Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
086945
Nº Convencional: JSTJ00027520
Relator: PAIS DE SOUSA
Descritores: CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
NULIDADE
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
ÓNUS DA PROVA
CONTRATO DE ADESÃO
NORMA DE INTERESSE E ORDEM PÚBLICA
NORMA IMPERATIVA
EXCLUSÃO DE RESPONSABILIDADE
Nº do Documento: SJ199506200869451
Data do Acordão: 06/20/1995
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: CJSTJ 1995 ANOIII TII PAG136
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 8133/93
Data: 06/16/1994
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR CONTRAT.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 796 N1 ARTIGO 1142 ARTIGO 1144.
DL 446/85 DE 1985/10/25 ARTIGO 21.
Sumário : São nulas as cláusulas contratuais gerais insertas em contrato-tipo de adesão que violem normas imperativas de ordem pública, designadamente, as que invertam ou alterem a distribuição do risco e as regras de repetição do ónus da prova, ou que tenham como efeito a exclusão da responsabilidade de um dos contraentes se se verificarem determinados requisitos.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

O Ministério Público intentou a seguinte acção contra a
Caixa Geral de Depósitos pedindo se julgassem nulas sete cláusulas contratuais gerais inseridas pela R. no contrato-tipo de adesão respeitante à utilização por um conjunto indeterminado de consumidores, do cartão "Multibanco" atribuído a quem, sendo titular de contas de depósito em agências da R., se disponha a outorgar aquele contrato-tipo de adesão.


Depois da contestação da R. o processo seguiu seus termos até à sentença final que julgou válidas algumas das questionadas cláusulas e nulas outras.
Inconformada, a Caixa Geral de Depósitos apelou da sentença tendo a Relação julgado parcialmente procedente o recurso, porquanto:
- manteve a decisão recorrida quanto às cláusulas 8.1 e
8.2 que considerou nulas;
- manteve a decisão recorrida quanto às cláusulas 9, 10 n. 1 e 19 que considerou nulas;
- revogou a decisão recorrida quanto às cláusulas 22 e
24, absolvendo a R. do pedido quando a elas por inutilidade parcial e superveniente da lide.
Continuando inconformada, a R. voltou a recorrer, agora de revista e para este Supremo Tribunal. E, na sua alegação de recurso, concluiu o seguinte:
- As cláusulas contratuais gerais com os ns. 9, 10.1 e
19 são válidas e permitidas, por não violarem qualquer preceito legal imperativo.

- Ao decretá-las nulas, o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 405 do Código Civil, que permite a sua estipulação.
- Deve, pois, revogar-se o acórdão recorrido e mandar prosseguir a acção para prova do alegado no artigo 46 da contestação.
Contra alegou o Ministério Público no sentido de ser negada a revista.
Corridos os vistos, cumpre decidir.
Para decidir têm de se considerar os factos que se passam a expor e dados por assentes pela Relação.
1 - A R. (Caixa Geral de Depósitos) celebra com os seus clientes, titulares de contas de depósito em qualquer das suas agências ou dependências, contratos de emissão e utilização do cartão "Caixautomática/Multibanco" cujas cláusulas foram por ela celebradas de antemão, e constam preenchidas em impressos que são apresentados aos candidatos à obtenção do referido cartão, os quais se limitam a preencher, em espaços em branco a isso destinados, a sua identidade, residência e telefone, o número e a agência da conta bancária a cuja movimentação o cartão se destina, o sexo e ano de nascimento, o nível máximo de estudos que concluiu ou frequentou e a sua situação profissional e a assinatura, conjuntamente com outros eventuais titulares da conta, o mesmo contrato.
2 - A cláusula 9 do mesmo contrato-tipo é do seguinte teor:
"Provando o titular o extravio, furto ou roubo do cartão e a inexistência de culpa da sua parte, quer na guarda do cartão, quer na inviolabilidade do PIN corre, ainda assim, por sua conta o risco de utilização do cartão por terceiro, sendo da sua responsabilidade todas as operações realizadas até ao termo do prazo referido no número seguinte.
3 - A cláusula 10.1, dispõe:
"Recebida a comunicação, a C.G.D. impedirá a movimentação através do cartão extraviado ou furtado da conta a ele vinculada. No entanto, o risco de utilização indevida ocorrerá por conta do titular nas 48 horas seguintes".
4 - Na cláusula 19 estabelece-se:
"O titular e a C.G.D. acordam em que o registo informático das operações realizadas susceptível de ser reproduzido em papel constitui prova bastante das ordens de transferência dadas e dos levantamentos efectuados através da utilização do cartão".

