Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
470/13.7TTOAZ.P1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: GONÇALVES ROCHA
Descritores: AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
CONTRATO DE TRABALHO
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
Data do Acordão: 06/01/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO DO TRABALHO - CONTRATO DE TRABALHO.
DIREITO PROCESSUAL LABORAL - INSTÂNCIA - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / DISCUSSÃO E JULGAMENTO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / PODERES DE COGNIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
Doutrina:
- Maria do Rosário Palma Ramalho, Direito do Trabalho, Parte II, 3.ª Edição, Almedina, 51.
- Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 14.ª ed., Almedina, 154.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 682.º, N.º S 1, 2 E 3, 674.º, N.º 3.
CÓDIGO DO PROCESSO DO TRABALHO (CPT): - ARTIGOS 27.º, AL. B), 72.º.
CÓDIGO DO TRABALHO (CT) / 2009: - ARTIGO 12.º.
LEI N.º 7/2009, QUE APROVOU O CÓDIGO DE TRABALHO DE 2009: - ARTIGO 7.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 15-04-2015, PROCESSO N.º 329/08.0TTCSC.L1.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
-DE 28-01-2016, PROCESSO N.º 2501/09.6TTLSB.L2.S1, DISPONÍVEL EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1- Conforme resulta dos números 1 e 3 do artigo 682º do CPC, aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado, só lhe sendo legítimo fazer voltar o processo ao tribunal recorrido quando entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou quando ocorrem contradições da matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito.

2- O artigo 12.º do Código do Trabalho do 2009, que estabelece a presunção de que as partes celebraram um contrato de trabalho assente no preenchimento cumulativo de alguns dos requisitos constantes das suas várias alíneas, só se aplica aos factos novos, às relações jurídicas constituídas após o início da sua vigência, que ocorreu em 17 de Fevereiro de 2009.

3- Assim sendo, e estando-se perante uma relação jurídica constituída em 2007, e não resultando da matéria de facto uma mudança essencial na configuração desta relação antes e depois desta data, a sua qualificação jurídica há-de operar-se à luz do regime do artigo 12º do CT/2003, na versão que lhe foi conferida pela Lei n.º 9/2006, de 20 de Março.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

1---

AA, patrocinado pelo Ministério Público, intentou uma acção com processo especial, emergente de acidente de trabalho, contra

BB, Companhia de Seguros, SA, pedindo que a R. seja condenada no seguinte:

i) Uma pensão anual e vitalícia no montante de € 7.334,60, actualizável, devida a partir de 11-2-2014, calculada com base na retribuição anual ilíquida de € 11.550,56 e na IPP de 67,50%, com IPATH;

ii) A quantia de € 4.994,14, a título de subsídio por situações de elevada incapacidade permanente;

iii) A quantia de € 8.665,01, respeitante a indemnização pelo período de incapacidade temporária absoluta sofrido;

iv) A quantia de € 20,00, relativa a despesas de transporte com as suas deslocações obrigatórias ao GML de Entre Douro e Vouga e à 3ª Secção da Instância Central do Trabalho da Comarca de Aveiro;

v) A quantia de € 2.970,75, referente a despesas com consultas, medicamentos e tratamentos médicos e a despesas com os respectivos transportes;

vi) Os juros de mora já vencidos e os vincendos, à taxa legal de 4%, contados a partir do vencimento das obrigações e até efectivo e integral pagamento, computando-se os primeiros na quantia global de € 754,20, à data da propositura desta acção;

vii) Na prestação ao autor das seguintes ajudas técnicas: calçado ortopédico com compensação para o membro inferior esquerdo, substituível com a periodicidade de um ano e nas adaptações para a sua viatura automóvel, substituíveis com a periodicidade de cinco anos.

Para sustentar estes pedidos alegou, no essencial, que foi vítima de um acidente de trabalho quando estava a prestar serviços, como trabalhador independente, para a empresa CC, na área da construção e reparação de máquinas e equipamentos não especificados, do qual lhe resultaram lesões e sequelas que determinaram um período de incapacidade temporária e uma incapacidade permanente parcial de 67,50%, com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual, carecendo ainda de calçado ortopédico como compensação para o membro inferior esquerdo e de adaptação para viatura automóvel.

