Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1655/13.1TJPRT.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: TOMÉ GOMES
Descritores: RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
VALOR DA CAUSA
SUCUMBÊNCIA
INTERPRETAÇÃO DA LEI
Data do Acordão: 11/24/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO TOMADO CONHECIMENTO DO PROCESSO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / ADMISSIBILIDADE DO RECURSO / RECURSO DE REVISTA / ADMISSIBILIDADE DA REVISTA.
DIREITO CIVIL - LEIS, SUA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO.
Doutrina:
- Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 3.ª Edição, 2016, 54.
- Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil” Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1981, 233 e seguintes.
- Amâncio Ferreira, Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 3.ª Edição, 2002, 104.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 8.º, N.º 3.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 629.º, N.º 1 E 2, ALÍNEA D), 672.º, N.º 1, AL. C).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 02/06/2015, PROCESSO N.º 189/13.9TBCCH-B. E1.S1, E DE 17/11/2015, PROCESSO N.º 3709/12.2YYPRT.P1. S1, AMBOS EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I. A interpretação do disposto no artigo 629.º, n.º 2, alínea d), do CPC mais conforme com a razão teleológica que lhe subjaz, com a unidade do sistema recursório de uniformização e como o factor histórico-evolutivo do instituto em referência é no sentido de que a admissibilidade irrestrita de recurso com o fundamento ali previsto se confina aos casos em que o recurso ordinário fosse admissível em função da alçada ou da sucumbência, se não existisse motivo a estas estranho.

II. A necessidade de superação de contradições jurisprudenciais pelo STJ não significa uma admissibilidade de recurso ordinário sistemática, alargada à generalidade dos casos, bastando que tal possa ocorrer nos litígios de maior relevo determinado em função do valor da causa.

III. A finalidade do mecanismo da uniformização não é prioritariamente dirigida à justiça de cada caso concreto, mas sim ao objetivo latitudinário de evitar a propagação do erro de direito judiciário pela ordem jurídica, como garantia do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, na sua conjugação com o princípio da independência e liberdade interpretativa do julgador, na linha da directriz hermenêutica do n.º 3 do art.º 8.º do CC.

IV. No caso vertente, além de não ocorrer inadmissibilidade de recurso por motivo alheio à alçada do tribunal de que se recorre, nem sequer a revista seria admissível em função do valor da causa ou da sucumbência, pelo que não se verifica o fundamento especial de recorribilidade previsto na alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC.

Decisão Texto Integral:
Acordam na 2.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I – Relatório

1. O Banco AA, S.A. (A.), instaurou, em 21/10/2013, junto da Instância Local Cível do Porto, contra a sociedade BB - Sociedade Sucatas, Ldª, (1.ª R.), e a Cooperativa de Solidariedade Social CC, CRL (2.ª R.), ação declarativa, sob a forma de processo declarativo comum, a pedir:

i) - Em primeira linha, que fosse reconhecido ao A. o direito à restituição do montante de uma letra cujo pagamento fora por ele suportado e condenada a 1.ª R. a pagar àquele o valor de € 10.947,00, acrescido de juros vencidos desde 24/04/2013;

ii) – Subsidiariamente, que fosse condenada a 2.ª R. a pagar ao mesmo A. o referido montante e juros.

Alegou para tanto o A., em síntese, que:

. No exercício da sua atividade, o A. recebeu da 2.ª R. instrução para não pagar uma letra de câmbio, sacada pela 1.ª R. e aceite pela 2.ª R, por não haver, entre esta e aquela, qualquer relação negocial que o justificasse;

. No entanto, tendo a 1.ª R. apresentado a letra a desconto, o A., por lapso dos seus serviços, procedeu ao respetivo pagamento através de débito na conta titulada na 2.ª R. junto do A., apesar da manifestação desta no sentido de não se realizar tal pagamento;

. Subsequentemente, mediante solicitação da 2.ª R., o A. devolveu-lhe o valor debitado na importância de € 10.947,00, que havia pago com a mencionada letra;

. Como é totalmente alheio às relações existentes entre as duas R.R., o A. deve ser ressarcido daquele montante que despendeu sem causa justificativa.