Não se afiguram dispiciendas, antes pelo contrário, as considerações de carácter geral feitas no acórdão recorrido, no sentido de esclarecer os interesses que o
Estado procura proteger, através das novas leis que visam regular situações actuais, fruto de uma rápida evolução social e do progresso tecnológico.
Perante uma industrialização crescente ocorre a massificação das relações industriais e negociais, daí surgirem os contratos de adesão. Mas com a natural superioridade económica dos produtos em relação aos consumidores finais (débeis e atomizados), aqueles procuram limitar ou excluir a sua responsabilidade civil por possíveis danos causados com a utilização pelo público dos seus produtos, muitas vezes novos e mal testados. Daí surgirem nesses contratos de adesão, cláusulas gerais a limitar ou excluir tal responsabilidade. O que faz emergir uma questão. É que, dizem os produtores, tais regras negociais, não deixam de ser o reflexo do princípio da liberdade contratual, expressa no artigo 405, do Código Civil.
Todavia, objecta-se, não existe uma fase verdadeiramente negocial, o que acarreta para muitas cláusulas contratuais a desconfiança das pessoas, porque, com frequência, desfavorecem a parte mais débil
(v. Pinto Monteiro in "Cláusulas Limitativas e de exclusão da responsabilidade civil", 1. edição páginas
71, 72 a 77 e 343). Assim, face à limitada eficácia, das poucas e dispersas normas que, nos contratos singulares obstam aos efeitos danosos de tais cláusulas e dos princípios básicos que presidem obrigatoriamente ao direito obrigacional (v.g. boa-fé e ordem pública), concluiu-se ser necessário estabelecer um regime legal uniforme para as cláusulas abstractas e gerais que povoavam os contratos-tipo, para permitir um controlo jurisdicional global. O que se concretizou com a publicação do Decreto-Lei n. 446/85, de 25 de Outubro.

Como se atravessa uma fase em que a defesa do consumidor surge como uma das principais preocupações do legislador actual, concorda-se com o acórdão recorrido ao enunciar que as cláusulas aqui em apreço devem ser julgadas pelos princípios atrás expressos.
No que respeita às questionadas cláusulas 9 e 10, n. 1, atrás transcritas, a 1. instância considerou-as nulas, porque invertiam e alteravam a distribuição do risco, daí infringirem o disposto no artigo 21, alínea f), do citado Decreto-Lei n. 446/85.
A Relação confirmou esta decisão, ao julgar que as ditas cláusulas violam normas imperativas de ordem pública. E justificou o porquê desse seu julgamento. O que não é aceite pela recorrente, pois na sua alegação de recurso insiste nos seus argumentos iniciais, sem que, no essencial, traga algo de novo.
Em suma, entende a C.G.D. que a emissão do cartão de crédito e consequente levantamento feito pelo cliente depositante, reveste a natureza de um contrato inominado, pelo que tudo se passa como se o dinheiro depositado pelo titular do cartão esteja num cofre que pode ser movimentado à vontade, tanto pelo depositante, como pelo banco, únicos possuidores da respectiva chave. Daqui resulta que o titular do cartão de crédito tem sempre o seu dinheiro à sua disposição, que pode levantar sem interferência de ninguém, inclusive dos seus funcionários. Deste modo, conclui a Caixa Geral de
Depósitos, o cliente, titular do cartão, continua a suportar o risco respectivo, dado que o dinheiro nunca se tornou propriedade dela C.G.D., nos termos do artigo
1144, do Código Civil. O que só poderá acontecer no caso do cliente devolver o cartão.

