Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
17697/18.8T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
CONFISSÃO DE DÍVIDA
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONTRADIÇÃO INSANÁVEL
MATÉRIA DE FACTO
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 05/13/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Decisão Texto Integral:


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível.



I – RELATÓRIO


Externato O Lar da Criança instaurou acção declarativa comum contra AA, BB e CC.

Pede que os RR sejam condenados a reconhecer a existência do crédito da autora sobre a herança deixada por DD, no valor total de €135.762,63 e a ver satisfeito esse crédito pelos bens da herança.


Alegou, em síntese:

- DD era mãe dos réus,

- foi sempre gerente da autora desde a sua constituição,

- e até 2006 procedia com regularidade a levantamentos e/ou utilização de quantias existentes no caixa da sociedade para seu uso pessoal;

- as quantias assim retiradas eram substituídas por “vales de caixa”;

- quando decidiu assumir formalmente a dívida, que já era muito elevada, foram para esse efeito formalizados dois empréstimos em reuniões da assembleia geral da autora, um no valor de 112.000 € em 08/11/2004 e outro no valor de 40.000 € em 16/11/2006,

- tendo aquela declarado ter recebido da autora esses valores conforme recibos que se juntam como doc. 10 e 11;

- apenas foi paga parte da dívida à autora, continuando credora da quantia de 135.762,63 € que deverá ser paga pela herança.


*


Apenas contestaram o 1º réu e a 2ª ré, separadamente, pugnando pela improcedência da acção e invocando, em resumo:

- a sociedade não emprestou/não entregou qualquer quantia à sua mãe,

- sendo falsas as declarações constantes desses documentos 10 e 11;

- todo esse expediente foi um meio de regularização contabilística de saídas não justificadas de dinheiro do caixa da sociedade.


*


Realizada a audiência final, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente, absolvendo os réus do pedido.

*


Inconformada, apelou a autora, vindo a Relação a proferir Acórdão, no qual decidiu julgar procedente a apelação, “revogando-se a sentença recorrida e condenando os apelados a reconhecerem o crédito da apelante sobre a herança no valor de 135.762,63 € e a ser satisfeito pelos bens da herança.”.


Inconformados, recorreram o Réu AA e a Ré BB, apresentando as pertinentes alegações que rematam com as seguintes

CONCLUSÕES

I. DO RÉU AA

A. O presente processo é a decorrência do processo de Inventário por óbito da Senhora D. DD, uma vez que, no âmbito daquele processo, estando claro entre as Partes o facto de não terem sido realizados quaisquer fluxos financeiros da Autora a favor da falecida DD em virtude das deliberações de mútuo das Assembleias Geral de 8 de Novembro de 2004 (ata n.º 20) e de 2 de Novembro de 2006 (ata n.º 26), o 1º e 2ª Réus nunca aceitaram que por detrás das referidas deliberações de 2004 e 2006 tenha ocorrido um qualquer empréstimo (ou formalização de empréstimo) da Autora à falecida DD;

B. E foi esta discórdia, no seio do processo de Inventário, que deu lugar à presente ação intentada pela Autora com a “protecção” da própria 3ª Ré;

C. Face ao valor do acervo da herança deixada pela Senhora D. DD, bastante inferior ao valor das supostas dívidas, o resultado para os recorrentes é o de não receberem um tostão da herança – ou sejam com esta manobra os recorrentes são, na prática, deserdados sem se ter verificado uma das justificações presentes no artigo 2166.º do Código Civil, verificando-se assim um verdadeiro caso de fraude à lei;

D. O Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de que se recorre padece de várias nulidades graves que tornam, de certa forma, a decisão dificilmente apreensível, uma vez que os fundamentos do Acórdão da Relação de Lisboa de que se recorre estão (i) em oposição com a própria decisão, (ii) em contradição entre si ou (iii) verifica-se a ausência de fundamentação de facto que suporte a decisão, pelo que a decisão é nula por força da alínea c) do n.º do artigo 674.º que remete para a alínea c) do n.º do artigo 615.º, ambos do Código do Processo Civil;

E. 1ª Nulidade: Fazendo referência às deliberações melhor identificadas em A. o Tribunal da Relação de Lisboa afirma que: “Além disso, aquelas deliberações não espelham a realidade, pois é a própria sociedade que esclarece que nenhuma quantia foi entregue à sócia gerente na sequência e em execução delas” e que “É incontroverso que em 10/11/2004 e 30/11/2006 não foram entregues à sócia gerente as quantias de 112.000 € e 40.000 €.” (sublinhado e negrito nosso);

F. A Autora também refere que nenhuma quantia foi entregue pela Autora em execução das deliberações de 2004 e 2006, tratando-se as deliberações de formalizações em virtude do alegado facto da Senhora D. DD ter já recebido tais quantias na sequência de vários levantamentos realizados no caixa da sociedade Autora;

G. Esta realidade invocada pela Autora está espelhada no facto b) do elenco dos factos não provados: “Que, ao longo dos anos em que a falecida DD geriu a Autora, aquela procedesse, com regularidade e até 2006, a levantamentos e/ou utilização de montantes existentes na caixa da sociedade para uso pessoal, que só parcialmente reembolsou, faltando reembolsar a quantia de € 135.762,63.”;

H. No entanto, o facto de o Tribunal da Relação ter dado como provado que a Senhora D. DD apôs pelo seu punho a sua assinatura nos documentos “recibos” juntos na Petição Inicial como Doc. 10 e 11 não pode ter o efeito de dar como provado – por não corresponder à letra da declaração – que os putativos empréstimos tenham sido recebidos nas condições referidas especificamente no facto não provado constante da alínea b) (cf. G.);

I. Pelo que, se resulta evidente que a Senhora D. DD não recebeu qualquer quantia em execução das referidas deliberações, então o Tribunal a quo teria de dar como provado o facto b) dos factos não provados;

J. No entanto, o Tribunal não só não considerou tal facto provado como refere expressamente que quanto à alínea b), inexiste confissão, pelo que se decide manter como não provada essa factualidade;

K. Ora, esta afirmação está absolutamente correcta, mas, no entanto, está em contradição com a decisão que afirma que as declarações contidas nos recibos são confissões de dívida que fazem prova plena, pois das duas uma: ou a falecida DD receberia as quantias em virtude das deliberações – caso em que o Tribunal a quo confirmou que não aconteceu – ou a falecida DD receberia as referias quantias em virtude dos vários levantamentos ocorridos até 2006 – facto que o Tribunal a quo deu como não provado;

L. Afinal de contas onde se “encontra” o facto jurídico constitutivo da alegada dívida de DD?;

M. 2ª Nulidade. O Tribunal de 1º instância deu como não provado o facto a) que dispõe o seguinte: a) Que a Autora tivesse entregado a DD as quantias de € 112.000,00 e de € 40.000,00 referidas, respectivamente, em 7 e 8 dos factos provados;

N. Com efeito, na sua fundamentação, e confirmando o entendimento da 1ª Instância, o Acórdão de que se recorre refere mesmo que: “Além disso, aquelas deliberações não espelham a realidade” cf. resulta melhor do vertido na alínea E.;

O. Não obstante tais asserções, o mesmo Tribunal decide “eliminar a alínea a) do ponto «IV - Factos não provados» da sentença recorrida”;

P. É que retirar o facto a) do ponto «IV - Factos não provados» da sentença recorrida» é absolutamente contraditório com a afirmação de que os mútuos a que se refere o facto a) inexistiram;

Q. Se inexistiram os mútuos então está não provado o facto a) – pois este “facto” afirma que os mútuos existiram – e, se assim é, este não pode ser retirado do elenco dos factos não provados;

