Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1517/14.5T8STS-B.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECLAMAÇÃO DE CRÉDITOS
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
CRÉDITO SUBORDINADO
PRESUNÇÃO JURIS ET DE JURE
Data do Acordão: 05/23/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – MASSA INSOLVENTE E INTERVENIENTES NO PROCESSO / MASSA INSOLVENTE E CLASSIFICAÇÕES DOS CRÉDITOS / CRÉDITOS SUBORDINADOS / PESSOAS ESPECIALMENTE RELACIONADAS COM O DEVEDOR.
Doutrina:
- A. Raposo Subtil e outros, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, p. 138;
- Abílio Neto e Herlander Martins, Código Civil Anotado, Livraria Petrony, 7ª edição, p. 23;
- Alexandre Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, 2017, p. 36-40, 280 e 281;
- Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Discurso legitimador, 1983, p. 189;
- Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 3ª Edição, Quid Juris, p. 297;
- Luísa Carvalho e Maria João Machado, Os créditos subordinados, Revista Jurídica Portucalense, n.º 20, 2016, p. 198 e 295;
- Maria do Rosário Epifânio, Manual do Direito da Insolvência, 6ª edição, Almedina, p. 243 e 254;
- Menezes Leitão que defendia estar em causa uma enumeração exemplificativa - Direito Insolvência, 4ª edição, Almedina, 2012, p.105;
- Rui Pinto Duarte, Classificação dos Créditos sobre a Massa Insolvente no Projecto do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, Ministério da Justiça, Coimbra Editora, 2004, p. 55 e 56.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CIRE): - ARTIGOS 48.º, ALÍNEA A) E 49.º, N.º 1, ALÍNEAS A), B) E C).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 06-12-2016, PROCESSO N.º 1223/13.8TBPFR-C.P.S1.
Sumário :

I - A delimitação do conceito de crédito subordinado referente a pessoas singulares especialmente relacionadas com o devedor, que o legislador fixou taxativamente no n.º 1 do artigo 49.º do CIRE, tem subjacente a necessidade de prevenir que determinadas situações de créditos sobre o devedor insolvente sejam utilizadas por forma a prejudicar o ressarcimento dos direitos de crédito dos demais credores.

II - A constatação do vínculo ou situação pessoal constitui presunção iuris et de iure de uma relação especial com o devedor. Consequentemente, existência de qualquer uma das situações aludidas nas alíneas do n.º 1 do artigo 49.º, do CIRE, integra necessariamente a existência de uma especial relação com o devedor, que não pode ser afastada com a alegação e prova de que esse vínculo ou situação em nada determinou ou condicionou o relacionamento com o devedor, ou mesmo com a demonstração de que desse relacionamento resultaram benefícios para o devedor.

III - A conceptualização da categoria dos créditos subordinados prevista nos artigos 48.º, alínea a), 1ª parte e 49.º, n.º1, alíneas a) a c), ambos do CIRE, basta-se na relação especial definida pelo legislador, não se encontrando sujeita a qualquer período temporal limitativo.

IV - Uma interpretação restritiva, de pendor teleológico confinando a finalidade do comando legal à perspectiva da data da constituição do crédito, mostra-se para além do que é possível ser encontrado (objectivamente) no pensamento legislativo expresso no seu texto.

Decisão Texto Integral:


Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I – relatório

1. Nos autos de reclamação e graduação de créditos referente a AA e mulher BB, declarados insolventes por sentença de 05-01-2015, a Administradora da Insolvência, em 16-03-2016, juntou lista dos créditos reconhecidos (fls.8/10 dos autos), não tendo reconhecido o crédito no valor de 200.000€, reclamado por CC e DD.    

2. Impugaram os Reclamantes (fls.19v/93) pugnando pelo reconhecimento do crédito e pela sua qualificação enquanto crédito privilegiado sobre os imóveis objecto de hipoteca voluntária.

3. No saneador o tribunal determinou o objecto do litígio (caracterização e reconhecimento do crédito reclamado por CC e DD.) e fixou os temas de prova (fls. 47/49).

4. Realizado julgamento foi proferida sentença na qual foi decidido:

a) Homologar a lista de credores reconhecidos elaborada pela Sr.a Administradora da Insolvência, constante de fls. 8, dela passando a fazer parte o crédito dos credores CC e DD, no montante de € 200 000,00, e sob a qualificação de "subordinado";

b) Graduar tais créditos, para serem pagos pelo produto da liquidação dos bens apreendidos para a massa insolvente, nos seguintes termos:

No que tange à verba 1 do auto de apreensão:

1.° Os créditos titulados pelo EE, S.A., nos montantes reconhecidos e apurados como gozando de garantia;

2.° Todos os demais créditos, reclamados e reconhecidos, em pé de igualdade, dando-se entre eles rateio se necessário for, sendo que apenas após a já referida salvaguarda das despesas e dívidas da massa, se houver remanescente serão pagos todos os créditos reclamados, rateadamente, em primeiro lugar os comuns e só após, havendo remanescente, os subordinados.

No que tange às verbas 2 e 3 do auto de apreensão:

1.° Todos os créditos, reclamados e reconhecidos, em pé de igualdade, dando-se entre eles rateio se necessário for, sendo que apenas após a já referida salvaguarda das despesas e dívidas da massa, se houver remanescente serão pagos todos os créditos reclamados, rateadamente, em primeiro lugar os comuns, e só após, os subordinados.

5. Inconformada, apelou CC, tendo o Tribunal da Relação do Porto (por acórdão de 06-03-2018) julgado improcedente a apelação confirmando a sentença “sem prejuízo de alguma dissonância nos fundamentos”.

6. CC veio interpor recurso de revista formulando as seguintes conclusões (transcrição do que se reporta ao objecto do recurso a conhecer na revista):

“ (…) VI- In casu, foi o recurso de Apelação interposto para o Venerando Tribunal da Relação do Porto com vista à revogação da decisão proferida pela 1ª instância no que à qualificação do crédito reclamado pela ora Recorrente diz respeito;

VII- Sendo que a Relação, ainda que não sufragando o raciocínio seguido pela Mª Juiz a quo - o qual, refere, deveria conduzir à qualificação de tal crédito como comum - e com fundamentação dissonante, decide pela confirmação do sentido decisório da sentença de 1ª instância, ou seja, manteve a qualificação de subordinado do crédito em causa, tendo tal decisão merecido a unanimidade do colectivo.