O acidente ocorreu quando manuseava uma tampa em inox para colocar uma beirola com a ajuda de um guincho, e tendo-se este desprendido, caiu em cima da sua perna esquerda.

Mais alegou que tinha a responsabilidade infortunística decorrente do desempenho desta actividade como trabalhador independente transferida para a R, em função da retribuição anual ilíquida de € 11.550,56 (€ 825,04 x 14 meses), através de contrato de seguro titulado pela apólice nº …, na modalidade de prémio fixo, e que nada recebeu da seguradora, tendo suportado o custo de despesas de € 2.970,75 para pagamento de consultas, medicamentos, tratamentos médicos e deslocações.

Regularmente citada a Ré contestou, contrapondo, em síntese, que o autor celebrou um contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho para trabalhadores independentes, mas que não é responsável pelo pagamento de qualquer quantia, pois aquele não se encontrava a desempenhar qualquer actividade independente, antes estando a exercer a sua actividade por conta, e sob as ordens e instruções da CC, onde trabalhava há mais de seis anos, com horário de trabalho de oito horas semanais, com registo no relógio de ponto (cartão interno), com marcação de férias por acordo, auferindo mensalmente um valor fixo, recebendo formação da empresa juntamente com os restantes trabalhadores, e exercendo funções de chefia de outro trabalhador com materiais e equipamentos da empresa.

Por isso, e como a cláusula 21.ª das condições gerais da apólice estabelece que “quando o sinistrado for, simultaneamente, trabalhador independente e trabalhador por conta de outrem e havendo dúvida sobre o regime aplicável ao acidente, presumir-se-á, até prova em contrário, que o acidente ocorreu ao serviço da entidade empregadora”, sustenta que não é responsável pelas consequências do acidente.

Saneados e condensados os autos, foi organizado apenso para fixação de incapacidade, onde foi proferido despacho final que fixou a incapacidade permanente parcial do sinistrado em 67,50%, com incapacidade permanente absoluta para o trabalho habitual.

Procedeu-se à audiência de discussão e julgamento que foi concluída com a prolação de despacho respondendo à matéria de facto controvertida.

Subsequentemente foi proferida sentença, nos seguintes termos:

Pelo exposto, julgo parcialmente procedente a acção e, em consequência, condeno a ré no seguinte:

No pagamento ao autor dos seguintes valores:

Uma pensão anual, vitalícia e actualizável de € 7.334,60 desde 11 de Fevereiro de 2014;

A quantia de € 8.665,01, a título de indemnização resultante do período de incapacidade temporária com vencimento, para cada parcela correspondente a 30 dias, no mês correspondente;

A quantia de € 2.970,75 com vencimento na data da tentativa de conciliação;

A quantia de € 4.994,15 a título de subsídio de elevada incapacidade com vencimento em 11 de Fevereiro de 2014; e

Os juros de mora desde a data de vencimento fixada para cada valor e até ao pagamento relativamente às quantias já vencidas.

No mais, julgo improcedente a acção.

Mais condeno o autor e a ré no pagamento das custas, na proporção do decaimento, fixando-se o decaimento do autor em 10%, sem prejuízo da isenção de que o autor beneficie.

Valor da causa: € 104.762,46.

Inconformada, apelou a Ré Seguradora, tendo o Tribunal da Relação do Porto, com um voto de vencido, julgado o recurso improcedente, assim confirmando a sentença recorrida.

Ainda irresignada, traz-nos a R a presente revista, cuja alegação rematou com as seguintes conclusões:

I.         A Recorrente, "BB - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A, intenta o presente recurso por entender que o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto não pode manter-se, uma vez que a solução aí prevista constitui uma manifesta violação das leis do processo e normas legais aplicáveis, bem como dos princípios jurídicos competentes, e que importa, naturalmente, a revogação do Acórdão proferido;

II.        O presente Recurso de Revista encontra o seu fundamento no n.° 3 do artigo 671.° do Código de Processo Civil, face ao voto vencido lavrado na parte final do Acórdão;

III.      Desde logo, e seguindo a orientação constante no voto vencido, atento o teor da cláusula 21ª das Condições Gerais da Apólice e, bem assim, da matéria invocada pela Recorrente, incumbia ao Autor, alegar a provar que quando o acidente ocorreu ele exercia funções de trabalhador independente, o que, contudo, não sucedeu;