R. Ademais, apesar do Tribunal a quo referir que as deliberações de concessão de mútuo “não espelham a realidade” por ser “incontroverso” que as quantias referidas nas deliberações não foram entregues à sócia gerente, o mesmo Tribunal refere ainda assim que “à data da deliberação de 08/11/2004 o contrato de mútuo de valor superior a 20.000 € só era válido se fosse celebrado por escritura pública (cfr art. 1143º na redacção do DL 343/98 de 06/11)” (etc.) e, como tal, por existir inobservância da forma legal, “a nulidade tem como consequência a obrigação de restituição de tudo o que tiver sido prestado”;

S. Ora, salvo o devido respeito, que é muito, esta passagem do Acórdão é contraditória relativamente à anterior afirmação de que os mútuos deliberados em 08/11/2004 e 16/11/2006 são inexistentes – não “espelham a realidade” –, por não se ter verificada a traditio da quantia mutuada;

T. Assim, não há sustentação factual nem jurídica para se mencionar a restituição de tudo o que tiver sido prestado, em razão da nulidade provocada pela falta de forma (escritura pública) – quando é o próprio Tribunal que refere que os mútuos, em resultado das referidas deliberações, inexistem!

U. Fica assim patente a contradição entre os fundamentos invocados, bem como a oposição entre os fundamentos e a decisão de retirar o facto a) do elenco dos factos não provados;

V. 3ª Nulidade: Consta do douto Acórdão a quo o seguinte: “Portanto, para poderem aproveitar-se da confissão da apelante de que nenhum dinheiro entregou a DD em execução das deliberações, teriam os apelados de aceitar como verdadeiro que as deliberações foram tomadas nas referidas circunstâncias. Só assim não seria se os apelados provassem que tal não é verdade, ou seja, que DD não era devedora de tais quantias e por isso inexistia razão para as deliberações. Mas da ponderação dos documentos e depoimentos das testemunhas não é evidente que DD não ficou devedora da sociedade por ter utilizado dinheiro desta para fins pessoais num total de 152.000 €.”;

W. Em V. o Tribunal da Relação de Lisboa “dá a entender” que ocorreu uma aceitação da confissão por parte do Réu AA: mas não refere nunca de onde resulta a referida aceitação da invocada confissão judicial da Autora, que, efetivamente, nunca ocorreu;

X. Não resulta, em nenhum lado, a existência de uma aceitação de confissão – que resultasse, por exemplo, dos articulados iniciais, da fase de produção de prova em julgamento ou da frase de recurso –, o que determina que o mesmo carece de fundamentação, porque não foi indicado o facto “processual” subjacente a tal putativa aceitação da confissão;

Y. Por estas razões que se acabam de elencar o Acórdão de que recorre é nulo;

Z. Impugnação da Matéria de Direito | Da Confissão Judicial da Autora: – Entende o Tribunal que a Autora fez uma “confissão judicial complexa” e que os 1.º e 2.ª Réus terão aceitado o facto que lhe é favorável (desfavorável à Autora);

AA. Esse facto desfavorável consubstanciava-se na invocação pela Autora de que não ocorreu qualquer fluxo financeiro da Autora para a Senhora D. DD respeitante às deliberações de 2004 e 2006 e respetivos recibos com declaração do recebimento dos valores nas atas indicados;

BB. E, em virtude dessa aceitação e por se tratar de uma “confissão complexa” (artigo 360.º do Código Civil), terão também os mesmos Réus aceitado os factos que, na confissão, são favoráveis à Autora – ou seja “que as deliberações a que os recibos respeitam destinaram-se a regularizar contabilisticamente as dívidas daquela para com a sociedade”;

CC. Com efeito, o Tribunal a quo não identificou, no âmbito do processo, uma qualquer demonstração de aceitação pelos 1.º e 2.ª Réus da confissão da Autora, sendo certo que, efetivamente, os referidos Réus não aceitaram tal confissão de facto “desfavorável” – o que desde já justifica a nulidade do Acórdão, conforme se viu;

DD. A propósito veja-se o que refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 472/15.9T8VRL.G1.S1, datado de 16-06-2018, sobre a forma como se deve proceder à aceitação da confissão da contraparte: “a contraparte tem que fazer menção concreta, individualizada, do facto que aceita, não bastando, para esse efeito, aceitação genérica” (…) “A aceitação tem de ser expressa, tem que ser feita conhecer no processo, pois que somente o que é expresso é que pode possuir especificação” (…);

EE. Ou seja: para haver aceitação de uma confissão tem de haver uma declaração, expressa e inequívoca, da vontade de se aproveitar de determinado facto confessado – o que não aconteceu no presente processo: não só não houve declaração de aceitação, como nenhum dos Réus tirou proveito de tal alegação da Autora;

FF. E a realidade é que os referidos Réus já haviam demonstrado e provado – por si e sem auxílio da Autora – que inexistiram quantias mutuadas em resultado das deliberações de 2004 e 2006, pelo que o Réu não tirou absolutamente nenhum proveito processual de tal putativa confissão;

GG. Para além do mais, o facto que se deu a conhecer com a putativa confissão já era do conhecimento do Réu AA antes mesmo da propositura da presente acção – aliás foi precisamente por não se ter achado na contabilidade da Autora a traditio da coisa mutuada que os ora herdeiros nunca reconheceram, em sede de inventário, a putativa dívida e, foi, aliás, por essa mesma razão que a Autora intentou a presente acção, pedindo que os Réus (herdeiros) reconheçam a putativa dívida!;

HH. Tanto assim é que o Réu AA refere na sua Contestação – artigo 81 –– Também a Senhora Dra. EE, revisora oficial de contas elaborou, a pedido do réu AA, um relatório de análise às contas da sociedade junto ao processo de inventário, do qual resulta também a conclusão que tais pagamentos – de distribuições de resultados e empréstimos – não ocorreram – doc. 13.”;

II. Ora, o referido relatório na posse do 1ª Réu – datado de 20 de Dezembro de 2012 –, junto neste processo, assinado pela Sociedade J……. & Associados, SROC LDA.., denominado “Análise Às Contas” 2002 a 2011, confirma essa mesma realidade, ou seja, que não existiu qualquer exfluxo financeiro da Autora para a Senhora D. DD;

JJ. Com efeito, a Sentença da 1º instância, na sua fundamentação, para justificar a razão pela qual dá por não provado o facto de que nenhuma quantia foi entregue pela Autora à falecida Senhora D. DD na sequência e em execução dessas deliberações de 2004 e 2006 (facto não provado a)), serve-se da prova produzida nesse sentido pelo Réu AA;

KK. Pelo que é por de mais evidente que não se pode falar de aceitação de uma qualquer confissão da Autora: em primeiro lugar, porque essa putativa confissão jamais foi aceite, em segundo lugar, porque nem sequer essa poderia alguma fez beneficiar o Réu AA;

LL. Como tal, ao contrário do que indica o Tribunal a quo, não se verificou qualquer inversão do ónus da prova relativamente aos factos que acompanhavam a confissão e, como tal, não cabia ao Réu provar que DD não ficou devedora da sociedade por ter utilizado dinheiro desta para fins pessoais num total de 152.000 € – embora, de resto, esse facto tivesse sido dado como não provado (facto b) dos factos não provados), pelo que o resultado é o mesmo;

MM. Não havendo inversão do ónus da prova, caberia sim à Autora provar a alínea b) dos factos não provados que referia que ao longo dos anos em que a falecida DD geriu a Autora, aquela procedesse, com regularidade e até 2006, a levantamentos e/ou utilização de montantes existentes na caixa da sociedade para uso pessoal, que só parcialmente reembolsou, faltando reembolsar a quantia de € 135.762,63;