VIII - Ora, podendo entender-se que a Relação, no acórdão proferido, não empregou “fundamentação essencialmente diferente”, o que inviabilizará a sua revista nos termos do disposto no Artigo 671º;

IX- Entende a ora Recorrente que tal decisão foi proferida em contradição com o acórdão datado de 6 de Dezembro de 2016, proferido no Proc. 1223/13.8TBPFR-C.P1.S1, por este Supremo Tribunal (acórdão fundamento), já transitado em julgado, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, sendo pois admissível a revista excepcional, nos termos do Artigo 672º, n.º 1, al. c) do C.P.C (Acórdão acessível em www.dgsi.pt e cuja certidão com data de trânsito em julgado se protestará juntar).

X- Vem o presente recurso interposto do, aliás, douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto - por sua vez, interposto da sentença de verificação e graduação de créditos proferida nos autos de insolvência de AA e mulher, FF na parte em que, não obstante tenha julgado verificado e reconhecido o crédito reclamado pelos credores/impugnantes CC e DD; julgado válida a garantia de pagamento do mesmo, constituída mediante hipoteca voluntária de 27 de Outubro de 2009 e registada nessa mesma data sobre três imóveis pertença dos insolventes, qualificou, porém, tal crédito, como subordinado -, o qual, ainda que com distinta fundamentação, confirmou o decido em 1ª instância, ou seja, manteve a qualificação do crédito da ora Recorrente como subordinado.

XI- Decisão esta que a ora Recorrente, CC não aceita por entender que, salvo o devido respeito, a mesma resulta de incorrecta interpretação e aplicação do direito aos factos apurados, os quais ora se transcrevem:

a)Por sentença proferida em 05.01.2015, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de AA e FF, com os demais sinais identificadores constantes dos autos, após aqueles se terem apresentado à insolvência através de requerimento que deu entrada em juízo em 26 de Dezembro de 2014;

b)No âmbito do apenso de apreensão de bens, foram apreendidos a favor da massa insolvente três prédios, a saber, um prédio urbano, sito em ..., e dois rústicos sitos em ..., ali melhor identificados a fls. 4 daquele apenso, cujo teor aqui se dá por reproduzido;

c) Sobre tais prédios constam registadas hipotecas voluntárias a favor de CC e DD, em 27.10.2009, para garantia de empréstimo, sendo que apenas por referência ao prédio urbano consta registada hipoteca anterior a favor do GG, conforme decorre das certidões registrais juntas a fls. 9 a 16 do apenso A, que aqui se dão por reproduzidas;

d) Por documento intitulado “Hipoteca Unilateral” realizado em 27.10.2009, na Primeira Conservatória do Registo Predial da Maia, FF, declarou, por si e na qualidade de procuradora de seu marido AA, ser dona, juntamente com seu marido, dos três prédios referidos em c), e que, nesse acto, constitui hipoteca sobre os aludidos imóveis a favor de DD e mulher CC, hipoteca que é constituída para garantir um empréstimo no montante de “duzentos mil euros” já concedido à declarante e seu marido, por documento particular, e que o prazo de amortização da referida quantia terminaria em 30.09.2013, mantendo-se a hipoteca enquanto durar qualquer responsabilidade emergente, tudo conforme documento junto a fls. 25 verso a fls. 27 deste apenso, que aqui se dá por inteiramente reproduzido;

e) O valor mencionado em d) resultou da concessão de vários empréstimos por banda dos ora impugnantes aos aqui insolventes, ao longo de vários anos, entre 1994 e 2006;

f) Tais empréstimos foram objecto de registo num livro de “deve-haver” pertença e em posse dos credores impugnantes, do qual resultam as datas e os valores que foram sendo mutuados, tudo conforme ressalta da cópia do documento junto a fls. 32 verso a 33 deste apenso, cujo teor se dá aqui por reproduzido;

g) Tal documento é da autoria da impugnante CC e encontra-se rubricado pelo insolvente AA no canto inferior direito;

h) A Sr.ª AI nomeada nos autos, aquando da prolação da sentença declaratória da insolvência, Dr.ª HH, apresentou a lista a que alude o art.º 129.º do CIRE, sendo que da lista dos credores não reconhecidos foi feito constar a identificação dos credores CC e DD, e o valor do crédito não reconhecido como sendo de € 200.000,00, mais constando a razão de tal “não reconhecimento” como tendo tido fundamento na nulidade do contrato de mútuo por vício de forma (art.º 1143.º do Código Civil), já que conforme documento de constituição de hipoteca, esta se terá destinado a garantir um empréstimo de 200.000,00 concedido por documento particular, tudo como flui do teor de fls. 10 deste apenso, que aqui se dá por reproduzido;

i) AA é filho de DD e de CC, e a escritura referida em d) resultou de acto de vontade por parte dos insolventes, face à circunstância de o marido insolvente ter pretendido salvaguardar a satisfação das quantias mutuadas, atenta a existência de outros filhos daqueles DD e CC.

XII - Sendo o presente recurso de revista excepcional interposto ao abrigo do disposto no Artigo 672º, n.º 1, al. c) do C.P.C., porquanto o acórdão recorrido confirma, sem voto de vencido e, podendo entender-se, sem fundamentação essencialmente diferente, que a sentença proferida em 1º instância está em manifesta contradição com o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, 6ª Secção, processo 1223/13.8TBPFR-C.P1.S1 (acórdão fundamento).

XIII-     Sem prescindir, caso se entenda que in casu não se verificam os pressupostos do Artigo 672º, n.º 1, al. c) do C.P.C., deverá o presente recurso de revista ser admitido nos termos do disposto no Artigo 671º, n.º 3 e 672º, n.º 5, ambos do C.P.C., atendendo, máxime, à dissonância na fundamentação apresentada no acórdão em crise.

XIV- As classes de créditos sobre a insolvência encontram-se plasmadas no Artigo 47º, n.º 4 do CIRE, o qual dispõe que:

«4 - Para efeitos deste Código, os créditos sobre a insolvência são:

a) ‘Garantidos’ e ‘privilegiados’ os créditos que beneficiem, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objecto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes;

b)‘Subordinados’ os créditos enumerados no artigo seguinte, excepto quando beneficiem de privilégios creditórios, gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da declaração de insolvência;

c)‘Comuns’ os demais créditos.»

