Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
81/14.0T8CVL.C1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO LEONES DANTAS
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO
Data do Acordão: 05/18/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO DO TRABALHO - CONTRATO DE TRABALHO.
DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS / PROVAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CONTRATOS EM ESPECIAL.
Doutrina:
- MARIA DO ROSÁRIO DA PALMA RAMALHO, Direito do Trabalho – Parte II – Situações Laborais Individuais, Almedina, 2009, 44, 54, 56.
- MONTEIRO FERNANDES, Direito do Trabalho, 14.ª Edição, 2009, Almedina, 149.
- ABÍLIO NETO, citando Galvão Telles, Contrato de Trabalho, suplemento do B.M.J., 1979, 171.
- Parecer da Procuradoria-Geral da República n.º 5/2004, de 01/07/2004, D.R., IIª Série, de 19/08/2004, 12593 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 12.º, N.º 2, 342.º, N.º 1, 1152.º, 1154.º.
CÓDIGO DE TRABALHO (CT) / 2003: - ARTIGO 10.º.
CÓDIGO DO TRABALHO (CT)/ 2009: - ARTIGO 11.º.
REGIME JURÍDICO DO CONTRATO INDIVIDUAL DE TRABALHO, APROVADO PELO DECRETO-LEI N.º 49 408, DE 24 DE NOVEMBRO DE 1969: - ARTIGOS 1.º, 5.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 8/10/2008, PROCESSO N.º 1328/08, EM WWW.DGSI.PT/STJ , COM O N.º 08S1328.
-DE 22/9/2010, PROCESSO N.º 4401/04.7TTLSB.S1.
-DE 10/11/2010, PROCESSO N.º 3074/07.0TTLSB.L1.S1, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 9/2/2012, PROFERIDO NA REVISTA N.º 2178/07.3TTLSB.L1.S1, EM WWW.DGSI.PT .
-DE 19/12/2012, PROCESSO N.º 247/10.4TTVIS.C1.S1, DE 9/2/2012, PROCESSO N.º 2178/07.3TTLSB.L1.S1, E DE 5/11/2013, PROCESSO N.º 195/11.8TTCBR.C1.S1.
Sumário :
1.º - Incumbe ao trabalhador, nos termos do artigo 342.º, n.º 1 do Código Civil, a alegação e prova dos factos reveladores da existência de uma relação de natureza jurídico-laboral, porque são constitutivos do direito que pretende ver reconhecido.

2.º - Apesar de se ter provado que a Autora desempenhava as suas funções em instalações do Réu e com instrumentos de trabalho a este pertencentes, bem como que estas incluíam, para além de funções docentes, tarefas de coordenação de um núcleo escolar, com poderes de direção de outros trabalhadores, o certo é que o facto de se poder fazer substituir no desempenho das suas tarefas, nas situações de impedimento, por outro trabalhador, bem como o facto de emitir, como título dos quantitativos auferidos, recibos verdes, e de não estar inscrita na Segurança Social e nas Finanças como trabalhadora dependente, conduz à não qualificação da relação existente entre ambos com um contrato de trabalho. 

Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:


I

AA instaurou a presente ação declarativa na forma comum contra INSTITUTO DO TURISMO DE PORTUGAL, I.P. pedindo que: 1. Seja declarada a existência entre Autora e Réu de uma relação jurídica de natureza laboral (contrato de trabalho) desde 2003 a 2008 e, consequentemente; 2. A ré condenada a pagar-lhe: a) Uma indemnização por antiguidade, que não deve nunca ser inferior 30 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fração de antiguidade calculada nos termos do artigo 79º da petição inicial, ou seja, a quantia de € 13.737,18 € (treze mil setecentos e trinta e sete euros e dezoito cêntimos); b) As remunerações das férias, e correspondentes a subsídio de férias no montante de € 11.949,40 (onze mil novecentos e quarenta e nove euros e quarenta cêntimos), e, a título de subsídio de Natal, o montante de € 11.949,40 (onze mil novecentos e quarenta e nove euros e quarenta cêntimos) e que se computam no montante global de €23.898,40 € (vinte e três mil oitocentos e noventa e oito euros e quarenta cêntimos); c) A título referente a férias não gozadas pela autora no ano de 2006, a quantia de € 2.163,00 (dois mil cento e sessenta e três euros); d) Os juros de mora, à taxa legal em vigor, sobre cada uma das prestações laborais que lhe são devidas e que se mostram referenciadas nos pontos anteriores, nos termos dos artigos 406.º, 559.º, 762.º, 763.º, 798.º, 799.º, 804.º, 805.º e 806.º do Código Civil, sendo os mesmos devidos desde a data do vencimento de cada um dos mencionados créditos.

Para tanto alegou em síntese, que apesar da denominação de «contrato de prestação de serviços», o réu celebrou com a autora um contrato de trabalho em 2008, tendo-se a autora mantido em funções, ininterruptamente, desde essa data até 31/10/2013, data em que terminou a relação contratual entre ambas as partes. Elencou a factualidade de onde entende decorrer a laboralidade da relação contratual em causa.

A ação foi contestada pelo Réu, prosseguiu seus termos e veio a ser decidida por sentença de 16 de julho de 2015, que julgou procedentes os pedidos deduzidos pela autora e decidiu declarar a existência entre Autora e Réu de uma relação jurídica de natureza laboral (contrato de trabalho) desde 01/09/2003 e, em consequência, condenou o Réu a: a) Pagar à Autora uma indemnização por antiguidade, que se fixa em 30 dias de retribuição base e diuturnidades por cada ano completo ou fração de antiguidade) sendo tal montante determinável por simples cálculo aritmético tendo por base a data de início do contrato de trabalho (1 de setembro de 2003), o valor da remuneração mensal da autora (sendo de considerar a remuneração da autora à data da cessação do contrato) e a futura data de trânsito em julgado da sentença, a que importa deduzir a indemnização paga a esse titulo pela entidade empregadora, réu, referente ao período compreendido entre 12.01.2009 e 31.10.2013, a liquidar nos termos dos artigos 609.º n.º 2 e 716.º do Novo Código de Processo Civil; b) Pagar à Autora as remunerações correspondentes a Subsídio de Férias o montante de € 11.949,40 (onze mil novecentos e quarenta e nove euros e quarenta cêntimos), e a título de Subsídio de Natal o montante de € 11.949,40 (onze mil novecentos e quarenta e nove euros e quarenta cêntimos) e que se computam no montante global de € 23.898,40 (vinte e três mil oitocentos e noventa e oito euros e quarenta cêntimos); c) Pagar à Autora a título referente a férias não gozadas no ano de 2006, a quantia de € 2.163,00 (dois mil cento e sessenta e três euros); d) Sobre tais quantias são devidos juros de mora, contados desde a presente decisão quanto à quantia indemnizatória, e desde a data do vencimento de cada prestação, quanto às restantes quantias, e até integral e efetivo pagamento, computados à taxa legal de 4% ao ano.

Inconformado com esta decisão, dela apelou o Réu para o Tribunal da Relação de ... que veio a conhecer do recurso por acórdão de 9 de junho de 2016, que integrou o seguinte dispositivo: «IV - Termos em que se decide julgar a apelação totalmente procedente em função do que, na revogação da sentença impugnada, se decide absolver o réu dos pedidos.

Custas a cargo da apelante.»

Irresignada com este acórdão dele vem a autora recorrer de revista para este Supremo Tribunal integrando nas alegações apresentadas as seguintes conclusões:

«1.º - Devidamente ordenados, segundo uma sequência lógica e cronológica, são os seguintes factos que a sentença da Primeira Instância recorrida elenca como provados, e que aqui se dão por integralmente reproduzidos

2.º - O Tribunal da Relação proferiu acórdão, no qual alterou matéria de facto e aditou vários factos à matéria assente, nomeadamente, alterou os pontos 8, 10, 23, 26, 27, 30 e 34, com as redações que aqui se dão por reproduzidas e deu como não provado o ponto 22 dos factos provados da sentença da primeira instância

3.º - E aditou e deu como assente os seguintes factos:

"A Autora auferia um valor hora e contratualizava com a Ré/Recorrente o número de horas a prestar no período a que respeitava cada contrato denominado de prestação de serviços."

"A Autora recebia um valor mensal variável, em função das horas prestadas."

"A Autora auferia um valor hora e contratualizava com o recorrente o número de horas a prestar."

"O recorrente apenas pagava à recorrida os valores que a mesma fazia constar das notas de honorários, como tendo efetivamente prestadas."

"A Autora em caso de doença ou impedimento, podia fazer-se substituir por pessoa singular com formação adequada."

"A Autora não tinha que dar qualquer tipo de justificação de faltas"

"A Autora não estava sujeita ao controlo de assiduidade e pontualidade."

4.º - O Tribunal da Relação proferiu acórdão no qual considerou que inexistem factos que permitam de uma forma decisiva concluir que a Autora no período temporal objeto do pedido formulado (2003 a 2008) tenha estado vinculada ao Réu através de uma relação contratual que possa ser caracterizada como laboral, e consequentemente julgou a apelação totalmente procedente e revogou a sentença da primeira instância, e absolver o Réu dos pedidos.

5.º - O poder de cognição do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto, não assume nunca uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto, o que diga-se aconteceu no presente acórdão, a possibilidade de conhecimento está confinada aos pontos de facto que o recorrente considere incorretamente julgados, com os pressupostos adrede estatuídos no cit. art. 640° do CPC.

6.º - Nos termos do disposto na alínea a) do n° 1 do art. 640°, na verdade, o alegado "erro de julgamento" normalmente não inquinará toda a decisão proferida sobre a existência, inexistência ou configuração essencial de certo "facto", mas apenas sobre determinado e específico aspeto ou circunstância do mesmo, que cumpre à parte concretizar e delimitar claramente.

7.º - O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialeticamente na base da imediação e da oralidade.

8.º - A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte o princípio da livre apreciação da prova (consagrado no art. 607°, n° 5, do CPC: "o juiz aprecia livremente as provas, decidindo segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto") que está deferido ao tribunal da 1.ª instância.

9.º - Na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente impercetível na gravação/transcrição, o que o presente acórdão deliberada e ostensivamente viola.

10° - No sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.

11.º - O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado».

12.° - A Lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (art. 607°, n° 4, do CPC).

13° - Determinando a norma jurídica que o juiz faça uma análise crítica das provas produzidas e que especifique os fundamentos decisivos para a sua convicção, o que de resto, no caso vertente, se mostra feito de forma bastante e fundada.

14° - Quer relativamente aos factos provados quer quanto aos factos não provados, deve o tribunal justificar os motivos da sua decisão, declarando por que razão, sem perda da liberdade de julgamento garantida pela manutenção do princípio da livre apreciação das provas (art. 607° do CPC), deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões dos peritos, achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos particulares, etc.

15° - Se a decisão do julgador, neste caso da 1.ª Instância, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção, o que, diga-‑se desde já, aconteceu nos presentes autos face à vasta fundamentação para aquela decisão, e que embora admitido pelo Tribunal da Relação no acórdão por este proferido e ora em crise, ainda assim não foi respeitado.

16° - Conforme orientação jurisprudencial prevalecente - o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1.ª instância, deve restringir-se aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respetiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, está em melhor posição.

