas adoptadas, as quais deverão respeitar as condicionantes relativas às boas práticas agrícolas e ao bem estar animal, bem como a manutenção das condições necessárias entre as quais se inclui a execução de aceiros para efeitos de atribuição de RPU (Regime de Pagamento Único);

j) Os direitos dos R.P.U. agrícolas e pecuários continuarão a favor da primeira, sendo da sua responsabilidade as respectivas candidaturas;

k) A manutenção das cercas existentes, a sua reconstrução ou reconstrução de novas será da responsabilidade da segunda, comprometendo-se a primeira com um montante até € 5 000,00 anuais, para materiais;

l) Ficará uma cópia, de todas as chaves, das fechaduras e dos cadeados existentes, nas áreas e nos bens abrangidos pelo contrato, na posse da primeira e da segunda, as quais serão restituídas à primeira, no final do presente contrato;

m) A segunda poderá utilizar todas as áreas florestais do imóvel, apenas para pastoreio;

n) A segunda terá o usufruto dos recursos hídricos e outros melhoramentos, bem como das construções identificadas, pelo levantamento fotográfico anexo;

o) O pagamento da renda do imóvel continuará exclusivamente da responsabilidade da primeira.

Terceira: O incumprimento pela segunda, das condições enumeradas, na cláusula anterior, implicará a rescisão automática do contrato de cessão de exploração, sem direito a qualquer indemnização.

Quarta: O incumprimento pela primeira, de qualquer umas das condições enumeradas na cláusula segunda, que implique à segunda manifesto impedimento à exploração dos bens e das áreas objeto deste contrato, obriga a primeira, obriga a primeira ao pagamento de uma indemnização no montante de EURO: 10 000,00 € (dez mil euros).

Quinta: Não é permitido à primeira sub - arrendar, ou ceder por qualquer forma a exploração dos bens e das áreas objecto do presente contrato.

Sexta: A rescisão unilateral deste contrato, implicará o pagamento de uma indemnização no montante de EURO: 35 000,00 € (trinta e cinco mil euros), por cada ano ainda a decorrer, até à sua conclusão, ou da sua renovação.

Sétima: Por este contrato a segunda pagará anualmente a quantia de EURO: 35 000,00 € (trinta e cinco mil euros). Esta quantia será liquidada em pagamentos trimestrais nos meses de março, junho, setembro e dezembro. Os pagamentos serão efetuados, da forma que vier a ser convencionada pelas partes sem que tenha sido feita sua sujeição a IVA, o qual também nunca foi cobrado ou pago, vide clausula sétima do contrato e documentos que se protestam juntar.

Oitava: O montante a pagar será atualizável anualmente por fator indexado à taxa de inflação.

Nona: Em tudo o que não esteja contemplado no presente contrato, regerá a legislação aplicável em vigência à altura, da verificação de qualquer facto.

Décima: O presente contrato é feito em duas vias, destinando-se uma a cada uma das partes.

Décima primeira: O imposto de selo deste contrato, da verba 8 da T.G.I.S. no montante de EURO: 5,00 € (cinco euros), será pago por guia.

7. O acordo vertido no documento denominado “CONTRATO DE PARCERIA”, identificado em 5, cessou em 28 de fevereiro de 2014.

8. No fim do ano de 2015, a autora pediu uma auditoria à manada existente.

9. No dia 1 de março de 2009 existiam na manada, objeto do acordo vertido no documento denominado “CONTRATO DE PARCERIA”, 211 (duzentos e onze) fêmeas e 7 (sete) machos com mais de um ano de idade e 88 (oitenta e oito) fêmeas e 62 (sessenta e dois) machos com menos de um ano de idade.

10. No dia 28 de fevereiro existiam na manada, objeto do acordo vertido no documento denominado “CONTRATO DE PARCERIA”, 171 (cento e setenta e um) fêmeas e 5 (cinco) machos com mais de um ano de idade e 29 (vinte e nove) fêmeas e 25 (vinte e cinco) machos com menos de um ano de idade.