IV.      Como muito bem nota o voto de vencido, as expressões constantes dos pontos 7, 9 e 11 da matéria provada - "prestar serviços", "prestava serviços" e "prestação de serviços", atenta a matéria que se pretende apurar, contêm em si matéria puramente conclusiva;

V.        Ficaram, igualmente, outras questões por apurar, designadamente as relacionadas com a remuneração/valor auferido pelo Autor pelos serviços prestados; ou com a natureza do contrato de prestação de serviços celebrado;

VI.      Face às apontadas insuficiências da matéria de facto apurada e, bem assim, ao carácter conclusivo de algumas expressões constantes da factualidade apurada, impõe-se que se ordene, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 27.°, alínea b), e 72.° do Código do Processo do Trabalho a repetição do Julgamento com vista à ampliação da decisão sobre a matéria de facto, e, bem assim, com vista à intervenção da invocada Empregadora, atenta a indisponibilidade dos direitos do Autor;

Sem prejuízo,

VII.     O Acórdão proferido viola de forma flagrante as leis de processo, quanto à questão da nulidade, e bem assim a lei substantiva considerando a manutenção da interpretação constante da sentença proferida pela lª instância;

VIII.   Por brevidade e economia processual, dá-se por reproduzida a matéria de facto provada;

IX.      A sentença proferida não especifica os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, razão pela qual deveria a mesma ter sido sancionada pelas instâncias superiores o que, contudo, não sucedeu;

X.        Do teor da sentença proferida, resulta evidente que o Meritíssimo Juiz o quo não discriminou os factos julgados não provados, nem fundamentou minimamente a matéria de facto julgada provada, o que configura uma nulidade;

XI.      Toda e qualquer decisão deve ser fundamentada, no mínimo que seja, por forma a que as partes consigam apreciar as razões que subjazem ao decidido e as possam acatar conscienciosamente ou "atacar" pelos meios legalmente admissíveis;

XII.     No caso em apreço, há uma total ausência da fundamentação da decisão que constitui nulidade e se invoca para os devidos efeitos legais, nos termos do artigo 615.°, n.° 1 alínea b) do Código do Processo Civil;

XIII.   Não podendo a Recorrente concordar com as ilações vertidas, a este propósito, no Acórdão ora colocado em crise sob pena de total subversão do regime jurídico invocado e aplicável;

Por outro lado,

XIV. Ocorreu errada interpretação do direito aos factos apurados, uma vez que, da factualidade provada resulta que o Autor exercia a sua actividade nas instalações da "CC", utilizando os equipamentos e instrumentos de trabalho pertencentes à beneficiária da actividade; que, o Autor prestava serviços à "CC" há mais de seis anos, de forma exclusiva, bem como que durante esse período recebeu formação prestada pela empresa;

XV.     Face à verificação dos pressupostos do contrato de trabalho previstos no artigo 12º do Código do Trabalho é obrigatório concluir-se pela existência de um contrato de trabalho entre o Autor e a "CC", para a qual o Autor trabalhava continuamente há pelo menos seis anos, de forma exclusiva, nas instalações e utilizando os instrumentos e equipamentos de trabalho da empresa, e recebendo formação;

XVI.   Resulta da lei e é entendimento recente da nossa jurisprudência e doutrina, que é suficiente a verificação de algumas das características enunciadas nas alíneas do n° 1 do artigo 12.° do Código do Trabalho para que se verifique e opere a presunção da existência de contrato de trabalho (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 10.07.2013, Processo n.° 446/12.1TTCBR.C1, disponível em www.dasi.Pt1:

XVII.  Entende a Recorrente que é aplicável ao presente caso a redacção de 2009 do artigo 12.°;

XVIII. A matéria apurada permite concluir pela verificação dos indícios que constituem características de subordinação, designadamente quanto ao local de trabalho, instrumentos de trabalho e horário de trabalho;

XIX.   Todos os indicados factos são bem demonstrativos da inserção do Autor sinistrado na organização produtiva da "CC", o que constitui um importante facto indiciador da subordinação jurídica;