17° - «só perante tal situação [de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão] é que haverá erro de julgamento; situação essa que não ocorre quando estamos na presença de elementos de prova contraditórios, pois nesse caso deve prevalecer a resposta dada pelo tribunal a quo, por estarmos então no domínio e âmbito da convicção e da liberdade de julgamento, que não compete a este tribunal [ad quem] sindicar, pelas razões já supra expandidas.

18° - E o presente acórdão apenas utiliza como fundamento para alteração da matéria de facto dada como provada pelo Tribunal da Primeira Instância os depoimentos da testemunhas apresentadas pela Ré, que foram desconsideradas pelo Tribunal da Primeira Instância, pelas razões que a seguir enunciaremos, e que como não podia deixar de acontecer, apresentaram uma versão diferente dos factos, não valorando a prova documental carreada nos autos.

19° - É que o tribunal de 2.ª jurisdição não podendo ir à procura de uma nova convicção (que lhe está de todo em todo vedada exatamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova), ainda assim fê-lo, quando o que devia era ter procurado saber se a convicção expressa pelo Tribunal "a quo" tinha, como efetivamente entendemos que tem, suporte razoável naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si», o que, novamente se deixa consignado, o Tribunal da Relação não respeitou nem observou.

20° - A admissibilidade da respetiva alteração por parte do Tribunal da Relação, mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respetiva fundamentação.

21° - Com efeito, o Senhor Juiz do Tribunal a quo fez a sua valoração da prova produzida, tendo apresentado a respetiva motivação de facto, na qual explicitou detalhada e minuciosamente, não apenas os vários meios de prova (depoimentos testemunhais e documentos) que concorreram para a formação da sua convicção, como os critérios racionais que conduziram a que a sua convicção acerca dos diferentes factos controvertidos se tivesse formado em determinado sentido e não noutro.

22° - Dá-se aqui por integralmente reproduzido teor o despacho proferido pelo tribunal "a quo", no qual se contém a fundamentação das respostas dadas aos quesitos.

23° - Os depoimentos testemunhais, que fundamentaram a alteração da matéria de facto foram valorados pelo Tribunal da Relação de ... diversamente do que o foram pela Senhora Juiz a quo, de molde a levarem à alteração da matéria de facto, são, consabidamente, elementos de prova a apreciar livremente peio tribunal (arts. 396° do Cód. Civil e 607.°, n.° 5, do C.P.C.)., que o Tribunal da Relação de ... manifestamente valorou diversamente em clara violação das normas acima mencionadas.

24° - Se o julgador de 1.ª instância entendeu valorar diferentemente tais depoimentos, não pode esta Relação pôr em causa, de ânimo leve, a convicção daquele, livremente formada, tanto mais que, dispôs de outros mecanismos de ponderação da prova global que o tribunal ad quem não detém (v.g. a inquirição presencial das testemunhas), e aliás qualificou os depoimentos das ditas testemunhas como tendo sido depostos de forma interessada e denotando uma atitude defensiva dos interesses da ré, não logrando dissipar algumas dúvidas e incoerências na factualidade que descreveu.

25° - Quer relativamente aos factos provados quer quanto aos factos não provados, o Tribunal a quo justificou os motivos da sua decisão, declarando por que razão, sem perda da liberdade de julgamento garantida pela manutenção do princípio da livre apreciação das provas, deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros

26° - O Tribunal a quo, apreciando livremente a prova, entendeu não dar suficiente crédito à versão da Ré. E fê-lo de forma fundamentada, nos termos expressos no despacho supra transcrito.

27° - Pelo que, deve ser proferido acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça, que ordene o reenvio dos presentes autos ao Tribunal da Relação de ... para que sejam alterados os factos provados exatamente como proferido na decisão do Tribunal da Primeira instância, por violação dos arts. 396° do Cód. Civil e 607.°, n.° 5, do C.P.C., que o acórdão ora em crise proferido pelo Tribunal da Relação de ... incorreu.

28° - A questão que atravessa o processo refere-se, afinal, à qualificação do contrato. Estamos perante um contrato de trabalho, como a Recorrente entende, ou perante um contrato de prestação de serviços como alega a Recorrida?

29° - A Recorrida e o douto acórdão em crise citam um conjunto de factos que, na sua opinião, permitiriam concluir pela existência de um contrato de prestação de serviços.

30° - No caso sub judice, analisando os vários segmentos de facto, constata-se que alguns elementos se inserem no contrato de prestação de serviços e, outros, no contrato de trabalho subordinado.

31° - Sopesando o peso dos mesmos, cremos que a impressão global que se extrai é de que os elementos atinentes ao contrato de trabalho subordinado prevalecem sobre os elementos referentes ao contrato de prestação de serviços, pelo que propendemos no sentido de que a relação contratual em causa, apesar de denominada pelas partes como contrato de prestação de serviços, deve ser qualificada juridicamente como contrato de trabalho subordinado.

32° - O Dr. Júlio Gomes termina a análise deste tema dizendo que "tal qualificação assentará na interpretação da vontade das partes não apenas como ela foi declarada no contrato, mas tal como ela resultou do modo como o contrato foi concretamente executado entre as partes".

33° - A abordagem unilateral dos factos - que foi aquela que o tribunal da Relação de ... fez - levaria a um resultado absurdo, na medida em que olhado na perspetiva de alguns factos o contrato seria de prestação de serviços mas olhado de outra perspetiva o contrato seria de trabalho, daí que como refere o Dr. Júlio Gomes, tenhamos obviamente de olhar para a forma como o contrato foi concretamente executado, no seu todo.

34° - O acórdão proferido, e ora em causa, não ignora que um dos elementos de diferenciação dos contratos de trabalho e de prestação de serviço reside no contraponto entre disponibilidade do tempo de trabalho e a compra de um resultado da atividade, o que se torna mais complicado de fazer quando se fala de um Coordenador.

35° - Resulta claro dos autos que há um momento (em finais de 2003) em que a ligação do Recorrente à Recorrida se alterou de forma clara e objetiva. A partir daquele ano a Recorrente passou a desempenhar funções de Coordenadora do Núcleo do ...

36° - Como resulta dos autos, a denominação de Coordenadora não foi nenhum lapsus calami, não, a Recorrente desempenhava mesmo funções de responsável máximo na hierarquia da Recorrida, logo abaixo dos órgãos de direção da Escola de Hotelaria de ... da qual dependia o Núcleo do ..., com as prerrogativas que habitualmente são associadas àquele tipo de categorias. A Ré conferiu à Recorrente, de forma visível e objetiva, poderes de coordenação; poderes esses que durante anos e anos - mais de cinco anos - foram exercidos no dia a dia pela Recorrida.

37° - Desempenhando nesse período (2003 a 2008) as mesmas funções que desempenhou a partir de 2008 ao abrigo do contrato de comissão de serviço enquanto Diretora da Escola de Hotelaria do ....

38° - Pese embora o que atrás se referiu resulte de variadíssimos factos dados como provados, o acórdão ora em crise, insiste na tese de que a Recorrente reclamava apenas o resultado do seu trabalho, a conclusão é no mínimo absurda, a não ser que o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de ... se refira ao entendimento de que todo o trabalho - seja ele independente ou subordinado - conduz sempre a um resultado...

39° - O acórdão ora em crise nada mais faz do que aproveitar-se do facto de a Recorrente ser o topo da sua pirâmide hierárquica (logo sem superior hierárquico visível) para não considerar a natureza do trabalho da ora Recorrente, ponto 36 dos factos dados como provados.

40° - O processo contém um conjunto de factos que se encarregam de demonstrar que a Ré tinha poder sobre a Recorrente, os quais são manifestações do poder de direção que aquela exercia sobre esta, nomeadamente os pontos 20, 21 e 23 dos factos dados como provados.

41° - A Recorrida no exercício dos poderes que tinha ordenou-lhe ao longo do tempo que desenvolvesse um conjunto de atividades de coordenação do Núcleo do ... e até atividades completamente estranhas ao objeto inicial do contrato, como a representação em feiras e outros eventos. Esta atribuição de cada vez mais funções, e até de funções completamente diferentes das inicialmente contratadas, não constitui senão a manifestação do poder do empregador sobre o tempo de trabalho do trabalhador.

42° - Às sucessivas atribuições de funções (cada vez mais alargadas, mais absorventes e de maior responsabilidade) não correspondeu nenhuma alteração salarial.

43° - É para nós evidente, que a Recorrida via a Recorrente como um trabalhador qualificado, mas um trabalhador, ao qual distribuía tarefas, a quem dava ordens, e não meras instruções genéricas como consta do acórdão do Tribunal da Relação de .... A fundamentação inserta no douto acórdão ora em crise de que a Recorrida pretendia apenas o resultado do trabalho da Recorrente e que nessa medida havia apenas lugar a instruções genéricas, não passa de pura retórica.

44° - Não consta que a função de Coordenadora do Núcleo do ... faça parte do elenco das atividades ditas liberais.

45° - A Recorrente estava integrada na estrutura orgânica da Recorrida (não era, como esta pretendeu fazer crer, mais um profissional liberal), e que o douto acórdão ora em crise, segue a tese da Recorrida.

46° - A Recorrente, dada a sua posição hierárquica, tinha poderes, obrigações e prerrogativas que os outros profissionais liberais ao serviço da Recorrida não tinham.

47° - A Recorrente tinha um gabinete próprio, só seu, a atividade da Autora era prestado nas instalações do Réu, mais propriamente nas do Núcleo Escolar do ..., e todos os instrumentos utilizados pela autora no exercício de tal atividade eram fornecidos pelo réu, até porque no contrato que outorgaram a Ré determinou que as funções seriam desempenhadas nas suas instalações e dentro do seu horário de funcionamento.

48° - A Autora quando não exercia as suas funções nas instalações do Réu, exercia-as em locais por este controlados, obtidos e ou relacionados, designadamente, participação em Feiras Comerciais e Industriais e de Formação Vocacional, em sessões de apresentação da oferta formativa em Escolas Básicas e Secundárias da região, distribuição de material publicitário nos concelhos do ..., C..., C... e G..., atividades estas realizadas anualmente, e organização da "Feira do Livro" em maio de 2006 em conjunto com a docente da disciplina de ...

49° - A Recorrente porque estava ao serviço da Ré era contactada livremente pelas pessoas que trabalhavam para esta, no seu local de trabalho.

50° - A Recorrente porque não detinha o controlo sobre o seu tempo de trabalho, tinha a obrigação de falar com as pessoas que estavam ao serviço da Recorrida, resultando ainda dos autos que o Recorrente tinha até a obrigação de dar solução aos problemas suscitados.

51° - A remuneração auferida pelo Recorrente, não tinha qualquer ligação com o resultado dos atividades de que estava incumbido.

52° - A Recorrente, porque tinha funções extremamente alargadas, desempenhava as suas funções não só nas instalações do Núcleo do ... como nos diversos locais onde esta tinha instalações, dando ordens aos responsáveis aos restantes trabalhadores e prestadores de serviços da Recorrida; ordens que estes cumpriam.

