Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7605/19.4T8LSB.L2.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: AÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
CONTRATO DE SEGURO
CONTRATO DE ADESÃO
PRÉMIO DE SEGURO
EXCLUSÃO DE CLÁUSULA
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
DEVER DE COMUNICAÇÃO
DEVER DE INFORMAÇÃO
DEVER DE ESCLARECIMENTO PRÉVIO
ABUSO DO DIREITO
Data do Acordão: 11/02/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
I. A apreciação do cumprimento do dever de comunicação ínsito no RJCCG não prescinde de uma análise casuística, ponderadas todas as circunstâncias concretamente relevantes na situação particular.

II. O conteúdo do dever de informação, bem como os termos em que deve ser feita a comunicação prévia das cláusulas contratuais gerais, dependem das circunstâncias, sendo de considerar, designadamente, o facto de existirem já anteriores relações contratuais ou de o aderente ser uma empresa ou um simples consumidor final.

III. O legislador impõe ao aderente a cláusulas contratuais gerais a adopção de uma conduta razoável, aferida segundo um critério abstracto, que é o da diligência comum, dele se esperando um comportamento leal e correcto, em conformidade com o zelo normal do tipo médio de pessoa colocado em determinada situação concreta, nomeadamente pedindo esclarecimentos depois de materializado que seja o seu efectivo conhecimento e informação sobre o conteúdo de tais cláusulas.

IV. Sendo o legal representante da autora gestor de empresas e que já acompanhava a execução dos vários contratos de seguro celebrados com a Ré Seguradora, uma pessoa com um nível cultural e conhecimento económico-financeiro acima da média – de tal modo que assumiu por si, directamente, as reuniões negociais ocorridas com a Ré seguradora – , afirmando o próprio que obvimente que percebeu o sentido da cláusula de ajuste de sinistralidade apresentada pela Ré seguradora para fazer parte dos contratos de seguro entre ambos firmados, quando a mesma lhe foi explicada pelo mediador, não pode dizer-se que houve incumprimento dos deveres de comunicação ou informação aludidos nos arts. 5º e 6º do RJCCG, ou que tal cláusula é ilícita por ausência de negociação.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível


I – RELATÓRIO

Spt – Empresa de Trabalho Temporário, S.A., moveu acção declarativa de simples apreciação negativa sob a forma de processo comum contra Lusitânia – Companhia de Seguros, SA, pedindo ao Tribunal que declare a inexistência do direito ao pagamento da cláusula de ajustamento de prémio, no valor de 46.169,54 Euros, por:

a) exclusão das cláusulas contratuais gerais relativas à inclusão da Cláusula de
Ajustamento de Prémio, em virtude da sua não comunicação e esclarecimento;

E, subsidiariamente por:

b) remissão da obrigação de pagamento do acerto de prémio, mediante a diminuição significativa da taxa de sinistralidade no ano seguinte, fixando-se abaixo dos 45%;

Ou por

c) acordo quanto ao pagamento do acerto de prémio, mediante a diminuição significativa da taxa de sinistralidade no ano seguinte, fixando-se abaixo dos 45%;

Ou por

d) inexistência do direito de exigir o acerto do prémio por aumento da
sinistralidade no ano de 2016, por ineficácia da alteração contratual, uma vez que não foi efectuado o pagamento até à data do seu vencimento, em conformidade com o n.º 4 da cláusula 16.ª das Condições Gerais.

Ou por

e) Violação da cláusula 17.º do sobredito contrato, precisamente da obrigatoriedade de emissão do acerto no ano seguinte.

O Réu contestou pugnando pela improcedência da acção e apresentando por via reconvencional o pedido de condenação da Autora no pagamento da quantia de € 16.235,79 (dezasseis mil, duzentos e trinta e cinco euros e setenta e nove cêntimos).

Houve réplica na qual a Autora veio pugnar pela improcedência do pedido reconvencional.

Após a realização de segundo julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

«(...) julgo a acção improcedente e a reconvenção procedente e, em consequência, absolvo o Réu do pedido e condeno o Autor a pagar-lhe a quantia de € 16.235,79.»


*


Não se conformando com a decisão, dela apelou a Autora, vindo a Relação de Lisboa a julgar a apelação procedente.

Porém, em revista desse acórdão da Relação, este Supremo Tribunal decidiu revogar o mesmo acórdão e anular o julgamento sobre a matéria de facto, para que fosse ampliada, nos termos ali explicitados.

A 1ª instância, após cumprir o determinado pelo Supremo, julgou a acção improcedente e a reconvenção procedente e, em consequência, absolveu o Réu do pedido e condenou o Autor a pagar-lhe a quantia de € 16.235,79.

Inconformada, veio a Autora Spt – Empresa de Trabalho Temporário, S.A., interpor recurso de apelação, vindo a relação de Lisboa, em acórdão, a julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.


*


De novo inconformada, vem a Spt – Empresa de Trabalho Temporário, S.A., interpor recurso excepcional de revista, apresentando alegações que remata com as seguintes

CONCLUSÕES

“(….)

DO RECURSO (DA QUESTÃO DE FUNDO DA PRETENDIDA REVISTA)

R. A recorrente não se conforma com a asserção de que é válida a nova cláusula contratual - CAP - no contrato de seguro pela seguradora, ainda que comunicada de forma adequada ao tomador, sem ocorrência de qualquer negociação prévia.

S. Não se conforma ainda com a alegada “aceitação” da recorrente, que, como exporemos padece de qualquer validade jurídica.

T. Este inconformismo prende-se com o direito aplicado.

U. O “contrato de adesão” na sua forma pura poderá definir-se como sendo “aquele em que uma das partes, normalmente uma empresa de apreciável dimensão formula unilateralmente as cláusulas negociadas e a outra parte aceita essas condições mediante a adesão ao modelo ou impresso que lhes é apresentado, não sendo possível modificar o ordenamento negocial apresentado”.

V. In casu e nas diferentes instâncias nunca restou dúvidas que o contrato de seguro referenciado configurava um contrato de adesão, em que a alternativa do tomador era ou de se sujeitar às condições prefixadas ou de desistir do contrato, renunciando à pretendida prestação.

W. Também não há discordância ou dúvida sobre a não negociação da CAP pelo aderente, nem na Sentença, nem no Acórdão da Relação.

X. Tanto a sentença, como o acórdão aqui recorrido, focaram-se no cumprimento ou incumprimento do dever de comunicação e informação.

Y. O consentimento do tomador não foi devidamente apreciado pelos diferentes tribunais e a sua “aceitação” é referida en passant.

Z. Subjacente a esta desconsideração do assentimento do tomador está o entendimento, normalizado, de que as alterações de um contrato de adesão não têm de ser consentidas especificamente pelos aderentes, mas apenas devem ser respeitados os respetivos deveres de informação e comunicação, previstos tanto na Lei das Cláusulas Contratuais Gerais, como no Regime Jurídico do Contrato de Seguro.