XV- Dispondo o Artigo 48º, al. a) do CIRE, quanto ao caso que aqui nos ocupa que:

«Consideram-se subordinados, sendo graduados depois dos restantes créditos sobre a insolvência:

a) Os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respectiva aquisição,…»,prevendo o artigo seguinte do CIRE (Artigo 49º) quais as pessoas havidas como especialmente relacionadas com o devedor, onde se encontram, na sua al . b) os ascendentes.

XVI- No acórdão fundamento, não se colocando em questão que o conjunto normativo formado pelos Artigos 48°, ai. a) e Artigo 49°, n.° 1, ai. b), encerra uma presunção inilidível ou iuris et de iure, está em causa a interpretação a dar a tal conjunto normativo, ao abrigo do estatuído no Artigo 9.º, n.° 1 do Código Civil “ Ora, interessa ter presente, no que respeita á razão de ser (elemento racional ou teleológico da interpretação) das estatuições da alínea a) do art. 48º e do nº 1 do art. 49º, o que consta do preâmbulo do DL nº 53/2004, diploma que aprovou o CIRE. Retira-se daí (ponto 25), na síntese de Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 6ª ed, p. 245), que a filosofia subjacente à classificação como subordinados dos créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor deve-se « ”à situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor relativamente aos demais credores”, por um lado, e, por outro, ao aproveitamento dessas relações especiais feito pelo próprio devedor para frustrar as finalidades do processo de insolvência» (à semelhança, aliás, de outros mecanismos previstos no CIRE, como seja a resolução de atos em benefício da massa insolvente).

Sendo esta a razão de ser inerente à estatuição legal, logo se imporá interpretar os citados normativos de modo a abranger na sua previsão apenas (interpretação restritiva) os casos em que se possa estabelecer lógica e razoavelmente um nexo temporal que de alguma forma coenvolva ou comprometa a suposta superioridade informativa (ou o aproveitamento feito pelo devedor) com uma futura condição insolvencial.

O que é dizer, noutra formulação, só fará sentido considerar para o efeito um “período vizinho da abertura do processo de insolvência” (na expressão dos supra citados autores), e não já um qualquer período sem limite algum. A lei procura subalternizar os créditos daqueles de quem admite que possam ter agido de má-fé ou com ligeireza (estariam em condições de conhecer a situação em que se encontrava o devedor, logo é justo que vejam os seus créditos receberem um tratamento menos favorável) com reporte a uma atual ou futura situação económica deficitária do devedor, e isto só se concebe, com um mínimo de razoabilidade, quando, precisamente, exista alguma proximidade entre uma coisa e outra. A própria lei, no caso previsto na última parte da alínea a) do art. 48º, mostra-se sensível à necessidade de haver limites temporais (dois anos anteriores ao início do processo de insolvência), opção esta que, mutatis mutandis, bem pode aqui ser usada para reforçar a bondade da ideia de que também em caso como o vertente haverá que atender a algum tipo de limite temporal. (O mesmo se poderia dizer a partir das hipóteses da alínea a), 2ª parte e d) do art. 49º).

Podemos assim concluir que não têm aplicação a alínea a) do art. 48º e a alínea b) do nº 1 do art. 49º quando se mostra que a constituição do crédito está de tal forma afastada no tempo do início do processo de insolvência que, dentro da normalidade das coisas, se trata de dois acontecimentos totalmente independentes, isto é, sem qualquer correlação, afinidade ou implicação entre si. Em um tal caso, a especial relação entre credor e devedor apresenta-se, para os fins ora em discussão, como indiferente ou irrelevante no que tange à constituição do crédito que virá depois a ser reclamado na insolvência. E isto afigura-se-nos ademais de realçar quando o crédito é reportado a momento tão distante que vai cair numa altura em que a figura dos créditos subordinados nem sequer existia ainda no plano legal, hipótese em que não seria exigível ao credor especialmente relacionado com o devedor que representasse a possibilidade de subalternização do seu crédito em caso de uma eventual insolvência do devedor (note-se que não estamos aqui a emitir qualquer juízo acerca da aplicação do CIRE no tempo, mas apenas a significar a ilogicidade de se interpretar a norma em causa sem levar em linha de conta o fator tempo); aí se entendendo que, não obstante a existência da relação especial com o devedor, o crédito constituído em junho de 2002, não pode ser relacionado com a declaração de insolvência do devedor, declarada 12 anos depois (Janeiro de 2014);

XVII- Já não considerando, para a qualificação do crédito, a constituição da hipoteca (em 28/09/2012), dada a sua proximidade com a declaração de insolvência.

XVIII – Afasta, pois, o acórdão fundamento uma interpretação literal do citado conjunto normativo composto pelos Artigos 48º, al. a), 1ª parte e Artigo 49º, n.º 1, al. b), ambos do CIRE, em violação do disposto no Artigo 9º do Código Civil que, como acima referido, para além da letra da lei, manda atender ao pensamento legislativo; à unidade do sistema jurídico; às circunstâncias em que a lei foi elaborada e às condições específicas do tempo em que é aplicada.

XIX- Nos presentes autos, à semelhança do acórdão fundamento, está em causa a qualificação de um crédito constituído entre 1994 e 2006, reclamado pelos pais do insolvente marido (e reconhecido por decisão já transitada em julgado), que a Recorrente pretende ver qualificado como privilegiado, face à garantia hipotecária de que beneficia, constituída mais de cinco anos (em 27/10/2009) antes da apresentação à insolvência (26/12/2014) e sem que se tenha provado, ainda que indiciariamente, que a mesma teve qualquer correlação com a situação de insolvência ou visou prejudicar os credores.

XX- Ora, circunscrevendo-se esta situação dentro do mesmo quadro normativo do acórdão fundamento, entende a ora Recorrente que a mesma deverá ser objecto da mesma interpretação restritiva plasmada no acórdão fundamento, conferindo-se a necessária relevância ao lapso temporal decorrido, seja entre a constituição do crédito e a declaração de insolvência dos devedores; seja entre a constituição da hipoteca que o visou garantir e essa mesma declaração de insolvência.

XXI- O que levará à alteração da decisão, qualificando-se o crédito da ora Recorrente como privilegiado, devendo o mesmo ser graduado em conformidade.