11. No dia 1 de março de 2009, o valor total das fêmeas com mais de um ano de idade era de € 146 103,14 (cento e quarenta e seis mil, cento e três euros e catorze cêntimos), o valor total dos machos com mais de um ano de idade era de € 7 780,00 (sete mil e setecentos e oitenta euros), o valor total das fêmeas com menos de um ano de idade era de € 29 535,83 (vinte e nove mil, quinhentos e trinta e cinco euros e oitenta e três cêntimos) e o valor total dos machos com menos de um ano de idade era de € 20 315,00 (vinte mil e trezentos e quinze euros), existentes na manada, objeto do acordo vertido no documento denominado “CONTRATO DE PARCERIA”.

12. No dia 28 de fevereiro de 2014, o valor total das fêmeas com mais de um ano de idade era de € 87 200,00 (oitenta e sete mil e duzentos euros), o valor total dos machos com mais de um ano de idade era de € 4 000,00 (quatro mil euros), o valor total das fêmeas com menos de um ano de idade era de € 11 400,00 (onze mil e quatrocentos euros) e o valor total dos machos com menos de um ano de idade era de € 11 250,00 (onze mil e duzentos e cinquenta euros), existentes na manada, objeto do acordo vertido no documento denominado “CONTRATO DE PARCERIA”.

13. O apuramento das cabeças de gado da manada foi realizado no início e no fim da vigência do acordo referido em 5, na presença de pessoas em representação da autora e da ré.

14. Os animais foram entregues à ré pela autora, para que deles cuidasse e alimentasse, e a administração e gestão da manada cabia à ré.

15. Na vigência do acordo referido em 5, a ré procedeu ao nivelamento de terras, abertura de um furo junto ao pivot 1, esta com autorização da autora, e arranjo de pivots, nos quais despendeu importância não concretamente apurada.

16. Em contrapartida da realização do furo junto ao pivot 1, foi concedido à ré o direito de usar o terreno respetivo, com a área de 50 hectares, durante os anos de 2010, 2011 e 2012, sem qualquer custo, para aí produzir culturas.

17. Não foi entregue à ré 20% da produção anual numa área aproximada de 40 hectares do prédio porque nada tinha a receber a esse título já que a sociedade “B..., Lda.” não explorou, nem produziu nada na vigência do contrato celebrado entre autora e ré.

18. Na vigência do acordo identificado em 5 dos factos provados, a autora despendeu na manutenção de cercas a quantia total de 24 883,47.

19. Na vigência do acordo referido em 5, a ré nunca apresentou à autora para pagamento despesas com materiais para cercas.

20. A autora enviou a DD a carta de fls. 84 verso e 85, datada de 26 de março de 2009, cujo teor se dá por reproduzido.

21. Os trabalhadores da autora, EE e FF, cessaram os seus contratos de trabalho com aquela.


Factos não provados

1. Apesar do que consta da cláusula segunda, alínea a), do acordo identificado em 5 dos factos provados não foi efetuada a contagem física da manada existente na data do início de vigência do referido acordo.

2. A autora não procedeu corretamente ao registo na entidade competente dos animais que integravam a manada objeto do acordo identificado em 5 dos factos provados.

3. O nivelamento de terras, a abertura de um furo junto ao pivot 1 e o arranjo de pivots, eram necessários para os fins do contrato.

4. No identificado em 15 dos factos provados, a ré despendeu quantia não inferior a € 35 000,00.

5. A ré procedeu à manutenção das cercas existentes, à sua reconstrução e construção de novas, comprando os materiais para o efeito gastando no total € 25 000,00.


IV – O direito


Acompanhamos a Relação na consideração de serem despiciendas quaisquer considerações sobre a qualificação do contrato, designadamente enquanto de cessão de exploração agro-pecuária ou de sub-arrendamento rural, uma vez que qualquer deles sempre se haveria de reger, no que à questão em litígio concerne, pelo que, no uso legítimo da sua liberdade contratual, as partes convencionaram nas als. a) e c) da cláusula segunda do contrato que firmaram entre si.