. Assim no caso de se demonstrar a inexistência de qualquer relação comercial entre as R.R., deverá a 1.ª R. ser condenada na quantia peticionada com fundamento em enriquecimento injustificado; no caso de se demonstrar a existência dessa relação comercial, deverá ser condenada a 2.ª R. a igual título.

2. Ambas as R.R. contestaram a sustentar a improcedência das pretensões contra elas deduzidas e, consequentemente, a sua absolvição dos pedidos.

3. Findos os articulados e dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar e fixado o valor da causa em € 10.947,00, procedendo-se ainda a identificação do objeto do litígio e à enunciação dos temas da prova (fls. 93 e 93/v.º).

4. Realizada a audiência final, com gravação da prova, foi proferida a sentença de fls. 188-194/v.º, datada de 12/06/2015, na qual foi inserida a decisão de facto e a respetiva fundamentação, a julgar a ação procedente, condenando-se a 2.ª R. Cooperativa de Solidariedade Social CC, CRL , a pagar ao A. a quantia de € 10.947,00, acrescida juros vencidos, desde 24/04/2013, e vincendos, à taxa legal, e absolveu-se a 1.ª R. BB - Sociedade Sucatas, Ldª, do pedido.

5. Inconformado com tal decisão, a 2.ª R. interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, a impugnar a decisão de facto e de direito, tendo sido proferida, pelo Exm.º Relator daquela Relação, a decisão singular de fls. 261-262, datada de 16/12/2015, a qual foi depois mantida pelo acórdão da mesma Relação proferido a fls. 277-285, datado de 23/02/2016, no sentido de rejeitar o recurso quanto à impugnação da decisão de facto, com fundamento em inobservância do requisito estabelecido no artigo 640.º, n.º 2, alínea a), do CPC, bem como o recurso sobre a decisão de direito, por intempestividade derivada da rejeição do recurso sobre aquela decisão de facto.  

6. Mais uma vez inconformada, veio a 2.ª R. interpor recurso de revista, ao abrigo do disposto no artigo 629.º, n.º 2, alínea d), do CPC, formulando as seguintes conclusões:

1.ª - A Recorrente alegou matéria de facto e matéria de Direito no Recurso para o Tribunal da Relação do Porto;

2.ª - O Tribunal entendeu não estarem cumpridos os requisitos para a reapreciação da matéria de facto e entendeu que devia indeferir o Recurso na sua totalidade;

3.ª - O objeto do Recurso não se bastava na reapreciação de matéria de facto, mas também em questões de direito;

4.ª - Não admitir o Recurso na sua totalidade será uma grave violação ao direito de Recurso previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa;

5.ª - Se o Tribunal entendesse não estarem cumpridos os requisitos para a apreciação da matéria de facto, não se pronunciaria nessa parte, pronunciando-se das questões de Direito;

6.ª - É de ressalvar que, admitir a fundamentação do Tribunal, significaria prejudicar os direitos constitucionalmente consagrados, devido a um simples e eventual erro na elaboração numa das partes do Recurso;

7.ª - Para evitarmos tal circunstância, a única situação plausível seria criar dois tipos de recurso simultâneos para o Tribunal da Relação, um recurso da matéria de facto e um recurso da matéria de direito. Seria a única maneira de na eventualidade de um erro na matéria de recurso de facto, o recorrente ver o Tribunal a apreciar a questão de Direito;

8.ª - No acórdão ora recorrido, foi mencionada a "situação de desigualdade" que a admissão do recurso provocaria;

9.ª - E quando um prazo para recurso termina no 1.º dia de férias judiciais? Ou ainda mais grave, quando o prazo de recurso termina um dia antes das férias judiciais, que com o pagamento de um dia de multa pode ser interposto no 1.º após o período de férias judiciais? Não causará também uma situação de desigualdade?;

10.ª – O processo em discussão iniciou-se em 2013, tendo a decisão da 1.ª instância sido proferida a 12/06/2015, o que perfaz um hiato temporal de mais de 2 anos;

11.ª - De acordo com o disposto no artº 640.º, n.º 1, do CPC, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente, sob pena de rejeição do recurso, especificar: Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; Quais os concretos meios de probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas;