NN. O que, apesar de estar onerada com essa prova, não se verificou de forma alguma, na medida em que nem sequer foram invocados indícios de prova, como bem indicou o Tribunal da 1º Instância e o Tribunal a quo, dado que o facto foi – e bem – dado como não provado, o que já foi confirmado pelo Tribunal da Relação;

OO. Em conclusão, não podem os 1.º e 2.ª Réus serem condenados a reconhecer uma dívida em virtude de se ter “provado plenamente” determinados factos que a Relação de Lisboa disse estarem provados, visto que tal decisão do Tribunal a quo é manifestamente errada por não estar sequer sustentada na actividade processual dos Réus e por violar deliberadamente o princípio que dispõe que àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado (artigo 342.º do Código Civil), sendo certo que o próprio facto que o Tribunal a quo diz ter sido confessado foi ainda assim dado como não provado;

PP. Ainda que se entenda que existiu confissão – e a respectiva aceitação –, o que não se concede de forma alguma, sempre se dirá o seguinte;

QQ. O princípio da indivisibilidade da confissão, vertido no artigo 360.º do Código Civil, aplica-se aos casos em que um confessor confessa um facto desfavorável, mas que na mesma confissão faz acompanhar outros factos ou circunstâncias que lhe são favoráveis;

RR. Ora, o artigo em análise refere apenas que a parte que dela (confissão) quiser aproveitar-se como prova plena tem de aceitar também como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias, salvo se provar a sua inexactidão;

SS. Os 1.º e 2.ª Réus sempre impugnaram a factualidade que acompanhava a putativa confissão, pois nunca aceitaram a existência de levantamentos do caixa da sociedade e ainda mais que esses inexistentes levantamentos eram empréstimos da sociedade à falecida Senhora D. DD;

TT. Por isso, o Réu não só produziu prova no sentido da inexactidão dos factos que acompanham a confissão, como logrou provar que esses factos não se verificaram;

UU. Tanto assim é que o Tribunal da 1º Instância – bem como a Relação – deram como não provado “Que, ao longo dos anos em que a falecida DD geriu a Autora, aquela procedesse, com regularidade e até 2006, a levantamentos e/ou utilização de montantes existentes na caixa da sociedade para uso pessoal, que só parcialmente reembolsou, faltando reembolsar a quantia de € 135.762,63”;

VV. Sendo estas as tais circunstâncias que acompanhavam o facto “confessado”, também não se pode verifica qualquer “prova plena” de um facto que afinal foi dado como não provado, pelo que o Tribunal a quo violou o artigo 360.º do Código Civil ao descorar precisamente o facto do 1º e 2ª Réus terem provado a inexactidão dos factos que acompanhavam a putativa “confissão aceite” – isso caso se entenda que existiu uma qualquer aceitação de confissão, que como vimos não existiu;

WW. Pelo que andou mal o Tribunal da Relação de Lisboa ao referir que “Para poderem aproveitar-se da confissão da apelante de que nenhum dinheiro entregou a DD em execução das deliberações, teriam os apelados de aceitar como verdadeiro que as deliberações foram tomadas nas referidas circunstâncias. Só assim não seria se os apelados que tal não é verdade, ou seja, que DD não era devedora de tais quantias e por isso inexistia razão para as deliberações. Mas da ponderação dos documentos e depoimentos das testemunhas não é evidente que DD não ficou devedora da sociedade por ter utilizado dinheiro desta para fins pessoais num total de 152.000 €.”;

XX. É que independentemente da parte a quem impendia o ónus de provar que a Senhora D. DD não levantou quaisquer montantes existentes na caixa da sociedade para uso pessoal, a verdade é que tal facto foi dado como não provado e, por maioria de razão, também não pode ser agora dado como provado, apenas porque se considerava que era ao Réu que caberia provar a referida inexistência de levantamentos, sendo certo que – pasme-se – a Relação manteve este facto como não provado;

YY. Da Confissão de Dívida vertida nos Recibos de Quitação: Consta da fundamentação do Tribunal a quo o seguinte: “II - Os recibos assinados pela sócia contendo a declaração de que recebeu da sociedade as quantias ali indicadas como empréstimo de acordo com as deliberações dos sócios constituem declarações confessórias de dívida com força probatória plena.III - A prova legal plena só pode ser contrariada por meio de prova que mostre não ser verdadeiro o facto que dela for objecto. (…) Por isso, cada recibo não é um negócio jurídico unilateral de reconhecimento de dívida, mas sim, confissão de dívida resultante do recebimento do dinheiro por empréstimo conforme deliberado pelos sócios;

ZZ. São mencionados os artigos 358.º, n.º 2 e 347.º do Código Civil;

AAA. Ora, salvo o devido respeito, não se compreende que, perante a factualidade provada, se possa alcançar tais conclusões de direito;

BBB. Dispõe o artigo 1142.º do CC que Mútuo é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade;

CCC. Ora, como se vê, um contrato de mútuo só tem existência na ordem jurídica se se verificar a entrega da coisa mutuada;

DDD. No presente caso, como já se viu e ficou provado, é incontroverso que das deliberações de conceção de mútuo da Autora em favor da falecida Senhora D. DD não se verificou qualquer entrega da coisa mutuada;

EEE. Os putativos mútuos são assim nulos por falta de objecto, nos termos do artigo 280.º do Código Civil, porque a coisa não foi mutuada;

FFF. Ora, se assim é, ou seja, se inexiste o mútuo que é a causa de pedir da Autora, então os pretensos recibos de quitação – que remetem precisamente para um mútuo que inexiste na ordem jurídica e que referem expressamente que se recebeu determinada quantia em virtude de um mútuo que não existiu – de nada valem, pois as declarações neles vertidos não são verdadeiras;

GGG. Os mútuos deliberados são também nulos por simulados, e também por isso a suposta “confissão de dívida” da Senhora D. DD de nada vale;

HHH. Dispõe o artigo 240.º do Código Civil que se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado;

III. Como bem se refere no douto Acórdão a quo, “além disso, aquelas deliberações não espelham a realidade, pois é a própria sociedade que esclarece que nenhuma quantia foi entregue à sócia gerente na sequência e em execução delas”;

JJJ. Portanto, os “recibos de quitação” – que o Tribunal da Relação afirma tratar-se de confissão de dívida resultante do recebimento do dinheiro por empréstimo conforme deliberado pelos sócios – onde a sua autora afirma ter recebido determinadas quantias contêm declarações simuladas (não são verdadeiras);

KKK. Ora, de acordo com a alínea c) do artigo 354.º do Código Civil a confissão não faz prova contra o confitente se o facto confessado for notoriamente inexistente;

LLL. Portanto, dúvidas não restam que os “recibos”, por si só, não podem fazer prova de factos que inexistiram, pelo que se impugna a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa;

MMM. Não obstante a clarividência da argumentação até aqui exposta, refere o Tribunal a quo que a própria Autora refere que DD já tinha recebido tais quantias e que as deliberações a que os recibos respeitam destinaram-se a regularizar contabilisticamente as dívidas daquela para com a sociedade. Foi essa também a explicação dada pela testemunha FF;

NNN. Ora, salvo melhor opinião, os recibos de quitação passados pela falecida DD também não podem, em caso algum, provar uma realidade substancialmente diferente de a que é relatada nos próprios recibos – aliás realidade diferente apenas invocada pela parte interessada Autora;

OOO. Este entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa, que afirma que afinal a confissão da falecida Senhora D. DD se reporta a factos que não constam na referida putativa “declaração confessória”, uma vez que, apesar de não ter a mínima correspondência com a declaração da autora DD, ainda assim se reportariam a anteriores dívidas contraídas pela mesma, não colhe por diversas razões;