Nem se diga que releva a possibilidade de declaração de nulidade do contrato caso este seja qualificado como de sub-arrendamento rural. É que não obstante tal vício ser do conhecimento oficioso e, consequentemente, nada obstar a que só agora a Recorrente o invoque, esse conhecimento depende de estar apurada a pertinente factualidade; o que no caso não ocorre porquanto nada foi apurado quando à existência ou não de autorização escrita do senhorio. E inda que assim não fosse, a nulidade implicaria a devolução do que havia sido prestado, valendo para a definição do conteúdo da obrigação de devolução da manada tudo quanto abaixo se explanará acerca da matéria.

No acordo celebrado entre as partes ficou estipulado poder a Ré proceder à exploração pecuária da manada da Autora, sendo por conta e a favor da Ré quer a comercialização das novas cabeças nascidas quer o aumento de efectivos dessa manada, devendo no final do contrato a manada ser entregue à Autora nas mesmas condições em que a recebeu.

A interpretação dessa cláusula haverá de ser feita atribuindo-lhe o sentido que lhe daria, em identidade circunstancial, um indivíduo avisado, honesto, prudente e sensato, assegurando o maior equilíbrio de prestações e de risco contratual (artigos 236º, 237º e 762º do CCiv).

E a esse propósito desde logo se pode afirmar não poder acolher-se o entendimento do recorrente, por ele ser contrário aos critérios de racionalidade económica aplicáveis, e consequentemente redundarem num manifesto desequilíbrio das prestações e afrontarem as exigências de diligência decorrentes da boa-fé.

A exploração de um efectivo pecuário consiste fundamentalmente na sua manutenção e frutificação e na apropriação dos ganhos daí advenientes, quer através da comercialização dos animais nascidos quer através do aumento do número de animais da manada. Mas essa actividade pressupõe e depende da continuidade da capacidade de frutificação desse efectivo, ou seja, da continuidade do género e qualidade dos efectivos. O que quer dizer que se tem de alocar uma parte da frutificação na manutenção do efectivo; ou seja que se tem de ir substituindo os efectivos pecuários de forma que o ‘capital produtivo’ mantenha o seu género e qualidade.

É nesse enquadramento e com esse sentido que haverá de entender-se a obrigação assumida de entrega da manada ‘nas mesmas condições em que a recebeu’. Sendo manifesto que tendo recebido uma manada com 211 fêmeas e 7 machos com mais de 1 ano e 88 fêmeas e 62 machos com menos de um ano não a entrega nas mesmas condições em que a recebeu se nesse momento essa mesma manada se encontra reduzida a cerca de dois terços do efectivo inicial (171 fêmeas e 5 machos com mais de 1 anos e 29 fêmeas e 25 machos com menos de 1 ano).

Ora o que a Recorrente defende é uma exploração predatória do efectivo pecuário uma vez que, apropriando-se de todas as utilidades que dele pôde retirar, à custa da depauperação e mesmo extinção desse mesmo efectivo, destituída de racionalidade económica e contrária aos usos honestos; e que não pode ter acolhimento pelo direito.


Por último não se vislumbra qualquer abuso de direito na interposição da acção decorridos 3 anos e 19 meses da cessação do contrato pela singela razão de que, conforme entendimento consolidado, o simples comportamento omissivo ainda que prolongado no tempo, desacompanhado de qualquer outro circunstancialismo, não tem a virtualidade de  gerar uma situação de confiança fundante de abuso de direito, em particular na modalidade de ‘venire contra factum proprium’.


V – Decisão


Termos em que se nega a revista confirmando a decisão recorrida.

Custas pela Recorrente.

                                                                                  

Lisboa, 13JUL2022


Rijo Ferreira (relator)

Cura Mariano

Fernando Baptista