AA. O Acórdão STJ 30/03/2017 (vid. www.dgsi.pt) vem abertamente discordar desta asserção: “a apontada característica, ausência de prévia negociação, conteúdo, previamente elaborado, que os destinatários não podem influenciar cinge-se à anuência inicial. Qualquer alteração subsequente terá que ter o consentimento dos aderentes pelo que se assim não for fica naturalmente excluída do contrato qualquer alteração às cláusulas contratuais gerais não aceites especificamente por um contraente

BB. A possibilidade de, num contrato de adesão, a parte que detém a posição dominante poder, respeitando o dever de comunicação e informação, alterar unilateralmente o contrato, configura solução desequilibrada que não deverá ser acolhida pelo direito privado.

CC. O que se discute aqui é a validade conferida ao exercício de um poder (exorbitante) de alteração unilateral da substância de um contrato de seguro.

DD. A alteração, na situação em apreço, foi a introdução de CAP (cláusula de ajuste prévio) que provocou uma modificação do prémio: “Este contrato ficará sujeito à seguinte Cláusula de ajuste de forma a repor a sinistralidade nos seguintes termos: Se no final da anuidade a taxa de sinistralidade for igual ou superior a 65%, será emitido um recibo adicional de prémio, de forma a repor a sinistralidade em 65%, com um máximo de 25% do prémio comercial anual; Considerando: Taxa de sinistralidade: Custos da anuidade / Prémios da anuidade Custos da anuidade: Indemnizações Emitidas + Provisões Matemáticas + Provisões para sinistros em gestão. Prémios da anuidade: Prémios Comerciais da anuidade, líquidos de estornos”.

EE. A alteração do preço, num contrato, deve ser entendida como uma alteração substancial contratual.

FF. Da factualidade provada resulta que o envio da cláusula (Ata n.º 21), as informações alegadamente prestadas e todas as negociações relatadas na prova, não correspondem a uma fase pré-contratual (tanto que o Tribunal de Comarca deu, como não provado, a ocorrência de efetivas negociações - facto 13); mas, sim, a uma tentativa de não aplicação da CAP pela recorrente, que, frustrada a negociação, permitiu que o segurador, sem mais, emitisse fatura a ela respeitante.

GG. Essa cláusula (CAP) passou a integrar o contrato de seguro em vigor e foi de aplicação imediata, ou seja, aplicada à sinistralidade de 2016: “Ata 21: Renovação para 2016 e inclusão de CAP” (v. ata 21, junta com a P.I.).

HH. Com normalidade, assistimos que, nos contratos de adesão – como a referenciada apólice, se coarta a liberdade negocial do aderente em duas vertentes: (a) impossibilidade de fixar o conteúdo dos contratos e (b) dificuldade em “não contratar”.

II. Cremos que da factualidade decorre que o tomador teve mais que uma mera dificuldade de “não contratar”, ele era obrigado a “contratar”; tanto que tinha um contrato de seguro em vigor, que teria de cumprir pontualmente (não podendo resolvê-lo ou denunciá-lo).

JJ. Adicione-se sobre a formação da vontade negocial do tomador, que, mesmo na hipótese de ele poder rejeitar a alteração contratual imposta pela recorrida, ele só poderia rejeitar, como um todo, o contrato e a CAP.

KK. Não podemos, nestas circunstâncias, dizer que a formação vontade da recorrente (tomador) “foi livre consciente e correcta, nomeadamente isenta dos vícios a que se alude nos arts. 246º, 247º e 251º C. Civil” (vid. Acórdão STJ 30/03/2017, supra citado).

LL. A formação livre da vontade do tomador pressuponha que, perante uma proposta de modificação contratual pelo segurador, o tomador pudesse recusar a proposta singularmente, optando pela manutenção do anterior contrato.

MM. Não é livre a vontade do tomador que, perante uma nova cláusula - aqui uma CAP que agrava o prémio de seguro – tem de aceitar a alteração!

NN. Sem prescindir do que expusemos quanto à imperfeita formação da vontade do tomador e da “não livre” aceitação, acrescentemos que decorre do facto provado 28, que a declaração de (alegada) “aceitação” da recorrente foi verbal.

OO. Ora, a cl. 33.º do contrato de seguro em análise exige que as comunicações do tomador de seguro a dirigidas à recorrida “devem revestir forma escrita ou ser prestadas por outro meio de que fique registo duradouro”; pelo que a “aceitação” do tomador, aqui recorrente, tem de revestir essa forma escrita, sob pena de nulidade (cfr. arts. 220.º e 223.º CC).

PP. Nulidade que expressamente se invoca e queainda é tempestiva (cfr. art. 286.º CC)!

QQ. Do facto provado 28 também resulta que a “aceitação” foi feita perante o mediador.

RR. Ora, não foi feita qualquer prova que o mediador atuasse como representante da recorrida; e essa prova caberia pelas regras gerais à recorrida (cfr. cl. 32.º, n.º1 Contrato de seguro em estudo e art. 342.º CC)

SS. O art. 30.º, n.º 1 do RJCS considera ineficaz em relação à segurador o contrato de seguro ou as suas alterações (analogia, que aqui cremos que se justifica – art. 10.º CC) que o mediador de seguros, agindo em nome do segurador, celebre sem poderes específicos para o efeito, se não for por ele ratificado.

TT. Também a já referenciada cl. 33.º prescreve que as comunicações do tomador de seguro “só se consideram válidas e eficazes caso sejam efetuadas para a sede do segurador ou sucursal”.

UU. Neste pressuposto, a conclusão de qualquer alteração implica, no mínimo, a anuência eficaz do tomador de seguro; e, in casu, a suposta “aceitação” da recorrente perante o mediador de seguro não pode ser entendida como válida e eficaz por não ter chegado ao poder do segurador.

VV. Lida a factualidade do caso, não foi alegado esse facto essencial pela recorrida e, por isso, não há prova do conhecimento pelo segurador da “aceitação” do tomador, nem pode a recorrida basear aí a sua posição – é o que decorre do art. 5.º, n.º 1 CPC.

WW. Não ficando provado o conhecimento da “aceitação” pelo segurador, por ausência insuprível de alegação desse facto pela recorrida, não ocorreu a perfeição da declaração de “aceitação” ehá de, por isso, ter-se por ineficaz para todos os efeitos (cfr. art. 224.º CC).

XX. Pela jurisprudência das cautelas, diga-se que, se se entender que a recorrida teve conhecimento da “aceitação” do tomador nessa reunião ocorrida, após 12 de janeiro de 2017 (facto provado 12), e que a perfeição da declaração do tomador se formaria nessa reunião, convém acrescentar que a recorrente, no email enviado ao mediador em 12 de janeiro de 2017 (doc. n.º 25, que foi dado por reproduzido no facto provado 11), revela que não deseja, de forma nenhuma, a aplicação da CAP.