PPP. Não colhe porque, de acordo com n.º 1 do artigo 376.º do Código Civil, o documento particular cuja autoria seja reconhecida nos termos dos artigos antecedentes faz prova plena quanto às declarações atribuídas ao seu autor, sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento e, de acordo com o n.º 2 do artigo 376.º do Código Civil, os factos compreendidos na declaração consideram-se provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante, sendo a declaração indivisível;

QQQ. Ou seja: só se consideram provados os factos prejudiciais que estejam compreendidos na declaração atribuída ao autor;

RRR. Entenda-se: ao autor da declaração, neste caso DD;

SSS. E o que está compreendido na declaração da falecida Senhora D. DD vertida nos recibos de quitação é que a mesma é devedora – por ter recebido de empréstimo – das quantias concedidas em virtude de determinadas deliberações da Assembleia Geral da ora Autora;

TTT. O que consta na putativa declaração confessória é apenas isso;

UUU. Não consta, nem nunca constará, da referida declaração que a falecida DD é devedora perante a Autora, em virtude de ter levantado diversas quantias do caixa da sociedade até ao ano de 2006! – aliás é o próprio Tribunal da Relação que nesse ponto refere que inexiste confissão…;

VVV. E, relembre-se, não interessa o que a Autora tenha “confessado”/interpretado a seu favor vários anos após os simulados documentos terem sido assinados por uma terceira pessoa, importa apenas saber o que “confessou” a autora da declaração, DD, na data em que assinou a sua declaração;

WWW. Pelo que não há qualquer prova plena que possa resultar de uma confissão que versa sobre factos que não ocorreram!;

XXX. É que são os próprios recibos de quitação que referem que “Recebi do Externato O Lar da Criança, Lda, (…), como empréstimo, a quantia de € 112.000,00 (Cento e doze mil euros), de acordo com o deliberado na Acta nº 20, de 8/11/2004»”.

YYY. E o que foi deliberado foi a concessão de um mútuo que afinal inexiste…;

ZZZ. Veja-se o Acórdão supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 08A3665, datado de 09-12-2008: “A força probatória do documento particular circunscreve-se no âmbito das declarações (de ciência ou de vontade) que nela constam como feitas pelo respectivo subscritor”;

AAAA. Daqui se conclui que os forjados “recibos de quitação” estão dependentes do facto jurídico constitutivo que são os concretos “mútuos” concedido em 2004 e 2006 pela sociedade. Mas esses mútuos, está visto, não se consumaram;

BBBB. Aliás, sendo nulo o mútuo por falta de objecto (artigo 280.º do Código Civil), ou seja, por não se ter consumado o mútuo, irremediavelmente está prejudicada a putativa confissão de dívida da falecida D. Senhora D. DD;

CCCC. Aliás, a força probatória plena que poderia emergir da declaração confessória da falecida Senhora D. DD é abalada pelo reconhecimento, pela própria “mutuante”, logo na Petição Inicial, de uma realidade factual substancialmente diversa da que resultava do teor das deliberações e do teor dos recibos de quitação;

DDDD. Em bom rigor, a Autora despreza o conteúdo das deliberações e dos recibos de quitação, na medida em que alicerça a sua pretensão nos alegados e não demonstrados “sucessivos empréstimos” de que desconhecemos o valor ou quaisquer outras circunstâncias;

EEEE. E a verdade é que a própria Autora não conseguiu sequer provar apenas um levantamento do caixa da sociedade e, como ficou patente, a contabilidade da sociedade nunca reflectiu qualquer divida (antes de 2006) que pudesse existir na conta corrente da falecida sócia Senhora D. DD, nem tampouco os “vales de caixa” que a Autora afirma terem existido foram levados ao processo;

FFFF. A este propósito veja-se o seguinte Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 6933/04.8YYLSB-C.L1.S1, datado de 12-01-2012: 2. Reconhecido pelo credor, nos articulados, que certa escritura, aparentemente constitutiva de um mútuo, continha afinal um mero acto recognitivo das dívidas emergentes de anteriores e informais empréstimos, consubstanciados em documentos particulares juntos e logo impugnados pela contraparte - e que serão, desde logo, nulos na medida em que não hajam respeitado as exigências de forma

impostas pelo art.1143º do CC – incumbe-lhe fazer prova da autoria e genuinidade de tais documentos e de que na base deles esteve a efectiva entrega ao mutuário das quantias pecuniárias neles mencionadas;

GGGG. Assim, confessado pela Autora, e provado pelos 1.º e 2.ª Réus, que o facto constitutivo do empréstimo invocado não era, afinal, os actos expressamente documentados pelas deliberações e “recibos de quitação”, mas antes outros e anteriores negócios jurídicos, não provados, de nada serve a declaração confessória, pois invoca um facto jurídico que inexiste;

HHHH. Caberia então à Autora provar o facto b) dado como não provado, ou seja, provar que, ao longo dos anos em que a falecida DD geriu a Autora, aquela procedesse, com regularidade e até 2006, a levantamentos e/ou utilização de montantes existentes na caixa da sociedade para uso pessoal, que só parcialmente reembolsou, faltando reembolsar a quantia de € 135.762,63 – o que não foi feito!

IIII. Mais, destes anteriores a empréstimos de alegados levantamentos do caixa da sociedade por parte da Senhora D. DD inexiste qualquer confissão de dívida! – como bem refere o Tribunal a quo na penúltima página do Acórdão.

JJJJ. Aliás, mais uma vez em termos contraditórios, no Acórdão de que se recorre afirma-se que “por isso, cada recibo não é um negócio jurídico unilateral de reconhecimento de dívida, mas sim, confissão de dívida resultante do recebimento do dinheiro por empréstimo conforme deliberado pelos sócios”, ou seja, conforme a deliberação dos sócios e não conforme qualquer outra factualidade neste processo invocada pela Autora;

KKKK. Pelo que, ao entender-se que os recibos de quitação assinados pela Senhora D. DD fazem prova plena de que recebeu determinadas quantias, estar-se-ia a fazer uma muitíssima errada e desadequada interpretação do artigo 376.º do Código Civil;

LLLL. Ainda que assim não se considere, e se entenda que, face aos argumentos até aqui expostos, os “recibos de quitação” fazem prova plena contra o Réu AA e a 2ª Ré, o que não se concede de forma alguma, sempre se dirá o seguinte:

MMMM. De acordo com o artigo 242.º do Código Civil a nulidade da simulação pode também ser invocada pelos herdeiros legitimários que pretendam agir em vida do autor da sucessão contra os negócios por ele simuladamente feitos com o intuito de os prejudicar.

