Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1309/20.2T8OER.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ARRENDAMENTO URBANO
COMUNICABILIDADE
CÔNJUGE SOBREVIVO
EXCEÇÃO PERENTÓRIA
CONHECIMENTO OFICIOSO
PRINCÍPIO DO PEDIDO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
TRANSMISSÃO DA POSIÇÃO DO ARRENDATÁRIO
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
Data do Acordão: 05/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I - Com a publicação da Lei nº 6/2006, que aditou ao Código Civil o art. 1068º, instituiu-se a regra da comunicabilidade para todos os arrendamentos de prédios urbanos para fins habitacionais ou não habitacionais e do art. 59 do NRAU resulta a aplicação do art. 1068 a contratos anteriores, que subsistam, e não apenas aos constituídos após a sua entrada em vigor.

II - O art. 579 do CPC estabelecendo que “o tribunal conhece oficiosamente das exceções perentórias cuja invocação a lei não torne dependente da vontade do interessado.”  impõe que a comunicabilidade do arrendamento ao cônjuge sobrevivo prevista no art. 1068 do CCivil como exceção perentória é de conhecimento oficioso porque a lei não indica que o seu conhecimento esteja dependente da vontade do interessado o que ocorreria se o art. 1068 incluísse essa advertência.

III - Se em reconvenção for pedida a transmissibilidade do arrendamento ao cônjuge sobrevivo com outro fundamento que não o previsto no art. 1068 do CCivil, tendo tal pedido como significado útil constituir uma oposição à pretensão da autora  de obter a entrega do imóvel arrendado, totalmente livre e devoluto de pessoas e bens pode ainda, nos termos do princípio da flexibilidade do pedido, conhecer-se e decidir-se a transmissibilidade prevista no art. 1068 do CCivil

IV - Se os elementos de facto que se devem exigir (a prova do casamento e do regime de bens, a data do arrendamento e do óbito do arrendatário) se encontram provados nos autos nada obsta a que o tribunal se pronuncie e decrete esse direito.     

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



Relatório

Construções J... Lda. propôs ação declarativa com forma de processo comum contra AA formulando como pedidos: a) ser a Ré condenada a reconhecer a autora como legítima proprietária de um prédio que identifica e ser a Ré condenada a pagar, à autora, a título de indemnização pela ocupação indevida, valor nunca inferior a €211,58 (duzentos e onze euros e cinquenta e oito cêntimos), mês, desde a data da ocupação, indevida, até efetiva entrega do imóvel, totalmente livre e devoluto de pessoas e bens.

Para fundamentar a ação a autora invocou que é dona e legítima proprietária do prédio identificado que se encontrava arrendado a BB desde 10/01/1984, para o exercício da atividade de centro médico e enfermagem, o qual veio a falecer no dia ... de junho de 2019, defendendo que se extinguiu o arrendamento.

A ré contestou dizendo que procedeu à comunicação do óbito de seu marido, inquilino do imóvel reivindicado, bem como à vontade de continuar a explorar o estabelecimento sito no referido imóvel por explorar o centro médico e de enfermagem em conjunto com o seu marido e, como tal, deve ser reconhecida a transmissão do contrato de arrendamento do imóvel e em pedido reconvencional pede que seja reconhecida a transmissão do contrato de arrendamento do imóvel a ré.

Instruídos os autos veio a ser proferida sentença na qual a autora foi declarada legítima proprietária do prédio urbano identificado e declarada a transmissão por morte do contrato de arrendamento datado de 10 de janeiro de 1984 para a ré, nos termos do artigo 58.º, n.º 1 do NRAU. No mais, absolveu a ré do demais contra si.

… …

Interposto recurso pela autora veio o Tribunal da Relação a julgar a apelação procedente e revogou a sentença, tendo condenado a ré na entrega à autora do prédio identificado, totalmente livre e devoluto de pessoas e bens, e condenou a Ré a pagar à autora a quantia mensal de €105,79 (cento e cinco euros e setenta e nove cêntimos), desde o óbito do primitivo arrendatário ocorrida em ... .07.2019 até à efetiva entrega do imóvel, julgando-se improcedente o pedido reconvencional.

… …

A ré vem agora interpor recurso de revista concluindo que:

“I. O Acórdão ora recorrido funda-se não na lei da República, mas em pressupostos e factos que não foram alegados pelas partes e que não são do conhecimento oficioso do tribunal, nem poderiam ser porque são falsos.

II. O Acórdão recorrido revogou a decisão proferida em 1ª instância baseando-se num facto não alegado por nenhuma das partes e que não era do seu conhecimento oficioso, ou seja, que o primitivo arrendatário, o Sr. BB, exerceria no local a profissão liberal de enfermeiro, facto este que não foi alegado por nenhuma das partes.

III. Nos termos do documento nº 1 ora, junto, fica provado por declaração da ordem profissional - Ordem dos enfermeiros – que o arrendatário primitivo, o Sr. BB, nunca foi enfermeiro,

IV. Assim, o Acórdão recorrido funda-se em matéria não alegada pelas partes que não   do seu conhecimento oficioso, e que é falso,

V. Assim sendo, toda a fundamentação do acórdão recorrido funda-se no pressuposto incorreto, não verdadeiro, não alegado pelas partes, por ser inverídico, sendo, em consequência, sem mais, o acórdão nulo por conhecer matéria que não poderia conhecer, quer por não ter sido alegada, por não ser do conhecimento oficioso e ser falsa.

VI. Acresce que o acórdão recorrido omite e não conhece o destino contratual deste arrendamento, constante do ponto B da matéria de facto assente.

VII. O contrato em discussão nos autos, foi celebrado por escritura publica no passado dia 10.01.1984, afetando o locado a Centro Medico e de Enfermagem.

VIII. Ora, em 1984 estava e vigorava a portaria 19219 de 4 de junho de 1962, que qualifica os postos de enfermagem como estabelecimentos abertos ao publico, vide ponto 1º da referida portaria, que foi olimpicamente ignorada quer a sua existência quer as suas exigências no acórdão recorrido.

IX. Ou seja, desde 04 de junho de 1962 que a lei da República qualificava os postos de enfermagem como estabelecimentos abertos ao publico, qualquer que seja a sua designação onde se exerça a prática de enfermagem.

X. O referido diploma não exigia que o seu titular seja enfermeiro, sendo que a única exigência consta do seu ponto único, cada posto de enfermagem funcionará sob a responsabilidade de um enfermeiro legalmente habilitado.

XI. A mesma portaria permitia que nestes postos de enfermagem houvesse auxiliares de enfermagem desde que a sua atividade fosse realizada sob a supervisão e responsabilidade do enfermeiro responsável.

XII. Esta atividade, Centro de enfermagem, estava, no momento da celebração do contrato de arrendamento em causa nos presentes autos, fiscalizada não por uma Ordem Profissional – mas sim pelo Ministério da Saúde, como decorre aliás da referida portaria de forma expressa.