XXII - Ainda e sempre sem prescindir, deve a presente revista ser admitida, nos termos do disposto no Artigo 671º, n.º 2 do C.P.C., dada a distinta fundamentação plasmada no acórdão recorrido, ao, mantendo o sentido decisório da 1ª instância, consignar, porém, uma interpretação declarativa do quadro normativo formado pelos Artigos 48º, al. a) e 49º, n.º 1 al. b) do CIRE.

XXIII- Decisão que, assim, também não se poderá manter por incorrer em incorrecta aplicação do direito aos factos provados e incorrecta interpretação do disposto nos Artigos 48º, al. a), 1ª parte, e Artigo 49º, n.º 1 al. b) do CIRE, devendo ser substituída por outra que qualifique tal crédito como privilegiado, face às hipotecas de que beneficia, e, assim, ser pago pelo produto da venda dos respectivos imóveis.

XXIV- Efectivamente, in casu, face aos factos demonstrados, de acordo com a melhor interpretação do quadro normativo em causa (e plasmado no acórdão deste STJ de 06/12/2016, processo 1223/13.8TBPFR-C.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt), a relação especial entre credor e devedor não poderá relevar, dado o lapso de tempo decorrido desde a constituição do crédito e ulterior garantia do mesmo, até à verificação da situação de insolvência, lapso de tempo esse que não poderá ser julgado irrelevante já que é a própria lei que, em várias disposições legais, entende que só deverão ser afectadas pela situação insolvencial as situações verificadas dentro de determinado período temporal, como é o caso dos dois anos anteriores ao inicio do processo de insolvência previsto nos Artigos 48º, al. a) e 49º, 120º, todos do CIRE;

XXV- Não deixando também de ser paradigmático de tal relevância do lapso de tempo, os prazos ainda mais curtos plasmados nas várias situações consignadas no n.º 1 do Artigo 121º do CIRE.

XXVI- Efectivamente, a lei insolvencial, também nos normativos atendidos (Artigo 48º, al. a), 1ª parte e Artigo 49º, n.º 1, al. b) do CIRE) considera como período próximo ou vizinho da abertura do processo de insolvência apenas os dois anos anteriores, sendo este período, em nosso entendimento a medida da proximidade relevante.

XXVII- Por tudo o exposto, deverá o acórdão recorrido ser revogado, por resultar de incorrecta aplicação do direito aos factos provados e incorrecta interpretação do disposto nos Artigos 48º, al. a), 1ª  parte, Artigo 49º, n.º 1 al. b), ambos do CIRE e Artigo 9º, n.º 1 do Código Civil; o qual deverá ser substituído por outro que qualifique o crédito da ora Recorrente como privilegiado, face às hipotecas de que beneficia, graduando-o em conformidade, de modo a que o mesmo seja pago pelo produto da venda dos respectivos imóveis.

7. Não foram apresentadas contra alegações.

8. Por não se mostrarem preenchidos os pressupostos legais para a admissibilidade da revista normal, foi determinado o prosseguimento do recurso como revista excepcional, tendo a Formação decidido verificar-se o pressuposto de admissibilidade da revista excepcional previsto na alínea c) do n.º1 do artigo 672.º do CPC – oposição de acórdãos.

II – APRECIAÇÃO DO RECURSO

De acordo com o teor das conclusões das alegações (que delimitam o âmbito do conhecimento por parte do tribunal, na ausência de questões de conhecimento oficioso – artigos 608.º, n.º2, 635.º, n.4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil – doravante CPC) mostra-se submetida à apreciação deste tribunal a seguinte questão:
ð Da qualificação do crédito reconhecido

1.1 Os factos provados
a) Por sentença proferida em 05.01.2015, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de AA e FF, com os demais sinais identificadores constantes dos autos, após aqueles se terem apresentado à insolvência através de requerimento que deu entrada em juízo em 26 de Dezembro de 2014;
b) No âmbito do apenso de apreensão de bens, foram apreendidos a favor da massa insolvente três prédios, a saber, um prédio urbano, sito em ..., e dois rústicos sitos em ..., ali melhor identificados a fls. 4 daquele apenso, cujo teor aqui se dá por reproduzido;
c) Sobre tais prédios constam registadas hipotecas voluntárias a favor de CC e DD, em 27.10.2009, para garantia de empréstimo, sendo que apenas por referência ao prédio urbano consta registada hipoteca anterior a favor do GG, conforme decorre das certidões registrais juntas a fls. 9 a 16 do apenso A, que aqui se dão por reproduzidas;
d) Por documento intitulado "Hipoteca Unilateral" realizado em 27.10.2009, na Primeira Conservatória do Registo Predial da …, FF, declarou, por si e na qualidade de procuradora de seu marido AA, ser dona, juntamente com seu marido, dos três prédios referidos em c), e que, nesse acto, constitui hipoteca sobre os aludidos imóveis a favor de DD e mulher CC, hipoteca que é constituída para garantir um empréstimo no montante de "duzentos mil euros" já concedido à declarante e seu marido, por documento particular, e que o prazo de amortização da referida quantia terminaria em 30.09.2013, mantendo-se a hipoteca enquanto durar qualquer responsabilidade emergente, tudo conforme documento junto a fls. 25 verso a fls. 27 deste apenso, que aqui se dá por inteiramente reproduzido;
e) O valor mencionado em d) resultou da concessão de vários empréstimos por banda dos ora impugnantes aos aqui insolventes, ao longo de vários anos, entre 1994 e 2006;
f) Tais empréstimos foram objecto de registo num livro de "deve-haver" pertença e em posse dos credores impugnantes, do qual resultam as datas e os valores que foram sendo mutuados, tudo conforme ressalta da cópia do documento junto a fls. 32 verso a 33 deste apenso, cujo teor se dá aqui por reproduzido;
g) Tal documento é da autoria da impugnante CC e encontra-se rubricado pelo insolvente AA no canto inferior direito;
h) A Sra. AI nomeada nos autos, aquando da prolação da sentença declaratória da insolvência, Dra. HH, apresentou a lista a que alude o art.° 129.° do CIRE, sendo que da lista dos credores não reconhecidos foi feito constar a identificação dos credores CC e DD, e o valor do crédito não reconhecido como sendo de € 200.000,00, mais constando a razão de tal "não reconhecimento" como tendo tido fundamento na nulidade do contrato de mútuo por vício de forma (art.° 1143.° do Código Civil), já que conforme documento de constituição de hipoteca, esta se terá destinado a garantir um empréstimo de 200.000,00 concedido por documento particular, tudo como flui do teor de fls. 10 deste apenso, que aqui se dá por reproduzido;
i) AA é filho de DD e de CC, e a escritura referida em d) resultou de acto de vontade por parte dos insolventes, face à circunstância de o marido insolvente ter pretendido salvaguardar a satisfação das quantias mutuadas, atenta a existência de outros filhos daqueles DD e CC.