YY. E, embora não usando o termo “revogação”, o sentido normal das declarações da recorrente aí expressas é de não aceitar a aplicação da CAP: e.o. “este acerto de sinistralidade poderá colocar em risco 400 postos de trabalho” (cfr. art. 236..º CC).

ZZ. A “aceitação” foi, assim, revogada antes da primeira reunião com a recorrida (factos provados 11 e 12); porquanto é válida a referenciada revogação da declaração de aceitação.

AAA. Aqui chegados, não podem subsistir dúvidas, que o tomador de seguro “não aceitou” a CAP. Ora, porque a declaração não respeitou a forma convencionada, foi tempestivamente revogada, não foi feita à pessoa certa; ora, porque a liberdade contratual não coexiste sem negociações prévias; ora, porque não lhe era permitido denunciar ou resolver o contrato, aquando lhe foi enviada a ata 21 (v. supra).

BBB. O tema de fundo e causa da revista excecional é, como previamente escrevemos, a apreciação da validade ou invalidade de introdução unilateral desta nova cláusula contratual – CAP - num contrato de seguro pela seguradora, ainda que comunicada de forma adequada ao tomador, sem ocorrência de qualquer negociação prévia.

CCC. Em termos generalizados, perante um contrato de adesão que venha ser alterado posteriormente, as novas cláusulas devem ser sujeitas a negociação prévia entre as partes ou ao aderente só cabe aderir ou recusar, em bloco, a alteração e o contrato?

DDD. A questão relevante é a de saber, se a sujeição do tomador ao segurador e às suas propostas perdura na depois da anuência/aderência ao clausulado inicial.

EEE. Noutras palavras: seas posteriores modificaçõesqueridas pelo segurador, têm de ser acatadas pelo tomador tout court, até ao momento de denúncia ou resolução do contrato de seguro. Ou, se o tomador pode rejeitar a nova cláusula, resolvendo o contrato. Ou, se, pelo contrário, o tomador pode recusar, especifica e singularmente, a nova cláusula sugerida, mantendo-se inalterado o anterior clausulado.

FFF. O art. 406.º n.º 1 do CC estabelece que o contrato tem de ser pontualmente cumprido e que só podem modificar-se por mútuo consentimento das partes.

GGG. A perfeita formação da vontade das partes e o necessário mútuo consentimento para a alteração da apólice inicial e a introdução da CAP só ocorreria com a livre negociação.

HHH. Essa livre negociação pressuporia que aqui recorrente podesse recusar, especifica e singularmente, a nova cláusula sugerida, mantendo-se inalterado o anterior clausulado.

III. O que não aconteceu no caso concreto!

JJJ. Assim, a CAP, não tendo sido sujeita a prévia negociação, no sentido apontado, nem especificamente aceite pelo tomador, tem de ser excluída do contrato, mantendo-se as demais cláusulas da apólice, na época em vigor (neste sentido, Acórdão STJ 30/03/2017, in www.dgsi.pt).

KKK. E deve ser tida por não escrita e inexistente.

LLL. Acresce que, a possibilidade de uma alteração unilateral de um contrato de adesão é, claramente, poder desequilibrador da relação contratual e ofende o princípio da boa fé, na sua vertente de proteção de confiança legitima na estabilidade dos contratos; excedendo manifestamente os limites impostos por esta e pelo fim social e económico do direito.

MMM. Ou seja, permitir à recorrida a alteração unilateral de um contrato de adesão configura uma expressão de abuso de direito, que é ilegítima (cfr. art 334.º CC).

NNN. Por todo o exposto, o Acórdão da Relação viola, no seu conteúdo, os seguintes preceitos legais: artigos 220.º, 223.º, 224.º, 227.º, 235.º, 236.º, 286.º, 334.º, 342.º, 364.º, 406.º e 762.º/1 todos do Código Civil (CC); artigos 30.º/1 e 32.º ambos do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS) e art. 5.º n.º1 Código de Processo Civil (CPC) e ofende a base da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais (LCCG).

NESTES TERMOS E AINDA PELO QUE, COMO SEMPRE, NÃO DEIXARÁ DE SER PROFICIENTEMENTE SUPRIDO, DEVE SER DADO PROVIMENTO À PRESENTE REVISTA EXCECIONAL, REVOGANDO-SE PARCIALMENTE O DOUTO ACÓRDÃO RECORRIDO”.


*


Contra-alegou a Recorrida.

A Formação admitiu a revista excepcional.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


**


II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

Nada obsta à apreciação do mérito da revista.

Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).

O objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).

DAS QUESTÕES NOVAS

Elenca a Recorrente, no seu “recurso da questão de fundo da pretendida revista”, as seguintes questões.

• “Da não negociação da cláusula de ajuste de sinistralidade” (CAP)

• Da relevância “do momento da informação prestada pelo mediador à recorrente” (atento a que (diz a recorrente) “não corresponde a uma fase pré-contratual”)

• Da “imperfeita formação da vontade do tomador e a “não livre” aceitação”.

Da validade da alegada aceitação do tomador: por ausência de forma; por dirigida a mediador sem poderes de representação; por revogação antes do conhecimento pelo segurador.

Da ilegalidade da CAP, por ausência de “específica negociação” e de liberdade de recusa de tal cláusula pela recorrente/tomador.

Do abuso do direito.

Diz a Recorrente nas suas doutas alegações que “a vexata quaestio é a participação negocial e aprovação da CAP pelo tomador de seguro, aqui recorrente”.

É por todos conhecido – sendo o entendimento dominante na jurisprudência do nosso Tribunal superior – que o recurso constitui um meio de impugnação das decisões judiciais, através do qual se procura um reexame da matéria apreciada pela decisão recorrida. Não é viável a colocação de novas questões no recurso, não tendo sido as mesmas objecto de qualquer menção no Tribunal a quo. Ou seja, não é lícito invocar nas alegações questões que não tenham sido objecto da decisão impugnada, nem pode conhecer-se neles de questões que as partes não tenham suscitado perante o tribunal inferior”. Entendimento este que conhece, todavia, uma excepção: a menos que se trate de questões de conhecimento oficioso.

Com efeito – salvo na apontada excepção – , só se recorre de uma decisão que analisou uma questão colocada pela parte e a decidiu em sentido contrário ao pretendido.

Por consequência, não se tratando de uma situação de conhecimento oficioso, não pode o Tribunal superior apreciar uma questão nova, por pura ausência de objecto, pois que, em bom rigor, não existe decisão de que recorrer. É um caso de extinção do recurso por inexistência de objecto.