XIII. Ora, no momento da celebração do contrato em discussão nos presentes autos, o destino do locado não foi afeto a atividade de consultório medico ou consultório de enfermeiro, pois não é permitida a prática de atos de enfermagem em “consultórios de enfermeiros “mas apenas em centros, ou postos de enfermagem que se encontravam devidamente licenciados pelo Ministério da Saúde e que reunissem determinadas condições físicas,

XIV. Por vontade das partes, foi expressamente a finalidade do arrendamento destinar-se a centro medico e de enfermagem, ou seja, um estabelecimento aberto ao publico, destinado a prestar serviços em saúde ao publico, pelo que nem se compreende a omissão no Acórdão recorrido da existência de legislação especifica sobre esta atividade em concreto, e que a Decisão Recorrida nem o mencione uma única vez, ignorando a Lei da República.

XV. Esta portaria foi revogada pelo Decreto-Lei 279/2009 que revogou a mencionada Portaria de forma expressa no seu artigo 24º do referido Decreto-lei.

XVI. Ora, este Decreto-Lei teve por objeto estabelecer o regime jurídico das unidades privadas de saúde, conforme anteriormente se referiu.

XVII. Com efeito, no seu nº 1 afirma;

Artigo 1.º

Objeto

1 - O presente decreto-lei estabelece o regime jurídico a que ficam sujeitos a abertura, a modificação e o funcionamento das unidades privadas de serviços de saúde, com ou sem fins lucrativos, qualquer que seja a sua denominação, natureza jurídica ou entidade titular da exploração, adiante designadas por unidade privada de serviços de saúde.

2 - Para efeitos do presente decreto-lei, entende -se por unidade privada de serviços de saúde qualquer estabelecimento, não integrado no Serviço Nacional de Saúde (SNS), no qual sejam exercidas atividade que tenham por objeto a prestação de serviços de saúde.

3 - O regime jurídico aplicável às unidades privadas de serviços de saúde cuja titularidade seja de instituições particulares de solidariedade social com objetivos de saúde é objeto de diploma próprio.

4 - A listagem das tipologias de unidades privadas de serviços de saúde é aprovada por portaria do membro do Governo responsável pela área da saúde.

XVIII. Ou seja, a expressão estabelecimento encontra-se expressa no nº 2 do artigo 1º deste Decreto-lei, de prestação de serviços em saúde.

XIX. Ora, o próprio Decreto-Lei considerou como unidades privadas de saúde os centros de enfermagem, os consultórios médicos e dentários, as unidades de medicina física e de reabilitação e os laboratórios de anatomia patológica e patologia clínica.

XX. Ora no respeitante a atividade especifica de Centro de Enfermagem, o mesmo foi regulamentado pela Portaria n.º 801/2010 de 23 de agosto, que tem o seguinte preambulo;

O Decreto -Lei n.º 279/2009, de 6 de outubro, estabelece o novo regime jurídico a que ficam sujeitos a abertura, a modificação e o funcionamento das unidades privadas de saúde. O novo modelo visa garantir que seja assegurada a qualidade dos serviços prestados no sector privado e, em paralelo, consagrar um procedimento mais simplificado, assumindo os agentes a responsabilidade pelo cumprimento dos requisitos técnicos exigidos. O procedimento de licenciamento dos centros de enfermagem passa a ser disponibilizado online, o que permite com uma declaração eletrónica validamente submetida a imediata obtenção de licença, sem prejuízo da subsequente vistoria. O novo procedimento simplificado de licenciamento é exigente quanto ao cumprimento dos requisitos técnicos e de qualidade. Importa assim estabelecer os requisitos técnicos a que devem obedecer o exercício da atividade dos centros de enfermagem.

XXI. Determinando os seus nº 1 e 2 a sua definição como referimos anteriormente, ou seja, consideram-se centros de enfermagem as unidades ou estabelecimentos de saúde privados onde se exerça a prática de enfermagem.

XXII. Ora foi o próprio legislador que, desde 1962, estabeleceu o regime jurídico dos Centros de Enfermagem anteriormente designados por postos de enfermagem, designado estes como centros de enfermagem as unidades ou estabelecimentos de saúde privados onde se exerça a prática de enfermagem.

XXIII. Em momento algum, desde 1962, se exigia que o titular, o dono ou o proprietário, de Centro de Enfermagem fosse um enfermeiro, antes pelo contrário, permitiu sempre que fossem outras pessoas, pessoas singulares e coletivas que fossem titulares das referidas unidades de saúde.

XXIV. Com efeito, o artigo 8º da portaria n.º 801/2010 de 23 de agosto permite que até pessoas coletivas sejam titulares de centos de enfermagem.

XXV. O mesmo se dirá para os chamados consultórios médicos nos termos do Decreto-Lei n.º 279/2009, bem como pela Portaria 287/2012 de 20 de setembro que atrás se transcreveram,

XXVI. Ou seja, mesmo no caso dos Consultórios Médicos, os mesmos podem ser propriedade de pessoa diversa do médico, pelo que os fundamentos da decisão ora recorrida carecem de qualquer fundamento na Lei.

XXVII. Ou seja, não é nem nunca foi necessário para ser titular de um consultório ou de um centro de enfermagem, que se fosse ou se tivesse a qualidade de enfermeiro ou medico, alias é permitido a pessoas coletivas serem titulares destes estabelecimentos, o que desmente na integra o acórdão recorrido,

XXVIII. Acresce a circunstância do Sr. BB nunca ter sido enfermeiro, conforme documento nº 1

XXIX. O pecado capital do acórdão ora recorrido funda-se a ignorar a lei da República, em não fundamentar a sua decisão nos factos alegados pelas partes, ou sequer em algum facto, mas sim em preconceitos segundo os quais se equipara escritórios de advogados a centros de enfermagem e a consultórios médicos, sem cuidar de conhecer a lei da República que regula estes estabelecimentos, as suas exigências e quem pode ser seu titular,

XXX. Verificada a legislação da República sobre consultórios médicos, centros de enfermagem, teremos de concluir sem mais que o acórdão recorrido é nulo pois sem fundamento em nenhum facto alegado pelas partes, ou do seu conhecimento oficioso, conheceu que no locado o falecido BB exercia uma profissão liberal.

XXXI. Assim, como o falecido BB, não podia exercer nenhuma profissão liberal porque não era enfermeiro, o acórdão recorrido padece da 1ª nulidade, sendo nula por excesso de pronuncia e pronuncia manifestamente equivocada sem ser fundada em nenhum facto, sendo nulo nos termos do artigo 615º do CPC.

XXXII. A segunda nulidade que enferma o acórdão recorrido decorre de este ter conhecido matéria não alegada pelas partes, que não era do conhecimento oficioso do tribunal, e fundamentar a sua decisão no pressuposto que o primitivo arrendatário seria enfermeiro.

XXXIII. E que sendo enfermeiro a afetação do locado seria para efeitos de exercício da profissão liberal.

XXXIV. Ora, conforme se referiu o tribunal recorrido não podia conhecer esta matéria pois não foi alegada por nenhuma das partes.