53° - A Recorrente desempenhou funções alargadas ao serviço da Recorrida entre 2003 e 2008, como Coordenadora, não constando que houvesse outra pessoa ou pessoas com igual categoria ou funções.

54° - A recorrente tinha direito a almoçar "gratuitamente" no Restaurante Self-service do Núcleo do ..., não constando que houvesse outra pessoa ou pessoas com igual prerrogativa.

55° - A recorrente entrava diariamente (segunda a sexta-feira) às 09.30 e saía às 17.30 com direito a hora de almoço das 13.00 às 14.00, não constando que houvesse outra pessoa ou pessoas com igual prerrogativa.

56° - A recorrente gozava férias, com exceção do ano de 2006, que eram marcadas pela Ré, o que é contrariado pelo acórdão ora em crise, mas que os documentos juntos aos autos desmentem, não constando que houvesse outra pessoa ou pessoas com igual prerrogativa.

57° - É verdade que a Recorrente gozava de alguma liberdade de organização do seu tempo de trabalho. E, a Recorrente também nunca foi questionada quando necessitou de faltar ao serviço.

58° - O acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de ... e ora em crise parece ignorar que a subordinação comporta níveis diferentes, e anda associada a variadíssimos fatores, tais como a posição na hierarquia da empresa, o maior ou menor grau de qualificação, o nível de conhecimento, a antiguidade, etc, efe. O relacionamento do empregador com as pessoas de topo da hierarquia é habitualmente diferente do relacionamento estabelecido com os trabalhadores de nível mais baixo.

59° - Aliás, também não foi alegado que a Recorrente tenha por hábito descontar as faltas esporádicas ao trabalho dos seus trabalhadores de nível mais elevado, ou que algum trabalhador porventura menos cumpridor tenha sido sujeito a processo disciplinar.

60° - A Recorrente faz parte do grupo de trabalhadores em que as amarras da subordinação são menos visíveis, o que não significa que não existam, daí que chamar à colação, a este nível, a não vinculação a um horário rígido, ou a um único local de prestação do trabalho, a aparente não sujeição à disciplina da empresa (no sentido mais restrito da não elaboração de processo disciplinar), o não registo de faltas e até a aparente não sujeição o ordens, traduz uma abstração da realidade, sem qualquer sentido.

61° - A Autora não dispunha de qualquer outra fonte de rendimento para além daqueles que o Réu lhe proporcionava e, nos contratos que celebraram, a Autora e o Réu, no que respeita à fixação da contrapartida da autora.

62° - A Autora auferiu as seguintes retribuições mensais médias: 2.131,21 € no ano de 2003, 2.267,00 € no ano de 2004, 2.213,00 € no ano de 2005, 2.163,00 € no ano de 2006, 2.474,00 € no ano de 2007 e 2.122,00 € no ano de 2008.

63° - O vencimento até ao ano de 2007 era pago por transferência bancária na conta com o NIB …. aberta no …., e no ano de 2008 para a conta com o NIB … aberta no ..., e tais transferências, normalmente efetuadas no final ou inicio de cada mês.

64° - Nenhum de nós ignora que há factos que tendem a indicar que se está perante um contrato de trabalho e outros que indiciam o contrário. Mas, como se referiu anteriormente, só um olhar abrangente permite determinar se no caso concreto estamos perante um contrato de trabalho ou um contrato de prestação de serviços.

65° - A recorrente entende que os fatos provados inferem claramente que estamos perante uma relação laboral, e consequentemente, que o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de ... é errado, por aplicar aos factos provados o instituto da prestação de prestação de serviços.

66° - Sopesados globalmente os indícios e os factos provados, afigura-se que a relação contratual que a Autora e Ré sempre quiserem celebrar, e de facto celebraram, integra um contrato de trabalho.»

Termina referindo que «deve o presente recurso ser julgado procedente e reconhecida a laboralidade da relação entre Autora e Ré, e, em consequência, ser revogado o douto acórdão do Tribunal da Relação de ..., e substituído por outro que condene a Ré em todos os pedidos formulados pela Autora».

O Réu respondeu ao recurso interposto, integrando nas alegações apresentadas as seguintes conclusões:

«1.ª Importa, antes de mais, verificar que todo este raciocínio parte de um pressuposto que não se verifica, ou seja, cabe à Relação apurar a factualidade relevante para a decisão do litígio, não podendo, por conseguinte, o Supremo Tribunal de Justiça, em regra, alterar a matéria de facto por fixada pela Relação, o que per se significa que um alegado erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto do recurso de revista, a não ser nas hipóteses previstas no disposto no artigo 722.° [sic] do CPC.

2.ª Nessa medida, em virtude de não verificar o cumprimento excecional dos pressupostos previstos no artigo 622.° [sic] do CPC - o que, sempre se diga, caberia ao Recorrente fazer prova e mencionar se tal fosse a sua intenção mas não sucede -.importa a rejeição do presente recurso de revista, o que desde já se requer.

3.ª Por Acórdão, de 09.06.2016, decidiu o douto Tribunal a quo declarar a inexistência de uma relação jurídica de natureza laboral no período temporal objeto do pedido formulado (2003-2008) e, em consequência, absolver Recorrida dos demais pedidos que foram efetuados nos autos.

4.ª Foi dessa decisão que a Recorrente interpôs o respetivo recurso de revista, não obstante a factualidade dada como provada e a aplicação do Direito que a esta se fez, requerendo que: i) se proceda à alteração dos factos provados exatamente como proferido na decisão do tribunal de primeira instância, por violação por violação dos artigos 396.° do Código Civil e 607.°, n.° 5, do Código de Processo Civil e que ii) se reconheça a laboralidade da relação entre a Recorrente e Recorrido, devendo o Recorrido ser condenado em todos os pedidos formulados.

5.ª Motivou a sua pretensão, primeiramente, por considerar que existiu um uso indevido pela Relação dos poderes relativos à alteração da matéria de facto, com violação do Princípio da livre apreciação da prova, designadamente, do preceituado no artigo 396.° do CC e no n.° 5 do artigo 607.° do CPC, entendimento que jamais se pode sufragar.

6.ª Cumprido o ónus a cargo do recorrente que impugna matéria de facto, o qual consiste em especificar, sob pena de rejeição do recurso, os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (cfr. alínea a) do n.° 1 do artigo 640.° do CPC) e os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo da gravação nele realizada que imponham decisão diversa da recorrida (alínea b) do mesmo preceito legal), a Relação, devendo reapreciar os meios de prova indicados relativamente a esses pontos da matéria de facto que o recorrente questiona, não está impedida de alterar outros cuja apreciação não foi requerida, desde que tal pronúncia vise evitar contradição entre o que se pretendia alterar e foi alterado e aquilo que fora aceite em sede de julgamento.

7.ª Se assim não se entendesse, o julgamento na Relação, no que concerne à matéria de facto, não alcançaria uma autónoma convicção probatória.

8.ª Face ao mencionado objeto do recurso, impunha-se à Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações de recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados, procedendo à audição ou leitura dos depoimentos indicados pelas partes (artigos 640.° e 662.° ambos do CPC).

9.ª Dada a amplitude com que a lei os prevê, os poderes de reapreciação contidos no preceito traduzem-se num verdadeiro e efetivo 2° grau de jurisdição sobre a apreciação do conteúdo da prova produzida.

10.ª Assim, à Relação impõe-se declarar se os pontos de facto impugnados foram bem ou mal julgados e, em conformidade com esse julgamento, manter ou alterar a decisão proferida sobre os mesmos.

11.ª Nessa medida, pode mesmo dizer-se que o tribunal de recurso atua como tribunal de substituição relativamente ao tribunal recorrido, regime que se revela aceitável como decorrência do concurso dos pressupostos a que alude o n.° 1 do artigo 662°, a colocar a 2.ª instância de posse dos mesmos elementos probatórios de que dispunha a 1.ª.

12.ª Na 1.ª instância ou na Relação, a questão é sempre de valoração das provas produzidas em audiência ou em documentos de livre apreciação.

13.ª Em ambos os casos vigoram para os julgadores de ambos os Tribunais as mesmas regras e princípios, dos quais avulta o da livre apreciação da prova ou sistema da prova livre (por contraposição ao regime da prova legal), consagrado no n.° 3 do artigo 607.° do CPC.

14.ª Quer isto dizer que a prova será sempre apreciada segundo critérios de valoração racional e lógica do julgador, pressupondo o recurso a conhecimentos de ordem geral das pessoas normalmente inseridas na sociedade do seu tempo, a observância das regras da experiência e dos critérios da lógica, tudo se resolvendo, afinal, na formação de juízos e raciocínios que, tendo subjacentes as ditas regras, conduzem a determinadas convicções refletidas na decisão dos pontos de facto sob avaliação. Deve, ela, ainda ser considerada globalmente, conjugando todos os elementos disponíveis e atendíveis (artigo 413.° CPC).

15.ª Finalmente, no âmbito dessa valoração das provas no seu conjunto, poderão os julgadores lançar mão de presunções naturais, de facto ou judiciais, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 351.° do CC.

16.ª Numa palavra, a Relação deverá formar e fazer refletir na decisão a sua própria convicção, na plena aplicação e uso do princípio da livre apreciação das provas, nos mesmos termos em que o deve fazer a 1.ª Instância, sem que se lhe imponha qualquer limitação, relacionada com convicção que serviu de base à decisão impugnada, em função do princípio da imediação da prova.

17.ª Por isso, e dentro desse alargado âmbito de atuação, colocada na mesma posição do julgador da 1.ª Instância, nada podia impedir a Relação, também como tribunal de instância, de proceder às modificações a que levou a efeito ou mesmo de extrair ilações a partir dos factos provados, quer essas ilações assentassem em factos base já anteriormente provados, quer se viessem a apoiar em factos já resultantes da modificação de respostas em consequência de diferentes valorações da prova documental ou testemunhal.

18.ª Conclui-se, pois, que, no âmbito da reapreciação das provas em sede de modificação da matéria de facto em aplicação das normas do artigo 662.° do CPP, nenhum vício de ilegalidade se verifica.

19.ª A matéria de facto fixada pela Relação é, deste modo, intocável pelo tribunal ad quem, até porque (.) [a prova]  testemunhal infirma de forma contundente e flagrante a resposta dada por esse douto tribunal em sede de prova.

20.ª Mantida a matéria de facto que a Relação fixou, manter-se-á também a decisão sobre o mérito da causa, já que uma depende, logicamente, da outra.

21.ª Da matéria de facto assente pela Relação sempre se referirão os pontos 8, 10, 23, 26, 27, 30, 34, aos quais foi corretamente dada uma nova redação, reformulações essas que sustentámos em sede de recurso e que no tribunal a quo tiveram o devido acolhimento.

22.ª Ademais, referir-se-á que os factos aditados pelo douto Tribunal da Relação, também acolhem a posição que até aqui sufragámos, quer em sede de Contestação, como de Recurso.

23.ª Motivos pelos quais, deve ser mantida a factualidade assente no douto Acórdão da Relação.

24.ª No demais, concernente à discussão que subjaz aos autos sobre a existência de uma relação jurídica de cariz laboral entre Recorrente e Recorrido, sempre se dirá que foi acordado um concreto tipo de relação profissional a que foi dado o nome de "contratos de prestação de serviço" com o clausulado que dos mesmos consta (vide fls. 59 a 61 e 65 a 90).