12.ª - Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, também incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso... – nº 2, al. a) do artigo 640.º do CPC;

13.ª - No referido recurso foram cumpridos todos os requisitos de impugnação da matéria de facto, só não sendo transcritas as passagens - no atual CPC, tal transcrição não é obrigatória, mas sim facultativa -, nem indicados os minutos da passagem;

14.ª - No acórdão de 29/10/2015 do STJ (Processo 233/09), "dispondo o Tribunal da Relação de um suporte escrito que reproduz os depoimentos e de todos os dados necessários para a localização no suporte técnico que contém a gravação da audiência, o Tribunal estava legalmente possibilitado para apreciar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deduzida no recurso de apelação."

15.ª - Face ao exposto no acórdão do STJ, é ponto assente que a reclamante, invocou elementos suficientes para a prossecução da instância, ou seja, indicou os elementos tendentes á identificação das gravações, a quem pertenciam os depoimentos e às horas realizadas.

16.ª - Referiu qual o sentido das gravações, a respetiva contradição, e qual a correta interpretação;

17.ª - Estão preenchidos os requisitos do artigo 640.º, n.º l e 2, do CPC, ou seja, está preenchido núcleo essencial do ónus, pelo que o recurso deve ser admitido integralmente;

18.ª - A prova gravada era de pouca duração, dessa forma, indicar os concretos minutos seria limitar a perceção do que foi dito;

19.ª - O tribunal, aquando da reapreciação da matéria de facto, tem que ouvir os depoimentos integralmente, sob pena de fazer uma apreciação errada da prova. Não se pode cingir única e exclusivamente aos minutos indicados;

20.ª - No entanto, mesmo que assim não se entenda, o não cumprimento do ónus, leva á rejeição do recurso naquela parte;

21.ª – O acórdão do TRC, de 10-06-2014, no processo n.º 1170/11.8TTLRA. C1 - " Por isso, temos que concluir que o ónus de indicação em causa não foi cumprido, sem justificação atendível. Deste modo, impondo a lei essa indicação e cominando a sua falta com a rejeição do recurso nessa parte, não pode este tribunal, ainda que ao abrigo dos seus poderes oficiosos, acolher a impugnação, dando o que a lei expressamente manda rejeitar."

22.ª – O acórdão do TCA do Norte, 17-09-2015, Processo: 01055/14.6BEPRT - "Decorre da conjugação do art.º 639.º e 640.º do CPC no caso não ser observado pelo recorrente o ónus mencionado, prevê a imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, não sendo defensável que se lance mão do convite ao aperfeiçoamento em tal matéria). Nesta conformidade e por não ser sido cumprido o disposto no art.º 640.º do CPC rejeita nesta parte o recurso."

23.ª – O acórdão do TRC, de 19-06-2014, no Proc. n.º 1170/11.8TTLRA.C1- "Por isso, temos que concluir que o ónus de indicação em causa não foi cumprido, sem justificação atendível. Deste modo, impondo a lei essa indicação e cominando a sua falta com a rejeição do recurso nessa parte, não pode este tribunal, ainda que ao abrigo dos seus poderes oficiosos, acolher a impugnação, dando o que a lei expressamente manda rejeitar."

24.ª - De acordo com os acórdãos mencionados, perante situações iguais á situação ora recorrida, os tribunais decidiram no sentido de admitir o recurso, rejeitando o recurso apenas na parte da impugnação da matéria de facto;

25.ª - Atente-se que os tribunais decidiram daquela maneira, independentemente do prazo em que foi interposto, quer seja nos 30, quer seja nos 40, 30 mais 10 dias;

26.ª - No acórdão do TRC, de 10-06-2014, no acórdão do TCA do Norte, 17-09-2015 e no acórdão do TRC, 19-06-2014, independentemente do prazo em que foi interposto o recurso, os tribunais quando entenderam não estarem cumpridos os requisitos para a reapreciação da matéria de facto, rejeitavam essa parte mas conheciam do recurso na outra matéria, na matéria de direito, ao contrário do douto tribunal ora recorrido, que com todo o devido respeito, indeferiu, erroneamente na sua totalidade, pois considerou que era intempestivo porque não foi apresentado nos 30 dias não pode beneficiar dos 10;