Ora bem, as questões tratadas na sentença e no acórdão da Relação, ali bem elencadas, foram as seguintes:

Na sentença:

- Da consideração da CAP como cláusula contratual geral e consequente aplicação do regime das cláusulas contratuais gerais, em específico, dos arts. 5º (comunicação), 6º (dever de informação) e 8º (Cláusulas excluídas dos contratos singulares). Tendo a sentença concluído “pela não verificação de incumprimento pela Ré dos deveres de comunicação e informação” (sic).

- Se a cláusula é ilegítima por alegado acordo entre as partes no sentido de “que a mesma não seria aplicada se viesse a verificar-se no ano de 2017 uma baixa taxa de sinistralidade, condição que se veio a concretizar.”.

- Se a Ré não tem direito de exigir o acerto do prémio por aumento da sinistralidade no ano de 2016, por ineficácia da alteração contratual (uma vez que não foi efectuado o pagamento até à data do seu vencimento).

No acórdão recorrido:

- i. Impugnação da decisão da matéria de facto;

ii. Se o Tribunal a quo fez errónea interpretação e aplicação do direito ao julgar a ação improcedente, nomeadamente no que tange a:

a. Incumprimento do dever de comunicação e informação;

b. Licitude da aplicação da cláusula;

c. Abuso de direito;

d. Aplicação do regime previsto nos artigos 16º, nº4, e 17º, nº3, das Condições Gerais.


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Assim se vê, com toda a clareza, que de todas as questões que vêm suscitadas em sede revista, em bom rigor apenas a atinente ao abuso do direito é questão que foi expressamente suscitada na apelação (embora não carecesse de o ser para ser apreciada, dado ser de conhecimento oficioso).

Efectivamente, em lugar algum das decisões das instâncias se almeja tenham sido abordadas (por, de facto, não suscitadas pela Autora, aqui Recorrente) questões como: da relevância “do momento da informação prestada pelo mediador à recorrente”; da “imperfeita formação da vontade do tomador e a “não livre” aceitação”; da relevância da ausência de forma na alegada aceitação do tomador; outrossim, da falta de poderes de representação do mediador para aceitar a CAP, ou da alegada eventual revogação dessa aceitação antes do conhecimento pelo segurador.


*


E diga-se, aliás, que, em bom rigor, a suscitada questão – apontada pela recorrente como a vexata quaestio da revista – da exclusão da “cláusula de ajuste de sinistralidade” por falta de negociação da Ré/seguradora com a Autora/tomador do seguro em renovação contratual, também é, afinal, uma questão que surge ex novo nesta revista, pois, ao que vemos dos autos, não foi suscitada, quer na 1ª instância, quer na Relação.

Aliás, é curioso que a Recorrente venha invocar a ilegalidade dessa cláusula de ajuste de prémio por aumento de sinistralidade, por alegadamente não ter sido negociada consigo, invocando o regime das cláusulas contratuais gerais, quando, ao exigir tal negociação para ser válida, está a Recorrente, afinal, a afastá-la do RJCCG (que vale, precisamente, para os contratos de adesão, ou seja, aqueles em que… não há negociação).

Ou seja, se, por um lado, a recorrente invoca, relativamente a tal cláusula, a violação do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais (por incumprimento dos deveres de comunicação e informação), por outro lado, acaba (contraditoriamente) por invocar/sustentar a não aplicação desse mesmo regime, na medida em que, exigindo para a validade da cláusula a sua negociação, está a desconsiderá-la como cláusula contratual geral já que estas são caracterizadas, precisamente, por se imporem à contraparte contratual sem qualquer possibilidade de negociação (contratos de adesão)!

Em suma, a ser como parece pretender a Recorrente – ou seja, a exigir-se a prévia negociação da cláusula aqui em apreciação – , então, a questão da alegada (pela Autora/Recorrente) violação dos deveres de informação e comunicação (relativamente a essa cláusula) – questão essa que esteve, sem dúvida, no epicentro das decisões da 1ª e 2ª instância – deixará de ser questão a apreciar aqui, por ser, então, também uma questão nova.


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Sem embargo, porém, apreciaremos da suscitada questão “Da ilegalidade da CAP, por ausência de específica negociação” e, outrossim, do abuso do direito (questão, como visto, expressamente suscitada na apelação – embora, como dito, ser de conhecimento oficioso).

Estas, portanto, as duas questões a conhecer nesta revista.


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III – FUNDAMENTAÇÃO

III. 1. FACTOS PROVADOS

É a seguinte a matéria de facto provada (na 1ª instância, sem impugnação em recurso):

I. A Autora é uma Empresa de Trabalho Temporário, que se dedica ao recrutamento, selecção e colocação temporária de profissionais em sectores específicos de actividade, proporcionando o seu destacamento tanto a nível nacional como a nível internacional;

II. A Ré, Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A., é uma sociedade que tem por objecto “o exercício da indústria de seguros e resseguros em todo o território português e no estrangeiro, nas modalidades em que estiver autorizada, podendo ainda interessar-se, directa ou indirectamente, em quaisquer negócios ou operações que se relacionem com a exploração do ramo Vida”.

III. No âmbito do exercício da sua actividade, a Autora, em 3 de Janeiro de 2006, subscreveu as seguintes Apólices de Seguros de Acidentes de Trabalho por conta de outrem com a Ré, através de um mediador de seguros, a empresa T..., Lda., concretamente através do Exmo. Sr. AA:

- Apólice nº .....65 - Acidentes de Trabalho - Internos - Funcionários Fixos;

- Apólice nº .....56 - Acidentes de Trabalho - Construção Civil Nacional -Trabalho Temporário;

- Apólice nº .....85 - Acidentes de trabalho - Estrangeiro - Trabalho Temporário;

- Apólice nº .....05 - Acidentes de Trabalho - Indústria Portugal - Trabalho Temporário;

- Apólice nº .....08 - Acidentes de Trabalho - Portugal Administrativos Trabalho Temporário;

- Apólice nº .....26 - Acidentes de Trabalho - Motoristas Internacional -Trabalho Temporário.

4. As partes acordaram na contratação de um conjunto de Apólices de Seguro a prémio variável, o que, nos termos da alínea b) da cláusula 5.ª do contrato ocorre, “quando a apólice cobre um número variável de pessoas seguras com retribuições seguras também variáveis, sendo consideradas pelo segurador as pessoas e as retribuições identificadas nas folhas de vencimento que lhe são enviadas periodicamente pelo tomador do seguro”.

5. Ficou estipulado pelas partes, por um lado, o valor do prémio anual devido pela Autora, bem como o capital seguro por parte da Ré.