25.ª Embora o "nomen iuris", como é sabido, não vincule o tribunal, não deixa de ser mais um elemento que no conjunto com demais, auxiliará na indagação sobre a natureza jurídica do vínculo, designadamente no que se refere à indagação sobre a real vontade das partes aquando da contratação.

26.ª Por outro lado, subjazem elementos que não cumprem o desiderato pretendido pela aqui Recorrente de ser reconhecida a referida laboralidade da relação jurídica.

27.ª A Recorrente não estiva obrigada a cumprir ou a observar um horário como é típico do trabalho subordinado.

28.ª Por outro lado, não estava sujeita a qualquer controlo de assiduidade ou de pontualidade como também é normal (salvo nos casos de isenção) e típico no trabalho subordinado, não estando obrigada a justificar perante a ré as faltas dadas ao serviço.

29.ª Também não gozava férias no sentido técnico do termo - interrompia apenas a sua atividade do período de verão, na época das férias escolares comunicando tal facto à ré que dava a sua a anuência a essa interrupção.

30.ª Acresce que embora recebesse mensalmente da ré uma quantia pecuniária como contrapartida do exercício da sua atividade era a autora que, mensalmente, por sua iniciativa, indicava esse valor à ré através da apresentação da "nota de honorários" elaborada com base e com os limites das horas e valores anualmente contratualizados, o que dificilmente é compaginável com a figura da retribuição de um genuíno contrato de trabalho.

31.ª Para além disso, um dos elementos determinantes da qualificação da relação como de trabalho subordinado reside no facto de ao beneficiário da prestação assistir o poder de agir disciplinarmente sobre o prestador da atividade.

32.ª Ora, no caso, não se provou (e relembre-se que o ónus da prova dos factos caracterizadores da relação como de trabalho subordinado cabe por inteiro à autora), nem tão pouco se alegou que na recorrente se encontrasse sob a alçada disciplinar da aqui recorrida ou que aquela, alguma vez que fosse, tivesse de facto agido ou pretendido agir disciplinarmente sobre a recorrente, ou seja, que tivesse pretendido fazer operar qualquer poder disciplinar.

33.ª Não se logrou provar, o que, sempre se diga, não seria possível pela única razão de tal não se verificar, que o Recorrido desse ordens à Recorrente.

34.ª Ainda que lhe fornecesse diretrizes ou orientações, para além de não poderem ser qualificadas como ordens de cariz subordinatório, compreendem-se perfeitamente e são naturais no âmbito da prestação de uma atividade de formação ou de coordenação na medida em que o Núcleo do ... dependia orgânica e funcionalmente de ..., ou melhor, do Recorrido, sendo normal ou natural que este desse orientações no sentido, designadamente, sobre a forma como os programas escolares deviam ser executados ou sobre o modo como devia ser gerido o Núcleo do ..., o que é perfeitamente compatível com a prestação da atividade em regime de autonomia.

35.ª Pelo exposto, resulta notório de alguns dos indiciados factos que, no caso concreto, inexiste uma situação de subordinação jurídica e, consequentemente, a situação laboral da Recorrente afasta-se da situação típica do contrato de trabalho e, cumulativamente, não subsiste uma relação laboral subordinada.

36.ª Não obstante, o que se concebe somente na qualidade de mandatário judiciário mas que não se concede, caso se entenda que alguns dos factos são normalmente associados à existência de subordinação jurídica e que alguns constituem, por isso, a dúvida sobre a existência de uma relação laboral subordinada, sempre se diga, em qualquer caso, que o douto Tribunal da Relação decidiu (e bem) que, ainda que se admitisse tal cenário (o que, repita-se, é feito num cenário de mero exercício de mandatário), deveríamos considerar mais uma vez que o ónus da prova recai sobre a recorrente, sendo que, em concreto, inexistem factos que permitam de uma forma decisiva concluir que a autora no período temporal objeto do pedido formulado (2003 a 2008) tenha estado vinculada ao réu através de uma relação contratual que possa ser caracterizada como laboral e, por conseguinte, estamos perante uma situação de non liquet que deve resolvida com a inexistência de um vínculo de natureza laboral.»

Termina referindo que «deverá o recurso interposto ser rejeitado, em virtude de não se verificar o cumprimento excecional dos pressupostos previstos no artigo 622.° do CPC, ou, caso assim não se entenda, deve ser negado provimento ao recurso interposto pela recorrente, mantendo-se integralmente o douto acórdão recorrido, com as legais consequências».

Por despacho do relator de 22 de fevereiro de 2017, transitado em julgado, foi rejeitado o recurso relativamente à matéria das conclusões 1.ª a 27.ª das alegações da recorrente.

Apresentado o processo à Exm.ª Magistrada do Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no n.º 3 do artigo 87.º do Código de Processo do Trabalho foi proferido parecer no sentido da improcedência do recurso e da confirmação da decisão recorrida.

Notificado este parecer às partes não motivou qualquer tomada de posição.

 Sabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente, nos termos do disposto nos artigos 635.º, n.º 3, e 639.º do Código de Processo Civil, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, está em causa na presente revista saber da natureza jurídica da relação existente entre a Autora e o Réu.


II


1 - As instâncias fixaram a seguinte matéria de facto:

«1. A Autora prestou a sua atividade para a Ré desde dezembro de 2002 até ao passado dia 31 de outubro de 2013.

2. O Turismo de Portugal, I.P., ora Réu, sucedeu nas atribuições, direitos e obrigações do Instituto de Formação Turística (INFTUR).

3. Como já acontecia com o Instituto de Formação Turística, o Turismo de Portugal, I.P., aqui Réu, tem sob sua responsabilidade uma rede escolar que conta, com 15 estruturas, correspondentes a 6 escolas e 9 núcleos, estando estes na dependência daquelas, como acontece com o Núcleo do ..., que se encontra na dependência da Escola de Hotelaria de ....

4. O Turismo de Portugal, I.P., ora Réu, é um instituto público integrado na administração indireta do Estado, conforme resulta da sua Lei Orgânica, instituída pelo Decreto-Lei 129/2012, de 22 de junho.

5. A Autora é titular de curso superior de Gestão.

6. Em 1 de dezembro de 2002, a Autora celebrou com o Instituto de Formação Turística (por intermédio da Escola de Hotelaria e Turismo de ... – Núcleo Escolar do ...), entidade à qual o Réu sucedeu nos direitos e obrigações, nos termos supra expostos, um contrato de formação em posto de trabalho no âmbito do Programa de Estágios Profissionais, como estagiária para a área de Coordenação Administrativa e Financeira, em que se indicava o início no dia 1 de dezembro de 2002 e termo a 31 de agosto de 2003.

7. Em 8 de setembro de 2003, a Subdiretora da Escola de Hotelaria e Turismo de ... propôs a contratação da Autora para assegurar funções de Coordenação do Núcleo Escolar do ..., algumas das quais anteriormente compreendidas nas funções desempenhadas pela Dr.ª BB, e também para desenvolver funções de formadora, lecionando algumas disciplinas dos cursos em funcionamento neste Núcleo Escolar.

8. No dia 3 de novembro de 2003, a Autora celebrou ainda com o Instituto de Formação Turística, entidade à qual, o Réu sucedeu nos direitos e obrigações, nos termos supra expostos, um contrato subordinado ao título prestação de serviços, sob o regime de avença, em que se indicava o início a 15 de setembro de 2003 e termo a 31 de agosto de 2004.[1]

9. Embora o clausulado do contrato atrás referido indique o dia 15 de setembro como o do início do dito contrato, a verdade é que a Autora exerceu a sua atividade, de forma contínua em relação ao contrato a que se alude no ponto 8., desde o primeiro dia útil daquele mês.

10. A Autora obrigou-se, naquele ano letivo de 2003/2004, a prestar os serviços inerentes às funções, que, de resto, de facto prestou, de formadora e os serviços de coordenação do Núcleo do ..., nas instalações daquele Núcleo, sitas no pavilhão multiusos do ..., no Largo …, mediante o pagamento da quantia que para aquele ano foi de € 4.339,50, enquanto formadora, acrescida de € 21.481,20, enquanto coordenadora.[2]

11. Valores que eram sempre liquidados pelo Réu à Autora em mensalidades não iguais de forma a, no fim do período estabelecido, se encontrar integralmente paga a totalidade dos valores consignados no contrato.

12. A Autora assumiu a obrigação de lecionar várias disciplinas dos cursos ministrados no Núcleo Escolar do ..., bem como contribuir para a organização e atualização dos processos técnico-pedagógicos das ações de formação e de promover o desenvolvimento escolar dos alunos.

13. E ainda a obrigação de coordenar o respetivo Núcleo, e não de assessorar a coordenação do mesmo uma vez que o funcionamento deste Núcleo do ... passou a ser assegurado unicamente pela Autora e pela Dra. CC, responsável pela organização e gestão das áreas de alimentos e bebidas de manutenção de equipamentos e materiais, designadamente, coordenar o Núcleo Escolar do ... sob a orientação da Direção da Escola de Hotelaria e Turismo de ...; respeitar os princípios e normas deontológicas aplicáveis, respeitar as orientações da Ré e solicitar a sua aprovação para qualquer intervenção, atividade ou serviço que não se encontre genericamente previsto ou não tenha sido solicitado por aquele; preparar as sessões de formação e respetivos materiais didáticos de apoio; lecionar as disciplinas de acordo com os planos de estudo dos respetivos cursos, assim como as restantes orientações definidas para a sua lecionação; contribuir para a organização e atualização dos processos técnico pedagógicos das ações de formação; proceder à avaliação pedagógica dos alunos de acordo com as normas em vigor no INFTUR, e participar nas reuniões e sessões de trabalho para que for convocada.

14. Em 1 de outubro de 2004, em 13 de julho de 2005, em 23 de novembro de 2005, em 26 setembro de 2005, em 13 de setembro de 2006, em 21 de novembro de 2006, 2 de janeiro de 2007 e no período compreendido entre 1 de setembro de 2007 e 31 de agosto de 2008, a Autora celebrou com o Instituto de Formação Turística, entidade à qual o Réu sucedeu, contratos subordinados ao título “prestação de serviços”, de acordo com os quais foi contratada para exercer, no primeiro, funções de formadora e de coordenação do Núcleo Escolar do ..., e nos restantes foi contratada ou para exercer funções de formadora ou contratada para exercer funções de Coordenadora do Núcleo.

15. Na cláusula segunda do contrato junto com a petição inicial, como documento n.º 8, pode ler-se: “O Segundo Outorgante obriga-se ainda a prestar ao Primeiro Outorgante os serviços de Coordenação do Núcleo Escolar do ..., com duração de 930 horas.”

16. Em 30 de agosto de 2006, o Subdiretor da Escola de ..., DD, em referência ao ano letivo seguinte (2006/2007) recomendou: a contratação da ora A. para a Coordenação do Núcleo Escolar do ..., em informação de serviço dirigida ao Conselho de Administração do Instituto de Formação Turística, entidade a quem sucedeu o Réu.