XX.     Pelo que a sentença e o Acórdão recorridos violaram o disposto nos artigos 11.° e 12.°, ambos do Código do Trabalho;

XXI.   Conclui-se, pois, que, no momento em que ocorreu o acidente de trabalho que vitimizou o Autor, este não se encontrava no exercício de qualquer actividade por conta própria, encontrando-se antes no desempenho de funções de metalúrgico, na qualidade de trabalhador dependente da "CC";

XXII.  Atento o conteúdo e as garantias do contrato de seguro celebrado com a Recorrente, é manifesto que a dependência do Autor implica a sua exclusão daquelas garantias;

XXIII. Face ao exposto, deve o presente recurso de Revista ser julgado procedente e, em consequência, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto ser revogado, e substituído por outro que absolva a Recorrente do pedido.

O MP também alegou, sustentando que o A logrou provar que na ocasião do sinistro estava a prestar serviços na empresa CC, na área da construção e reparação de máquinas e equipamentos, ao abrigo dum contrato “de prestação de serviço”, conforme resulta claramente do documento de fls. 111/112, donde se colhe que foi vontade das partes ficarem sujeitas a este tipo de contrato, o que a globalidade da factualidade apurada confirma.

Por outro lado, a recorrente não provou a matéria de facto que alegou para afastar tal caracterização.

Pugna assim pela confirmação do julgado.

Cumpre decidir.

2----

         Para tanto, deu-se como provada a seguinte matéria de facto:

1. No dia 17 de Janeiro de 2013, nas instalações da CC, em ..., o Autor, quando manuseava uma tampa em inox para colocar uma beirola com a ajuda de um guincho, este desprendeu-se e caiu em cima da sua perna esquerda.

2. Em consequência desse sinistro, o Autor sofreu fractura exposta do terço inferior da dita perna, com lesão neurovascular e necessidade de posterior intervenção cirúrgica a nível da fractura e, como suas sequelas, apresenta cicatrizes no terço distal da mesma, cicatrizes na face anterior da coxa resultantes de cirurgia plástica, atrofia muscular da coxa de 3 cm e atrofia muscular da perna de 4 cm, limitação ligeira na extensão do tornozelo e limitação na inversão e eversão do pé, com marcha nos calcanhares e em bicos de pés de difícil execução.

3. Mercê de tais lesões, o Autor esteve afectado de incapacidade temporária absoluta no período de 1 de Janeiro de 2013 a 10 de Fevereiro de 2014 (389 dias).

4. Na perícia de avaliação do dano corporal, o perito-médico do GML considerou que, por via das sequelas mencionadas, o Autor ficou com uma incapacidade permanente parcial de 67,50% de acordo com a «tabela nacional de incapacidades para os acidentes de trabalho», sequelas essas que o incapacitam de forma permanente e absoluta para o exercício da sua profissão habitual e fazem-no necessitar de calçado ortopédico com compensação para o membro inferior esquerdo, bem como de adaptação para viatura automóvel.

5. À data do sinistro vigorava entre o Autor e a Ré um contrato de seguro de acidentes de trabalho, titulado pela apólice nº …, na modalidade de prémio fixo, nos termos do qual o primeiro transferia para a segunda a responsabilidade infortunística decorrente da sua actividade enquanto trabalhador independente, em função de uma retribuição anual ilíquida de € 11.550,56 (€ 825,04x14 meses).

6. O Autor nada recebeu da Ré a título de indemnização pelo período de incapacidade temporária absoluta.

7. Na ocasião descrita o autor estava a prestar serviços na empresa CC na área da construção e reparação de máquinas e equipamentos não especificados.

8. O autor gastou a quantia de € 2.970,75 em consultas, medicamentos e tratamentos médicos, bem assim como no transporte imprescindível para as respectivas deslocações.

9. O autor prestava serviços de caldeiraria e serralharia na «CC» há mais de seis anos.

10.Neste período, o autor assistiu a uma acção de formação fornecida pela CC.

11. A prestação dos serviços indicados pelo autor era feita utilizando os materiais e equipamentos da «CC».

12. Nas Juntas Médicas realizadas nos autos os peritos médicos concluíram que o autor não necessita de calçado ortopédico com compensação para o membro inferior esquerdo, bem como de adaptação para viatura automóvel.

