Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A1434
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SEBASTIÃO PÓVOAS
Descritores: CONTRATO DE EDIÇÃO
Nº do Documento: SJ200607110014341
Data do Acordão: 07/11/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Sumário : 1) O regime jurídico da empreitada prende-se com a realização de obras materiais.
A realização de uma obra intelectual (literária, artística ou
cientifica) não pode gerar um contrato de empreitada só pelo facto de envolver, como prestação acessória, ou secundária, a entrega de coisa material que lhe sirva de suporte.

2) A obra intelectual é coisa incorpórea distinta do seu suporte material, sendo diversos os direitos que sobre eles incidem.

3) O contrato de edição supõe uma criação intelectual não pré ordenada pelo editor, que a publica, autorizado pelo criador que transmite, ou não, o direito de autor.

4) Encomenda é o contrato em que alguém se obriga a produzir uma obra literária, científica ou artística, para outra pessoa, fora do âmbito de um contrato de trabalho ou do cumprimento de um dever funcional, com ou sem remuneração, presumindo-se ser o criador intelectual.

5) Ao contrato de encomenda aplicam-se as regras do contrato de prestação de serviço e subsidiariamente as do mandato.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


"AA", residente em Vila Nova de Gaia, intentou acção, com processo ordinário, contra o "Empresa-A", com sede no Porto.

Pediu a condenação do Réu a pagar-lhe a quantia de 21 198, 91 euros - acrescida de 1 607, 59 euros, de juros vencidos - e juros vincendos, correspondente ao pagamento de um livro sobre a história do clube, escrito pelo Autor.

O Réu provocou a intervenção de "Empresa-B", a quem teria imputado a responsabilidade do pagamento ao Autor.

A final, a sentença do Tribunal de Vila Nova de Gaia, julgou a acção parcialmente procedente e condenou o Réu a pagar ao Autor 14 515,92 euros acrescidos de juros desde o trânsito e absolveu "Empresa-B" do pedido.

Apelou o Réu, mas a Relação do Porto confirmou o decidido na 1ª Instância.

Pede agora revista assim concluindo:

- O Acórdão é nulo, de acordo com os artigos 158º nº1, 668º nº1 e 716º do Código de Processo Civil.

- O Autor pediu o pagamento de direitos de Autor, que computou em 22 806,50 euros, nos termos do artigo 91º nº 3 do CDA, alegando que a obra está à venda desde Dezembro de 2000, tendo sido vendido cada livro por 8500$00, numa edição de 2000 exemplares.

- Ao condenar-se com base num contrato de prestação de serviços inominado fez-se uma errada aplicação do direito.

Concluiu pedindo a absolvição ou a redução do montante segundo a equidade.

Contra alegou o Autor para defender o julgado.

As instâncias consideraram assentes os seguintes factos:

- O Autor é licenciado em História e elaborou o livro "... - A Primeira Historia";

- Que foi impresso e distribuído pela "Empresa-B";

- O Autor, na qualidade de licenciado em Historia, foi contactado pelo Réu para elaborar a história do clube;

- Os contactos foram intermediados pelo Prof. BB;

- Que, à data, era director do jornal "O ...";

- Os contactos iniciaram-se em 1988 e mantiveram-se até Dezembro de 2000;

- Ao longo de todo o trabalho de preparação da obra, sempre o Prof. BB abordou o Autor sobre o valor do trabalho e forma de pagamento do mesmo;

- Os contactos também foram feitos pelo Dr. CC, como representante do Réu "Empresa-A";

- A obra inicialmente contratada teria de ser feita em dois volumes;

- O Vice-Presidente do "Empresa-A", Dr. CC, no jantar comemorativo do 97º aniversário do clube, entregou ao Autor um cheque de 200 000$00;

- Do total de 2003 exemplares feitos, foram vendidos ao "Boavista" 1000 exemplares pelo preço unitário de 2.430$00 e 432 exemplares do livro pelo preço de capa de 8095$00.

Foram colhidos os vistos.

Conhecendo,

1- Omissão de conhecimento.
2- Qualificação do contrato.
3- Encomenda.
4- Conclusões.

1- Omissão do conhecimento.

O recorrente alega que o Acórdão recorrido não "conheceu nenhuma das questões suscitadas" na apelação "seja quanto à decisão que julgou a matéria de facto, seja quanto à douta sentença", sendo que tudo o que se diz quanto à matéria de facto "é meramente conclusivo", nada foi dito quanto à qualificação do contrato nem quanto ao "quantum" indemnizatório.