XXXV. Sendo certo que nem o arrendatário dispunha da graduação de enfermeiro,  ide documento nº 1, nem existe a prática de enfermagem em locais como consultórios, mas sim, em centros de enfermagem, postos de enfermagem conforme a legislação que foi abundantemente referida.

XXXVI. Assim, a segunda nulidade do acórdão recorrido decorre de afirmar que no locado se exercia uma profissão liberal, de quem não era titular de tal habilitação, conhecendo o que o contrato desmente e desconhecendo a lei da República respeitante a postos e centros de enfermagem, sendo, pois, nula nos termos do artigo 615º do CPC.

XXXVII. A 3ª nulidade decorrerá da omissão de conhecimento por parte do tribunal agora recorrido, a questão da comunicabilidade do arrendamento ao abrigo do artigo 1068º do CC.

XXXVIII. Esta matéria não foi referida na contestação, mas dos factos apurados de B e E, constam os elementos essenciais para o seu conhecimento.

XXXIX. Importa ter presente que o STJ tem referido abundantemente e de forma consistente que a disposição do artigo 1068º do CC aplica-se aos contratos celebrados antes do NRAU, ou seja, antes do ano de 2006, conforme se referiu neste recurso.

XL. Ora o tribunal recorrido recusou-se a conhecer esta matéria apesar de dispor dos elementos essenciais para a conhecer, vide pontos B a E da matéria assente.

XLI. Esta matéria foi expressamente alegada nas alegações de direito e nas contra-alegações de recurso para o tribunal da Relação, sendo, pois, nula a decisão de não a conhecer nos termos do nº 1 do artigo 615º.

XLII. A quarta nulidade decorre da violação do nº 3 do artigo 5º do CC.

XLIII. Ora esta norma afirma que o tribunal não está vinculado a matéria de direito alegada pelas partes, contudo não permite que o tribunal decida sobre matérias sobre as quais não foi convocado a decidir.

XLIV. Ora no caso dos presentes autos, o tribunal foi convocado a decidir sobre a matéria da comunicabilidade do arrendamento e recusou-se a conhecê-la, tendo conhecido a causa com base em fundamentos que não foram convocados pelas partes e violam a lei da República.

XLV. Sendo assim, o tribunal recusou-se a conhecer o que foi peticionado, mas conheceu aquilo que não existe na lei da República, omitindo de forma grave o conceito legal de posto de enfermagem, centro de enfermagem ou consultório medico, afirmando que a lei não permite a titularidade destes estabelecimentos de prestação de serviços em saúde por quem não seja medico ou enfermeiro.

XLVI. Ora este entendimento não só é processualmente nulo, como é igualmente, absolutamente violador da lei da Républica, do direito comunitário e do princípio fundamental da igualdade e da não discriminação, elementos fundamentais do Estado de direito previsto na Constituição da República Portuguesa.

XLVII. Assim, estamos na presença de um acórdão, que conhece o que não existe ou que alguma vez podia ter existido, que não foi alegado pelas partes e que viola a lei da República, sendo, pois, nula a decisão recorrida por violação do artigo nº 5º, no nº 3 do CPC.

XLVIII. Acresce que o acórdão recorrido tratou-se de uma verdadeira decisão surpresa uma vez que decidiu sobre matéria não alegada pelas partes em momento algum, com fundamentos que não foram convocados em momento algum, pois eram manifestamente ilegais e não verdadeiros.

XLIX. Assim, o tribunal recorrido violou o disposto no nº 3, do artigo 3º da CRP, pelo que padece de manifesta nulidade pois proferiu uma decisão surpresa sem ser baseada em nenhum facto e com fundamentos sem correspondência com a lei da República.

L. Conforme referimos anteriormente o acórdão recorrido viola gravemente a lei da República, pois não conhece que desde 1962, ou seja, desde a publicação da portaria 19219 de 4 de junho de 1962, existe regulamentação expressa para os chamados centos ou postos de enfermagem.

LI. Desconhece o Decreto-Lei 279/2009 que regula desde 2009 as atividades em saúde.

LII. Ao pretender afirmar que a ora Recorrente e Ré não pode ser titular do centro de enfermagem por não ser enfermeira, e que no locado foi dado em arrendamento não para a finalidade prevista no contrato, mas para o exercício da profissão liberal do primitivo arrendatário, o qual nos termos do documento nº 1 não era enfermeiro, violou de forma grave a lei da República.

LIII. Assim, desconheceu o acórdão recorrido que pessoas singulares e pessoas coletivas sempre puderam ser titulares de postos de enfermagem, consultórios médicos ou centros de enfermagem, não necessitando nenhuma delas de especial graduação académica ou inscrição em ordem profissional.

LIV. Qualquer cidadão ou pessoa coletiva pode ser titular de estabelecimentos de prestação de serviços em saúde porque assim a lei da República o permite, de forma expressa, não podendo o acórdão recorrido decidir contra a lei da República, violando-a, utilizando um argumento ilegal e inconstitucional por violar o princípio da não discriminação e da igualdade.

LV. O acórdão recorrido fazendo tabua rasa da decisão proferida em 1ª instância, recusa-se a conhecer a comunicabilidade do arrendamento previsto no artigo 1068º do CC, e a sua transmissibilidade aos sucessores prevista no artigo 58º nº 3 NRAU, desconsiderando, pois consegue afirmar que o arrendamento em causa se destinou ao exercício da profissão liberal por parte do primitivo arrendatário que não era enfermeiro e que desconhece que a pratica de tais atos exige que as instalações detenham especiais qualidades e que haja um enfermeiro responsável.

LVI. Ora, seguramente que o STJ não deixará de revogar o acórdão recorrido conhecendo a comunicabilidade do arrendamento nos termos do artigo 1068º à ora. Recorrente, uma vez que era casada no momento da celebração deste contrato em regime de comunhão de adquiridos, ou seja, sem convenção antinupcial, pelo que aproveita da comunicabilidade do mesmo, vide pontos A a E da matéria assente,

LVII. Caso assim não se entenda, o que apenas se admite por mera cautela de patrocínio, deverá o STJ conhecer os pontos J e K da matéria assente nos presentes autos, ou seja, que a Recorrente sempre colaborou na gestão do referido centro de enfermagem, pelo que reúne as qualidades para suceder no referido arrendamento nos termos do nº 3 do artigo 58º do NRAU.

LVIII. Em consequência de tudo o exposto, deverá ser conhecido o presente recurso, a lei da República e esta aplicada, revogando-se na totalidade o acórdão ora recorrido substituindo-o por outro que reconhece a comunicabilidade do arrendamento, ou caso assim não se entenda, a sua transmissibilidade a ora recorrente, como decidiu a decisão proferida em 1ª instância de forma inquestionável.