17. A referida informação de serviço obteve o seguinte parecer por parte dos serviços jurídicos: “Pese embora o facto de a proposta não se encontrar devidamente fundamentada nos termos legais nomeadamente quanto à relação jurídica já constituída e a constituir releva-se o facto do Núcleo do ... não dispor de trabalhadores com vínculo laboral, capazes de assegurar a abertura e a continuidade do ano letivo 2006/07, o que se afigura uma situação que carece de resolução urgente atendendo à fase de reestruturação que o Inftur atravessa, coloca à consideração superior a decisão relativa à contratação da Coordenadora (…)”.

18. E o seguinte despacho: “(…) autorizo as contratações propostas até ao final do corrente ano civil, data até à qual se promoverão esforços no sentido de garantir o exercício de funções de forma adequada à natureza da relação laboral pretendida ou à manutenção do regime existente (…)”.

19. A Autora, desde que pela primeira vez foi admitida, em 1 de dezembro de 2002, exerceu até ao dia 31 de agosto de 2008, de forma ininterrupta, quer as funções de Coordenação Técnica do Núcleo Escolar do ..., quer as funções de formadora (estas apenas até ao ano letivo 2006/2007), quer as funções de responsável pela organização e atualização dos processos técnico pedagógicos das ações de formação e de promoção do desenvolvimento escolar dos alunos.

20. A Autora sempre esteve obrigada a respeitar os seguintes deveres gerais: respeitar os princípios e normas deontológicas aplicáveis; respeitar as orientações do Réu, e solicitar a sua aprovação para qualquer intervenção, atividade ou serviço que não se encontre genericamente previsto ou não tenha sido solicitado por aquele.

21. E ainda os deveres específicos de coordenação do Núcleo Escolar do ... no funcionamento geral daquele estabelecimento de ensino e formação, nomeadamente, as constantes no documento nº 7 junto com a petição inicial, e que aqui se dão por integralmente reproduzidas.

22. (…).[3]

23. Para a conta de correio eletrónico que o Réu atribuiu à Autora eram enviados, pelo Réu à Autora, para além de diretrizes e indicações, informações internas de funcionamento geral, sendo solicitada a presença da Autora em reuniões e eventos.[4]

24. A Autora sempre dispôs de uma extensão telefónica (com o n.º … extensão …) atribuída pelo Réu da qual efetuava contactos com o exterior.

25. O Réu proporcionou à Autora o acesso ao programa geral de registo de correspondência designado por “Q...”, reservado a trabalhadores do Réu.

26. A Autora entrava diariamente (de segunda a sexta-feira) às 9h30 e saía às 17h30, com período para almoço entre as 13 horas e as 14 horas.[5]

27. Em todos os anos com exceção do ano de 2006 a Autora interrompia o desempenho da sua atividade.[6]

28. A atividade da Autora era prestado nas instalações do Réu, mais propriamente nas do Núcleo Escolar do ..., e todos os instrumentos utilizados pela autora no exercício de tal atividade eram fornecidos pelo réu – designadamente, telefone, computador, impressoras, equipamento de fax, mesas, cadeiras, papel, canetas, lápis e todo o material de escritório essencial ao desenvolvimento da atividade da Autora.

29. A Autora quando não exercia as suas funções nas instalações do Réu, exercia-as em locais por este controlados, obtidos e ou relacionados, designadamente, participação em Feiras Comerciais e Industriais e de Formação Vocacional, em sessões de apresentação da oferta formativa em Escolas Básicas e Secundárias da região, distribuição de material publicitário nos concelhos do ..., C..., C... e G..., atividades estas realizadas anualmente, e organização da “Feira do Livro” em maio de 2006 em conjunto com a docente da disciplina de ....

30. A Autora não dispunha de qualquer outra fonte de rendimento para além daqueles que o Réu lhe proporcionava e, nos contratos que celebraram, a Autora e o Réu, no que respeita à fixação da contrapartida da autora […].[7]

31. A Autora auferiu as seguintes retribuições mensais médias: 2.131,21 € no ano de 2003, 2.267,00 € no ano de 2004, 2.213,00 € no ano de 2005, 2.163,00 € no ano de 2006, 2.474,00 € no ano de 2007 e 2.122,00 € no ano de 2008.

32. A única fonte de rendimento da Autora sempre foi precisamente o rendimento que lhe era proporcionado pelo Réu, sendo precisamente desta base remuneratória que a Autora retirava todo o dinheiro necessário para a sua sobrevivência, não auferindo qualquer outra remuneração paralela.

33. O rendimento que a Autora auferia na sequência do trabalho que desenvolvia por conta do Réu representa mais de metade do rendimento global do agregado familiar.

34. As quantias devidas à autora até ao ano de 2007 era pago por transferência bancária na conta com o NIB ... aberta no …, e no ano de 2008 para a conta com o NIB ... aberta no …, sendo tais transferências normalmente efetuadas no final ou início de cada mês.[8]

35. O Réu conferia à Autora o direito a almoçar no restaurante pedagógico e self-‑service do Núcleo Escolar.

36. A autora dava diretrizes, ordens e instruções, a todos os colaboradores do INFTUR Núcleo Escolar do ....

37. O Réu não pagou à Autora os subsídios de férias e de Natal.

38. As partes declararam nos referidos contratos reduzidos a escrito que a Autora exerceria a sua atividade com total “autonomia, não se encontrando o Segundo Outorgante sujeito à disciplina, nem à subordinação hierárquica do Primeiro Outorgante”.

39. Foi celebrado entre a Autora e o Réu, em 12.01.2009, um contrato para o exercício do cargo de Diretora da Escola de Hotelaria e Turismo do ..., sendo que a Escola e o cargo apenas foram criados pelo Decreto-Lei n.º 226-A/2008, de 20 de novembro, com efeitos a 21.11.2008.

40. A Autora começou por exercer atividade ao serviço do Réu em 01.12.2002, através do contrato junto com a Petição Inicial como Documento n.º 4, com termo a 31.08.2003, de estágio profissional num contexto de complemento da sua formação, ao abrigo da Portaria n.º 1271/97, de 26 de dezembro.

41. A Autora não estava inscrita como trabalhadora dependente.

42. A Autora não observava os regimes fiscais e de segurança social próprios dos trabalhadores dependentes.

43. A Autora emitia os competentes “recibos verdes”, recibos de modelo 6 do CIRS, de quitação, condição de pagamento.

44. A autora [.] não impugnou, até intentar a presente ação, a cessação do contrato como consubstanciando um despedimento ilícito.

45. A celebração do contrato em causa não foi procedido de qualquer procedimento concursal, ou de dispensa do mesmo.

46. A autora celebrou com o réu um acordo que denominaram “contrato de trabalho em regime de comissão de serviço”, vigente entre 12.01.2009 e 31.10.2013, para exercício do cargo de diretora de Escola.

47. A indemnização paga pelo Réu em 2013 respeita ao período de 12.01.2009 a 31.10.2013.

48. A autora assinou acordos escritos, com as seguintes denominações:

i) Contrato de prestação de serviços com o Instituto de Formação Turística, celebrado em 03.11.2003, estipulando-se que se iniciaria em 15.09.2003 e com termo em 31.08.2004, para desempenhar funções de formadora e de assessoria à Coordenação Técnica do Núcleo do ... – Doc. 6 da Petição Inicial;

ii) Contrato de prestação de serviços com o Instituto de Formação Turística, celebrado em 01.10.2004, com início em 01.09.2004 e termo em 31.08.2005, para desempenhar funções de formadora e de Coordenação do Núcleo do ... – Doc. 8 da Petição Inicial;

iii) Contrato de prestação de serviços, com início em 13.07.2005 e termo em 31.08.2005 para desempenhar funções de formadora – Doc. 9 da Petição Inicial;

iv) Contrato de prestação de serviços com o Instituto de Formação Turística, com início em 01.09.2005 e termo em 31.08.2006, para desempenhar funções de Coordenação do Núcleo do ... – Doc. 10 da Petição Inicial;

v) Contrato de prestação de serviços, com início em 26.09.2005 e termo em 15.06.2006 para desempenhar funções de formadora – Doc. 11 da Petição Inicial;

vi) Contrato de prestação de serviços com o Instituto de Formação Turística, com início em 18.09.2006 e termo em 15.06.2007, para desempenhar funções de formadora – Doc. 12 da Petição Inicial;

vii) Contrato de prestação de serviços com efeitos a 01.01.2007 e termo a 31.08.2007, para as funções de Coordenação Técnica do Núcleo Escolar – Doc. 13 da Petição Inicial;

viii) Contrato de prestação de serviços com efeitos a 04.10.2006 e termo a 31.12.2006, para as funções de Coordenação Técnica do Núcleo Escolar – Doc. 14 da Petição Inicial;

ix) Contrato de prestação de serviços, com início em 11.06.2007 e termo em 31.08.2007, para desempenhar funções de formadora – Doc. 15 da Petição Inicial;

x) Contrato de prestação de serviços, com efeitos a 01.09.2007 e termo a 31.08.2008, para as funções de Coordenação Técnica do Núcleo Escolar – Doc. 16 da Petição Inicial;

49. No que diz respeito à atividade de formação, não existem atividades de docência/formação nos meses de julho e agosto de cada ano civil.

50. As médias mensais auferidas pela Autora são as que resultam dos recibos modelo 6 do CIRS de acordo com as folhas/notas de honorários juntos como Documentos n.ºs 88 a 127 da Petição Inicial.

51. A Autora auferia um valor hora e contratualizava com o Recorrente o número de horas a prestar no período a que respeitava cada contrato denominado de prestação de serviços.[9]

52. A Autora recebia um valor mensal variável, em função das horas prestadas.[10]

53. A autora, no caso de doença ou impedimento, podia fazer-se substituir por pessoa singular com formação adequada.[11]

54. A autora não tinha que dar qualquer tipo de justificação de faltas.[12]

55. A autora não estava sujeita a controlo de assiduidade e pontualidade.»[13] [14]

2 – A decisão recorrida, conhecendo do recurso em matéria de facto interposto pelo Réu, alterou o ponto n.º 30 da matéria de facto dada como provada pela 1.ª instância, não extraindo dessa alteração todas as consequências que à mesma estão subjacentes.

Na verdade a redação inicial daquele ponto era a seguinte:

«30. A Autora não dispunha de qualquer outra fonte de rendimento para além daqueles que o Réu lhe proporcionava e, nos contratos que celebraram, a Autora e o Réu, no que respeita à fixação da contrapartida da autora previram uma avença anual, liquidada mediante o pagamento de valores mensais (sempre acima dos € 2.000,00 (dois mil euros).»

A decisão recorrida decidiu alterar este ponto da matéria de facto, nos seguintes termos:

«Não se pode dizer por isso, com rigor que as partes “previram uma avença anual, liquidada mediante o pagamento de valores mensais (sempre acima dos € 2.000,00 (dois mil euros)” que se decide suprimir da redação do ponto 30, no mais se mantendo a redação desse ponto bem como dos outros dois pontos impugnados.»

O decidido fundamentou-se no seguinte:

«18) Os Pontos 30, 32 e 33 da matéria de facto assente devem ser considerados como não provados.