Assaca, assim, omissão de pronúncia, conducente à nulidade do nº1, alínea d) do artigo 668º do Código de Processo Civil.

Antes do mais, refira-se que a Relação usou da faculdade do nº5 do artigo 713º do CPC, em Acórdão tirado por unanimidade e meramente confirmatório.

Mas não o fez totalmente, já que e por ter sido também impugnada a matéria de facto, teria de pronunciar-se, expressa e autonomamente, sobre este segmento.

E fê-lo, não em termos meramente conclusivos, mas analisando e acolhendo os princípios que disciplinam os factos a considerar provados, acolhendo o que ficou assente na 1ª Instância.

Ademais, o recorrente ao apelar para o artigo 690º A do CPC, levou a Relação a reapreciar a prova produzida em 1ª Instância, o que seguramente fez. ("Ouvidos e lidos os depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência e ponderando os depoimentos juntos...").

Quanto à parte remissiva do Acórdão ("quantum" indemnizatório e qualificação do contrato) a matéria fora devidamente detalhada na 1ª Instância.

Não há qualquer violação dos artigos 668º nº1 d), 660º nº2 e 158º do CPC.

2- Qualificação do contrato.

Há que qualificar o contrato celebrado entre o Autor e o Réu.

Perfilam-se três figuras contratuais: contrato de empreitada, contrato de edição e contrato de prestação de serviço.

O Acórdão do STJ de 3 de Novembro de 1983 - BMJ 331-489 - decidiu, em situação similar, mas de produção televisiva, tratar-se de contrato de empreitada.

Depois de ponderar ser indubitável estar-se no âmbito da "actuação intelectual ou criação de espírito, aliado à criação estética e artística" entendeu que também teve de desenvolver-se na criação ou produção de algo "de carácter material, dado que os programas tinham de organizar-se em filmes, fitas magnéticas e outros materiais", de modo a tornar possível a sua emissão.

E considerando que, na obra da empreitada, deve existir algo de corpóreo, a materialização dos textos em fitas deve ser tida como "coisa", sendo uma obra, nos termos e para os efeitos do artigo 1207º do Código Civil.

O aresto teve dois votos de vencido que defenderam tratar-se de contrato de prestação de serviço inominado de produção e realização de obra intelectual, "criação de natureza artística ou espiritual e não de construção de coisa corpórea".

Em anotação na RLJ (121-183 ss), o Prof. Antunes Varela entende que, segundo a concepção do Código Civil, o contrato de empreitada tem necessariamente por objecto a realização de uma obra no sentido material do termo.

A decisão não afasta este entendimento por exigir algo de corpóreo.

Só que se bastou com meros elementos materiais que corporizam a ideia ou a criação.

Aí, o principal ponto de discordância do Mestre que, apelando para a noção de "coisa", afirma não poder confundir-se "a coisa sobre a qual incide a obra, com obra que recai sobre a coisa."

É que, "a obra que define a causa típica ou a função económico-social da empreitada, refere-se ao acto que o empreiteiro se obrigou a realizar (...) e não à coisa sobre a qual o acto incide."

Conclui, então, que o regime jurídico da empreitada tem a ver com a realização de obras materiais, sendo que a realização de uma obra intelectual não gera um contracto desse tipo apenas por envolver, como prestação acessória, secundária ou complementar a entrega de coisa corpórea. (cf. em sentido oposto, os Profs. Ferrer Correia e Henrique Mesquita, in "A obra intelectual como objecto do contracto de empreitada", apud R.O.A 45, 1985, 129 ss)

Mas é certo que "a relação umbilical que liga a obra literária, artística ou cientifica à personalidade do autor, por força da qual ela reflecte a liberdade (de criação) ... não se confunde com o regime típico da empreitada, nem sequer, no seu aspecto estático, com o regime jurídico da propriedade."

O Prof. Oliveira Ascenção (in "Direito de Autor e Direitos Conexos", 422) refere que "em abstracto, nada exclui que uma encomenda de obra literária se processe nos termos do contrato de empreitada."

Mas cumpre notar que uma obra feita por encomenda, ou por conta de outrem (conceito constante dos artigos 14º nº 1 e 168º do Código do Direito de Autor) pode ter na sua origem negócios muito diversos, como sejam um contrato de trabalho (artigo 174º) o cumprimento de um dever funcional, não podendo, sem mais, proceder à sua qualificação.

O Acórdão do STJ de 2 de Fevereiro de 1988 - BMJ 374-449 - decidiu que o contrato onde se clausulou que uma pessoa retratasse outra num quadro a óleo, integra uma prestação de serviço inominada, regulada pelas normas do mandato.