Mas os efeitos da devolução, por razões de ordem administrativa e burocrática, só se projectam no sistema de funcionamento bancário, 48 horas depois.
Daí, fundamentalmente, a razão de ser da questionada cláusula 10 n.1.


Os argumentos da C.G.D. não convencem pelo que em nada afectam, nesta parte, o que decidiu o acórdão recorrido.
É inquestionável que se está em presença de um depósito bancário, mas pouco interessando, em 1. via, a sua caracterização jurídica. Porque também é certo que, no caso "sub iudice", o depositante confia à guarda da
C.G.D. o dinheiro que depositou, mas não renuncia a reavê-lo através do respectivo levantamento. Todavia, não se opõe a que a C.G.D. utilize esse dinheiro no seu giro comercial. O que significa que não deixa de haver um empréstimo, um mútuo do depositante ao banco. Tanto assim, que é a própria C.G.D. a afirmar que pode dispor do dinheiro depositado e a admitir que o restitui em género e não em espécie. Portanto, não tem lugar a figura que a recorrente invoca de, só ela e o cliente terem acesso ao dinheiro com chaves idênticas. Só que a
C.G.D. não restitui ao cliente exactamente as mesmas notas que ele lhe confiou no acto do depósito, por ser manifesto que não se trata, aqui, da guarda de valores não fungíveis, num cofre. Trata-se de depósito em dinheiro, como bem fungível, que a C.G.D. pode dispor e se obriga a restituir em género, nas condições acordadas com o depositante. Em nada interessando, também para o caso, que a restituição possa ser feita através dos balcões das agências, ou de um sistema mecânico, sem interferência de funcionários.

Desta maneira, sob o ponto de vista legal, vê-se que,
"in casu", o depósito do dinheiro dá lugar à obrigação genérica de restituir, não estando o devedor impossibilitado de cumprir enquanto mantiver o género
(v. artigos 539 e 540, do Código Civil). Por outro lado estipula o artigo 1142 do Código Civil que mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade. Nesta conformidade, tem necessariamente de se chegar ao determinado no artigo 1144, também do
Código Civil, ou seja, que as coisas mutuadas se tornam propriedade do mutuário pelo facto da entrega.
Por conseguinte, não assiste razão à C.G.D. ao não admitir que o dinheiro assim depositado se torna sua propriedade. Pois, como muito acertadamente se refere no acórdão recorrido, a ser verídica a tese defendida pela C.G.D. impossibilitava-a de movimentar os dinheiros dos seus depositantes no seu giro comercial e financeiro. De contrário, estaria a dispor de algo que não lhe pertencia e de que não detinha o domínio.

Crê-se, ainda, que jamais a C.G.D. admitirá a hipótese de não devolver aos seus depositantes o dinheiro depositado, se for vítima de um ou mais assaltos bancários. Doutro modo, ter-se-ia de concluir que o risco de um qualquer assalto bancário corre a cargo do depositante, o que a C.G.D. parece não admitir.
Seja como for, julga-se que, efectuados os depósitos em causa, a C.G.D. passou a ser proprietária do respectivo dinheiro e, enquanto não for levantado, suporta o risco inerente ao seu domínio sobre o mesmo, conforme dispõe o n. 1, do artigo 796, do Código Civil.
Deste modo mantém-se o que foi decidido no acórdão recorrido quanto à nulidade da cláusula 9 e da sua não utilização pela C.G.D., nos seus contratos-tipos de adesão a outorgar com os seus clientes.
Também se julga inaceitável a justificação dada pela recorrente para se considerar válida a questionada cláusula 10.1. Jamais o cliente depositante pode ser responsabilizado pelo risco em apreço, nas 48 horas seguintes à devolução do cartão, por razões burocrático-administrativas da C.G.D.. É que não se vê fundamento legal para considerar trespassada a dita responsabilidade, da C.G.D. para o cliente, mercê do funcionamento do sistema por ela criado e de que é a primeira e grande beneficiária.
Concluindo, não há nenhum motivo para se julgar válida a cláusula 10.1, pelo que se mantém o decidido nas instâncias, sem necessidade de qualquer averiguação factual.
No que respeita à cláusula 19, o acórdão recorrido julgou-a nula porque, invertendo o ónus da prova, tornava excessivamente oneroso o exercício do direito pelo titular do cartão de crédito e porque a prova dos levantamentos e pagamentos competia ao emissor do cartão.