Estes pontos têm, respetivamente, a seguinte redação: “A Autora não dispunha de qualquer outra fonte de rendimento para além daqueles que o Réu lhe proporcionava e, nos contratos que celebraram, a Autora e o Réu, no que respeita à fixação da contrapartida da autora previram uma avença anual, liquidada mediante o pagamento de valores mensais (sempre acima dos € 2.000,00 (dois mil euros)”./ “A única fonte de rendimento da Autora sempre foi precisamente o rendimento que lhe era proporcionado pelo Réu, sendo precisamente desta base remuneratória que a Autora retirava todo o dinheiro necessário para a sua sobrevivência, não auferindo qualquer outra remuneração paralela”./ “O rendimento que a Autora auferia na sequência do trabalho que desenvolvia por conta do Réu representa mais de metade do rendimento global do agregado familiar”.

Em primeiro lugar não se pode olvidar que as declarações de parte também fazem prova e que podem e devem contribuir para a formação da convicção do julgador que, como se sabe, aprecia livremente (salvo os casos excecionais previstos na lei) a prova produzida.

Ora, nenhumas razões verificámos para duvidar das declarações da autora, que nos mereceram crédito, sendo que no confronto da demais prova produzida ficámos convictos de que ela não dispunha de outras fontes de rendimento para além do que auferia no réu, rendimento esse que representava parte substancial dos seus rendimentos.

Por outro lado, conforme decorre do teor dos contratos denominados de prestação de serviços juntos aos autos, as quantias devidas à autora pelo desempenho da sua atividade eram fixadas da seguinte forma: fixou-se um preço hora consoante estas fossem de formação, de assessoria ou de coordenação; fixou-se um valor anual máximo de horas a prestar pela autora sendo que o pagamento era feito mensalmente, como acima se disse, com base na nota de honorários que a autor a presentava mensalmente ao réu.

Não se pode dizer por isso, com rigor que as partes “previram uma avença anual, liquidada mediante o pagamento de valores mensais (sempre acima dos € 2.000,00 (dois mil euros)” que se decide suprimir da redação do ponto 30, no mais se mantendo a redação desse ponto bem como dos outros dois pontos impugnados.»

Tendo-se decidido retirar deste ponto da matéria de facto o segmento «previram uma avença anual, liquidada mediante o pagamento de valores mensais (sempre acima dos € 2.000,00 (dois mil euros)”», e não se tendo indicado qualquer texto que substitua  o segmento retirado, deixou-se aquele ponto da matéria de facto truncado, ao prever apenas que «30. A Autora não dispunha de qualquer outra fonte de rendimento para além daqueles que o Réu lhe proporcionava», segmento que este tem um conteúdo objetivo e um outro segmento, limitado à afirmação de que «nos contratos que celebraram, a Autora e o Réu, no que respeita à fixação da contrapartida da autora» que não integra o conteúdo daquilo que as partes teriam acordado.

Este ponto da matéria de facto tem de ser lido de forma integrada com o acolhido no ponto n.º 34, do qual decorrem as condições de pagamento da contrapartida devida à autora pela prestação da sua atividade.

Não se afigura, deste modo, necessário o recurso ao disposto no artigo 682.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.


III

1 − A relação cuja caracterização constitui objeto do presente processo iniciou-se em dezembro de 2002, na vigência do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de novembro de 1969, vindo a cessar já na vigência do Código de Trabalho de 2009.

Uma vez que a Autora pretende exercer direitos que se prendem com a constituição dessa relação jurídica e que a mesma não sofreu alterações de relevo durante a sua vigência, o presente litígio deve ser resolvido à luz daquele Regime Jurídico, não sendo aplicável o Código de Trabalho em vigor, nem o Código de 2003, entrado em vigor no dia 1 de dezembro daquele ano, por força do disposto no artigo 12.º, n.º 2, do Código Civil.

O contrato de trabalho é definido no artigo 1152.º do Código Civil como «aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob autoridade e direção desta».

Por sua vez, o contrato de prestação de serviço, de acordo com o disposto no artigo 1154.º do mesmo código, é aquele em que uma pessoa «se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição».

A noção de contrato de trabalho consagrada naquele artigo foi retomada no artigo 1.º do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de novembro de 1969, mantendo-se nos seus aspetos essenciais no artigo 10.º do Código de Trabalho de 2003, ou no artigo 11.º do Código do Trabalho de 2009.

Existe uma evidente proximidade entre estes contratos encontrando-se na existência da subordinação jurídica o elemento estruturante na delimitação entre os dois.

O contrato de trabalho caracteriza-se, fundamentalmente, pela dependência jurídica em que o trabalhador se coloca face ao outro contraente, a entidade empregadora, em face da qual o trabalhador fica sujeito às ordens daquela, relativamente aos termos da prestação do seu trabalho e ao respetivo poder disciplinar.

A conformação dos termos da prestação de trabalho tem um dos vetores no poder de direção da entidade empregadora e outro no dever de obediência à disciplina que enquadra essa prestação, decorrente do exercício daquele poder e a que o trabalhador se encontra sujeito.

Importa, contudo, ter presente, como refere MARIA DO ROSÁRIO DA PALMA RAMALHO, que «o reconhecimento tradicional do poder diretivo como critério qualificativo por excelência do contrato de trabalho, enquanto reverso da subordinação do trabalhador, merece ser reponderado, porque corresponde a uma visão excessivamente estreita da própria subordinação e porque o poder de direção é pouco saliente como marca distintiva do contrato de trabalho»[15] e conclui aquela autora pronunciando-se «pela inaptidão do poder de direção para, por si só, poder operar a qualificação do contrato de trabalho», referindo que «sem negar a importância deste poder no contrato, forçoso é reconhecer que tal importância decorre não tanto de uma diferença qualitativa como de uma diferença de intensidade, em razão da maior indeterminação da prestação laboral (…) e do caráter continuado do vínculo»[16].

Por outro lado, na prestação de serviço não existe esta subordinação, tendo o trabalhador autonomia relativamente aos termos da execução do trabalho, ficando, contudo, vinculado ao resultado da atividade prosseguida.

A aparente simplicidade desta delimitação é muitas vezes confrontada com situações de fronteira onde existem elementos que apontam para uma situação de trabalho subordinado, ao lado de outros típicos da autonomia da atividade que caracteriza a mera prestação de serviço.

Conforme se referiu no acórdão desta secção, de 9 de fevereiro de 2012, proferido na revista n.º 2178/07.3TTLSB.L1.S1[17], «nos casos limite, a doutrina e a jurisprudência aceitam a necessidade de fazer intervir indícios reveladores dos elementos que caracterizam a subordinação jurídica, os chamados indícios negociais internos (a designação dada ao contrato, o local onde é exercida a atividade, a existência de horário de trabalho fixo, a utilização de bens ou utensílios fornecidos pelo destinatário da atividade, a fixação da remuneração em função do resultado do trabalho ou em função do tempo de trabalho, direito a férias, pagamento de subsídios de férias e de Natal, incidência do risco da execução do trabalho sobre o trabalhador ou por conta do empregador, inserção do trabalhador na organização produtiva, recurso a colaboradores por parte do prestador da atividade, existência de controlo externo do modo de prestação da atividade laboral, obediência a ordens, sujeição à disciplina da empresa) e indícios negociais externos (o número de beneficiários a quem a atividade é prestada, o tipo de imposto pago pelo prestador da atividade, a inscrição do prestador da atividade na Segurança Social e a sua sindicalização)».

Importa igualmente ter presente que, conforme refere MONTEIRO FERNANDES, «cada um destes elementos, tomado de per si, reveste-se de patente relatividade», pelo que «o juízo a fazer (…) é ainda e sempre um juízo de globalidade, conduzindo a uma representação sintética da tessitura jurídica da situação concreta», não existindo «nenhuma fórmula que pré-determine o doseamento necessário dos índices de subordinação, desde logo porque cada um desses índices pode assumir um valor significante muito diverso de caso para caso»[18].

Torna-se, pois, necessária uma ponderação global dos elementos indiciários constatados, tentando encontrar o sentido dominante dos mesmos, procurando encontrar uma maior ou menor correspondência dessa dimensão global com o conceito-tipo de contrato de trabalho ou de contrato de prestação de serviço.

Por outro lado, «a conclusão no sentido da existência de subordinação jurídica, a partir dos indícios de subordinação indicados, e a consequente qualificação laboral do contrato deve (…) ser rodeada das cautelas normalmente exigidas pela aplicação de um método indiciário à qualificação de um negócio jurídico, deve ainda ter especial atenção à evolução moderna do contrato de trabalho enquanto tipo negocial e, por fim, não deve conduzir a um resultado qualificativo contrário à vontade real das partes na conclusão do negócio».[19]

2 – A decisão recorrida respondeu à questão que constitui o objeto do presente recurso negativamente, nos seguintes termos:

«Importa agora saber se, após a alteração da matéria de facto operada por esta Relação, a solução encontrada se deverá ou não manter.

A questão tem e deve ser resolvida com base nos elementos apurados, interpretando os dados disponíveis a partir da vontade das partes, bem como a partir da execução e do desenvolvimento da própria relação contratual.

Previamente importa, ainda que sumariamente, fazer a distinção [dos] dois tipos contratuais em questão.

(…)

Na situação em apreciação, da materialidade assente, colhe-se que entre as partes foi acordado um concreto tipo de relação profissional a que foi dado o nome de “contratos de prestação de serviço” com o clausulado que dos mesmos consta (fls. 59 a 61, 65 a 90).

Embora o “nomen iuris”, como é sabido, não vincule o tribunal, não deixa de ser mais um elemento que no conjunto com demais, auxiliará na indagação sobre a natureza jurídica do vínculo, designadamente no que se refere à indagação sobre a real vontade das partes aquando da contratação.

Seja como for, há que considerar a forma efetiva pela qual foi sendo executada a relação entre a autora e o réu.

Sabe-se que a subordinação jurídica típica de uma relação de trabalho subordinado implica uma posição de supremacia do credor da prestação de trabalho e a correlativa posição de sujeição do trabalhador, cuja conduta pessoal, na execução do contrato, está necessariamente dependente das ordens, regras ou orientações ditadas pelo empregador, dentro dos limites do contrato e das normas que o regem.

A cargo da entidade patronal estão os poderes determinativo da função e conformativo da prestação de trabalho, ou seja, o poder de dar um destino concreto à força de trabalho que o trabalhador põe à sua disposição, quer atribuindo uma função geral ao trabalhador na sua organização empresarial, quer determinando-lhe singulares operações executivas, traduzindo-se a supremacia da entidade patronal, ainda, nos poderes regulamentar e disciplinar.

A determinação da existência de subordinação jurídica e dos seus contornos consegue-se mediante a análise do comportamento das partes e da situação de facto, através de um método de aproximação tipológica.