NNNN. De acordo com a jurisprudência do Supremo Tribunal, processo n.º 2964/05.9TBSTS.P1.S1, datado de 04-05-2010: “Isto significa que, mesmo após a abertura da herança, têm, obviamente, os herdeiros legitimários, legitimidade para invocar a nulidade de negócios simulados que se traduzam em prejuízo da respectiva legítima, ainda que não com esse intuito. (…)

Observa Carvalho Fernandes: (…) Mas não é de excluir, embora seja corrente colocar os herdeiros na mesma posição do simulador poderem eles ser tratados como terceiros, enquanto visam satisfazer interesses específicos da sua posição de herdeiros que seriam afectados pela subsistência da simulação, particularmente sendo essa a situação dos herdeiros legitimários quanto está em causa a defesa da sua legítima” (sublinhado e negrito nosso);

OOOO. Ora, como decorre das observações de Carvalho Fernandes, os 1.º e 2.ª Réus, deverão ser considerados terceiros em relação à simulação perpetrada com as supostas “confissões de dívida”, uma vez que, com esta demanda da Autora – e como já ficou bem explicado na introdução a este recurso – este acordo simulatório tem a virtuosidade de, na prática, deserdar os 1.º e 2.ª Réus;

PPPP. O facto de os 1.º e 2.ª Réus serem considerados terceiros em relação ao pacto simulatório referente às putativas “confissões de dívida”, significa também que as mesmas “confissões de dívida” não podem ser invocadas como provas plenas pelo Tribunal a quo, uma vez que a prova plena só pode ser invocada pelo declaratário contra o declarante;

QQQQ. Neste sentido veja-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 04B2302, datado de 13-07-2004: “I- O documento particular, ainda que reconhecida a sua autoria, só pode ser invocado como prova plena pelo declaratário contra o declarante. II- Nas relações com terceiros a declaração constante do documento particular, apenas vale como elemento de prova a apreciar livremente pelo tribunal.”;

RRRR. Assim sendo, já não se aplicam ao presente caso o n.º 2 do artigo 358.º nem o n.º

1 e 2 do artigo 376.º ambos do Código Civil, não existindo, portanto, prova plena face à invocação de uma putativa “confissão de dívida”;

SSSS. Pelos referidos motivos, caberia à Autora o ónus de provar que foram realizados por DD levantamentos do caixa a título de empréstimos, o que não foi feito – pois este facto b) do elenco dos factos não provados foi dado como não provado;

TTTT. Por conseguinte, tendo presente as regras do ónus da prova, previsto no artigo 342.º do Código Civil, ficou claro que a Autora não logrou provar a existência de um direito de crédito que alegou: pelo contrário, a Autora reforçou que os mútuos deliberados em 2004 e 2006 eram nulos por simulados (são apenas uma ficção) e também não logrou provar quaisquer levantamentos feitos pela falecida Senhora D. DD junto do caixa da sociedade.


Nestes termos, deverá ser o presente recurso de revista julgado totalmente procedente, por provado, devendo, como tal, ser o Acórdão de Relação de Lisboa revogado e substituído por outro que julgue a ação totalmente improcedente, por não provado o direito alegado pela

Autora, fazendo-se a necessária

JUSTIÇA!!


II. DA RÉ BB

A. O acórdão recorrido reconhece que é incontroverso que os factos a que se reportam as actas e os recibos de Novembro de 2004 e de Novembro de 2006 – empréstimos e subsequentes entregas em dinheiro – não ocorreram, como a Autora confessa.

B. Todavia, ao abrigo de uma singular interpretação efectuada ao regime do art. 360.º do CC, o acórdão conclui que os RR. não se podem aproveitar dessa declaração confessória, razão pela qual são condenados a pagar as quantias que DD declarou ter recebido em 10/11/2004 e em 30/11/2006, mas que o Tribunal sabe que é incontroverso que não recebeu, nos termos que os recibos atestam.

C. Quando o formalismo jurídico conduz a uma conclusão tão absurda, é porque o silogismo judiciário perverteu o sentido da lógica, do bom senso e da justiça, o que não pode ser aceite e mantido.

D. Em primeiro lugar, o artigo 360.º do CC não é aplicável ao caso dos autos, porque a conclusão de que é incontroverso que DD não recebeu as quantias tituladas pelos recibos em apreço não resulta só da declaração confessória, mas também da avaliação da restante prova efectuada pelo Tribunal, designadamente as ilações que retirou acerca da inexistência (sem justificação) de vales de caixa, do teor das actas, das declarações do TOC da empresa e do relatório do ROC, tudo como consta do excerto do acórdão supra transcrito, devidamente sublinhado na parte mais relevante.

E. Em segundo lugar, porque, mesmo que só tivéssemos a declaração confessória – e não é verdade que assim seja –, a indivisibilidade da confissão não existiria no caso dos autos, uma vez que foi a própria A. que se propôs fazer a prova da verdadeira origem da suposta dívida de DD, o que não logrou fazer.

F. Em terceiro lugar, porque mesmo que desconsiderássemos a declaração confessória, a verdade é que nunca se poderia condenar os RR. com base no argumento de que as declarações contidas nos recibos subscritos por DD são, por si, confissões de dívida que fariam prova plena, porque, nos termos do art. 354.º, c), do CC, tais confissões nunca poderiam fazer prova contra a confitente, uma vez que os factos confessados são notoriamente inexistentes, como a própria Relação reconhece.

G. Em quarto lugar, e em termos incontornáveis, porque, reconhecido como está, pelo Tribunal da Relação, que os contratos de mútuo reportados pelas actas de 10/11/2004 e de 30/11/2006 são nulos, os quais só seriam válidos se tivessem sido celebrados por escritura pública – nulidade que a Relação declarou oficiosamente –, nunca se poderia seguir a conclusão de que caberia aos RR. a obrigação de restituir tudo o que tivesse sido prestado, em decorrência do regime do art. 289.º, n.º 1, do CC, uma vez que não está feita a prova de que as quantias mencionadas nos recibos foram alguma vez recebidas por DD.

H. É que tais recibos não valem como confissão do recebimento das quantias em apreço, não havendo prova válida de que tais quantias tenham sido recebidas, como resulta do art. 364.º, do CC.

I. Aplicando esse regime do art. 364.º do CC ao caso dos autos, é evidente que a suposta confissão constante dos recibos – a qual se reporta a supostos contratos de mútuo que teriam sido celebrados em assembleias gerais – não pode servir para prova de que as quantias mutuadas foram recebidas, uma vez que essa confissão teria de constar de documento com força probatória igual ou superior ao da escritura pública exigida para aquela declaração negocial, o que, como é sabido, não se verifica.

J. Finalmente, no contexto dos autos – em que é incontroverso que: i) os empréstimos não tiveram lugar e que as quantias não foram pagas a DD nos termos constantes dos recibos em apreço; ii) a Autora não logrou provar que, ao longo dos anos, a falecida DD tivesse procedido a levantamentos ou utilizações de montantes existentes na caixa da sociedade para uso pessoal; iii) nenhum vale de caixa foi junto aos autos, nem a Autora deu justificação para não o fazer, não tendo sido discriminadas as quantias que alegadamente teriam sido retiradas da caixa –, viola os ditames da boa-fé que a Autora se venha prevalecer de uns recibos que ela bem sabe que não reportam factualidade verdadeira para ver satisfeito um crédito que ela sabe não existir, pelo que esse exercício sempre consubstanciaria uma situação de abuso de direito, nos termos do art. 334.º, do CC, razão pela qual o pedido sempre deveria improceder com esse fundamento.

K. Pelo exposto, o acórdão recorrido aplicou erroneamente à situação dos autos os artigos 360.º, 289.º e 342.º do CC, não aplicando ainda, como devia, o regime dos artigos 354.º, al. c), 364.º e 334.º do CC, nos termos supra expostos, razão pela qual deve ser revogado, repristinando-se a sentença da 1.ª instância que absolveu os RR..


Termos em que o recurso merece provimento, revogando-se o acórdão da Relação e repristinando-se a sentença de absolvição da 1.ª instância, com as legais consequências.

Contra-alegou o EXTERNATO O LAR DA CRIANÇA, LDA., Autora/Recorrida.

Conclusos os autos, foram os mesmos à conferência para apreciação das nulidades arguidas pelo recorrente AA, ali se decidindo pela sua não verificação, mantendo-se o acórdão nos seus precisos termos.