2. O direito

Da classificação do crédito reconhecido aos Recorrentes

Em causa para apreciação está a classificação do crédito reconhecido aos Recorrentes[1], pais do Insolvente[2], no valor de 200.000,00€, resultante de sucessivos empréstimos que aqueles foram concedendo ao filho, durante vários anos (entre 1994 e 2006), tendo sido estipulado o prazo de amortização, em 30-09-2013, no acto de constituição de hipoteca (em 27-10-2009) para garantia daquele montante.

No seguimento do decidido na sentença, o acórdão recorrido classificou tal crédito como subordinado por força do que dispõem os artigos 48.º, alínea a) e 49.º, alínea a), ambos do CIRE, afastando a possibilidade de, no caso, ser ponderado um limite temporal relativamente à constituição do crédito. Alicerçou-se, no seguinte raciocínio:

- o artigo 48.º, alínea a), do CIRE, funda-se na suspeição relativamente a tais créditos em termos de constituírem a prática de actos prejudiciais aos credores;

- a prática de actos prejudiciais aos credores não tem a ver, necessariamente, com a previsibilidade da insolvência no momento da constituição do crédito, antes está radicada na consideração de uma superioridade informativa dessas pessoas quanto à efectiva condição do devedor e da influência que sobre o mesmo podem exercer (designadamente favorecer situações de ulterior e indiscriminado endividamento);

- a norma, instituindo uma presunção inilidível, induz à sua interpretação declarativa no entendimento do que o seu sentido literal exprime;

- no preenchimento fáctico da previsão legal de uma presunção inilidível, ainda que se mostre legítimo fazer apelo à teleologia da mesma, cabe ter em conta a tutela da aparência no sentido da norma se encontrar edificada, com valor irrefutável, na concordância habitual da aparência com a realidade.

        Insurge-se a Recorrente relativamente a este entendimento defendendo que, no caso, na relação especial entre credores/devedor assume relevância o lapso de tempo decorrido entre a constituição do crédito e ulterior garantia do mesmo e a situação de insolvência. Estriba-se no entendimento elegido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2016, proferido no Processo n.º 1223/13.8TBPFR-C.P.S1.   

         Imputa, por isso, ao acórdão recorrido, incorrecta interpretação da lei porque confinada ao seu elemento literal, sem levar em conta o pensamento legislativo, a unidade do sistema jurídico e as circunstâncias específicas em que a mesma é aplicada.

         Perante os posicionamentos evidenciados, uma vez que se mostra incontroverso que os credores, na qualidade de pais do devedor insolvente, se incluem na previsão literal do artigo 49.º, n.º1, alínea b), do CIRE, sendo considerados, no domínio da insolvência, pessoas especialmente relacionadas com o devedor para efeitos da qualificação do crédito como subordinado (artigo 48.º, alínea a), do CIRE), importa determinar da (ir)relevância, nessa qualificação, do condicionamento temporal relativamente à constituição do crédito.

Reconduz-se assim a questão sob apreciação em avaliar se as referidas normas – alínea a) do artigo 48.º e alínea a) do n.º2 do artigo 49.º, ambos do CIRE – devem/podem ser objecto de uma interpretação restritiva, afastando da sua previsão as situações em que a data da constituição do crédito relativamente ao início do processo de insolvência seja de tal modo distante que revele a impossibilidade de ser estabelecida qualquer correlação, afinidade ou implicação entre si.

         Foi este o posicionamento assumido no Acórdão deste Tribunal de em que a Recorrente alicerça o recurso.

         Vejamos.

2. No que para o caso assume cabimento, a alínea a) do artigo 48.º do CIRE, classifica como subordinados (por forma a serem graduados depois dos restantes créditos sobre a insolvência) os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor, desde que a relação especial existisse já aquando da respectiva aquisição, e por aqueles a quem eles tenham sido transmitidos nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.

Dispõe o artigo 49.º, n.º1, do ciado CIRE, que são havidos como especialmente relacionados com o devedor pessoa singular:

a) O seu cônjuge e as pessoas de quem se tenha divorciado nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência;

b) Os ascendentes, descendentes ou irmãos do devedor ou de qualquer das pessoas referidas na alínea anterior;

c) Os cônjuges dos ascendentes, descendentes ou irmãos do devedor;

d) As pessoas que tenham vivido habitualmente com o devedor em economia comum em período situado dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.

A categoria dos créditos subordinados identificados no citado artigo 48.º, do CIRE[3], novidade introduzida pelo CIRE[4], visou O combate a uma fonte frequente de frustração das finalidades do processo de insolvência, qual seja a de aproveitamento, por parte do devedor, de relações orgânicas ou de grupo, de parentesco, de especial proximidade, dependências ou outras, para praticar atos prejudiciais aos credores.

Evidencia-se do elenco plasmado no artigo 48.º, do CIRE, que a classificação destes créditos se mostra determinada por diversas razões que a lei optou penalizar - reportadas à qualidade do seu titular e às circunstâncias referentes à sua constituição (alíneas a), d) e e)), à natureza do crédito (alíneas b), f) e g)) e à qualificação atribuída pelas partes (alínea c)) – justificando um tratamento menos favorável, particularmente, na fase de pagamento, que só ocorre após serem totalmente satisfeitas todas as demais categorias precedentes (artigo 177.º, n.º1, do CIRE),[5] ficando, assim, numa posição subalternizada relativamente a todos os restantes créditos[6].

Está subjacente a esta categoria de créditos, tratada desfavoravelmente pelo legislador, a necessidade de prevenir que determinadas situações de créditos sobre o devedor insolvente sejam utilizadas por forma a prejudicar o ressarcimento dos direitos de crédito dos demais credores.

Nesse sentido se compreende a perspectiva dos que consideram que a lei acaba por impor, quanto a esta categorização, uma autêntica sanção uma vez que, na maior parte dos casos, porque na cauda da hierarquia[7] dos demais créditos, a probabilidade de serem ressarcidos se mostra ínfima ou mesmo nula.