27.ª - Nestes termos, embora seja do nosso entendimento que cumprimos o núcleo essencial do artigo 640.º n.º 1, do CPC, se o tribunal assim não entender, deverá rejeitar o recurso só naquela parte;

28.ª - Na Constituição da República portuguesa, é assegurada a todos os cidadãos, o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos. O acesso ao direito implica o acesso ao recurso, na medida em que só assim a recorrente vê assegurada a defesa dos seus direitos;

29.ª - É importante que na avaliação deste processo se faça um certo juízo de equidade e de igualdade. Nos termos do artigo 13.º da Constituição, é consagrado o princípio da igualdade, mas não em sentido estritamente formal. Este princípio estabelece que deve ser tratado de forma igual o que é igual e de forma diferente o que é diferente;

30.ª - Viola assim o artigo 640.º, n.º 2, al. a), do CPC, na medida em que está expressamente previsto que "incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte", e não em todo o recurso, e a douta decisão decidiu contrariamente ao legalmente expresso;

31.ª - Atentas as circunstâncias supra mencionadas, atenta a jurisprudência, atenta o juízo de equidade do juiz, outra solução não pode ser admitida, que não seja a procedência do recurso na parte em que não informa de nenhum vício, ou seja, seja o recurso de direito procedente;

32.ª - A não admissibilidade do recurso com o fundamento apresentado é inadmissível. Consiste numa grave violação ao artigo 20.º da Constituição. Aceitarmos esta decisão é aceitar a limitação do acesso ao direito e do acesso ao recurso;

33.º - Limitar o acesso ao recurso, pelo facto de não haver transcrição da gravação que serve de prova nos autos é excessivo e ilegal;

34.ª - Decisão justa, será a da não admissão do recurso naquela parte, decisão corrente na nossa jurisprudência;

35.ª - Viola assim o artigo 640.º n.º2 al. a) do CPC, na medida em que está expressamente previsto que "incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte", e não em todo o recurso, e a douta decisão decidiu contrariamente ao legalmente expresso.

Pede a Recorrente que seja revogada a decisão de não admissão do recurso e substituída por outra que o admita seguindo-se os ulteriores termos processuais.

7. Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.   

II – Quanto à admissibilidade do recurso

Antes de mais, importa ter presente que estamos no âmbito duma ação declarativa instaurada em 21/10/2013, pelo que lhe é aplicável inteiramente o regime do Código de Processo Civil (CPC) na versão aprovada pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, em vigor desde 1 de setembro de 2013.

Convém ainda ter presente que o valor da causa é de € 10.947,00, oportunamente fixado no despacho saneador a fls. 93.

Ora, atendendo ao indicado valor da causa, do acórdão recorrido não cabe revista nos termos gerais do disposto no n.º 1 do artigo 629.º do CPC, uma vez que esse valor não excede o valor da alçada da Relação em vigor à data da propositura da ação e que é de € 30.000,00.

Porém, a Recorrente interpôs o recurso com base no fundamento específico da alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do CPC, o que, desde já, não se afigura sustentável como se procurará demonstrar, reiterando aqui, com as necessárias adaptações, todo o argumentário expendido no acórdão do STJ, de 23/06/2016, proferido no âmbito do processo n.º 2023/13.0TJLSB. L1.S1, também subscrito pelos ora signatários e disponível no sítio da dgsi – http://www.dgsi.pt/jstj.   

Segundo o indicado normativo: 

Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:

   a) - ……………………………………………………………………

   b) - ………………………………………………………………………

   c) - ………………………………………………………………………

  d) – Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

Esta admissibilidade especial de recurso foi recuperada da solução que constava do n.º 4 do artigo 678.º do CPC, introduzido pela Reforma aprovada pelos Dec.-Leis n.º 329-A/95, de 12-12, e n.º 180/96, de 25-09, em consequência da eliminação do recurso para o tribunal pleno, em relação ao qual o precedente artigo 764.º do CPC[1], resultante da reforma aprovada pelo Dec.-Lei n.º 44.129, de 28-09-1961, prescrevia que:

É também admissível recurso para o Supremo, funcionando em tribunal pleno, se o tribunal da relação proferir um acórdão que esteja em oposição com outro, dessa ou de diferente relação, sobre a mesma questão fundamental de direito e dele não for admitido recurso de revista ou de agravo por motivo estranho à alçada do tribunal.    