6. No decorrer do ano de 2016, verificou-se, sobretudo no último trimestre do ano, um aumento da taxa de sinistralidade nas seguintes Apólices de Seguro:

- Apólice nº .....65 - Acidentes de Trabalho - Internos - Funcionários Fixos;

- Apólice nº .....56 - Acidentes de Trabalho - Construção Civil Nacional -Trabalho Temporário;

- Apólice nº .....85 - Acidentes de trabalho - Estrangeiro - Trabalho Temporário;

7. No período de 2015 para 2016 a Ré remeteu à Autora, tal como fazia quase todos os meses, uma “Acta” à semelhança de todas as outras que a Autora recebia mensal ou trimestralmente, respeitante às condições particulares do Seguros para o ano de 2016.

8. Nessa Acta, numa rúbrica denominada “OUTRAS DECLARAÇÕES”, constava uma “Cláusula de Ajuste de Sinistralidade”, nos seguintes termos: “Este contrato ficará sujeito à seguinte Cláusula de ajuste de forma a repor a sinistralidade nos seguintes termos: Se no final da anuidade a taxa de sinistralidade for igual ou superior a 65%, será emitido um recibo adicional de prémio, de forma a repor a sinistralidade em 65%, com um máximo de 25% do prémio comercial anual; Considerando: Taxa de sinistralidade: Custos da anuidade / Prémios da anuidade Custos da anuidade: Indemnizações Emitidas + Provisões Matemáticas + Provisões para sinistros em gestão. Prémios da anuidade: Prémios Comerciais da anuidade, líquidos de estornos.”

9. Nos Anexos da Apólice de Seguro estão previstos “Descontos por Baixa Sinistralidade” nos seguintes termos: “1- O desconto de Baixa Sinistralidade, pode ser aplicado aos contratos, cujo Capital Seguro na última anuidade seja igual ou superior a 1.400 vezes o salário mínimo nacional e a sinistralidade, dos últimos 3 (três) anos civis completos, não exceda os 45%. A primeira atribuição do desconto poderá, no entanto, ser efectuada com base na experiência de dois anos civis consecutivos completos. 2- Entende-se por sinistralidade, para efeitos desse desconto, o valor, em percentagem, resultante da divisão do total dos custos com sinistros no triénio, pelos prémios comerciais do triénio. Sinistralidade Até 5% Desconto 30%

Mais de 5% até 10% 25%

Mais de 10% até 20% 20%

Mais de 20% até 30% 15%

Mais de 30% até 40% 10%

Mais de 40% até 45% 5%

10. O Ajuste de Prémio por aumento de sinistralidade abrangeu igualmente as seguintes apólices:

- Apólice nº .....05 relativa a Acidentes de Trabalho - Indústria - Trabalho Temporário;

- Apólice nº .....08 relativa a Acidentes de Trabalho - Portugal Administrativos -Trabalho Temporário;

- Apólice nº .....26 relativo a Acidentes de Trabalho - Motoristas Internacional -Trabalho Temporário;

11. Em 12 de Janeiro de 2017 a Autora remeteu uma comunicação ao mediador de seguros, Sr. AA, por forma a que este último estabelecesse contacto com a Ré com o fito de (re)negociar a aplicação da Cláusula de Ajustamento de Prémio, (cfr. documento n.º 25 que se dá por integralmente reproduzido), declarando que a aplicação do acerto de sinistralidade no prémio, de modo a colocá-lo nos 65% seria catastrófico para o negócio da Autora.

12. Dessa comunicação resultou a realização de uma reunião entre, por um lado, o legal representante da Autora e, por outro, o Director Comercial e o Gerente da dependência da Agência da Lusitânia.

13. Na Cláusula 16º, nº4 das Condições Gerais do Contrato consta o seguinte: “O não pagamento, até à data do vencimento, de um prémio adicional resultante de uma modificação contratual determina a ineficácia da alteração, subsistindo o contrato com o âmbito e nas condições que vigoravam antes da pretendida modificação, a menos que a subsistência do contrato se revele impossível, caso em que se considera resolvido na data do vencimento do prémio não pago.”

14. Na Cláusula 17.a, n'3 das Condições Gerais do Contrato consta o seguinte: “A alteração do prémio por aplicação das bonificações por ausência de sinistros ou dos agravamentos por sinistralidade, regulados pela tabela e disposições anexas, é aplicada no vencimento seguinte à constatação do facto.”.

15.Em 30 de Novembro de 2017 a Autora remeteu uma comunicação à Ré dando conta da sua intenção de não renovação das Apólices de acidentes de trabalho, nomeadamente:

- Apólice nº .....65 - Acidentes de Trabalho - Internos - Funcionários Fixos;

- Apólice nº .....56 - Acidentes de Trabalho - Construção Civil Nacional -Trabalho Temporário;

- Apólice nº .....85 - Acidentes de trabalho - Estrangeiro - Trabalho Temporário;

- Apólice nº .....05 - Acidentes de Trabalho - Indústria Portugal - Trabalho Temporário;

- Apólice nº .....08 - Acidentes de Trabalho - Portugal Administrativos -Trabalho Temporário;

- Apólice nº .....26 - Acidentes de Trabalho - Motoristas Internacional - Trabalho Temporário;

16. Nessa mesma missiva mencionava que tal intenção se prendia com o facto de, em virtude de se ter registado diminuição significativa da sinistralidade, ter recebido propostas de uma congénere com melhores condições e mais competitivas do que as apresentadas pela Ré

17. e conforme fora transmitido ao mediador de seguros, o Sr. AA, por respeito à relação contratual que durava há quase 12 anos, essa intenção poderia ser reponderada na medida em que houvesse uma reapreciação das taxas e condições propostas por parte da Ré,

18. atribuindo para o efeito um prazo de duas semanas para renegociações.

19. A Ré, mediante intermediação do Sr. AA, apresentou propostas que incluíam a Cláusula de Ajustamento de Prémio (cfr. documento n.º 26 junto com a petição inicial), Cláusula essa que, em 2016, segundo consta do teor do documento n.º 26, ascendia ao valor de 42.948,00 Euros.

20. A 26 de Dezembro de 2017, o mediador de seguros, Exmo. Sr. AA, remeteu uma última proposta à Autora, que incluía como condição contratual, o perdão da cláusula de ajustamento de prémio de 2016, caso a Autora aceitasse continuar com a Ré em 2018 (cfr. documento n.º 28 junto com a petição inicial que se dá por integralmente reproduzido.).

21. Frustradas as negociações, a Ré emitiu em Fevereiro de 2018, avisos de pagamento quanto à Cláusula de Ajustamento de Prémio, no valor total de 46.169,54 Euros:

- Apólice nº .....65 - prémio no valor de 994,47 Euros.

- Apólice nº .....56 - prémio no valor de 21.494,86 Euros.

- Apólice nº .....85 - prémio no valor de 21.463,06 Euros.

- Apólice nº .....05 - prémio no valor de 1.583,34 Euros.

- Apólice nº .....08 - prémio no valor de 267,03 Euros.