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


*

II – Delimitação do objecto do recurso

Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), as questões a suscitadas nas revistas são:


A. REVISTA INTERPOSTA PELO RÉU AA

1ª - Nulidades da sentença, por: 1. oposição entre os fundamentos e a decisão; 2. contradição entre os próprios fundamentos do acórdão; 3. ausência de fundamentação factual que suporte a decisão.

2.ª – Se não houve aceitação pelos réus do facto que na confissão da Autora lhe é (à Autora) favorável e desfavorável aos Réus (“que as deliberações a que os recibos respeitam destinaram-se a regularizar contabilisticamente as dívidas daquela para com a sociedade”).

3ª – Se não cabia ao réu a prova da factualidade aludida na al. b) dos factos não provados.

4ª – Se não tem aqui aplicação o princípio da indivisibilidade da confissão, por não se poder verificar qualquer “prova plena” de um facto que foi dado como não provado, e, sendo assim, se foi violado o artº 360º do CC.

5ª- Se os deliberados mútuos são nulos por falta de objecto e se, como tal, de nada valem os pretensos recibos de quitação (a confissão de dívida ali plasmada).

6ª – Se os deliberados mútuos são simulados e, também por isso, a “confissão de dívida” constante dos “recibos” assinados pela DD nada prova.  

7ª - Se os 1º e 2º RR são terceiros em relação a tal simulação das “confissões de dívida” e, sendo-o, se tais “confissões de dívida” não podem ser invocadas como prova plena contra eles.

8ª- Se os recibos de quitação passados pela DD não podem provar ou reportar-se a uma realidade diferente de que neles é relatada – ou seja, se a força probatória de tais documentos (recibos) tem de se circunscrever no âmbito das declarações que neles constam como feitos pelo respectivo subscritor, tendo o tribunal recorrido, feito errada interpretação e aplicação do artº 376º do CC.

9ª – Se, caso os “recibos de quitação” assinados pela DD se reportem a empréstimos diferentes dos mencionados nas “actas” neles aludidas, incumbe ao credor (à Autora) provar que na base deles esteve a efectiva entrega àquela mutuária de tais quantias pecuniárias.

10ª – Se, atento o referido nas anteriores questões, não se aplicam ao presente caso o n.º 2 do artigo 358.º e o n.º 1 e 2 do artigo 376.º, ambos do Código Civil.


B. REVISTA INTERPOSTA PELA RÉ BB

1ª.   Se não tem aplicação ao caso dos autos do regime do artigo 360.º do Código Civil;

2ª. Inexistência da indivisibilidade da confissão;

3ª.  Inexistência de confissão de dívida por parte da DD, por aplicação do regime do artigo 354.º, alínea c), do Código Civil;

4ª.   Nulidade dos mútuos reportados pelas actas de 10.11.2004 e de 30.11.2006, não podendo o tribunal a quo ter concluído que os Recorridos teriam de devolver à Recorrida, ao abrigo do disposto no artigo 289.º, n.º 1, do Código Civil, qualquer quantia.

5ª. Se os recibos assinados pela BB não valem como confissão de dívida.

6ª. Se a Autora, ao vir prevalecer-se dos recibos assinados pela BB, actua em abuso de direito.


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III – FUNDAMENTAÇÃO


III. 1. MATÉRIA DE FACTO PROVADA E NÃO PROVADA

A) Factos dados como provados na sentença recorrida:

1. No dia 5 de Outubro de 2011, faleceu, na freguesia ..., concelho …, DD, no estado de viúva, natural da freguesia ..., concelho…, com última residência habitual na Rua …, n.º …, …,  …, ….

2. A falecida foi casada, no regime da separação de bens, com GG, pré-falecido.

3. Os RR. são filhos de DD e de GG.

4. A falecida deixou testamento nos termos que constam do documento junto de fls. 12v a 14, testamento esse do qual consta:

“(…) Nomeia testamenteiro o Senhor D. HH, (…) para os fins previstos na alínea b) do artigo 2326º do Código Civil e ainda para os demais especificamente referidos (…)

Nomeia igualmente testamenteira, mas para os fins previstos na alínea a) e c) do artigo 2326º do C. Civil, que ao primeiro não competirão, a sua filha CC, sem retribuição (…)”.

5. Por Procedimento Simplificado de Habilitação de Herdeiros lavrado em 15 de Dezembro de 2011, na Conservatória do Registo Civil ..., foram habilitados como herdeiros de DD os RR., que aceitaram a herança da mesma.

6. A Autora tem como objecto a exploração de um colégio com externato.

7. Consta da Ata Número Vinte da sociedade Autora:

“Aos oito dias do mês de Novembro de dois mil e quatro, pelas nove horas, reuniu a Assembleia Geral, em sessão extraordinária, da sociedade comercial por quotas Externato O Lar da Criança, Lda, (…) com a seguinte ordem de trabalhos:

Empréstimo à sócia DD Estiveram presentes nesta sessão os sócios DD com uma quota de nove mil e trezentos euros, GG, com uma quota de quinhentos euros e CC com uma quota de duzentos euros, representando assim a totalidade do capital social.

Depois de discutido e deliberado o assunto constante da ordem de trabalhos, foi deliberado por unanimidade a sociedade conceder um empréstimo no valor de cento e doze mil euros à sócia DD.

Mais foi deliberado que este empréstimo não vence quaisquer juros. Foi ainda deliberado por unanimidade que o reembolso deste empréstimo será efetuado, se for possível, quando houver distribuição de resultados (…)”

8. Consta da Ata Número Vinte e seis da sociedade A.:

“Aos dezasseis dias do mês de Novembro de dois mil e seis, pelas nove horas, reuniu a Assembleia Geral, em sessão extraordinária, da sociedade comercial por quotas Externato O Lar da Criança, Lda, (…) com a seguinte ordem de trabalhos:

Empréstimo à sócia DD Estiveram presentes nesta sessão os sócios CC, com duas quotas, uma de valor nominal de € 17.000,00 (dezassete mil euros) e outra de € 200,00 (duzentos euros) e DD com uma quota de € 9.300,00 (nove mil e trezentos euros), representando noventa e oito por cento do capital social.

Depois de discutido e analisado o assunto constante da ordem de trabalhos, foi deliberado por unanimidade a sociedade conceder um empréstimo, no valor de € 40.000,00 (quarenta mil euros), à sócia DD.

Mais foi deliberado que este empréstimo não vence quaisquer juros e que o seu reembolso será efetuado quando a referida sócia tenha disponibilidade para o fazer (…)

B) Factos dados como não provados na sentença recorrida:

a) Que a Autora tivesse entregado a DD as quantias de € 112.000,00 e de € 40.000,00 referidas, respectivamente, em 7 e 8 dos factos provados.

b) Que, ao longo dos anos em que a falecida DD geriu a Autora, aquela procedesse, com regularidade e até 2006, a levantamentos e/ou utilização de montantes existentes na caixa da sociedade para uso pessoal, que só parcialmente reembolsou, faltando reembolsar a quantia de € 135.762,63.

C) “Ao abrigo do disposto nos art. 663º nº 2 e 607º nº 4 do CPC”, considerou a Relação também provado que:

9 - DD apôs pelo seu punho a sua assinatura no documento 10 junto com a petição inicial, intitulado «Recibo» datado de 10 de Novembro de 2004, em que está escrito:

«Recebi do Externato O Lar da Criança, Lda, (…), como empréstimo, a quantia de € 112.000,00 (Cento e doze mil euros), de acordo com o deliberado na Acta nº 20, de 8/11/2004».

10 - DD apôs pelo seu punho a sua assinatura no documento 11 junto com a petição inicial, intitulado «Recibo», datado de 30 de Novembro de 2006, em que está escrito:

«Recebi do Externato O Lar da Criança, Lda, (…), como empréstimo, a quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros), de acordo com o deliberado na Acta nº 20…, de 8/11/2004».