Foi assim que o n.º 4 do indicado artigo 678.º, na redação dada posteriormente pelo Dec.-Lei n.º 38/2003, de 08-03, passou a consignar que:

É sempre admissível recurso do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, sobre a mesma questão fundamental de direito e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se a orientação nele perfilhada estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

A tal propósito, convém ainda observar que, a par deste fundamento especial de admissibilidade de recurso ordinário, os números 2, 3 e 6 do referido artigo 678.º elegiam mais três fundamentos paralelos, também eles excecionais em relação à norma-regra do n.º 1, nos seguintes termos:

2 – Mas se tiver por fundamento a violação das regras de competência internacional, em razão da matéria ou da hierarquia ou a ofensa de caso julgado, o recurso é sempre admissível, seja qual for o valor da causa.

3 – Também admitem sempre recurso as decisões respeitantes ao valor da causa, dos incidentes ou dos procedimentos cautelares, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre.

6 – É sempre admissível recurso das decisões proferidas contra jurisprudência uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

Deste quadro normativo, desde logo, se extrai que, nos casos previstos nos n.º 2 e 6, era sempre admissível recurso ordinário, fosse qual fosse o valor da causa, o que bem se compreende, no primeiro caso, pelo relevo e alcance que têm as normas de competência absoluta e pelo valor da estabilidade do caso julgado; no segundo caso, pela necessidade de garantir o acatamento dos acórdãos de uniformização de jurisprudência. Já nos casos previstos no n.º 3, a admissibilidade de recurso só se justificava desde que o valor da causa, dos incidentes ou dos procedimentos cautelares fosse impugnado no sentido de que excedia a alçada do tribunal recorrido.

Quanto à hipótese prevista no n.º 4, a razão de ser dessa admissibilidade era prevenir a persistência e até a proliferação de contradições jurisprudenciais das Relações, em questões fundamentais de direito, nos casos em que não coubesse recurso ordinário para o Supremo por motivo estranho à alçada do tribunal recorrido, já que nestes casos o suprimento de tais contradições ficariam fora do alcance dos poderes de uniformização do STJ, a não ser por via de recurso com fundamento em violação de jurisprudência já uniformizada, o que constituiria, além disso, uma barreira à própria uniformização sobre questões circunscritas aquele tipo de casos.

Porém, tal admissibilidade não era irrestrita estando, como estava, condicionada à verificação de inadmissibilidade de recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal de que se recorre. E, nessa linha, era entendimento corrente que o recurso com tal fundamento só era admissível nos casos em que também o fosse em função da alçada, se não existisse o impedimento por motivo alheio àquela.

Neste sentido, escreve Amâncio Ferreira[2] que:

«(…) das decisões que não se possa recorrer para ele [STJ] por motivos estranhos à alçada da relação, é o referido preceito inaplicável em todas as situações em que o recurso jamais pudesse ser aceite por razão da alçada, mesmo que cumulativamente um outro motivo o impedisse.

Com efeito, a unidade do sistema jurídico determina que, nos casos de relevância da alçada como factor de inadmissibilidade do recurso, este em nenhuma circunstância deve ser admitido, sob pena de a uniformização de jurisprudência ocorrer prioritariamente nas situações em que está vedado o recurso ordinário para o STJ, ou seja, naquelas a que não se reconhece dignidade que justifique a intervenção do tribunal de revista.

Assim, das decisões de que só caiba recurso até à Relação, não haverá recurso para o STJ, de harmonia com o disposto no n.º 4 do art. 678.º, desde que, ex vi do n.º 1 do mesmo artigo, delas não coubesse recurso ordinário por proferidas em causas de valor não superior à alçada da Relação.»