As situações de créditos sobre o devedor que o legislador entendeu distinguir negativamente respeitam, sublinhe-se, em função da qualidade dos titulares que os detêm ou em razão das características objectivas dos próprios créditos.[8]

Na delimitação decorrente da qualidade dos titulares do crédito – a que assume cabimento nos autos – o artigo 48.º, do CIRE, considera subordinados, em primeiro lugar, os créditos das pessoas especialmente relacionadas com o devedor (desde que essa relação já existisse à data da aquisição do crédito - alínea a)) que, taxativamente[9], fixa no artigo 49.º, do mesmo código, diferenciando pessoas singulares e pessoas colectivas ou patrimónios autónomos.

Relativamente às pessoas singulares especialmente relacionadas com o devedor a lei dá relevância às relações familiares resultantes do casamento, parentesco e afinidade (ascendentes, descendentes e irmãos do devedor, cônjuges dos ascendentes, descendentes ou irmãos do devedor, bem como ascendentes, descendentes e irmãos do cônjuge do devedor ou da pessoa de quem ele se tenha divorciado) e às relações que decorrem da vivência em economia comum com o devedor (pessoas que tenham vivido habitualmente com o devedor em economia comum em período situado dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência – alínea d)).

Quanto às relações familiares resultantes do casamento assumem ainda pertinência as já cessadas, embora a lei tenha estabelecido um prazo limite: nos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência. 

Salientam Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda[10] que é a particular natureza dos vínculos mantidos com o devedor por parte desse núcleo de pessoas que as coloca sob um estatuto singular relativamente à insolvência, fundados, no essencial, na presunção do maior risco que as operações com eles praticadas pelo insolvente envolvem para o conjunto dos credores.

No que respeita à questão de saber se a constatação do vínculo ou situação pessoal constitui presunção iuris tantum ou presunção iuris et de iure de uma relação especial com o devedor, tem merecido entendimento concordante da jurisprudência e preponderante da doutrina[11], a natureza inilidível das presunções estabelecidas no referido preceito. Consequentemente, a existência de qualquer uma das situações aludidas nas referidas alíneas do artigo 49.º, do CIRE, integra necessariamente a existência de uma especial relação com o devedor, que não pode ser afastada com a alegação e prova de que esse vínculo ou situação em nada determinou ou condicionou o relacionamento com o devedor, ou mesmo com a demonstração de que desse relacionamento resultaram benefícios para o devedor.

Outra questão que tem vindo a ser colocada quanto à delimitação do conceito de crédito subordinado referente a pessoas singulares especialmente relacionadas com o devedor e tem sido apreciada na jurisprudência de forma dissonante reporta-se a saber se nessa qualificação basta a especial relação resultante da posição familiar ou se importará, também, que a constituição do crédito se mostre próxima (de algum modo relacionada) com a declaração da insolvência (créditos criados num período vizinho à abertura da insolvência).

O acórdão do STJ de 06-12-2016 em que os Recorrentes alicerçam a pretensão recursória enveredou por uma interpretação restritiva do conjunto normativo formado pelos artigos 48.º, alínea a), 1ª parte e 49.º, n.º1, alíneas a) a c), do CIRE, tecida em função do elemento racional e teleológico da interpretação ínsito do ponto 25 do preâmbulo do DL 53/2004, que aprovou o CIRE.

Foi assim considerado[12] que a razão inerente à estatuição legal que classifica como subordinados os créditos detidos por pessoas especialmente relacionadas com o devedor se deve à situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor relativamente aos demais credores, bem como ao aproveitamento dessas relações especiais feito pelo próprio devedor para frustrar as finalidades do processo de insolvência (à semelhança, aliás, de outros mecanismos previstos no CIRE, como seja a resolução de actos em benefício da massa insolvente).

Refere o douto aresto que sendo esta a razão de ser inerente à estatuição legal, logo se imporá interpretar os citados normativos de modo a abranger na sua previsão apenas (interpretação restritiva) os casos em que se possa estabelecer lógica e razoavelmente um nexo temporal que de alguma forma coenvolva ou comprometa a suposta superioridade informativa (ou o aproveitamento feito pelo devedor) com uma futura condição insolvencial. O que é dizer, noutra formulação, só fará sentido considerar para o efeito um “período vizinho da abertura do processo de insolvência” (na expressão dos supra citados autores), e não já um qualquer período sem limite algum. A lei procura subalternizar os créditos daqueles de quem admite que possam ter agido de má-fé ou com ligeireza (estariam em condições de conhecer a situação em que se encontrava o devedor, logo é justo que vejam os seus créditos receberem um tratamento menos favorável) com reporte a uma atual ou futura situação económica deficitária do devedor, e isto só se concebe, com um mínimo de razoabilidade, quando, precisamente, exista alguma proximidade entre uma coisa e outra. A própria lei, no caso previsto na última parte da alínea a) do art. 48º, mostra-se sensível à necessidade de haver limites temporais (dois anos anteriores ao início do processo de insolvência), opção esta que, mutatis mutandis, bem pode aqui ser usada para reforçar a bondade da ideia de que também em caso como o vertente haverá que atender a algum tipo de limite temporal. (O mesmo se poderia dizer a partir das hipóteses da alínea a), 2ª parte e d) do art. 49º).

Na sequência deste raciocínio o acórdão concluiu no sentido da inaplicação dos referidos preceitos quando se mostra que a constituição do crédito está de tal forma afastada no tempo do início do processo de insolvência que, dentro da normalidade das coisas, se trata de dois acontecimentos totalmente independentes, isto é, sem qualquer correlação, afinidade ou implicação entre si.

Preconiza pois o aresto a necessidade de se ter em linha de conta o factor tempo (quanto à constituição do crédito) na interpretação/aplicação dos referidos preceitos por forma a não se cair em ilogicidade da norma relativamente àquelas situações em que se mostre que o crédito é reportado a momento tão distante que vai cair numa altura em que a figura dos créditos subordinados nem sequer existia ainda no plano legal, hipótese em que não seria exigível ao credor especialmente relacionado com o devedor que representasse a possibilidade de subalternização do seu crédito em caso de uma eventual insolvência do devedor.

Sem prejuízo de se conceber que este poderia constituir um entendimento coadunável nas situações de desmedida anterioridade do crédito (relativamente à declaração de insolvência)[13], designadamente numa altura que nem seria possível prever a existência da subalternização (quando a constituição do mesmo se reportasse a período anterior ao CIRE onde esta categorização constituiu uma novidade), não nos parece que uma tal interpretação restritiva seja permitida.