A nulidade da cláusula foi confirmada pela Relação mas a recorrente pretende agora minimizar os argumentos invocados no acórdão recorrido alegando, em essência, que não são possíveis as ilações nele tiradas. É o que se passa a ver e decidir.
Recorda-se que a cláusula em análise expressa que:
"O registo informático das operações realizadas susceptível de ser reproduzido em papel constitui prova bastante das ordens de transferência dadas e dos levantamentos efectuados através da utilização do cartão".
Segundo Antunes Varela (in Manual de Processo Civil, 2. edição páginas 471/473), quando qualquer meio de prova não dotado de força especial atribuída por lei, crie no espírito do julgador a convicção da existência de um facto, diz-se que foi feita prova bastante - ou que há prova suficiente - desse facto. Definição que parece ser geralmente aceite.
Sendo assim, é evidente que a C.G.D., em vez de ter de provar a correcção das suas operações, apresentando os necessários elementos de prova, pretende dar como assente, logo à partida, que o registo informático do seu sistema interno, constitui prova bastante.
Consequentemente, teriam de ser os particulares que se lhe opõem, a ter de neutralizar tal prova. O que contraria, nitidamente, os princípios legais da repartição do ónus da prova (v. artigo 342 e seguintes do Código Civil), visto competir à C.G.D. fazer a demonstração do acerto das operações que invoca, através dos meios probatórios de que possa dispor, nos quais se inclui o questionado registo informático.
Como bem refere o acórdão recorrido e realça o
Ministério Público na sua contra-alegação de recurso, a dita cláusula 19, constitui uma valoração antecipada de um meio de prova (o registo informático), o que viola o princípio irrenunciável da livre apreciação do julgador. E também cria, de forma implícita, uma presunção "iuris tantum", ao remeter para o particular a iniciativa de prova que, por lei, caberia à C.G.D..
Pode também ver-se, por outra via, que a cláusula em questão viola certas regras, claramente de ordem pública, atinentes ao valor probatório dos documentos.
Porque emitido pela C.G.D., o registo informático constitui um documento particular (v. artigos 362, 363, ns. 1 e 2 e 373 do Código Civil). Ora os documentos particulares são apreciados livremente pelo julgador, a não ser que façam prova plena nos termos do artigo 376, ainda do Código Civil, ou seja, estar reconhecida a sua autoria. Só que a força probatória plena do documento particular funciona contra o seu autor em termos idênticos aos da confissão (v. artigo 376, n. 2, do
Código Civil), isto é, os factos consideram-se provados documentalmente na medida em que sejam contrários ao interesse do declarante mas a sua declaração não é divisível, tal como a declaração confessória (v. artigo
360 do Código Civil).

Todavia, mercê da cláusula 19, o registo informático funciona probatoriamente a favor da autora do documento e não contra ela, pois força o cliente a aceitar a prova por ela elaborada e a admitir as declarações que a favorecem. E como tal registo faz prova bastante, terão de ser os clientes da C.G.D. a neutralizá-la. Por outras palavras, a cláusula 19 permite que a Caixa Geral Depósitos construa documentalmente a prova que a favorece, em caso de conflito de interesses, em detrimento dos particulares, violando o disposto no artigo 21, alínea e) do Decreto-Lei n. 446/85 de 25 de Outubro, que proíbe as cláusulas contratuais gerais que alterem as regras respeitantes ao ónus da prova. Deste modo, também aqui se mantém a decisão do acórdão recorrido no referente à cláusula 19 e de sua não utilização pela C.G.D. nos seus contratos-tipos de adesão a outorgar com os seus clientes.

Nestes termos decide-se negar a revista.
Sem custas.
Lisboa, 20 de Junho de 1995.
Pais de Sousa.
Santos Monteiro.
Pereira Cardigos.