D) E, na sequência da impugnação da decisão da matéria de facto, a Relação decidiu, ainda:

- eliminar a alínea a)” dos factos considerados na sentença como não provados da sentença.

- E, outrossim, que “Quanto à alínea b), inexiste confissão, pelo que se decide manter como não provada essa factualidade.”.


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III. 2. Do mérito da Revista

Como é sabido, a intervenção deste Supremo Tribunal, no que tange à matéria de facto, está balizada pelo estatuído nos arts. 674º, nº  3 e 682º, nº3, do CPC.

Reza o artº 682º, nº 1 do CPC que aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o STJ aplica definivamente o regime jurídico que julgue adequado. Acrescentando o nº 2 que a decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excepcional previsto no nº 3 do artº 674º.

O nº 3 do mesmo artº 682º, porém, dispõe que os autos voltam ao tribunal recorrido, designadamente, “quando o Supremo Tribunal de Justiça entenda que ocorram contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito[1].

É o que se passa no caso sub judice.

Com efeito, lendo a decisão recorrida, facilmente se destacam ali contradições sobre matéria de factual essencial para a preciação do mérito, contradições essas que sem serem sanadas não permitem uma apreciação segura das questões suscitadas nas Revistas, elencadas supra.

E é claro que este Tribunal de Revista não pode apreciar as questões de mérito suscitadas nas alegações sem que a matéria de facto assente seja pacífica.


*


Vejamos o essencial das contradições existentes nos autos e que se impõe sejam sanadas.

Os presentes autos têm como base ou suporte factual (causa de pedir) alegados empréstimos, documentados em dois recibos assinados pelo punho da mutuária, falecida Dª DD (docs. nºs 10 e 11 juntos com a pi, que remetem para o deliberado nas Actas nºs 20 e 26 da Autora).

Assim, em causa está – reportando-nos aos mesmos recibos – saber se tais empréstimos existiram, ou não e, por consequência, se houve, ou não, tradição para a DD das quantias alegadamente mutuadas, pois foi com suporte nesses mesmos documentos (que, repete-se, alegadamente titulam aqueles empréstimos) que o Tribunal da Relação, dando-lhes “força probatória plena”, decidiu pela procedência da apelação, condenando os RR/apelados.

Ora, tendo, na apelação, sido impugnada a decisão da matéria de facto, a Relação, após tecer as (curtas, porém) considerações que julgou pertinentes sobre a prova produzida (designadamente acerca dos depoimentos das testemunhas e do «Relatório» elaborado pelo ROC…, datado de 12.04.2019, junto pela apelante) e tecer algumas considerações de natureza jurídica (sobre alguns normativos do Cód. Civil), rematou, sem mais, desta forma:

“Face ao exposto, as declarações contidas nos recibos são confissões de dívida que fazem prova plena.

Em consequência, decide-se eliminar a alínea a) do ponto «IV- Factos não provados» da sentença recorrida.

Quanto à alínea b), inexiste confissão, pelo que se decide manter como não provada essa factualidade.”.

E logo avança para “O DIREITO”, aqui se limitando a aplicar as consequências legais da nulidade do mútuo por vício de forma (arts. 143º e 289º CC), condenando os apelados.


**


Cremos, porém, que no acórdão da Relação há contradições na fundamentação e decisão da matéria de facto sobre matérias factuais que se tornam cruciais na economia ou mérito das revistas. Com especial enfoque em duas:

Primeiro, a Relação diz que elimina aquela al. a) dos factos não provados. Mas queda-se aí. Ou seja, em boa verdade, não se sabe se quis transitar tal matéria para os factos provados, pois o não diz.  Tendo decidido alterar a matéria de facto vertida na sentença, a Relação deveria refazer (com toda a clareza) a relação dos factos que considera provados e não provados, de forma a que dúvidas não houvesse (como há) sobre o que, afinal, está provado e/ou não provado.

Segundo, a decisão de eliminar (como dito, a Relação ficou-se por aqui...) a aludida al. a) dos factos não provados (“Que a Autora tivesse entregue a DD as quantias de € 112.000,00 e de € 40.000,00 referidas, respetivamente, em 7 e 8 dos factos provados” - ou seja, precisamente os empréstimos referenciados nos recibos e actas acima referidos), está em clara e ostensiva contradição com o que a própria Relação afirma no mesmo Acórdão.

Com efeito, a Relação, na apreciação sobre a impugnação da decisão da matéria de facto, após referência aos depoimentos testemunhais e «relatório» elaborado pelo ROC, conclui:

“Deste «relatório» evidencia-se a falta de fiabilidade da contabilidade da apelante e que o ROC fez conjecturas para encontrar explicação para as saídas de valores do caixa da sociedade com base no que lhe foi transmitido.

Por outro lado, se a finalidade dos sócios foi tornar possível regularizar contabilisticamente as dívidas da sócia gerente, tratando-as como sendo resultantes de empréstimos, não faz sentido que tenham deliberado «conceder» empréstimos. Em suma, dos documentos invocados pela apelante não resulta evidente que a sócia gerente retirou do caixa para fins pessoais quantias que totalizaram de 152.000 €.[2] - note-se que estes 152.000€ correspondem à soma dos montantes aludidos nos dois recibos juntos, montantes estes que, afinal, se afirma não terem sido emprestados.

Da mesma forma, como podem tais recibos sustentar alegadas (anteriores) saídas de valores do caixa da sociedade (agora já não são os empréstimos referidos nos recibos  juntos), quando o próprio acórdão diz que (ali se apelando àquele mesmo relatório do ROC) tudo terá sido fictício (pois “…evidencia-se a falta de fiabilidade da contabilidade da apelante e que o ROC fez conjecturas para encontrar explicação para as saídas de valores do caixa da sociedade com base no que lhe foi transmitido”)?

Ou seja, afinal, a explicação do ROC para as saídas de valores do caixa da sociedade (as tais saídas ou fluxos de caixa que, ao invés do que inicialmente se alegara na petição inicial, se vem alegar na Réplica que teriam ocorrido a favor da Dª DD e que agora se procura documentar/justificar, precisamente, com as aludidas deliberações da Autora recibos titulados pelos docs. 10 e 11) nem o próprio tribunal recorrido convenceu. Mas, apesar dessa falta de convencimento, a verdade é que acabou por os RR condenar na restituição, agora não já dos empréstimos titulados pelos docs. 10 e 11, mas …de outras quantias alegadamente levantadas da caixa da Autora pela Dª DD (os mesmos levantamentos que, como dito, o tribunal refere tratar-se de meras conjecturas do ROC que mais não fez do que procurar “encontrar explicação para as saídas de valores do caixa da sociedade com base no que lhe foi transmitido”)!

Atente-se, ainda, noutras afirmações do Acórdão: que as deliberações aludidas nas actas mencionadas nos tais recibos “não espelham a realidade, pois é a própria sociedade que esclarece que nenhuma quantia foi entregue à sócia gerente na sequência e em execução delas.”[3].

E reforça: “É incontroverso que em 10/11/2004 e 30/11/2006 não foram entregues à sócia gerente as quantias de 112.000 € e 40.000 €.[4]. O que, aliás, é confessado pela própria Autora ao afirmar que no que toca ao referido nas deliberações de 2004 e 2006 (as referidas nos recibos, portanto, a que estes se reportam) nenhuma quantia foi entregue à Dª DD pela Autora – acrescentando esta, porém, agora na réplica, que tais deliberações, afinal, visaram somente formalizar anteriores movimentos da caixa da sociedade Autora, feitos pela falecida D. DD, levantando dali dinheiros em seu proveito próprio.