- Apólice nº .....26 - prémio no valor de 366,78 Euros.

22. A Autora remeteu à Ré uma missiva datada de 1 de Junho de 2018, (cfr. documento n.º 36 junto com a petição inicial que se dá por integralmente reproduzido) defendendo que tal cláusula não podia ser aplicada, regularizando, por conseguinte, a presente situação.

23. Em 26 de Março de 2019, a Ré remeteu nova missiva à Autora (cfr. documento n.º 37, que se dá, brevitatis causae, por integralmente reproduzido), nos termos da qual voltou a instar no pagamento da aplicação da Cláusula de Ajustamento de Prémio, no montante de 46.169,49 Euros.

24. Simultaneamente a Ré confessou-se devedora da aqui Autora, relativamente aos recibos de estorno relativos às Apólices n.º .....56, .....08 e .....26, no montante total de 29.933,75 Euros.

25. A Ré, através do seu departamento comercial, manteve sempre contacto regular com a Autora e verificaram-se várias negociações ao longo da vigência das apólices em causa.

26. No caso em apreço, todos os contratos foram apresentados na forma escrita à Autora;

27. No que diz respeito às condições particulares, onde a cláusula de ajuste de sinistralidade vem prevista, estes contratos são escritos curtos e com poucas cláusulas.

28. A Autora foi informada verbalmente pelo mediador das condições propostas pela Ré para a renovação das apólices para 2016, nomeadamente, da proposta de introdução da CAP cujo conteúdo foi discutido e declarou perante este aceitar tal cláusula.

29. A Autora tinha conhecimento do que estava em causa.

30. Ao longo dos anos a Ré teve que assumir sinistros de valor elevado, destinando-se a introdução da cláusula de ajuste a conseguir que o prémio devido estivesse ajustado ao risco segurado

31. Por motivos comerciais e durante o período em que decorreram negociações a Ré suspendeu a cobrança dos valores correspondentes ao ajuste de prémio em função da sinistralidade verificada no ano de 2016, até as negociações estarem concluídas.

32. O valor dos estornos devidos à Autora resulta do ajuste de prémio variável em função das remunerações informadas pela Autora, que foram inferiores ao estimado.

33. Tendo sido emitidos os seguintes recibos de estorno:

- recibo n.º 001115, emitido no âmbito da apólice n.º .....56, referente ao período de 01.07.2017 a 31.12.2017, no valor de € 29.602,03 - que se junta como documento n.º 14;

- recibo n.º 001113, emitido no âmbito da apólice n.º .....08, referente ao período de 01.01.2017 a 31.12.2017, no valor de € 64,82 - que se junta como documento n.º 15;

- recibo n.º 000668, emitido no âmbito da apólice n.º .....26, referente ao período de 01.01.2017 a 31.12.2017, no valor de € 266,90 - que se junta como documento n.º 16.


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III. 2. DO MÉRITO DO RECURSO

Da invocada “ilegalidade da CAP, por ausência de específica negociação

Sobre a validade da cláusula de ajuste de prémio por aumento de sinistralidade, maxime face ao estatuído no regime das cláusulas contatuais gerais, pronunciaram-se a sentença e o acórdão recorrido.

Escreveu-se na sentença (após considerações sobre a interpretação das cláusulas do contrato de seguro e o contrato de adesão):

“…

No caso em apreço, a cláusula em discussão é a cláusula incluídas nas condições particulares das apólices designada por “Cláusula de Ajuste de Sinistralidade”, cujo teor é o seguinte: “Este contrato ficará sujeito à seguinte Cláusula de ajuste de forma a repor a sinistralidade nos seguintes termos: Se no final da anuidade a taxa de sinistralidade for igual ou superior a 65%, será emitido um recibo adicional de prémio, de forma a repor a sinistralidade em 65%, com um máximo de 25% do prémio comercial anual; Considerando: Taxa de sinistralidade: Custos da anuidade / Prémios da anuidade Custos da anuidade: Indemnizações Emitidas + Provisões Matemáticas + Provisões para sinistros em gestão. Prémios da anuidade: Prémios Comerciais da anuidade, líquidos de estornos.” Não tendo sido comprovado pela Ré, a quem cabia o ónus de prova, que tal cláusula, antes de ser introduzida no contrato, no ano de 2016, foi sujeita a livre negociação pelas partes, tem que presumir-se que a mesma foi predisposta, sendo aplicável o regime das cláusulas contratuais gerais.

Sustenta o Autor que a cláusula em questão, para além de não ter sido negociada, não lhe foi devidamente comunicada e muito menos explicada, razão pela qual deve ser considerada excluída do contrato.”.

Após considerações sobre os deveres de comunicação e informação, no regime ´jurídico das cláusulas contratuais gerais, com referências doutrinais, remata a sentença:

“Voltando ao caso concreto, temos que o contrato de seguro foi objecto de alteração para o ano de 2016, tendo sido introduzida a referida cláusula de ajuste de sinistralidade.

A alteração foi comunicada, primeiro verbalmente, através de contacto pessoal pelo mediador e posteriormente, através de remessa para a Autora da acta nº 21 emitida em 25 de Novembro de 2015 (junta com a petição inicial como documento nº2), para entrar em vigor em 01/01/2016, constando expressamente desse documento, composto por uma página, numa rubrica denominada “OUTRAS DECLARAÇÕES” a cláusula de ajuste de sinistralidade referida.

Além da comunicação, foi feita a sua explicação pelo mediador em termos de poder ser compreendida. Alertada pelo mediador da aplicação da cláusula em questão, após a sua comunicação por escrito, impunha-se à Autora, se alguma dúvida subsistia, a adopção de um comportamento activo e diligente, no sentido de dissipar as dúvidas existentes, não tendo aquela alegado ter solicitado qualquer esclarecimento suplementar que não lhe tenha sido prestado.

Com efeito, a forma simples, objectiva e clara como está redigida a cláusula em questão, inserida em documento breve, de uma única página, de forma a poder ser apreendido com rapidez, por qualquer pessoa média, como devemos considerar o legal representante da Autora, empresário de profissão, familiarizado com os termos utilizados que ainda assim eram explicados na referida cláusula (v.g taxa de sinistralidade, custos de anuidade e prémios de anuidade com indicação dos respectivos componentes) devido à sua actividade específica e ao tipo de contrato de seguro em causa, em vigor há mais de dez anos, não reclamava da parte da Ré qualquer esclarecimento adicional, sendo certo que o funcionamento da cláusula foi discutido entre o mediador e o legal representante da Autora que compreendeu o que estava em causa.

Por outro lado, das comunicações enviadas pela Autora à Ré no ano de 2017, com vista a renegociar a referida cláusula, verifica-se que aquela compreendia o seu conteúdo e alcance, devendo ter-se apercebido, usando de uma diligência normal, que a cláusula em questão introduzia a obrigação de pagamento de um prémio adicional para ajustamento da sinistralidade, se, durante o ano de 2016, esta aumentasse acima dos parâmetros ali referidos.