Isto porque, e ainda neste acórdão, a obra material objecto do contrato de empreitada não abrange uma criação intelectual de domínio artístico.

Aceita-se, sem relevantes reservas, o entendimento do Prof. Antunes Varela por ser o que mais acolhe os princípios fundamentais do contrato de empreitada. (cf. o Prof. Galvão Telles, in "Aspectos comuns a vários contratos", 76; Prof. Vaz Serra, "Empreitada", Sep. BMJ 145 e 146-7; Prof. Calvão da Silva, ROA, 45, 129 ss e o Acórdão do STJ de 14 de Maio de 1948, RLJ 81-151).

A palavra "obra", quando associada a empreitada, é-o em sentidos material e principal, que não como suporte ou acessório de criação intelectual ou artística.

O Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos (aprovado pelo DL nº 63/85, de 14 de Março, e com as alterações da Lei nº 45/85, de 17 de Setembro, da Lei nº 114/91, de 3 de Setembro, do DL nº 322/97 de 27 de Novembro, do DL 334/97 de 27 de Novembro e da Lei nº 50/04, de 24 de Agosto) distingue - no artigo 10º - obra intelectual como "coisa incorpórea" e o direito que sobre ela incide, do direito de propriedade sobre o seu suporte material ("as coisas materiais que sirvam de suporte à sua fixação ou comunicação.").

Haveria, então, um contrato inominado de prestação de serviço, para criação de obra intelectual do domínio literário (artigo 2º nº1, alínea a) do CDA), também apodado de encomenda. (cf. o Prof. Oliveira Ascenção, ob. cit. 421 e o Dr. Luís Francisco Rebelo, "Introdução ao Direito de Autor", I, 109), aplicando-se-lhe as regras do mandato (artigos 1157º a 1160º e 1156º do Código Civil).

Assim é sempre que a encomenda não surja em cumprimento de um contrato de trabalho - o que acontece, com frequência com trabalhos jornalísticos, situação contemplada no artigo 174º do CDA e nº 3 do artigo 19º do mesmo diploma - ou em acatamento a um dever funcional - como v.g., a elaboração de um texto destinado a publicação para uma campanha de sensibilização ou divulgação do seu serviço, por um funcionário público.

Certo que não há contrato de edição - que é matriz dos contratos típicos do Código do Direito de Autor (artigo 83º) já que este pressupõe a publicação autorizada pelo criador, ou a concessão do direito de publicação (sem ou com a transmissão permanente, ou temporária, do direito de autor) de obra para cuja criação o editor não contribuiu contratualmente.

Na óptica do Dr. Luís Francisco Rebelo (in "Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos" - Anotado - 1985, 141) a autorização não implica a transmissão do direito de autor sobre a obra editada.

Ainda que esta questão não releve aqui, sempre se dirá que assim é, de acordo com o nº1 do artigo 41º do CDA - e nº1 do artigo 88º - embora essa transmissão possa ser clausulada.

3- Encomenda.

3.1- Muito embora o Prof. Oliveira Ascenção (ob. cit. 423) considere que "a qualificação do contrato de encomenda é quase um problema virgem na ordem jurídica portuguesa", devendo atentar-se no tipo mais "adequado", entende-se, como acima se referiu, ser mais próximo do mandato. (Note-se que o Prof. Baptista Machado - Anotação aos Acórdãos do STJ de 3 de Novembro de 1983, RLJ 118-274 - considerava existir um contrato inominado a integrar ou na empreitada ou no mandato).

O artigo 1318º do Código Civil de 1867 definia o contrato de mandato, ou de procuradoria, como aquele em que alguém "se encarrega de prestar, ou fazer alguma coisa por mandado e em nome de outrem."

Inicialmente, ainda no direito romano, o mandato mais não era do que uma prestação de serviços feita pelo mandatário em nome próprio, tendo como característica ser gratuito.

Todavia, como nota o Dr. DD, na última fase "admitiu-se o mandato representativo e bem assim que o mandatário pudesse receber honorários, não a titulo de remuneração, mas sim como prova de reconhecimento do mandante." (apud, "Tratado de Direito Civil", VII, 387).

Na esteira do artigo 1º proposta pelo Prof. Galvão Telles ("Contratos Civis - Mandato" BMJ 83-258) que transitou para o Anteprojecto do Código Civil - 1ª Revisão Ministerial. (artigo 1157º) "O mandato é o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra."

Já no contrato de prestação de serviço (artigo 1154º) uma das partes obriga-se "a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição."