De resto, a necessidade de superação de contradições jurisprudenciais pelo STJ não significa uma admissibilidade de recurso ordinário sistemática, alargada à generalidade dos casos, bastando que tal possa ocorrer nos litígios de maior relevo determinado em função do valor da causa, tanto mais que a finalidade do mecanismo da uniformização não é prioritariamente dirigida à justiça de cada caso concreto, mas sim ao objetivo latitudinário de evitar a propagação do erro de direito judiciário pela ordem jurídica, como garantia do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei na sua conjugação com o princípio da independência e liberdade interpretativa do julgador, aliás, na linha da directriz hermenêutica do n.º 3 do art.º 8.º do CC[3].  

Sucede que, com a Reforma do regime dos recursos cíveis introduzida pelo Dec.-Lei n.º 303/2007, de 24-08, foi eliminado o fundamento especial de recurso aqui em apreço, passando a constar do n.º 2 do artigo 678.º do CPC o seguinte:

Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso:

a) – Das decisões que violem as regras de competência internacional ou em razão da matéria ou da hierarquia, ou que ofendam o caso julgado;  

b) – Das decisões respeitantes ao valor da causa ou dos incidentes com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre;

c) – Das decisões proferidas, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça.

De notar que este normativo, em vez de seguir a precedente técnica legislativa de desdobramento das hipóteses nele contempladas em números separados, foi estruturado em alíneas encimadas por um proémio no qual se ressalva a indiferença do valor da causa e da sucumbência para a admissibilidade do recurso, o que não se afigura totalmente rigoroso em relação à alínea b).

A par disto, pela mesma Reforma foi introduzido no n.º 3 do novo artigo 721.º um limite à admissibilidade do recurso de revista consistente na ocorrência de dupla conforme, sem voto de vencido ainda que por diferente fundamento.

Porém, em relação a tais casos de dupla conforme impeditiva da revista em termos gerais, foi prevista a revista excecional para as situações configuradas no n.º 1 do artigo 721.º-A, contemplando-se na alínea c) os casos de:

(…) acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido por qualquer Relação ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.    

Operou-se assim a incorporação nesta sede do fundamento dantes previsto no n.º 4 do art.º 678.º, com as diferenças formais de agora se referir também à contradição entre acórdãos das Relações e do STJ e de não se fazer alusão à condicionante de inadmissibilidade do recurso por motivo estranho à alçada do tribunal recorrido. Significa isto que a admissibilidade de revista ao abrigo daquele fundamento especial, passou a estar confinada aos casos de revista-regra, mormente em função do valor da causa ou da sucumbência, nos termos do n.º 1 do artigo 678.º, mas que fosse impedida pela ocorrência de dupla conforme.

Todavia, a recente Reforma do CPC operada pela Lei n.º 41/2013, de 26-06, ainda que mantendo o sobredito fundamento especial de revista excecional, agora constante da alínea c) do n.º 1 do art.º 672.º, veio também reintroduzir o fundamento especial de admissibilidade de recurso ordinário anteriormente configurado no n.º 4 do artigo 678.º do referido Código, na versão anterior ao Dec.-Lei n.º 303/2007, de 08-03, e que foi integrado na alínea d) do n.º 2 do atual artigo 629.º acima transcrita.

Ora, ainda que pareça existir alguma coincidência entre a alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º e a alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º, em especial no desenho do fundamento ali previsto, uma e outra apresentam condicionantes distintas: enquanto que, na primeira, a admissibilidade do recurso depende do não cabimento de recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal recorrido; a segunda depende apenas da verificação de dupla conforme, nos casos em que haveria lugar a revista normal.

Coloca-se, no entanto, a questão de saber se a admissibilidade de recurso prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 692.º se deve circunscrever ao âmbito anteriormente considerado em sede do n.º 4 do artigo 678.º, mais precisamente só para os casos em que fosse admissível recurso ordinário em função da alçada ou da sucumbência, se não existisse motivo estranho àquelas, ou se será agora também admissível independentemente da verificação daqueles factores. E esta questão coloca-se, face à ressalva que, no proémio do n.º 2 do artigo 629.º, se faz à indiferença do valor da causa e da sucumbência, parecendo cobrir todas as alíneas ali integradas.