LIX. Desta forma farão os Venerandos Juízes conselheiros do SJT a devida justiça.

Junta: Nos termos do artigo 680º do C.P.C 4 (quatro) documentos, e requer a junção de documentos autênticos requeridos junto da Autoridade Reguladora ERS porquanto, o Acórdão ora Recorrido baseou a sua decisão em factos não alegados por nenhuma das partes – Exercício de Profissão Liberal pelo Primitivo Arrendatário -, facto este que nunca ocorreu, pois o primitivo arrendatário não dispunha a qualificação de Enfermeiro, sendo esta questão superveniente, sendo documentos autênticos, emitidos por entidades legalmente habilitadas para a sua emissão, destinando-se a esclarecer a verdade material.

A junção destes documentos justifica-se pela circunstância de o Acórdão Recorrido ter fundado a sua decisão em factos não alegados pelas partes, nem corresponder a qualquer facto assente na matéria de facto assente pela decisão proferida na 1ª Instância, carecendo esta questão de cabal esclarecimento de forma a determinar sem margem para duvidas a verdade material e a boa aplicação da Justiça, e documento comprovativo do pagamento de taxa de Justiça.

… …

A autora contra alegou concluindo que:

“ - ao longo do processo, a ora recorrente sempre afirmou que o locado se destinou ao exercício da atividade do enfermeiro BB.

- Aliás, foi também, como enfermeiro, que este se coletou nas finanças, pelo menos nos três últimos anos de atividade, até ter falecido, a saber, 2016, 2017 e 2018, conforme declarações de IRS juntas à petição inicial (doc. 9) e cujo conteúdo foi dado por integralmente assente sob o facto provado L.

- Com efeito, resulta das referidas declarações, que BB, se coletou, com o código 5010 da tabela de atividade do artº 151º do CIRS.

- Isto é, como exercendo a profissão liberal de enfermeiro.

- Não como gerente ou exercendo a atividade, comercial, de enfermagem, com o CAE 86903.

- Não sendo, consequentemente, admissível a pretendida junção, ao abrigo do disposto no artigo 651º, n.º 1 do CPC, de documentos para a prova de um  facto – este sim totalmente novo, para além de em absoluta contradição com a posição tomada, até aqui, no processo - de que, afinal, o Sr. BB nunca foi enfermeiro.

- Cuja autenticidade, dos cinco documentos, junto aos 24.01.2023, por cautela e dever de patrocínio, ainda assim, expressamente se impugnam, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 444º do CPC e 374º do CC.

- Acresce que todos os agora juntos documentos podiam ter sido apresentados até ao limite do prazo previsto no n.º 2, do artigo 423º do CPC; com efeito, todos os indicados documentos, estavam disponíveis para a Ré, recorrente, quando apresentou a contestação, mesmo a contestação aperfeiçoada, esta última aos 18.11.2020.

- Depois, não foi alegado e esse sim constituiria um facto novo, que no locado funcionava o “Estabelecimento Centro de Enfermagem de ... “, como pretende, agora, demonstrar com o documento que junta sob o n.º 2

- Ainda assim, resulta da certidão junta, que esse estabelecimento é posterior ao óbito de BB, aos ... .07.2019 – cfr. facto provado D.

- Com efeito, certifica-se aí que que a inscrição do referido estabelecimento data de 07.10.2020; como a Recorrente não ignora.

- Ou seja, e contrariamente, ao que deslealmente pretende agora a Recorrente, não se trata de uma decisão sobre factos novos, não alegados, mas de um distinto enquadramento jurídico, para a factualidade assente -cfr. artigo 5º, n.º 3 do CPC.

- Depois, como a Ré / Recorrente de resto reconhece, a pretendida transmissão do arrendamento, por via da comunicabilidade do arrendamento, ao abrigo do artigo 1068º do CC, não foi alegada na contestação, sequer na contestação aperfeiçoada, com reconvenção.

- Mais, nos termos do disposto no artigo 4º do Código do Registo Civil, a prova dos factos sujeitos a registo, como o casamento e o regime dos bens convencionado ou legalmente fixado – cfr. artigo 1º, n.º 1, al. d) e e) do CRC – só pode ser feita pelos meios aí previstos.

- Acresce que a livre apreciação estabelecida no artigo 607 nº 5 do CPC não inclui os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial.

- Ou seja, a prova do casamento e do respetivo regime dos bens, convencionado ou legalmente fixado, faz-se através da respetiva certidão de casamento; desconhecida dos autos.

- Entretanto, no seguimento da notificação do douto acórdão da Relação de Lisboa, a autora / aqui Recorrida constatou que, por manifesto lapso de escrita, a final das alegações de recurso para aquele tribunal superior, sob a conclusão XXXIV, escreveu “por fim, ser a ré condenada a pagar à autora a titulo de indemnização, pela ocupação indevida, a quantia mensal de €105,79 (cento e cinco euros e setenta e nove cêntimos), desde o óbito do primitivo arrendatário (... .07.2019), até a efetiva entrega do imóvel, a titulo de indemnização, pela ocupação indevida.” Quando queria escrever “valor nunca inferior a €211,58 (duzentos e onze euros e cinquenta e oito cêntimos), mês, desde a data da ocupação, indevida, até efetiva entrega do imóvel, totalmente livre e devoluto de pessoas e bens”.

- Nesse sentido, quer o pedido feito na Petição Inicial – cfr. artigo 33º e 34º da p.i. e pedido identificado sob a alínea b); que não foi, em momento, algum, reduzido.

- Ou seja, a inscrição do valor de €105,79, ao invés de €211,58, na última conclusão das alegações de recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, tratou-se de manifesto lapso de escrita, revelado por todo o contexto destas e, por conseguinte, passível de retificação nos termos do disposto no artigo 146º do CPC: “É admissível a retificação de erros de cálculo ou de escrita, revelados no contexto da peça processual apresentada.”

Termos em que deverá ser negado provimento ao presente recurso, com todas as consequências legais.

… …

 Por acórdão em conferência o Tribunal da Relação indeferiu a retificação requerida pela autora no sentido de a condenação da ré ser no valor de 211,58 € por mês e não de €105,79 e pronunciou-se sobre as nulidades arguidas pela ré.

… …

Fundamentação

Está julgada como provada a seguinte matéria de facto:

“A. Mostra-se registada a aquisição por compra a favor da A. do prédio urbano descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...16 e inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo 398 da freguesia ... e ..., pela AP.  69 de 1999/03/16, convertida em definitiva pelo averbamento da AP. 8 de 1999/06/18, cfr.  certidão do registo predial junta com a petição inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente por reproduzido para todos os efeitos legais.