3. O artigo 9.º, do Código Civil, enquanto preceito essencial da hermenêutica jurídica, indica-nos os meios de que o intérprete se pode/deve socorrer para apreender o sentido da norma, consubstanciando a letra da lei (o grau elementar da actividade interpretativa) a base e, também, o marco[14] da actividade interpretativa.

         Sendo pois o elemento literal o primeiro por que se deverá iniciar a procura do sentido da expressão legal terá o mesmo, auxiliado pelos demais elementos (sistemático, lógico e histórico), de ser norteado para o fim que a norma procura alcançar; nessa medida, como ensina Manuel de Andrade a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleológica[15].

        Sendo a conclusão interpretativa resultado da preservação do valor da finalidade da norma, a sua actividade passa necessariamente pela procura da voluntas legis traduzida numa vontade actual da lei[16], ou seja, na vontade que na lei aparece objectivamente querida pelo legislador (mens legis). Consequentemente, a vontade da lei/legislador nesse sentido objectivado só poderá ser elemento decisivo na interpretação da norma se tiver um mínimo de correspondência no seu texto e no seu espírito.

        Entendem os Recorrentes que, no caso, não pode deixar de ser dada relevância ao distanciamento temporal entre a constituição do crédito e o início do processo de insolvência do devedor por forma a desqualificar o crédito como subordinado, pugnando, assim, no seguimento da posição defendida pelo acórdão deste tribunal de 06-12-2016, pela interpretação restritiva dos artigos 48.º, alínea a) e 49.º, n.º1, alínea b), ambos do CIRE.

        A interpretação restritiva preconizada pelo citado aresto, como já salientado, alicerça-se numa preponderância do elemento teleológico decorrente do que o legislador fez consignar no ponto n.º 25 do preâmbulo do diploma que aprovou o CIRE (DL 53/2004, de 18-03).

        Cremos, porém, que tal posicionamento de pendor teleológico mostra-se para além do que é possível ser encontrado (objectivamente) no pensamento legislativo expresso no texto das citadas normas.

        Conforme bem nota Baptista Machado, é necessário que no texto falhado se colha pelo menos indirectamente uma alusão àquele sentido que o intérprete venha a acolher como resultado da interpretação. E mesmo quando se socorra de elementos externos o sentido só poderá valer se for possível estabelecer alguma relação entre ele e o texto que se pretende interpretar.[17]. Assim, a viabilidade de uma interpretação restritiva alicerçada na finalidade da norma (traduzindo a vontade real do legislador) dependerá, necessariamente, de tal desígnio resultar minimamente do texto legal, situação que, a nosso ver, não ocorre no caso.

       Na verdade, a lei mostra-se clara ao consignar que a simples constatação do vínculo familiar faz operar a qualificação de pessoa especialmente relacionada com o devedor, não podendo ser afastada com a demonstração da irrelevância (ou até do benefício) do vínculo (presunção inilidível). Assentou pois a lei em certas razões objectivas que entendeu que deveriam ser individualizadas e, nessa medida, indicou-as criteriosamente[18] no artigo 49.º.

Por outro lado, nos casos em que a lei entendeu dar relevância ao aspecto temporal na relação com o devedor insolvente para efeitos de qualificação de pessoas especialmente relacionadas com este, expressamente o indicou (alínea d) do n.º1, no caso do devedor/pessoa singular; alíneas a) a d) do n.º2, relativamente ao devedor/pessoa colectiva)[19].

        Acresce que as justificações/explicações que o legislador apontou para a classificação destes créditos como subordinados - situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor, relativamente aos demais credores (…) combate a uma fonte frequente de frustração das finalidades do processo de insolvência, qual seja a de aproveitamento, por parte do devedor, de relações orgânicas ou de grupo, de parentesco, especial proximidade, dependência ou outras, para praticar actos prejudicais aos credores - redundam, no caso do devedor/pessoa singular, não propriamente no conhecimento mais provável que têm quanto à situação de insolvência daquele (em termos de poderem ter financiado o devedor de forma mais criteriosa ou exercido sobre ele efectiva influência), mas sim, sobretudo, na posição que as mesmas se encontram para poderem actuar de forma prejudicial relativamente aos restantes credores da insolvência[20], representando, assim, sempre, uma situação de risco na satisfação destes créditos[21].

Por conseguinte, o regime particular que o legislador quis submeter relativamente a estes créditos tem subjacente um pressuposto: a utilização (em desfavor dos restantes credores e das finalidades do processo de insolvência) que poderia ser feita pelo devedor insolvente dessa relação especial e que, consideramos, não carece de estar dependente da data de constituição do crédito (ser criado num período vizinho ao da abertura da insolvência por forma a evidenciar estar em causa um acontecimento com afinidade ou implicação com o processo de insolvência).

Assim, a conceptualização da categoria dos créditos subordinados prevista nos artigos 48.º, alínea a), 1ª parte e 49.º, n.º1, alíneas a) a c), ambos do CIRE, basta-se na relação especial definida pelo legislador, não se encontrando sujeita a qualquer período temporal limitativo.

Entendemos, por isso, que o equívoco de uma interpretação restritiva assente no elemento teleológico (para além de não comportar um mínimo de correspondência no seu texto) é o de confinar a finalidade do comando legal à perspectiva da data da constituição do crédito (relativamente ao início da situação insolvencial do devedor)[22] sendo que, cremos, a ênfase da lógica da lei situa-se, sobretudo, na prossecução da finalidade do processo de insolvência (a satisfação dos credores)[23] em todas as suas várias fases[24], particularmente, na de pagamento; daí que, nesta óptica, se mostre irrelevante na caracterização da especial relação com o devedor/singular uma apreciação do nexo temporal entre a constituição do crédito e uma futura condição insolvencial.

Cumpre ainda realçar que a interpretação das referidas normas no sentido que defendemos (sem levar em conta o nexo temporal entre a constituição do crédito e o início da insolvência) não redunda na ilogicidade das mesmas nem em desajustada desprotecção dos interesses dos titulares dos referidos créditos (subalternizados pelo CIRE) tendo em conta o próprio fundamento específico do regime geral da prescrição dos direitos de crédito[25], reforçando, por isso, a ideia da irrelevância do factor tempo na constituição do crédito para a qualificação em causa.