Do exposto se conclui pela não verificação de incumprimento pela Ré dos deveres de comunicação e informação.”.

Por sua vez, o acórdão recorrido – após tecer vastas, doutas e pertinentes considerações doutrinais sobre o “incumprimento do dever de comunicação e informação”, com pertinentes citações de autores vários (JORGE MORAIS CARVALHO1, ANA FILIPA ANTUNES2, IRINA DE FÁTIMA LOPES PINTO3, JOSÉ MANUEL ARAÚJO DE BARROS4, ANA PRATA5), para além de citação jurisprudencial deste Supremo Tribunal6 – , remata desta forma:

“Com relevância para a apreciação da questão, está provado que:

25. A Ré, através do seu departamento comercial, manteve sempre contacto regular com a Autora e verificaram-se várias negociações ao longo da vigência das apólices em causa.

26. No caso em apreço, todos os contratos foram apresentados na forma escrita à Autora;

27. No que diz respeito às condições particulares, onde a cláusula de ajuste de sinistralidade vem prevista, estes contratos são escritos curtos e com poucas cláusulas.

28. A Autora foi informada verbalmente pelo mediador das condições propostas pela Ré para a renovação das apólices para 2016, nomeadamente, da proposta de introdução da CAP cujo conteúdo foi discutido e declarou perante este aceitar tal cláusula.

29. A Autora tinha conhecimento do que estava em causa.

30. Ao longo dos anos a Ré teve que assumir sinistros de valor elevado, destinando-se a introdução da cláusula de ajuste a conseguir que o prémio devido estivesse ajustado ao risco segurado

7. No período de 2015 para 2016 a Ré remeteu à Autora, tal como fazia quase todos os meses, uma “Acta” à semelhança de todas as outras que a Autora recebia mensal ou trimestralmente, respeitante às condições particulares do Seguros para o ano de 2016.

8. Nessa Acta, numa rúbrica denominada “OUTRAS DECLARAÇÕES”, constava uma “Cláusula de Ajuste de Sinistralidade”, nos seguintes termos: “Este contrato ficará sujeito à seguinte Cláusula de ajuste de forma a repor a sinistralidade nos seguintes termos: Se no final da anuidade a taxa de sinistralidade for igual ou superior a 65%, será emitido um recibo adicional de prémio, de forma a repor a sinistralidade em 65%, com um máximo de 25% do prémio comercial anual; Considerando: Taxa de sinistralidade: Custos da anuidade / Prémios da anuidade Custos da anuidade: Indemnizações Emitidas + Provisões Matemáticas + Provisões para sinistros em gestão. Prémios da anuidade: Prémios Comerciais da anuidade, líquidos de estornos.”

A ata a que se refere o facto 7 foi emitida em 25.11.2015, reportando-se a data da alteração a 1.1.2016 (cf. documento de fls. 33).

Resulta desta factualidade que a cláusula contratual em causa (uma só) foi comunicada à autora, quer por escrito quer verbalmente, com suficiente antecedência face à data em que a alteração deveria vigorar. A autora aceitou tal cláusula e tinha conhecimento do que estava em causa.

Note-se que o legal representante da autora, gestor de empresas, já acompanhava a execução dos vários contratos de seguro desde 2006 (há dez anos), tendo - por isso - perfeita noção do modo como era calculado normalmente o prémio das apólices bem como da evolução da sinistralidade. A cláusula em questão não importava inovação face aos procedimentos de pretérito, salvo permitir a emissão de um recibo adicional de prémio, com o limite máximo de 25% do prédio comercial anual. Ou seja, o impacto da cláusula na esfera da autora traduzia-se mais na (previsível) existência de um encargo adicional (acréscimo de prémio de 42.948 Euros - cf. facto 19)) do que propriamente num procedimento tecnicamente inovador.

O legal representante da autora é uma pessoa com um nível cultural e conhecimento económico-financeiro acima da média, de tal modo que assumiu por si (sem auxílio de terceiros, nomeadamente advogado, economista ou contabilista) diretamente as reuniões negociais ocorridas, no início e no fim de 2017, com a ré, consoante resultou do depoimento do próprio bem como das testemunhas, nomeadamente BB. Consoante se viu acima, o próprio afirmou que obvimente que percebeu o sentido da cláusula, quando a mesma lhe foi explicada pelo mediador.

Não ficou demonstrado que, nas reuniões ocorridas no início e no final de 2017, o legal representante da autora tenha aproveitado o ensejo para expressar dúvidas e questões quanto ao funcionamento da cláusula, ou se tenha queixado do incumprimento de qualquer dever de comunicação e/ou de informação (indício responsio; cf. Luís Filipe Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 2017, p. 243). A primeira notícia nesse sentido surge apenas - já em fase pré-litigiosa - na carta remetida pelos mandatários da autora em 1.6.2018 (cf. fls. 60 v). Caso essas dúvidas ou inquietações ocorressem, o legal representante da autora teria aproveitado tais ensejos para as exprimir (indício evocatio; cf. Luís Filipe Sousa, Prova por Presunção no Direito Civil, 2017, pp. 258-259).

Resulta do exposto que, no circunstancialismo do caso, ocorreu uma comunicação e informação suficientes da cláusula em causa, aferidas em função: da complexidade da cláusula; de se tratar de cláusula única; da anterioridade face à sua previsível vigência; de se tratar de um empresário, conhecedor, experiente e autónomo, estando ciente do impacto económica da cláusula na vida da autora, conforme resulta do correio eletrónico que remeteu ao mediador em 12.1.2017 ( fls. 48) bem como da alteração da gestão da autora que fez no intuito de reduzir a sinistralidade (cf. facto 16).”.


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Não vemos como discordar do acórdão recorrido.

Não houve, é certo, negociação, propriamente dita, da cláusula de ajustamento do preço.

Nem tinha de haver, pois, como sustenta a própria Autora/Recorrente, se trata de cláusula contratual geral, inserida em contrato de adesão – ou seja, como dito acima, em que a contraparte negocial (aqui, a Autora/recorrente) se limita a aceitar ou rejeitar, sem qualquer margem para negociação.

Foi, na verdade e precisamente, como cláusula contratual geral que a recorrente a viu, na medida em que chamou à colação o RJCCG, cuja violação amplamente invoca nos autos.

E, como bem se anota no acórdão recorrido, a Ré seguradora fez o que tinha a fazer relativamente à mesma cláusula, levando em conta a diligência média exigida ao aderente e destinatário da cláusula (a aqui Autora/recorrente) por força do princípio da boa fé, do qual se espera um comportamento leal e correcto, designadamente. Comportamento esse a exigir que a Autora solicitasse à Ré os esclarecimentos que entendesse necessários, após lhe ter sido materializado o efectivo conhecimento e informação sobre o conteúdo da cláusula (esta que, após esse efectivo conhecimento, aceitou sem qualquer reserva ou reparo).