B. Por escritura pública datada de 10 de Janeiro de 1984, outorgado por CC, na qualidade de procuradora de DD e EE, e por BB,  casado, aquela declarou dar de arrendamento a este o prédio referido em A), pelo prazo  de um  ano, com início no dia 1 de Janeiro de 1984, mediante a renda de 6 000$00 por mês, destinando-se o local arrendado ao exercício de centro médico e enfermagem, cfr. documento  2 junto com a petição inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente por reproduzido para  todos os efeitos legais,

C. A renda mensal da loja é atualmente € 105,79.

D. BB faleceu no dia ... de julho de 2019, no estado de casado com a R.

E. BB e a R. contraíram matrimónio no dia ... de agosto de 1976, sem convenção antenupcial.

F. Por meio de carta datada de 05/10/19, a Ré, na qualidade de esposa e cabeça- de casal da herança aberta por óbito de BB, comunicou a pretensão de continuar a explorar no imóvel arrendado o referido cento médico e de  enfermagem, o que fazia desde sempre em comum e em conjunto com o seu falecido marido,  cfr. documento n.º 5 junto com a petição inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente  reproduzido para todos os efeitos legais.

G. A A. respondeu por meio de cartada datada de 25/11/2019, nos termos seguintes:

Por carta datada de 05/10/19, V. Exas., informou pretender continuar a atividade exercida pelo marido, no arrendado, alegando que a exercia conjuntamente com aquele. Sem que, no entanto, fizesse qualquer demonstração do pretendido exercício, comum, da atividade de enfermagem.

Assim, por cautela, por carta datada de 16/10/19, insistimos na omissa certidão de óbito e, para prova do pretendido direito à continuação do arrendamento, a disponibilização:

a) De cópia da habilitação de Herdeiros;

b) De documento autêntico e idóneo, comprovativo da pretendida exploração conjunta, com a cabeça de casal, há mais de três anos;

Por carta datada de 23/10/19, remeteu-nos i) cópia da certidão de óbito, ii) cópia da escritura de habilitação de herdeiros, de 11/10/19 e declaração de IRS relativa ao ano de 2018.

Mas desta resulta, diferentemente, que o casal optou pela tributação conjunta, em sede de IRS, provindo, no entanto, os rendimentos por si obtidos do exercício da atividade respeitante ao nif. ..., a saber, a sociedade comercial com a firma V..., Lda, sita a Rua ..., ...; como já era, aliás, do n/ conhecimento.

Mais ali constando que os rendimentos auferidos pela atividade de enfermagem-código 5010 – o foram exclusivamente pelo titular do n.º de contribuinte ...; ou seja, o falecido BB.

Ainda assim, a declaração respeita apenas ao ano de 2018; quando, para efeitos do disposto no invocado artigo 58º, n.º 2 da lei n.º 6/2016, era exigível que essa – pretendida - atividade conjunta, durasse há mais de três anos.

Ou seja, não só resultou indemonstrado o requisito legal para a pretendida transmissão do arrendamento, como, essa ausência, era do v/ conhecimento.

Pelo que é, assim, abusivamente, que se mantém no arrendado, desde o óbito do Sr.  BB.

Vimos, assim, pela presente, declarar que consideramos então o arrendamento em  epígrafe extinto, desde 14/07/2019 por óbito do arrendatário, BB, ao abrigo do disposto no artigo 58º, n.º 1, da lei n.º 6/2006, exigindo-lhe, por isso, a  imediata entrega do locado, livre e devoluto de pessoas e bens, ao abrigo do artigo 1081º, n.º  1 do CC; com as devidas consequências legais, em caso de manutenção – indevida no  arrendado - cfr. documento 8 junto com a petição inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

H. Mostra-se inscrita na Conservatória do Registo Comercial ... a sociedade por quotas com a firma V..., Lda, com sede na Rua ..., ..., da freguesia ... e ..., ... e ..., com  o objeto de comércio e indústria vidreira pela OF ...09, cfr. certidão do registo comercial junta com o req. datado de 18/11/2020, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

I. A gerência estava atribuída a BB, designado em 1999-06-29, e à R.

J. Desde 1984 que a Ré sempre teve uma função de administrativa, nomeadamente procede à conferência da receção do material, procede aos pagamentos periódicos, como renda, luz, segurança social, salário da trabalhadora, impostos e seguros, dá orientações e instruções à trabalhadora, organiza do horário de trabalho, bem como as férias do pessoal; recolhe o movimento diário no final do expediente e efetua o consequente depósito em conta bancária.

K. O que fazia com o conhecimento quer de utentes, quer de empregados e profissionais de saúde que exercem a sua prática no espaço arrendado.

L. BB e a R. efetuaram a entrega conjunta das declarações de IRS referentes aos anos de 2016, 2017 e 2018, cfr. declarações de IRS juntas como doc. 9 junto com a petição inicial e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais

M. A A. sempre tratou quaisquer questões relativas ao arrendado com BB.

N. Desde o óbito de BB não mais foram passados recibos de renda.

… …

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido nos arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil.

O conhecimento das questões a resolver na presente Revista consiste em saber (previamente) se é admissível a junção de documentos pretendida com as alegações de revista; se o acórdão recorrida padece das nulidades arguidas e, quanto ao mérito, se deve reconhecer-se a comunicabilidade ou transmissibilidade do arrendamento discutido revogando-se a o acórdão ora recorrido.

… …

 Da admissibilidade da junção dos documentos.

A faculdade de apresentar documentos regulada pelo art. 423 do CPC determinando-se aí que a junção se faz na primeira instância, onde devem ser produzidos os meios de prova designadamente a documental admite apresentação em momento posterior (art. 425 do CPC) ao referido naquele outro preceito, no caso de recurso e quando não tenha sido possível até esse momento. Todavia, no caso do recurso de revista, textuando o art. 680 nº1 do CPC que com as alegações podem juntar-se documentos supervenientes sem prejuízo do disposto nos art. 674 nº3 e 682 nº2 observamos que é ainda mais restrita a possibilidade de junção por comparação com o regime previsto para a apelação no art. 651. Porque o Supremo Tribunal de Justiça conhece essencialmente do direito e só em casos muito raros e particulares se pronuncia sobre a matéria de facto, a possibilidade da junção de documentos probatórios está respaldada por essa raridade e particularidade, observando Abrantes Geraldes que “ uma vez que está praticamente vedado ao Supremo alterar a decisão da matéria de facto provada a aplicabilidade do preceito está reservada para os casos em que as instancias tenham considerado provado facto para o qual a lei exigia prova documental, com violação do direito probatório material sustentando-a apenas em prova testemunhal ou em confissão , situação que pode ser regularizada , sem prejudicar o resultado mediante a junção de documento seja superveniente.” – in Recursos em Processo Civil, 7ª ed. p. 500.

Com base nestas considerações normativas resulta manifesta a improcedência da pretensão da recorrente juntar os documentos com as alegações para a qual refere requerer “a junção de 4 documentos, nos termos do disposto no artigo 680º do C.P.C., de natureza superveniente, e requerer a junção de documentos autênticos requeridos junto da Autoridade Reguladora ERS porquanto, o Acórdão ora Recorrido baseou a sua decisão em factos não alegados por nenhuma das partes – Exercício de Profissão Liberal pelo Primitivo Arrendatário -, facto este que nunca ocorreu, pois o primitivo arrendatário não dispunha a qualificação de Enfermeiro, sendo esta questão superveniente, sendo documentos autênticos, emitidos por entidades legalmente habilitadas para a sua emissão, destinando-se a esclarecer a verdade material.