Ora, é certo que esta “justificação” da Autora, para a emissão dos recibos, está contida no facto ínsito na al. b) dos factos declarados pela sentença como não provados: “Que, ao longo dos anos em que a falecida DD geriu a Autora, aquela procedesse, com regularidade e até 2006, a levantamentos e/ou utilização de montantes existentes na caixa da sociedade para uso pessoal, que só parcialmente reembolsou, faltando reembolsar a quantia de € 135.762,63.”. Só que – outra contradição – o mesmo tribunal recorrido manteve como não provada essa factualidade!

E ainda a propósito dos alegados levantamentos anteriormente feitos pela Dª DD com que agora se procura justificar o pedido de condenação dos RR, mais de diz no acórdão:

«O que está em causa é apurar se as duas deliberações e os recibos se destinaram a formalizar sob a veste de empréstimos, anteriores retiradas de dinheiro do caixa da sociedade, documentadas por “vales de caixa”.

Mas nenhum “vale de caixa” foi junto aos autos e nem a apelante deu justificação para não o fazer. Isto, apesar de vir agora dizer nesta apelação que «Os vales de caixa ou documentos equivalentes que titulavam cada levantamento efectuado pela sócia gerente DD, foram-lhe devolvidos quando esta assinou os recibos mediante os quais se confessou devedora dos montantes neles referidos».

Além disso, na petição inicial não são discriminadas as quantias que alegadamente foram sendo retiradas ao longo dos anos até 2006».

Em que ficamos? Os montantes peticionados pela Autora resultaram, afinal, de quê: dos empréstimos “titulados” pelos docs. 10 e 11 (recibos) - empréstimos esses confessadamente inexistentes? Dos pretensos levantamentos de caixa anteriormente feitos - mas que se diz terem sido meras merasconjecturas” do ROC, que pretendeu apenas “encontrar explicação para as saídas de valores do caixa da sociedade com base no que lhe foi transmitido”?

Que confusão!

Dizer-se, v.g., que (facto provado) a Senhora D. DD apôs pelo seu punho a sua assinatura nos documentos “recibos” juntos na Petição Inicial como Docs. 10 e 11 para daí, sem mais, concluir pela prova dos empréstimos a que ali se refere, parece algo confuso ou contraditório, atento tudo o já aqui referido, salientando-se que - repete-se -  o recebimento dos empréstimos nas condições que ali vêm aludidas são, afinal, os que constam do facto (cit.al. b) que a Relação deu como...não provado!

Há, assim, que clarificar se, afinal, a D. DD recebeu, ou não, dinheiro da A., quanto e em que circunstâncias, com enfoque para os empréstimos a que se alude na al. a) dos factos dados na sentença como não provados mas que a Relação veio a eliminar dos factos não provados (embora sem dizer se estava provado), depois de afirmar o seu contrário.

Uma coisa parece evidente: ou a falecida D. DD recebeu as quantias em virtude das deliberações aludidas nas actas indicadas nos recibos – e o Tribunal a quo afirmou, de forma inequívoca, que não aconteceu – , ou a mesma Senhora teria recebido as outras quantias, em virtude de levantamentos havidos anteriormente – facto este que o Tribunal a quo deu como não provado e que até qualifica como meras “conjecturas” do ROC, que pretendeu apenas “encontrar explicação para as saídas de valores do caixa da sociedade com base no que lhe foi transmitido”!

Resumindo:

Na sentença deu-se como não provado o facto da al. a) (Que a Autora tivesse entregado a DD as quantias de € 112.000,00 e de € 40.000,00 referidas, respectivamente, em 7 e 8 dos factos provados). Já a Relação, embora na fundamentação diga (preto no branco) que tais empréstimos não ocorreram (diz a Relação que “Além disso, aquelas deliberações não espelham a realidade”), acaba por decidir “eliminar a alínea a) do ponto «IV - Factos não provados» da sentença recorrida”. Porém, não apenas se “esqueceu” de, então, dizer se tal facto estava provado, levando-o à relação dos factos provados (nova relação que deveria fazer), como entra em contradição manifesta, pois retirar o facto a) do ponto «IV - Factos não provados» da sentença recorrida» é claramente contraditório com a afirmação de que os mútuos a que se refere o facto a) inexistiram! É que, de duas uma: ou inexistiram os mútuos, como afirma a Relação e (já não entrando aqui na demais prova carreada aos autos, como o relatório do ROC, bem esclarecedor), então, teria de manter-se como não provado o facto a); ou os mútuos existiram e, então, a Relação teria/terá de refazer o que afirmou na fundamentação vertida no Acórdão, como acima observado (que as deliberações de concessão de mútuo “não espelham a realidade” por ser “incontroverso” que as quantias referidas nas deliberações não foram entregues à sócia gerente).

E quanto a nova justificação (“alternativa”) para a emissão dos recibos e elaboração das actas, refere-se também que, afinal, não tem cabimento, pois apenas terá sido uma forma de o ROC “encontrar explicação para as saídas de valores do caixa da sociedade com base no que lhe foi transmitido”, mas que não passa (diz-se também) de meras “conjecturas (do mesmo ROC).

Para além de que a manter-se a afirmação de que as quantias alegadamente mutuadas não foram entregues à D. DD, então ficamos sem perceber como se chegou à solução jurídica adoptada. É que, não bastará dizer o tribunal que “à data da deliberação de 08/11/2004 o contrato de mútuo de valor superior a 20.000 € só era válido se fosse celebrado por escritura pública (cfr art. 1143º na redacção do DL 343/98 de 06/11)” (etc.), para, dessa forma e sem mais, concluir pela inobservância da forma legal com as legais consequências (que “a nulidade tem como consequência a obrigação de restituição de tudo o que tiver sido prestado”). É que, então não se compreende tal solução de condenação no pagamento dos montantes em causa, quando é afirmado, preto no branco, que a traditio não ocorreu (a entrega do dinheiro – os empréstimos ou os fluxos da caixa – à D. DD). Mais uma contradição do aresto.

Assim, independentemente das várias questões jurídicas que se podem suscitar aqui, maxime sobre o âmbito probatório da declaração feita nos recibos (arts. 376º e 354º, al. c) e 360º, todos do CC), o certo é que se impõe clarificar, sem margem para quaisquer dúvidas, o que, afinal, o tribunal a quo tem como assente, elencando (e justificando) com clareza os factos provados e não provados, sem a “confusão” que sobressai da explanação vertida no aresto e acima explicitada, ou seja, sem quaisquer contradições, como as que apontámos.

Sem dúvida, contradições evidentes e que se impõe sanar – sanação esta absolutamente essencial para se poder avançar na apreciação do mérito da demanda (mútuos e respectivas consequências


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IV. Decisão:

Face ao exposto, acorda-se em (nos termos do artº 682º, nº 3, fine, do CC) determinar que os autos baixem ao tribunal recorrido a fim de aí serem sanadas todas as (supra apontadas) contradições na decisão sobre a matéria de facto (as quais, a manter-se, inviabilizam a decisão jurídica deste pleito).

Custas a fixar a final.

Notifique.

Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A/20, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, atesto o voto de conformidade dos srs. Juízes Conselheiros adjuntos.

Lisboa, 13.05.2021


Fernando Baptista (Juiz Conselheiro Relator)

Vieira e Cunha (Juiz Conselheiro 1º Adjunto)

Abrantes Geraldes (Juiz Conselheiro 2º Adjunto)

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[1] Destaque nosso.
[2] Sublinhado nosso.
[3] Sublinhado nosso.
[4] Destaques nossos.