O Prof. Galvão Telles (ob.cit. "Contratos Civis", 173) acentuava que "o mandato tem de especifico em relação aos demais contratos de prestação de serviços, a natureza do seu objecto que é a prática de actos jurídicos" (...) "Sempre que uma pessoa promete à outra a sua colaboração jurídica, pondo à disposição dela a sua capacidade de agir no mundo do Direito, contratando com terceiros ou praticando outros actos jurídicos em face deles, constitui-se um vinculo de mandato."

O objecto do negócio faz o "distinguo" entre mandato e prestação de serviço, mas o regime daquele é subsidiariamente aplicável a este (artigo 1156º do CC).

Tal como o mandato, a prestação de serviço pode ser gratuita ou remunerada, mas no mandato vale a regra da gratuitidade - presunção do nº1 do artigo 1158º do CC - presumindo-se, contudo, oneroso se o mandatário o praticar por profissão.

Procurando definir o contrato de encomenda como aquele em que alguém se obriga a produzir uma obra literária, cientifica ou artística para outra pessoa, com ou sem retribuição, fora do âmbito de um contrato de trabalho ou do cumprimento de um dever funcional, presumindo-se ser o criador intelectual.

A presunção de criação intelectual, releva para aferir da titularidade dos direitos de autor (nº2 do artigo 14º do CDA).

Ao contrato de encomenda aplicam-se as regras do contrato de prestação de serviço e subsidiariamente as do mandato, nos termos acima expostos.

3.2- Da matéria de facto elencada, conclui-se ter sido ilidida a presunção de gratuitidade do nº1 do artigo 1158º do Código Civil, já que fora acordado que a obra seria paga.

Não se acordou o montante da remuneração.

A 1ª Instância (para onde a Relação remeteu, nos termos do nº5 do artigo 713º do CPC), usou o critério de equidade do nº2, "in fine" do citado artigo 1158º, utilizando, por similitude, as regras do nº3 do artigo 91º do CDA, por referência ao numero de exemplares vendidos e ao respectivo preço de capa. (25%, no contrato de edição sem retribuição estipulada).

A equidade (aqui "ex vi" da alínea a) do artigo 4º do CC) destina-se a encontrar a solução mais justa no caso concreto.

Como refere o Prof. Castanheira Neves, "a equidade, exactamente entendida, não traduz uma intenção distinta da intenção jurídica, é antes um momento essencial da juridicidade." (apud "Questão de Facto - Questão de Direito", 1967, 351), ou, para o Prof. José Tavares, "a expressão da justiça num dado caso concreto". (in "Princípios Fundamentais do Direito Civil", I, 50).

É uma justiça de proporção, ou de equilíbrio, fora das regras rígidas da norma.

Por isso os critérios do contrato de edição - em que está em causa uma actividade essencialmente comercial e cujo escopo é a venda ao público de exemplares da obra - só podem ser aqui utilizados como mero critério de referência longínquo.

Tratando-se de historiar uma agremiação desportiva, mais prevalecem, critérios de promoção e divulgação a sobreporem-se ao dos lucros da edição.

Parece, assim, adequada uma remuneração de 10 000,00 euros, que se afigura equilibrada e equitativa, com juros a contar do trânsito.

4- Conclusões.

Pode concluir-se que:

a) O regime jurídico da empreitada prende-se com a realização de obras materiais.
A realização de uma obra intelectual (literária, artística ou cientifica) não pode gerar um contrato de empreitada só pelo facto de envolver, como prestação acessória, ou secundária, a entrega de coisa material que lhe sirva de suporte.

b) A obra intelectual é coisa incorpórea distinta do seu suporte material, sendo diversos os direitos que sobre eles incidem.

c) O contrato de edição supõe uma criação intelectual não pré ordenada pelo editor, que a publica, autorizado pelo criador que transmite, ou não, o direito de autor.

d) Encomenda é o contrato em que alguém se obriga a produzir uma obra literária, científica ou artística, para outra pessoa, fora do âmbito de um contrato de trabalho ou do cumprimento de um dever funcional, com ou sem remuneração, presumindo-se ser o criador intelectual.

e) Ao contrato de encomenda aplicam-se as regras do contrato de prestação de serviço e subsidiariamente as do mandato.

Nos termos expostos, acordam conceder parcialmente a revista e condenar o Réu a pagar ao Autor a quantia de 10 000,00 euros, com juros desde o trânsito em julgado.

Custas por recorrente e recorrido na proporção do decaimento.

Lisboa, 11 de Julho de 2006
Sebastião Póvoas
Moreira Alves
Alves Velho