A junção destes documentos justifica-se pela circunstância de o Acórdão Recorrido ter fundado a sua decisão em factos não alegados pelas partes, nem corresponder a qualquer facto assente na matéria de facto assente pela decisão proferida na 1ª Instância, carecendo esta questão de cabal esclarecimento de forma a determinar sem margem para duvidas a verdade material e a boa aplicação da Justiça”

Observa-se que a recorrente não aponta um único facto que tenha sido julgado como provado e para o qual a lei exigisse prova documental, mas paradoxalmente, depois de protestar que o Acórdão recorrido baseou a sua decisão em factos não alegados por nenhuma das partes (que o arrendatário falecido não era enfermeiro), pretende a junção de documentos destinada a fazer prova de que esse eventual facto não alegado e ponderado pela decisão recorrida, se o tivesse sido (alegado), teria de ser julgado como não provado. Obviamente que a admissibilidade de junção de documentos com o recurso de revista não se destina a esse fim bem como para esse fim nunca seria em qualquer momento admissível a junção. Se a questão que se aponta é a de decisão recorrida se ter baseado em factos que não foram nem nunca poderiam ter sido julgados como provados (tenham ou não sido alegados) a fundamentação do recurso não se sustenta nem pode sustentar em junção de documentos que não é nos termos sobredito admissível mas sim apontando o erro da decisão de mérito por falta de pressupostos de facto acondicionadores, o que aliás a recorrente realiza sob a forma de arguição de nulidade da decisão consistente em a decisão recorrida ter considerado como existente uma qualidade profissional do falecido arrendatário essencial para decidir como decidiu e essa qualidade não estar provada.

Assim, por falta de fundamento que caiba na previsão legal do art. 680 nº1 do CPC indefere-se a junção dos documentos requerida pela recorrente

Custas do incidente pela recorrente/requerente.

… …

Quanto ao restante objeto do recurso, a recorrente argui a nulidade da decisão recorrida nos termos do art. 615 nº1 al. d) do CPC aplicável ex vi do art. 666 nº1 concluindo que  nela se parte da consideração de o arrendamento em causa se ter destinado ao exercício de uma profissão liberal, que tal facto não foi alegado em momento algum pelas partes e que não foi alegado porque o falecido, BB, não obteve em momento algum a qualificação profissional de Enfermeiro, não foi inscrito na Ordem dos Enfermeiros, nem desempenhou a função de enfermeiro responsável pelo Centro de Enfermagem, era o seu dono porque a lei o permitia, como permite, e sempre permitiu, e permite, à ora Recorrente exercer esta atividade, proprietária de “Centros de Enfermagem”.

Consultando os factos provados obtemos que em janeiro de 1984 foi outorgado contrato de arrendamento tendo por arrendatário BB, casado, determinado prédio, destinando-se o local arrendado ao exercício de centro médico e enfermagem (sublinhado nosso). E tendo o arrendatário falecido em ... de julho de 2019, no estado de casado com a Ré, com quem contraíra matrimónio em dia ... de  agosto de 1976, sem convenção antenupcial, esta comunicou a pretensão de continuar a explorar no imóvel arrendado o referido cento médico e de  enfermagem, o que fazia desde sempre em comum e em conjunto com o seu falecido marido.

A recorrente, que em pedido reconvencional pediu que lhe fosse reconhecida a transmissão do contrato de arrendamento por ter comunicado ao locador o óbito do seu marido/locatário e a sua vontade de continuar a explorar o estabelecimento sito no imóvel como o fazia em conjunto com o seu marido, veio no recurso de revista, e só nele, protestar que lhe seja reconhecida a comunicabilidade do arrendamento uma vez que, embora reconheça que não foi invocada pelas partes (isto é, por si, a quem aproveitava) nos articulados, esta matéria sendo exclusivamente de direito o tribunal deveria conhecer dela por se tratar de escolher a solução mais adequada aos factos apurados.

Neste âmbito, pronunciou-se a decisão recorrida quando conheceu da impugnação da matéria de facto, designadamente quando aborda a problemática da ampliação dos factos, suscitada pela recorrida nas contra-alegações, a fim de poder ser reconhecida a comunicabilidade do arrendamento nos termos do art.º 1068 do CCivil. E fê-lo no enquadramento do art. 636 nº1 do CPC que admite a ampliação do recurso por parte do recorrido de forma que, se este o requerer, possam ser conhecidos os fundamentos em que a parte vencedora decaiu prevenindo a necessidade da sua apreciação. Para a parte que numa ação formula um determinado pedido ou deduz uma determinada defesa o mais importante é o resultado que se contem e enuncia no dispositivo e não os fundamentos  que suportam esse resultado, e isto porque tendo obtido ganho de causa, se não houver impugnação dessa decisão será de todo indiferente para a parte vencedora que a decisão tenha analisado e acolhidos todos os seus fundamentos ou apenas algum ou alguns da mesma forma que lhe será irrelevante a decisão enfermar de alguma nulidade (que não sendo invocada não coloca em causa o resultado que a decisão lhe concede) – vd. Abrantes Geraldes in Recurso em Processo Civil 7ª ed. p. 145.

No entanto, quando a parte vencida interpõe recurso da decisão, a resposta e o conhecimento que o tribunal tenha realizado dos fundamentos de facto e de direito já ganha importância, do mesmo modo que cobra interesse a ocorrência ou não de alguma nulidade. Se o tribunal reconhecer razão aos fundamentos invocados no recurso interposto pela parte vencida, pode revelar-se importante para a defesa dos interesses do recorrido que sejam acolhidos no âmbito do mesmo recurso , os fundamentos que oportunamente esgrimiu e que foram objeto de resposta desfavorável por parte do tribunal - ou até considerados prejudicados - sendo esta a função da ampliação do recurso – Abrantes Geraldes op. loc. cit. e Rui Pinto Manual do recurso civil, Vol. I, p. 309.

Como se assinala na decisão recorrida, o pressuposto da ampliação do objeto do recurso suscitada pela parte vencedora quando a parte vencida tenha interposto recurso tem como exigência que haja pluralidade de fundamentos da ação ou da defesa e, por extensão, que tais fundamentos tenham sido invocados nos articulados, pois que o tribunal de recurso só pode, neste caso, conhecer de fundamento em que a parte vencedora decaiu. No caso a ré, ora recorrente e recorrida na apelação, na contestação não invocou qualquer fundamento relativo à comunicabilidade do arrendamento transmissão do arrendamento por via do regime de bens nos termos do art. 1068 do CCivil e foi nesse sentido e para essa finalidade que pretendeu (na ampliação da apelação) que fosse aditada matéria facto – no sentido de provar que o estabelecimento foi adquirido pela Recorrida e pelo seu falecido marido na constância do casamento e com recurso a dinheiro comum do casal e a empréstimos de familiares”.