3---

        

Apreciando:

Tal como resulta de fls. 662 do acórdão recorrido, a ora recorrente havia suscitado perante a Relação as seguintes questões:

Saber se a sentença enfermava de nulidade;

Se o tribunal a quo não efectuou correcta apreciação da prova produzida em audiência de julgamento;

Se o tribunal errou na aplicação do direito aos factos.

Apreciando estas matérias, decidiu a Relação que a sentença não enferma de qualquer nulidade; julgou improcedente, na totalidade, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto; e entendeu que a recorrente não havia logrado provar os factos necessários e suficientes para, à luz do regime aplicável do Código de Trabalho de 2003, dar como provada a existência dum contrato de trabalho subordinado entre o Autor e a "CC", tal como advogava.

         Na revista, e face ao teor das suas conclusões, suscita agora as seguintes questões:

Erro de julgamento relativamente às oportunamente alegadas nulidades da sentença;

Repetição do julgamento, com vista à ampliação da decisão sobre a matéria de facto e à intervenção da "presumida empregadora" CC de ...;

No momento em que ocorreu o acidente de trabalho, o A/recorrido prestava trabalho subordinado para a empregadora CC.

Sendo estas as questões suscitadas, apreciemos então cada uma delas.

3.1---

         Quanto às nulidades da sentença:

Na 7ª conclusão alega a recorrente que o “acórdão proferido viola de forma flagrante as leis de processo, quanto à questão da nulidade, e bem assim a lei substantiva considerando a manutenção da interpretação constante da sentença proferida pela lª instância”.

Mas esta questão improcede.

Na verdade, a seguradora arguiu na apelação a nulidade da sentença por falta de fundamentação, bem como por contradição entre a matéria de facto provada e a decisão final – artigo 615.º, n.º 1, als. b) e c) do CPC.

O acórdão recorrido julgou não verificadas as arguidas nulidades, considerando que:

Não ocorreu falta de fundamentação, porquanto a matéria de facto foi decidida em despacho autónomo, constando a fundamentação dos factos provados e não provados desse mesmo despacho.

E quanto à invocada oposição entre os fundamentos concluiu que inexiste a nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, al. c) do CPC, pois o que ocorre é que apelante apenas manifesta a sua discordância com a decisão adoptada, o que constitui uma discordância quanto ao seu mérito, não ocorrendo portanto a invocada nulidade.

 

Apesar desta decisão da Relação, continua a recorrente a pugnar pela nulidade da sentença resultante de absoluta falta de fundamentação.

No entanto, e quanto a esta alegação, temos de dizer que o Supremo sindica apenas a bondade do acórdão proferido pela Relação, conforme resulta inequivocamente do nº 1 do artigo 671º do CPC na parte em que consagra que cabe revista do acórdão da Relação.

Por isso, competia à recorrente identificar os vícios do acórdão e indicar as normas por este violadas, conforme determina o nº 1 do artigo 674º do CPC, para o Supremo proceder à sua apreciação.

Como nenhum vício imputa especificamente à decisão recorrida, nem identifica quais as normas por esta violadas, temos de concluir pela improcedência desta questão.

Por outro lado, alegando a recorrente que a manutenção pelo acórdão da interpretação constante da sentença proferida pela lª instância viola o direito substantivo, estamos perante matéria atinente ao mérito da decisão da Relação, ponto que será apreciado no ponto 3.3.

3.2---

         Quanto à pretendida repetição do julgamento para ampliação da matéria de facto:

Sustenta a recorrente que “face às apontadas insuficiências da matéria de facto apurada e, bem assim, ao carácter conclusivo de algumas expressões constantes dessa factualidade, impõe-se que se ordene, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 27.°, alínea b), e 72.° do Código do Processo do Trabalho a repetição do julgamento com vista à ampliação da decisão sobre a matéria de facto, e, bem assim, com vista à intervenção da invocada empregadora, atenta a indisponibilidade dos direitos do Autor.

Não tem porém razão nesta sua pretensão, pois não ocorre qualquer insuficiência da matéria de facto para a decisão.

Efectivamente, e conforme impõe o nº 1 do artigo 682º do CPC, aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.