Efectivamente, não pode olvidar-se que a CAP foi dada a conhecer à autora por escrito e verbalmente com antecedência relativamente à data em que a alteração ao contrato que dela emergia entraria em vigor, tendo a Autora aceitado a cláusula como fazendo (passando a fazer) parte do contrato – ou contratos – de seguro, conhecendo (percute-se) perfeitamente o seu conteúdo e respectivo significado.

Como bem salienta a Relação, o legal representante da autora – que era gestor de empresas – há dez (10) anos que acompanhava a execução dos vários contratos de seguro, como tal, tendo perfeita noção do modo como era calculado normalmente o prémio das apólices bem como da evolução da sinistralidade.

E não é despiciendo salientar que a cláusula não constituía inovação face aos procedimentos passados, apenas permitindo a emissão de um recibo adicional de prémio, com o limite máximo de 25% do prédio comercial anual. Ou seja, consubstanciava mais uma previsível existência de um encargo adicional (acréscimo de prémio de 42.948 Euros - cf. facto 19)) do que propriamente um procedimento tecnicamente inovador.

Vir, agora, a recorrente escudar-se em pretensa ausência de negociação ou falta de comunicação ou informação da dita cláusula, para, dessa forma, se furtar ao pagamento devido à Ré parece um tanto “arrojado”, por à revelia ou contra a sua postura aquando do cabal conhecimento e posterior aceitação sem reservas da mesma cláusula, numa afronta à boa fé. Pois que provado está que “a Autora foi informada verbalmente pelo mediador das condições propostas pela Ré para a renovação das apólices para 2016, nomeadamente, da proposta de introdução da CAP cujo conteúdo foi discutido e declarou perante este aceitar tal cláusula” (facto 28), sendo certo que “a Autora tinha conhecimento do que estava em causa” (facto 29), nada tendo obstado à sua inserção no contrato e sua aplicação na relação contratual firmada inter partes.

Note-se que – como salienta a Relação – o legal representante da autora é uma pessoa com um nível cultural e conhecimento económico-financeiro acima da média, de tal modo que assumiu por si (sem auxílio de terceiros, nomeadamente advogado, economista ou contabilista), directamente, as reuniões negociais ocorridas, no início e no fim de 2017, com a ré (como resultou do depoimento do próprio bem como das testemunhas, nomeadamente BB), sendo que, como dito acima, o próprio afirmou que, obvimente, percebeu o sentido da cláusula, quando a mesma lhe foi explicada pelo mediador.


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Assim se vê que (e sem embargo do que supra ficou dito – que, em bom rigor, a invocada “ilegalidade da CAP, por ausência de específica negociação”, é uma questão nova, pois o que foi suscitado na apelação (e aí decidido – bem assim na sentença) foi a violação, por essa cláusula, do regime das cláusulas contratuais gerais (regime em que se insere, precisamente, por se tratar de cláusula contratual geral, como tal, não sujeita a negociação) a cláusula em questão é perfeitamente válida, não tendo ocorrido qualquer violação do RGCCG (invocado nas instâncias pela Recorrente, no fito de levar por vencida a sua posição).

Assim improcede esta questão.

Do abuso do direito da Ré/Recorrida.

Não se vislumbra abuso algum da Recorrida.

A modalidade de abuso do direito aqui em causa e que já vinha invocada na apelação é na vertente do venire contra factum proprium.

Ora, a Relação já explicou, com suficiência, por que razão inexiste tal abuso do direito, com o que se concorda inteiramente, nada se nos afigurando acrescentar.

Invoca a Recorrente, para fundamentar o alegado abuso do direito, a existência de alteração unilateral do contrato, pela Ré, com a inserção da cláusula de ajustamento do prémio – alegação ou fundamentação apenas agora carreada, em sede de revista, pois na apelação se limitara a fundamentar o abuso do direito com base na existência dum alegado acordo entre as partes no sentido da remissão da obrigação de pagamento do acerto do prémio por bada da Recorrida, ali invocando condutas contraditórias da recorrida.

Ora, não se almeja abuso algum da Recorrida, pois, para além do supra referido relativamente à pessoa do representante da autora (nível cultural e conhecimento económico-financeiro e que, ele próprio, assumiu por si directamente as reuniões negociais ocorridas com a ré), a cláusula foi dada a conhecer, verbalmente e por escrito, à Recorrente, cujo conteúdo foi discutido, tendo a Autora/recorrente declarado, perante o mediador, aceitar essa mesma cláusula, bem sabendo do que estava em causa.

Nesta senda, a inserção da mesma cláusula no contrato não se nos afigura violadora do sentimento jurídico dominante na comunidade, por exceder “manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito” (ut artº 334º do Cód. Civil).

Em complemento – caso se julgue necessário, o que se não vislumbra –, remete-se para a fundamentação vertida no acórdão a propósito desta mesma questão do abuso do direito.

Assim improcede esta questão, dessa forma claudicando as doutas conclusões das alegações da Recorrente.


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IV. DECISÃO

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negar a revista, mantendo-se o decidido no Acórdão da Relação.

Custas pela Recorrente.


Lisboa, 2 de outrubro de 2023

Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Afonso Henriques (Juiz Conselheiro – 1º adjunto).

Maria da Graça Trigo (Juíza Conselheira - 2º adjunto)

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1. Manual de Direito do Consumo, Almedina, 2013.

2. Cláusulas Contratuais Gerais, DL n? 446/85 - Anotado, Wolters Kluwer, 2010.

3. Os Deveres de Comunicação e de Informação no Âmbito das Cláusulas Contratuais Gerais, UAL, 2020

4. Cláusulas Contratuais Gerais, DL nº 446/85 – Anotado.

5. Contratos de Adesão e Cláusulas Contratuais Gerais, Almedina, 2010.

6. Cita-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.9.2016, Alexandre Reis, 1262/14 – onde se observa, com pertinência para o presente caso, que as exigências especiais da promoção do efetivo conhecimento das cláusulas contratuais gerais e da sua precedente comunicação, que oneram o predisponente, têm como contrapartida, também por imposição do princípio da boa-fé, o aludido dever de diligência média por banda do aderente e destinatário da informação - com intensidade e grau dependentes da importância do contrato, da extensão e da complexidade (maior ou menor) das cláusulas e do nível de instrução ou conhecimento daquele -, de quem se espera um comportamento leal e correto, nomeadamente pedindo esclarecimentos, depois de materializado que seja o seu efetivo conhecimento e informação sobre o conteúdo de tais cláusulas.