Não obstante essa aparência formal, não se afigura que a mesma seja decisiva para interpretar o alcance da admissibilidade recurso em termos de compreender a generalidade dos casos ali contemplados sem a condicionante da alçada ou da sucumbência, pelos seguintes motivos:

i) – Em primeiro lugar, atendendo ao factor histórico, genético-evolutivo, do instituto em causa, como um dos mecanismos temdentes à uniformização jurisprudencial, no tipo de casos em referência, que sempre se tem confinado às situações em que se verificassem os requisitos gerais de cabimento de revista, como sucedia, outrora, no âmbito do artigo 764.º, introduzido pelo Dec.-Lei n.º 44.129, de 28-09-1961, e do n.º 3 do artigo 728.º - julgamento com intervenção de todos os juízes da secção ou em reunião conjunta de secções, com vista à prolação dos chamados quase-assentos - introduzido Dec.-Lei n.º 47.690, de 11-05-1967; e, mais recentemente, no âmbito do n.º 4 do artigo 678.º, na redação precedente ao Dec.-Lei n.º 303/2007, e da alinea c) do n.º 1 do artigo 721.º-A, na redação deste diploma;

ii) – Em segundo lugar, uma razão de ordem teleológica que se prende com a finalidade do referido mecanismo, no sentido de visar uma uniformização não prioritariamente colimada à justiça de cada caso concreto, mas destinada a evitar a propagação, em escala, do erro de direito judiciário pela ordem jurídica, como garantia do princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei na sua conjugação com o princípio da independência e liberdade interpretativa do julgador, na linha da directriz do n.º 3 do art.º 8.º do CC;

iii) – Ainda nesta linha, o facto de se ter vindo a progredir no sentido de limitar o âmbito de intervenção do tribunal de revista aos casos de maior relevo;

iv) – Por fim, uma razão de ordem sistemática, segundo a qual se mostra incoerente admitir o recurso, independentemente do valor da causa ou da sucumbência, para todos os casos em que o recurso não seja admissível por motivo estranho àquele, quando o não seria, com o mesmo fundamento, nos casos sujeitos à regra geral da admissibilidade em função do valor da alçada ou da sucumbência, prescrita no n.º 1 do art.º 629.º do CPC.

Perante estas razões ponderosas e substanciais, o valor interpretativo a dar à ressalva inicial do proémio do n.º 2 do art.º 629.º sai esbatido, tanto mais que tal ressalva assim configurada parece radicar numa técnica legislativa pouco apurada, como acima ficou dito, e que, por isso, não deverá prevalecer de modo a descaracterizar o essencial da condicionante estabelecida no indicado normativo quando se refere a motivo estranho à alçada do tribunal de que se recorre, pelo menos com o alcance com que tem vindo a ser perfilhado. 

Vai também neste sentido, a posição adotada por Abrantes Geraldes[4], quando, a propósito do normativo em foco, escreve que:

«Ao invés do que do que faria supor a integração da alínea no proémio do n.º 2, a admissibilidade do recurso, por esta via especial, não prescinde da verificação dos pressupostos gerais de recorribilidade em função do valor da causa ou da sucumbência, pois só assim se compreende o seguimento normativo referente ao motivo estranho à alçada do tribunal.»

Tem sido ainda essa a orientação deste Supremo, como se alcança dos acórdãos de 02/06/2015, proferido no processo n.º 189/13.9TBCCH-B. E1.S1[5], e de 17/11/2015 proferido no processo n.º 3709/12.2YYPRT.P1. S1[6].

Como se conclui neste último aresto:

«Efectivamente só nos casos em que o recurso para o Supremo não seja admissível por causa atinente com o valor da causa ou a alçada do tribunal de que se recorre é que é possível lançar-se mão do disposto na alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º do Código de Processo Civil.

(…)

Com esta solução visou o legislador, ocorrendo situações processuais em que estejam reunidos os pressupostos de revista, mas que, ainda assim, determinados tipos de acções ou procedimentos, pela sua natureza ou função, não permitiriam nunca que se obtivessem uma revisão pelo Supremo Tribunal, o possam vir a obter.»      