        Improcedem, assim, na sua totalidade, as conclusões das alegações.                 

IV. DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar a revista improcedente, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.

             Lisboa, 23 de Maio de 2019

Graça Amaral (Relator)

Henrique Araújo

Maria Olinda Garcia

____________________
[1] A sentença considerou que não ocorria invalidade por falta de forma dos contratos de mútuo (dependentes da redução a escritura pública) uma vez que nenhum de per si consubstanciava entrega que tenha ultrapassado o montante de 20.000,00€, encontrando-se cumprida a formalidade referente à assinatura do mutuário (livro onde a mutuante inseria as quantias e datas entregues ao filho e que iam sendo rubricadas pelo mesmo. Considerou ainda a sentença que, ainda que assim não se entendesse (enveredando pela nulidade do mútuo), sempre se imporia reconhecer o aludido crédito pelo dever de restituição das quantias entregues por estar demonstrada a sua efectiva entrega ao devedor insolvente.
[2] AA, declarado insolvente, juntamente com sua mulher BB, por sentença de 05-01-2015, que se apresentaram à insolvência em 26-12-2014.
[3] Classificação que não se aplica no caso de tais créditos beneficiarem de privilégios creditórios gerais ou especiais, ou de hipotecas legais, que não se extingam por efeito da declaração de insolvência – artigo 47.º, n.º4, alínea b) do CIRE.
[4] Figura que já existia em outros ordenamentos jurídicos como seja o norte-americano, alemão e espanhol, considerando-se este último (Ley Concursal – artigo 92.º) o seu inspirador.
[5] Sendo que o respectivo pagamento é feito em função do escalonamento dos créditos subordinados acolhido pelo artigo 48.º, do CIRE – cfr. n.º1 do artigo 177.º do CIRE.
[6] Cfr. Luísa Carvalho e Maria João Machado, Os créditos subordinados, Revista Jurídica Portucalense, n.º 20, 2016, p. 198.
[7] Cfr. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, obra citada, p. 295.
[8] Cfr. Rui Pinto Duarte, Classificação dos Créditos sobre a Massa Insolvente no Projecto do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, Ministério da Justiça, Coimbra Editora, 2004, pp 55 e 56, citado por Maria do Rosário Epifânio, Manual do Direito da Insolvência, 6ª edição, Almedina, p. 243.
[9] Enumeração que a Jurisprudência e, predominantemente, a Doutrina consideram ser taxativa (cfr. entre outros Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 3ª Edição, Quid Juris, p. 297), cabendo fazer referência ao então posicionamento de Menezes Leitão que defendia estar em causa uma enumeração exemplificativa - Direito Insolvência, 4ª edição, Almedina, 2012, p.105.
[10] Obra citada, p. 301.
[11] Cfr., em sentido diverso, A. Raposo Subtil e outros para quem as presunções têm carácter ilidível, podendo os credores ilidi-las mediante prova de que não actuaram de forma a prejudicar os restantes credores – Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, p. 138.
[12] Secundando a síntese de Maria do Rosário Epifânio, obra citada (Manual de Direito da Insolvência) 6ª edição, p. 245.
[13] De notar que este entendimento embora não afaste a natureza inilidível da presunção de pessoa especialmente relacionada com o devedor acaba por redundar no posicionamento dos que defendem que a existência de uma especial relação com o devedor pode ser afastada com a alegação e prova de que esse vínculo ou situação em nada determinou ou condicionou o relacionamento com o devedor, ou mesmo com a demonstração de que desse relacionamento resultaram benefícios para o devedor- presunção ilidível.
[14]Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei o mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso”- n.º2 do artigo 9.º do Código Civil.
[15] Ensaio sobre a Teoria da Interpretação das Leis, 2ª edição, Coimbra, 1963, p. 130.
[16] Que se destaca da vontade do legislador e adquire consistência autónoma.
[17] Introdução ao Direito e ao Discurso legitimador, 1983, p. 189, citado por Abílio Neto e Herlander Martins, Código Civil Anotado, Livraria Petrony, 7ª edição, p. 23.
[18] Conforme expressamente consta do ponto 25 do preâmbulo do CIRE.
[19] Evidencia-se que, no CIRE e relativamente a outros institutos como seja a resolução em benefício da massa insolvente, sempre que o legislador pretendeu valorizar circunstâncias ocorridas em determinado período anterior à insolvência fixou-o expressamente – cfr. artigo 120.º, n.º1, 121.º, n.º1, alíneas a) a i), 123.º.
[20] Daí a referência do legislador à circunstância de que com este instituto se promove o combate a uma fonte frequente de frustração das finalidades do processo de insolvência, qual seja a de aproveitamento, por parte do devedor, de relações orgânicas ou de grupo, de parentesco, especial proximidade, dependência ou outras, para praticar atos prejudiciais aos credores.
[21] Cfr. Alexandre Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, 2017, pp. 280, 281.
[22] Refere o mencionado Acórdão do STJ de 06-12-2016 Podemos assim concluir que não têm aplicação a alínea a) do art. 48º e a alínea b) do nº 1 do art. 49º quando se mostra que a constituição do crédito está de tal forma afastada no tempo do início do processo de insolvência que, dentro da normalidade das coisas, se trata de dois acontecimentos totalmente independentes, isto é, sem qualquer correlação, afinidade ou implicação entre si. Em um tal caso, a especial relação entre credor e devedor apresenta-se, para os fins ora em discussão, como indiferente ou irrelevante no que tange à constituição do crédito que virá depois a ser reclamado na insolvência.
[23] Finalidade prevista no artigo 1.º, do CIRE, devidamente explicitada após as alterações introduzidas pela Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril – cfr. Alexandre Soveral Martins, Almedina, 2017, pp 36-40.
[24] Cfr. artigos 66.º, n.º1 (nomeação da comissão de credores), 73.º, n.º3 (direito de voto), , 99.º, n.º4, alínea d) (compensação com dívidas à massa) , 197.º, alínea b) (perdão total em caso de omissão de referência no plano relativamente ao destino destes créditos),. 212.º, n.º2, alínea b) (direito de voto na aprovação e deliberação do plano).
[25] Negligência do titular do direito em exercitá-lo durante o período de tempo tido como razoável pelo legislador e durante o qual ser legítimo esperar o seu exercício, se nisso estivesse interessado