Foi considerado na decisão recorrida que a ré deveria ter exposto esses factos na sua contestação e que, não o tendo feito, não o poderia pretender obter através da ampliação de recurso o que se traduziria em introduzir uma questão nova que não foi por ela invocada na contestação. Esta questão da comunicabilidade do arrendamento não configuraria, no entender da decisão recorrida, uma mera questão de direito e de subsunção jurídica da matéria de facto, na total disponibilidade do julgador que conhece o direito, mas implicaria a alegação de factos que não teria sido realizada nem a sua prova obtida. E, sublinhou ainda a decisão recorrida, neste âmbito, que a questão da comunicabilidade do arrendamento suscitada no recurso pela ré, configurando uma exceção exigiria que fosse expressamente invocada e o casamento com o falecido inquilino foi alegado pela ré apenas para fundamentar a qualidade de herdeira justificativa da transmissão do arrendamento que pede em reconvenção, não da comunicabilidade.

Mantendo-nos na apreciação da possibilidade de conhecer de conhecer da comunicabilidade do arrendamento nos termos do art. 1068 do CCivil, temos presente que está demonstrado nos autos que a inquilino era casado com a ré desde ... de agosto de 1976, sem convenção antenupcial, ou seja, no regime da comunhão de adquiridos. Por estes elementos conclui-se que quando o contrato de arrendamento foi celebrado o arrendatário era casado com a ora recorrente e essa mesma indicação de ser casado ficou a constar no contrato celebrado.

Com a redação do art. 1068 do CCivil - integrado na Secção VII que contém disposições aplicáveis a arrendamentos de prédios urbanos para fins habitacionais ou não habitacionais - e que foi introduzida pela Lei nº 6/2006 de 27-02-2006, estabeleceu-se que “O direito do arrendatário comunica-se ao cônjuge nos termos gerais e de acordo com o regime de bens” o que deu origem a discussão sobre a aplicabilidade desta norma a contratos de arrendamento celebrados antes da sua entrada em vigor, como é o caso do contrato identificado nos autos. À data da sua celebração e durante o tempo subsequente até à entrada em vigor da lei 6/2006 o direito do arrendatário não se comunicava ao cônjuge – conforme o art. 44º da Lei nº 2030, de 22.06.48, do nº 1 do art. 1110 do CCivil e do art. 83 do RAU – o que foi alterado por essa lei que, regulando para o arrendamento de prédios urbanos, procedeu à reposição do art. 1068.º do CCivil, com a redação antes enunciada. E se tivermos em consideração que a ré foi casada com o arrendatário no regime de comunhão geral de bens (que era o regime supletivo à data do casamento), o nº 1 do art. 59 da Lei n.º 6/2006 estabelece que o NRAU se aplica aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor, bem como às relações contratuais constituídas que subsistam nessa data, sem prejuízo do previsto nas normas transitórias. É precisamente esta última previsão normativa que cobre a situação em recurso porquanto a relação contratual de arrendamento subsistia à data daquela entrada em vigor (27 de junho de 2006), tendo o réu marido falecido depois. E nenhum obstáculo a este entendimento se encontra em norma transitória inscrita no diploma.

Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 1 de março de 2018 (Processo n.º 4685/14.2T8FNC.L1.S1, disponível em dgsi.pt), um contrato de arrendamento de prédio urbano para fins habitacionais ou não habitacionais está sujeito às normas transitórias que integram o regime estabelecido no Título II, Capítulo II, da Lei nº 6/2006, de 27/2, com as alterações introduzidas pela Lei nº 31/2012, de 14/8, nomeadamente as constantes da Secção I – “Disposições gerais”, arts. 27º a 29º –, da Secção II – “Arrendamento para habitação”, arts. 30º a 49º – e da Secção IV, comum a arrendamentos habitacionais e não habitacionais – “Transmissão”, arts. 57º e 58º. Com a publicação da Lei nº 6/2006, que aditou ao Código Civil o art. 1068º, instituiu-se a regra da comunicabilidade para todos os arrendamentos de prédios urbanos e do art. 59 do NRAU resulta a aplicação do art. 1068 a contratos anteriores, que subsistam, e não apenas aos constituídos após a sua entrada em vigor. Não se trata de uma aplicação retroativa, antes sendo uma aplicação imediata da lei nos termos previstos no art. 12º, nº 1 e 2, 2ª parte do CC, pressupondo a vigência da relação jurídica em causa. Mas, para tal, será necessário que exista um casamento atual do arrendatário, pois se não concebe que, de outra maneira, este possa comunicar ao cônjuge o seu direito ao arrendamento.

Nas se suscitando dúvidas sobre a natureza do arrendamento discutido, quanto a reportar a um prédio urbano e o seu fim ser não habitacional, apenas se poderá questionar se os factos provados permitem conhecer da transmissibilidade do arrendamento para o cônjuge sobrevivo e se, não tendo a ré formulado a pretensão expressa de lhe ser transmitido o arrendamento com fundamento no art. 1068 do CCivil, o tribunal podia decidir com base nesse fundamento.

O art. 579 do CPC estabelece que “o tribunal conhece oficiosamente das exceções perentórias cuja invocação a lei não torne dependente da vontade do interessado.”  e não oferece dúvida que a comunicabilidade do arrendamento ao cônjuge sobrevivo prevista no art. 1068 do CCivil é uma exceção perentória - porque constitui uma defesa obstativa da apreciação do mérito da causa por ser impeditiva/extintiva do direito invocado pelo autor e gera a improcedência do pedido nos termos dos art. 571 nº 2 e576 nº 2 do CPC.  Por sua vez, a lei não indica que o conhecimento dessa exceção esteja dependente da vontade do interessado o que ocorreria se o art. 1068 incluísse essa advertência, o que faz concluir que contendo os factos provados a naturalística de onde possa retirar-se o conhecimento dessa exceção este não fica vedado ao julgador.

Acresce ainda que, mesmo a defender-se que a matéria da comunicabilidade do arrendamento prevista no art. 1068 do CCivil tem o seu conhecimento dependente da formulação de um pedido reconvencional e que o deduzido pela ré só contem a transmissibilidade do arrendamento, mas com outro fundamento diverso, então,  contra esta argumentação, teremos de ter presente que o pedido reconvencional formulado pela ré tem como significado útil constituir uma oposição à pretensão da autora  de obter a entrega do imóvel arrendado, totalmente livre e devoluto de pessoas e bens. Isso é também o resultado em que se traduz a comunicabilidade do arrendamento nos termos do art. 1068 do CCivil que a ser julgado procedente constitui obsta à extinção do arrendamento e entrega do imóvel.