Além disso, e conforme resulta do seu nº 2, o Supremo só pode alterar a matéria de facto nos limitados termos previstos no nº 3 do artigo 674º do mesmo diploma, ou seja quando a decisão das instâncias vá contra disposição expressa da lei que exija certa prova para a existência do facto ou fixe a força de determinado meio de prova (prova vinculada).

         Não tendo a recorrente impugnado essa factualidade, a matéria de facto vinda da Relação ficou fixada.

        

Por outro lado, e conforme prescreve o nº 3 do supracitado artigo 682º do CPC, só é legítimo ao Supremo fazer voltar o processo ao tribunal recorrido quando entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou quando ocorrem contradições da matéria de facto que inviabilizem a decisão jurídica do pleito.

         No caso concreto não ocorre qualquer contradição na matéria de facto apurada que inviabilize a decisão da causa.

         E por outro lado, a matéria apurada contém uma base suficiente para essa decisão, pois, e quanto ao mérito do recurso, a recorrente apenas suscitou perante a Relação a questão da presunção da existência dum contrato de trabalho entre o A e a CC, por força da presunção do artigo 12º do CT/2009.

        

Ora, para julgar esta matéria, a factualidade provada é suficiente, pois não tendo a R provado factos aptos a qualificar tal contrato como contrato de trabalho subordinado, sempre será de atender ao contrato de seguro como trabalhador independente que o A havia celebrado com a R.

        

Além disso, e quanto ao invocado carácter conclusivo das expressões constantes dos pontos 7, 9 e 11 da matéria provada, na parte em que se refere "prestar serviços", "prestava serviços" e "prestação de serviços", entendemos que se trata de expressões da linguagem corrente, com o sentido lato de prestar uma actividade, e por isso, sem carácter vinculativo para a qualificação do contrato que existia entre o A e a CC.   

         Diga-se ainda que, embora o tribunal deva tomar em consideração factos mesmo não articulados que repute relevantes para a decisão da causa, conforme determina o nº 1 do artigo 72º do CPT, a questão da remuneração auferida é irrelevante, valendo no caso a que foi acordada no contrato de seguro vigente.

        

Assim e pelo exposto, improcede esta questão.

3.3---

Quanto ao mérito do acórdão:

Na apelação sustentou a ora recorrente que a decisão deveria ter sido diferente e em sentido oposto ao da sentença, advogando no essencial, que os factos provados são suficientes para se considerar demonstrada a presunção de laboralidade estabelecida no art.º 12.º do CT/09.

Tendo decaído nesta sua pretensão, mantém na revista que da factualidade provada resulta que o Autor exercia a sua actividade nas instalações da "CC", utilizando os equipamentos e instrumentos de trabalho pertencentes à beneficiária da sua actividade, pelo que, prestando serviços a esta empresa há mais de seis anos, de forma exclusiva, de quem recebeu formação, é de concluir pela existência de um contrato de trabalho, face à verificação dos pressupostos do contrato de trabalho previstos no artigo 12º do Código do Trabalho de 2009.

Mas também não tem razão nesta sua argumentação.

Efectivamente, o acidente dos autos ocorreu em 17 de Janeiro de 2013, quando o autor prestava serviços de caldeiraria e serralharia na CC.

Por outro lado, tendo-se apurado que ali prestava serviços há mais de seis anos, quer isto dizer que o início desta sua colaboração remonta, pelo menos a 2007, vigorando à época o Código do Trabalho de 2003.

Por isso, a caracterização da relação jurídica estabelecida entre o A e a CC tem de ser efectuada tendo em conta a lei em vigor à data da sua constituição, pois não resulta da matéria de facto uma mudança essencial na configuração desta relação depois daquela data.

E assim, a sua qualificação jurídica há-de operar-se à luz do regime da CT/2003.

Com efeito, estabelece o artigo 12.º do Código do Trabalho do 2009 a presunção de que as partes celebraram um contrato de trabalho assente no preenchimento cumulativo de determinados requisitos.

No entanto, como tal traduz uma valoração dos factos que importam o reconhecimento dessa presunção, só se aplica aos factos novos, às relações jurídicas constituídas após o início da sua vigência, que ocorreu em 17/2/2009.