De resto, não se afigura que um entendimento no sentido de se admitir recurso de revista, ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, alínea d), do CPC, independentemente do valor da causa, seja razoavelmente sustentável no âmbito do mecanismo legal de uniformização seletiva, adotado pelo nosso sistema recursório. Uma tal solução, de certo, que tenderia a inundar o Supremo Tribunal de Justiça por via de recursos de revista especialmente fundados em oposição de julgados para a generalidade dos casos, o que militaria ao arrepio da recente política legislativa de restringir aquela espécie de recurso, mormente com a introdução do impedimento da dupla conforme, não se vendo, aliás, que fosse solução de um legislador avisado, pelo menos, no panorama atual do nosso sistema de justiça.

No caso vertente, nem tão pouco se verifica o fator condicionante da admissibilidade prevista na citada alínea d) do n.º 2 do artigo 629.º, consistente no não cabimento de recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal de que se recorre, no caso o Tribunal da Relação.

Com efeito, estamos no âmbito de uma ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, fundada em enriquecimento sem causa, em relação à qual não existe norma que estabeleça a inadmissibilidade do recurso por motivo estranho à alçada do tribunal de que se recorre. Significa isto que o cabimento de recurso das decisões ali proferidas se rege pelos requisitos gerais estabelecidos no n.º 1 do artigo 629.º do CPC, ou seja, em função do valor da causa e da sucumbência.

Nessa medida, o caso vertente não se encontra contemplado pela previsão normativa do artigo 629.º, n.º 2, alínea d), do CPC, mais precisamente no que diz respeito ao não cabimento de recurso por motivo estranho à alçada do tribunal recorrido, ainda que se considerasse para tais efeitos a ressalva inicial do respetivo proémio, sendo quanto basta para ter como não admissível o recurso com base no fundamento invocado pela Recorrente.

Mas mesmo a verificar-se aquela condicionante - que claramente se não verifica -, estando o valor da causa, na cifra de € 10.947,00, contido dentro do valor da alçada da Relação (€ 30.000,00), na interpretação acima adotada, também nem sequer caberia recurso de revista do acórdão recorrido.        

           

Termos em que se conclui pela inadmissibilidade da revista, nos termos do disposto no artigo 629.º, n.º 1 e 2, alínea d), do CPC, na interpretação acima dada.   

           

III - Decisão

Nos termos expostos, decide-se não tomar conhecimento do recurso.

Sem custas por delas estar isenta a 2.ª R. aqui Recorrente, nos termos da alínea f) do n.º 1 do artigo 4.º do RCP.

Lisboa, 24 de novembro de 2016

 

Manuel Tomé Soares Gomes (Relator)

Maria da Graça Trigo

Carlos Alberto Andrade Bettencourt de Faria

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[1] O CPC de 1939 não contemplava disposição idêntica à introduzida no artigo 764.º pela Reforma de 1961, confinando ali o âmbito do recurso para o tribunal pleno ao conhecimento de acórdãos do STJ opostos sobre a mesma questão de direito, nos termos do art.º 763.º. com vista à resolução do conflito por via de assento a fixar jurisprudência de natureza obrigatória (art.º 768.º). Posteriormente, a par do mecanismo de uniformização, por via de assento, no âmbito do recurso para o tribunal pleno, nos casos então previstos nos artigos 763.º e 764.º do CPC, o Dec.-Lei n.º 47.690, de 11-05-1967, veio aditar um n.º 3 aos artigos 728.º e e 762.º daquele Código, a instituir o julgamento da revista e do agravo interposto na 2.ª instância com intervenção de todos os juízes da secção ou em reunião conjunta de secções, por iniciativa do presidente do Supremo, para assegurar a uniformidade da jurisprudência, embora sem carácter obrigatório (os então designados quase-assentos). 
[2] In Manual dos Recursos em Processo Civil, Almedina, 3.ª Edição, 2002, p. 104.
[3] Sobre a conciliação desses dois princípios, vide Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1981, pp. 233 e seguintes.
[4] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 3.ª Edição, 2016, p. 54.
[5] Relatado por Fonseca Ramos, acessível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.
[6] Relatado por Gabriel Catarino, acessível na Internet – http://www.dgsi.pt/jstj.