Entender que no âmbito do pedido reconvencional deduzido pela ré pode caber a transmissibilidade em razão da comunicabilidade do arrendado ao cônjuge não ofende nem a alegação de factos (que foi realizada como antes observámos) nem a configuração do pedido, não podendo dizer-se que a ser conhecida a comunicabilidade se estaria a conhece alem do pedido em ofensa ao disposto no art. 609 nº1 do CPC. A circunstância de o tribunal no domínio da jurisdição cível apenas se poder ocupar do julgamento e decisão dos litígios que lhe tenham sido pedidos - art. 3º nº1 do CPC – tem como consequência que, no desenvolvimento deste princípio do pedido, o julgador não possa conceder mais nem coisa diversa do que o autor tenha solicitado - art. 609 nº1 do CPC – porque tem o seu campo de atuação delimitado por aquilo que o autor define como pedido e causa de pedir na sua petição (ou reconvenção – Castro Mendes  in Direito Processual Civil Vol. I AAFDL, 1986 p. 188.

Os imperativos da distância a que o julgador deve manter-se da relação do processo para não interferir com ela devem ser colocados em equação com os atributos do processo moderno e o princípio da gestão processual que consagra (art. 7 º do CPC) desde que se encontre salvaguardado o princípio do contraditório para evitar decisões-surpresa. Efetivamente, no caso em decisão, a ré no pedido reconvencional pretende obstar à condenação de ter de restituir o arrendado pelo seu falecido marido e que seja reconhecido judicialmente o direito de transmissão do arrendamento. A qualidade do pedido - na terminologia de Alberto dos reis CPC ano Vol. V reimpressão Coimbra editora p. 67 – evidencia-se e deve evidenciar-se no seu significado útil e este, no caso, é o do reconhecimento da transmissão do arrendamento que pode colher-se, se verificados os pressupostos legais, na vontade da ré continuar a explorar o estabelecimento sito no referido imóvel por explorar o centro médico e de enfermagem em conjunto com o marido, como pode resultar da verificação do art. 1608 do Civil. Em verdade se o tribunal julgar pela existência da comunicabilidade do arrendamento com este último fundamento não está a conceder aquilo que a parte /reconvencional não pediu porque desse modo esta obterá exatamente o que pretende e enunciou, que lhe seja transmitido o arrendamento, sem que possa falar-se de qualquer decisão surpresa.

Se os elementos de facto que se devem exigir (a prova do casamento e do regime de bens, a data do arrendamento e do óbito do arrendatário) se encontram nos autos e se se invoca um obstáculo à extinção do arrendamento e, mais que isso, uma causa legal de transmissão do mesmo para a mulher do arrendatário, sob a forma de exceção perentória ou sob a de reconhecimento de um direito através de pedido reconvencional, nada obsta a que o tribunal se pronuncie e decrete esse direito.     

Diga-se que, dos factos provados obtém-se que o arrendamento foi celebrado por escritura pública de 10 de Janeiro de 1984 destinando-se ao exercício de centro médico e enfermagem não se encontrando alegado, nem discutido nem provada a qualidade profissional do falecido arrendatário, não sendo por isso de atender a qualquer eventual incidência da atividade daquele na definição da natureza do arrendamento, bastando que o que a prova revela e que é um arrendamento de um prédio urbano para fins não habitacionais.

Esta referência permite concluir que as apontadas nulidades à decisão recorrida pela recorrente nos termos do art. 615 não ocorrem uma vez que é contra a decisão de direito proferida e nos termos em que o foi que ela se insurge e não contra quanto a sua regularidade formal. Afirmar-se que que a decisão recorrida partiu da consideração de o falecido marido da autora ser enfermeiro e atribuiu ao arrendamento uma natureza que não permitia a sua transmissão para a ré não constitui um excesso de pronúncia porque a decisão recorrida conheceu do objeto do pedido de acordo com a causa de pedir, a saber, se o contrato de arrendamento se extinguiu com a morte do arrendatário e se a mulher do falecido arrendatário tinha direito á transmissão do arrendamento. Pode protestar-se como a recorrente faz que, talvez, a decisão recorrida não respeite as leis aplicáveis por ter feito delas uma incorreta aplicação, só que isso não constitui a ocorrência de qualquer nulidade nos termos do art. 615 do CPC.

Em resumo, encontrando-se certificado na ação que o arrendatário de um contrato de arrendamento de um prédio urbano para fins não habitacionais celebrado em 1984 faleceu em 2019 tendo deixado cônjuge sobrevivo com quem já era casado, no regime da comunhão de adquiridos, à data da celebração do arrendamento, tem a ré, como cônjuge sobrevivo, o direito à comunicabilidade do arrendamento por morte do marido nos termos do art. 1068 do CCivil e, nestes termos deve conceder-se provimento ao recurso e revogar a decisão recorrida.

… …

Síntese conclusiva   

 - Com a publicação da Lei nº 6/2006, que aditou ao Código Civil o art. 1068º, instituiu-se a regra da comunicabilidade para todos os arrendamentos de prédios urbanos para fins habitacionais ou não habitacionais e do art. 59 do NRAU resulta a aplicação do art. 1068 a contratos anteriores, que subsistam, e não apenas aos constituídos após a sua entrada em vigor.

- O art. 579 do CPC estabelecendo que “o tribunal conhece oficiosamente das exceções perentórias cuja invocação a lei não torne dependente da vontade do interessado.”  impõe que a comunicabilidade do arrendamento ao cônjuge sobrevivo prevista no art. 1068 do CCivil como exceção perentória é de conhecimento oficioso porque a lei não indica que o seu conhecimento esteja dependente da vontade do interessado o que ocorreria se o art. 1068 incluísse essa advertência.

- Se em reconvenção for pedida a transmissibilidade do arrendamento ao cônjuge sobrevivo com outro fundamento que não o previsto no art. 1068 do CCivil, tendo tal pedido como significado útil constituir uma oposição à pretensão da autora  de obter a entrega do imóvel arrendado, totalmente livre e devoluto de pessoas e bens pode ainda, nos termos do princípio da flexibilidade do pedido, conhecer-se e decidir-se a transmissibilidade prevista no art. 1068 do CCivil

- Se os elementos de facto que se devem exigir (a prova do casamento e do regime de bens, a data do arrendamento e do óbito do arrendatário) se encontram provados nos autos nada obsta a que o tribunal se pronuncie e decrete esse direito.     

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 Decisão

Pelo exposto acorda-se em conceder provimento à presente revista e, em consequência, revogar a decisão recorrida na parte em que que condenou a ré a pagar, à autora, a título de indemnização por ocupação indevida a quantia mensal de €105,79 (cento e cinco euros e setenta e nove cêntimos), desde o óbito do primitivo arrendatário ocorrida em ... .07.2019 até à efetiva entrega do imóvel,

e, julgar procedente o pedido reconvencional da ré declarando-se a transmissão por morte do contrato de arrendamento datado de 10 de janeiro de 1984 para a ré.

Custas pela recorrida.

Lisboa, 11 de maio de 2023


Relator: Cons. Manuel Capelo

1º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Nuno Ataíde das Neves

2º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro José Maria Sousa Pinto