A subordinação traduz-se na possibilidade de a entidade patronal orientar e dirigir a atividade laboral em si mesma e/ou dar instruções ao próprio trabalhador com vista à prossecução dos fins a atingir com a atividade deste, e deduz-se de factos indiciários, todos a apreciar em concreto e na sua interdependência, sendo os mais significativos: i) a sujeição do trabalhador a um horário de trabalho; ii) o local de trabalho situar-se nas instalações do empregador ou onde ele determinar; iii) existência de controlo do modo da prestação do trabalho; iv) obediência às ordens e sujeição à disciplina imposta pelo empregador; v) propriedade dos instrumentos de trabalho por parte do empregador; vi) retribuição certa, à hora, ao dia, à semana ou ao mês; vii) exclusividade de prestação do trabalho a uma única entidade - estão aqui em causa os chamados indícios negociais internos (a designação dada ao contrato, o local onde é exercida a atividade, a existência de horário de trabalho fixo, a utilização de bens ou utensílios fornecidos pelo destinatário da atividade, a fixação da remuneração em função do resultado do trabalho ou em função do tempo de trabalho, direito a férias, pagamento de subsídios de férias e de Natal, incidência do risco da execução do trabalho sobre o trabalhador ou por conta do empregador, inserção do trabalhador na organização produtiva, recurso a colaboradores por parte do prestador da atividade, existência de controlo externo do modo de prestação da atividade laboral, obediência a ordens, sujeição à disciplina da empresa) e externos (o número de beneficiários a quem a atividade é prestada, o tipo de imposto pago pelo prestador da atividade, a inscrição do prestador da atividade na Segurança Social e a sua sindicalização) a que se aludem, por exemplo, no acórdão do STJ de 19/12/2012, proferido no âmbito do processo 247/10.4TTVIS.C1.S1, de 9/2/2012, proferido no âmbito do processo 2178/07.3TTLSB.L1.S1, e de 5/11/2013, proferido no âmbito do processo 195/11.8ttcbr.C1.S1.

Diga-se ainda que a subordinação apenas exige a mera possibilidade de ordens e direção e pode até não transparecer em cada momento da prática de certa relação de trabalho, havendo, muitas vezes, a aparência da autonomia do trabalhador que não recebe ordens diretas e sistemáticas da entidade patronal, o que sucede sobretudo em atividades cuja natureza implica a salvaguarda da autonomia técnica e científica do trabalhador.

Importa referir, como quer que seja, que “a autonomia técnica não constitui, por si, óbice à qualificação da situação jurídica no âmbito laboral, como se depreende do disposto no art. 5º n.º 2 da LCT. A autonomia técnica não é conferida ao trabalhador pelo empregador, pois ela resulta da natureza da atividade e da qualificação profissional do trabalhador; em tal caso, o trabalho continua a ser organizado, orientado, controlado e utilizado pelo empregador, subsistindo um contrato de trabalho com uma responsabilidade acrescida para o trabalhador.” – Parecer da Procuradoria-Geral da República 5/2004, de 01/07/2004DR, IIª Série, de 19/08/2004, págs. 12593 e segs; no mesmo sentido, citando Galvão Telles, Abílio Neto, Contrato de Trabalho, suplemento do BMJ, 1979, pág. 171, bem como acórdão do STJ de 22/9/2010 (processo 4401/04.7TTLSB.S1).

Aliás, nesses casos de necessária preservação da autonomia técnica e científica do contratado, importa ter em especial atenção, como já se induz do exposto, que a subordinação jurídica pode ter um conteúdo variável, com distintos graus de concretização e de intensidade, em função do concreto tipo de atividade a prestar, da especialização e da qualificação do contratado.

Não nos restam dúvidas que, no caso que nos ocupa, o objeto da prestação não era a obtenção de um resultado mas sim o desempenho de uma atividade fosse ela de formação ou de coordenação.

Todavia, após a apreciação da matéria de facto feita por esta Relação não podemos concluir que a autora estivesse obrigada a cumprir ou a observar um horário como é típico do trabalho subordinado.

Por outro lado, não estava sujeita a qualquer controlo de assiduidade ou de pontualidade como também é normal (salvo nos casos de isenção) e típico no trabalho subordinado, não estando obrigada a justificar perante a ré as faltas dadas ao serviço.

Também não gozava férias no sentido técnico do termo.

Interrompia apenas a sua atividade do período de verão, na época das férias escolares comunicando tal facto à ré que dava a sua anuência a essa interrupção.

Acresce que embora recebesse mensalmente da ré uma quantia pecuniária como contrapartida do exercício da sua atividade era a autora que, mensalmente, por sua iniciativa, indicava esse valor à ré através da apresentação da “nota de honorários” elaborada com base e com os limites das horas e valores anualmente contratualizados, o que dificilmente é compaginável com a figura da retribuição de um genuíno contrato de trabalho.

Para além disso, um dos elementos determinantes da qualificação da relação como de trabalho subordinado reside no facto de ao beneficiário da prestação assistir o poder de agir disciplinarmente sobre o prestador da atividade.

Ora, no caso, não se provou (e relembre-se que o ónus da prova dos factos caracterizadores da relação como de trabalho subordinado cabe por inteiro à autora), nem tão pouco se alegou que a autora se encontrasse sob a alçada disciplinar da recorrente ou que aquela, alguma vez que fosse, tivesse de facto agido ou pretendido agir disciplinarmente sobre a autora, ou seja, que tivesse pretendido fazer operar qualquer poder disciplinar.

É verdade que se provou que a  ré dava orientações e diretrizes à autora. Mas isso não equivale que lhe estivesse a dar ordens. Essas diretrizes ou orientações, para além de não poderem ser qualificadas como ordens na verdadeira aceção da palavra, compreendem-se perfeitamente e são naturais no âmbito da prestação de uma atividade de formação ou de coordenação na medida em que o Núcleo do ... dependia orgânica e funcionalmente de ..., ou melhor, do réu, sendo normal ou natural que este desse orientações no sentido, designadamente, sobre a forma como os programas escolares deviam ser executados ou sobre o modo como devia ser gerido o Núcleo do ..., o que nos parece perfeitamente compatível com a prestação da atividade em regime de autonomia.

Como se sabe, na prática, nem sempre é fácil distinguir o trabalho subordinado do trabalho autónomo (.).

Se, por um lado, no caso, há factos que podem indiciar a verificação de uma relação de trabalho subordinado, por outro, também se verificam factos que apontam em sentido contrário.

Ponderando sobre todos estes factos, considerando que o ónus da prova recai sobre a autora, entendemos que inexistem factos que nos permitem de uma forma decisiva concluir que a autora no período temporal objeto do pedido formulado (2003 a 2008) tenha estado vinculada ao réu através de uma relação contratual que possa ser caracterizada como laboral pelo que a ação, com o respeito pela decisão proferida ou pela aquela que possa ainda vir a ser proferida, terá de improceder, ficando deste modo prejudicada a apreciação das demais questões que acima se enunciaram como constituindo também o objeto da apelação.»


IV


1 – Insurge-se a recorrente contra a decisão recorrida, referindo que da ponderação dos elementos resultantes da matéria de facto dada como provada, que em seu entender apontam no sentido da existência de uma relação de trabalho subordinado, se constata que estes prevalecem «sobre os elementos referentes ao contrato de prestação de serviços, pelo que» afirma que se deve propender «no sentido de que a relação contratual em causa, apesar de denominada pelas partes como contrato de prestação de serviços, deve ser qualificada juridicamente como contrato de trabalho subordinado».

Destaca que «em finais de 2003 (.) a ligação do Recorrente à Recorrida se alterou de forma clara e objetiva» uma vez que «a partir daquele ano a Recorrente passou a desempenhar funções de Coordenadora do Núcleo do ...» e que «a Recorrente desempenhava mesmo funções de responsável máximo na hierarquia da Recorrida, logo abaixo dos órgãos de direção da Escola de Hotelaria de ... da qual dependia o Núcleo do ..., com as prerrogativas que habitualmente são associadas àquele tipo de categorias» e que «A Ré conferiu à Recorrente, de forma visível e objetiva, poderes de coordenação; poderes esses que durante anos e anos - mais de cinco anos - foram exercidos no dia a dia pela Recorrida».

Realça que «o processo contém um conjunto de factos que se encarregam de demonstrar que a Ré tinha poder sobre a Recorrente, os quais são manifestações do poder de direção que aquela exercia sobre esta, nomeadamente os pontos 20, 21 e 23 dos factos dados como provados» e que a «estava integrada na estrutura orgânica da Recorrida (não era, como esta pretendeu fazer crer, mais um profissional liberal), e que o douto acórdão ora em crise, segue a tese da Recorrida» e que, «dada a sua posição hierárquica, tinha poderes, obrigações e prerrogativas que os outros profissionais liberais ao serviço da Recorrida não tinham».

Para além disso, refere que «tinha um gabinete próprio, só seu, a atividade da Autora era prestado nas instalações do Réu, mais propriamente nas do Núcleo Escolar do ..., e todos os instrumentos utilizados pela autora no exercício de tal atividade eram fornecidos pelo réu, até porque no contrato que outorgaram a Ré determinou que as funções seriam desempenhadas nas suas instalações e dentro do seu horário de funcionamento» e que «a Autora quando não exercia as suas funções nas instalações do Réu, exercia-as em locais por este controlados, obtidos e ou relacionados, designadamente, participação em Feiras Comerciais e Industriais e de Formação Vocacional, em sessões de apresentação da oferta formativa em Escolas Básicas e Secundárias da região, distribuição de material publicitário nos concelhos do ..., C..., C... e G..., atividades estas realizadas anualmente, e organização da "Feira do Livro" em maio de 2006 em conjunto com a docente da disciplina de ...».

Refere também que «a Recorrente, porque tinha funções extremamente alargadas, desempenhava as suas funções não só nas instalações do Núcleo do ... como nos diversos locais onde esta tinha instalações, dando ordens aos responsáveis aos restantes trabalhadores e prestadores de serviços da Recorrida; ordens que estes cumpriam»; que «entrava diariamente (segunda a sexta-feira) às 09.30 e saía às 17.30 com direito a hora de almoço das 13.00 às 14.00, não constando que houvesse outra pessoa ou pessoas com igual prerrogativa» e que «gozava férias, com exceção do ano de 2006, que eram marcadas pela Ré, o que é contrariado pelo acórdão ora em crise, mas que os documentos juntos aos autos desmentem, não constando que houvesse outra pessoa ou pessoas com igual prerrogativa».

Destaca ainda que «faz parte do grupo de trabalhadores em que as amarras da subordinação são menos visíveis, o que não significa que não existam, daí que chamar à colação, a este nível, a não vinculação a um horário rígido, ou a um único local de prestação do trabalho, a aparente não sujeição à disciplina da empresa (no sentido mais restrito da não elaboração de processo disciplinar), o não registo de faltas e até a aparente não sujeição o ordens, traduz uma abstração da realidade, sem qualquer sentido» e termina referindo que «entende que os factos provados inferem claramente que estamos perante uma relação laboral, e consequentemente, que o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de ... é errado, por aplicar aos factos provados o instituto da prestação de prestação de serviços» pelo que lhe afigura que «a relação contratual que a Autora e Ré sempre quiserem celebrar, e de facto celebraram, integra um contrato de trabalho».

2 – Da análise dos elementos decorrentes da matéria de facto dada como provada constata-se que as tarefas assumidas pela recorrente se dividiram em duas áreas que não podem ser confundidas e que se projetam na caracterização da relação estabelecida com contributos diversos.

Na verdade, para além das funções de docente no Núcleo do ... da Escola da Hotelaria e Turismo de ..., onde lecionou algumas disciplinas em funcionamento naquele núcleo, na área da sua formação, a recorrente desempenhou igualmente funções de coordenação daquele núcleo.

Conforme resulta do ponto n.º 14 da matéria de facto dada como provada, a Autora e Ré separaram formalmente a prestação destas diferentes atividades por contratos autónomos, salvo no primeiro contrato que se refere aos dois conjuntos de tarefas.

O desempenho das funções de coordenação do núcleo, no caso um lugar de chefia intermédia na estrutura da Escola de Hotelaria e Turismo de ..., conferia à Autora poderes de direção do núcleo, que englobavam um conjunto vasto de atividades, discriminadas no ponto n.º 13 da matéria de facto dada como provada e que incluíam a possibilidade de dar «diretrizes, ordens e instruções a todos os colaboradores do núcleo».

No desempenho destas funções de coordenadora, a Autora estava dependente diretamente da direção da Escola de Hotelaria e Turismo de ..., cuja orientação acatava, que lhe dava igualmente «diretrizes e indicações» sobre o desempenho das suas atividades.

O exercício de funções de coordenação aponta para uma relação próxima da Autora com a estrutura local do Réu, evidenciando componentes manifestas de integração, sendo a mais importante a do desempenho de funções de natureza hierárquica, por delegação da Escola de Hotelaria e Turismo de ..., sobre os colaboradores do Núcleo de ....

A integração na estrutura do destinatário da atividade prosseguida constituiria um forte indício de subordinação, com relevo relativamente à qualificação da relação de trabalho prosseguida.

A verdade é que no caso dos autos, o peso e o relevo deste indício é fortemente abalado pela possibilidade de a autora se fazer substituir no exercício das suas funções, mesmo das tarefas de coordenação, o que decorre do ponto n.º 53 da matéria de facto dada como provada, na linha do que resulta dos contratos outorgados pelas partes. Tal possibilidade põe claramente em causa a permanência da dimensão pessoal no desempenho dessas tarefas e a integração da Autora na estrutura do Réu.

A possibilidade de substituição articula-se com a ausência de justificação de faltas, embora esta, tal como a ausência de controlo de assiduidade e pontualidade, no caso dos autos se prenda também com a natureza das funções prosseguidas, nomeadamente, com a natureza das funções de chefia.

Posto em causa o relevo e a importância da dimensão de integração derivada do desempenho das funções de coordenação, cumpre ponderar os demais elementos resultantes da matéria de facto dada como provada.

Um dos elementos de relevo deriva da denominação dada pelas partes aos contratos outorgados, sobretudo, tendo também em conta, o que resulta do ponto n.º 46 da matéria de facto dada como provada, relativamente ao desempenho posterior das funções de Diretora da Escola do ..., em que as partes recorreram ao «contrato de trabalho em regime de comissão de serviço» e o facto de a Autora ser licenciada em …..

As partes denominaram então como contrato de prestação de serviços, o acordo a que chegaram relativamente à forma de vinculação da Autora ao Réu.

Este Supremo Tribunal de Justiça vem mantendo, de uma forma praticamente unânime, a respeito do nomen iuris, atribuído pelas partes ao contrato o seguinte entendimento:

«Importa atender ao nomen iuris que as partes deram ao contrato e ao teor das respetivas cláusulas, o que, não sendo decisivo, não deixa de assumir especial relevo, uma vez que se trata de um documento em que as partes expressaram a sua vontade negocial, vontade essa que não poderá deixar de assumir relevância decisiva na qualificação do contrato, salvo nos casos em que a matéria de facto provada permita concluir, com razoável certeza, que outra foi realmente a vontade negocial que esteve subjacente à execução do contrato»[20].

Ou, «quando o contrato tiver sido reduzido a escrito, como no caso agora em apreço aconteceu, não só o nomem juris que as partes lhe deram, como, sobretudo, as próprias cláusulas assumem-se como indícios para a qualificação do contrato, pois, embora sem serem decisivos para a qualificação deste – uma vez que o que releva, para esse efeito, não é a designação escolhida pelas partes nem os termos em que foi redigido, mas sim os termos em que o mesmo foi executado –, assumem importância para ajuizar da vontade das partes no que toca ao regime jurídico que elegeram para regular a relação, sobretudo se os outorgantes forem pessoas instruídas e esclarecidas»[21].

No caso dos autos provou-se também que a Autora desempenhava as suas funções em instalações do Réu e com instrumentos de trabalho a este pertencentes, o que dada a natureza das funções prosseguidas, docentes e de coordenação de núcleo, não é muito expressivo no sentido da caracterização da relação em que se inseria esta prestação de funções, como uma relação de trabalho subordinado.

Para além disso, a forma de retribuição do serviço prestado, calculada com base no «valor hora», do que resultava um valor mensal variável, o facto de a Autora não estar inscrita como trabalhadora dependente» e de não observar «os regimes fiscais e de segurança social próprios dos trabalhadores dependentes» e de emitir «os competentes “recibos verdes”, recibos de modelo 6 do CIRS, de quitação, condição de pagamento», são também indícios que apontam para a existência de uma relação de trabalho autónomo.

3 - Cumpre, pois, fazer uma ponderação global do conjunto de elementos indiciários constatados, tentando encontrar o sentido dominante dos mesmos, procurando encontrar uma maior ou menor correspondência dessa dimensão global com o conceito-tipo de contrato de trabalho ou de contrato de prestação de serviço.

À luz dos elementos decorrentes da matéria de facto é manifesto que o relevo dos indícios relativos à existência de uma situação de trabalho subordinado é muito menor do que aqueles que apontam para uma situação de autonomia no desempenho da atividade da Autora.

Tal como se referiu, o desempenho das funções de coordenação teria algum peso no sentido da afirmação da existência de uma relação de trabalho subordinado, relevando também nessa direção e na atividade docente o desempenho de funções em locais designados pelo Réu e com instrumentos a este pertencentes, bem como o facto de a Autora não ter outras fontes de rendimento, para além dos quantitativos que auferia do Réu.

Contudo, tal como acima se referiu, o relevo destes elementos não é no caso dos autos significativo, sendo no primeiro caso fortemente abalado pela possibilidade de a autora se fazer substituir, não sendo incompatível com uma situação de prestação autónoma de atividade. 

São igualmente significativos os elementos que apontam para a existência de uma relação de trabalho não subordinado, nomeadamente, a interrupção anual do exercício de atividade, o facto de não auferir uma retribuição certa, a inexistência de controle de assiduidade e de faltas, a denominação dada ao contrato, a ausência de tratamento em sede fiscal e de segurança social como trabalhadora dependente.

Na síntese global, o relevo dos elementos que apontam para uma relação de trabalho não subordinado são concludentes e decisivos.

Incumbia à Autora, nos termos do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil, fazer prova dos factos que integrassem a subordinação jurídica que é elemento integrante do contrato de trabalho, o que não fez.


V


Pelo exposto, decide-se negar a revista interposta pela Autora e confirmar a decisão recorrida.

As custas da revista ficam a cargo da Autora.

Junta-se sumário do acórdão.

Lisboa, 18 de maio de 2017

António Leones Dantas (relator)

Ana Luísa Geraldes

Ribeiro Cardoso

______________
[1] Redação resultante da decisão recorrida. A redação original era do seguinte teor: «8. No dia 3 de novembro de 2003, a Autora celebrou ainda com o Instituto de Formação Turística, entidade à qual, o Réu sucedeu nos direitos e obrigações, nos termos supra expostos, um contrato subordinado ao título prestação de serviços, sob o regime de avença, em que se indicava o início a 15 de setembro de 2003 e termo a 31 de agosto de 2004 e que cumulava com o contrato de trabalho referido no precedente ponto 6.»
[2] Redação resultante da decisão recorrida. A redação original era do seguinte teor: «A Autora obrigou-‑se, naquele ano letivo de 2003/2004, a prestar os serviços inerentes às funções, que, de resto, de facto prestou, de formadora e os serviços de coordenação do Núcleo do ..., nos instalações daquele Núcleo, sitas no pavilhão multiusos do ..., no Largo ..., sob autoridade e direção do Réu, mediante uma remuneração que para aquele ano foi de € 4.339,50, enquanto formadora, acrescida de € 21.481,20, enquanto coordenadora.»
[3] Declarado não provado pela decisão recorrida. A redação original era a seguinte: «22. A Autora sempre esteve, desde 01/09/2003, integrada num organigrama funcional que a coloca na dependência direta da coordenadora do núcleo».
[4] Redação resultante da decisão recorrida. A redação original era a seguinte: «Para a conta de correio eletrónico que o Réu atribuiu à Autora eram enviados, pelo Réu à Autora, para além de ordens, diretrizes e indicações, informações internas de funcionamento geral, sendo solicitada a presença da Autora em reuniões e eventos.»
[5] Redação resultante da decisão recorrida. A redação original era do seguinte teor: «A Autora sempre cumpriu um horário de 7 horas diárias, correspondentes a 35 horas semanais, entrando diariamente (de segunda a sexta-feira) às 9h30 e saindo às 17h30, com período para almoço entre as 13 horas e as 14 horas.»
[6] Redação resultante da decisão recorrida. A redação original era do seguinte teor: « A Autora gozou férias todos os anos, com exceção do ano de 2006.»
[7] Redação resultante da decisão recorrida. A redação original era a seguinte: «A Autora não dispunha de qualquer outra fonte de rendimento para além daqueles que o Réu lhe proporcionava e, nos contratos que celebraram, a Autora e o Réu, no que respeita à fixação da contrapartida da autora previram uma avença anual, liquidada mediante o pagamento de valores mensais (sempre acima dos € 2.000,00 (dois mil euros).»
[8] Redação resultante da decisão recorrida. A redação original era do seguinte teor: «O vencimento até ao ano de 2007 era pago por transferência bancária na conta com o NIB ... aberta no …, e no ano de 2008 para a conta com o NIB … aberta no …, e tais transferências, normalmente efetuadas no final ou início de cada mês, eram feitas com a referência “vencimento”».
[9] Aditado pela decisão recorrida.
[10] Aditado pela decisão recorrida.
[11] Aditado pela decisão recorrida.
[12] Aditado pela decisão recorrida.
[13] Aditado pela decisão recorrida.
[14] A numeração dos pontos da matéria de facto de 51 a 54 é da responsabilidade do relator.
[15] Direito do Trabalho – Parte II – Situações Laborais Individuais, Almedina, 2009, p. 54.
[16] Obra citada, p. 56
[17] Disponível nas Bases de Dados Jurídicas da DGSI.
[18] Direito do Trabalho, 14.ª Edição, 2009, Almedina, p. 149.
[19] MARIA DO ROSÁRIO DA PALMA RAMALHO, Obra citada, p. 44.
[20] Acórdão de 10 de novembro de 2010, proferido na revista n.º 3074/07.0TTLSB.L1.S1, disponível nas Bases de Dados Jurídicas da DGSI.
[21] Acórdão de 8 de outubro de 2008, proferido no processo n.º 1328/08, disponível nas Bases de Dados Jurídicas da DGSI com o n.º 08S1328.