É o que resulta do disposto no nº 1 do artigo 7º da Lei nº 7/2009, que aprovou o Código de Trabalho de 2009, onde se refere expressamente que este compêndio legal, embora se aplique aos contratos de trabalho celebrados antes da sua entrada em vigor, não se aplica quanto às normas que definam as suas condições de validade.

 Por isso, e por força do disposto na norma transitória que regula a aplicação no tempo do CT/09, a questão de saber se existiu ou não um contrato de trabalho subordinado tem que ser apreciada à luz da lei vigente à data em que se constituiu essa alegada relação contratual.

Neste sentido é inequívoca a jurisprudência deste Supremo Tribunal, podendo citar-se nomeadamente, o acórdão de 28-01-2016, proc.º 2501/09.6TTLSB.L2.S1, disponível em www.dgsi.pt, também citado na decisão recorrida, donde se colhe a seguinte doutrina:

“Estando em causa a qualificação da relação jurídica estabelecida entre as partes, desde 5 de março de 2007 até 5 de março de 2009, e não se extraindo da matéria de facto provada que as partes tivessem alterado, a partir de 17 de fevereiro de 2009, os termos daquela relação, aplica-se o regime jurídico acolhido no Código do Trabalho de 2003, não tendo aplicação a presunção estipulada no artigo 12.º do Código do Trabalho de 2009”.

Em idêntico sentido, pode citar-se ainda o acórdão 15 de Abril de 2015, processo n.º 329/08.0TTCSC.L1.S1, donde se extrai que:

“1. O artigo 12.º do Código do Trabalho do 2003 estabelece a presunção de que as partes celebraram um contrato de trabalho assente no preenchimento cumulativo de determinados requisitos, o que traduzindo uma valoração dos factos que importam o reconhecimento dessa presunção só se aplica aos factos novos, às relações jurídicas constituídas após o início da sua vigência, que ocorreu em 1 de Dezembro de 2003.”

Assim sendo, por força do disposto na norma transitória que regula a aplicação no tempo do CT/09, a questão de saber se existiu ou não um contrato de trabalho subordinado tem que ser apreciada à luz da lei vigente à data em que se constituiu essa alegada relação contratual.

E por isso, não tem aqui aplicação o art.º 12.º do CT/09, conforme advoga a recorrente, tendo antes que se atender ao art.º 12.º do CT/03 na versão introduzida pela Lei n.º 9/2006, de 20 de Março, que dispõe o seguinte:

- «Presume-se que existe um contrato de trabalho sempre que o prestador esteja na dependência e inserido na estrutura organizativa do beneficiário da actividade e realize a sua prestação sob as ordens, direcção e fiscalização deste, mediante retribuição».

Esta alteração à redacção inicial do art.º 12.º teve em vista ultrapassar as dificuldades de operacionalidade suscitadas pela anterior redacção do artigo 12.º do sobredito Código, que estabelecia a presunção de que as partes celebraram um contrato de trabalho assente no preenchimento cumulativo de cinco requisitos.

Mas a solução da nova lei também não foi igualmente feliz.

Efectivamente, e conforme argumenta a decisão recorrida, “se o prestador está na “dependência e inserido na estrutura organizativa” do beneficiário da actividade, realizando a sua prestação “sob as ordens, direcção e fiscalização daquele beneficiário” e “mediante retribuição”, parece que nada há a presumir, antes se impondo concluir pela qualificação da relação como de contrato de trabalho subordinado. Como salienta Maria do Rosário Palma Ramalho, “(..) embora se tenha limitado os indícios de laboralidade (..) fez-se coincidir a maior parte desses indícios com os próprios elementos essenciais do contrato de trabalho, o que lhe retirou qualquer valor indiciário, para além de os continuar a conceber como indícios cumulativos, o que diminuía a sua operacionalidade” [Direito do Trabalho, Parte II, 3.ª Edição, Almedina, pp. 51].

No mesmo sentido, Monteiro Fernandes observa que “Com a L. 9/2006, de 20/3, o art. 12.º CT foi modificado, mas, na realidade, pouco melhorado. Passou a constituir base da “presunção” a verificação de que “o prestador esteja na dependência e inserido na estrutura organizativa do beneficiário da actividade e realize a sua prestação sob as ordens, direcção e fiscalização deste, mediante retribuição”. Não se estava aqui perante elementos concretos de facto susceptíveis de prova, mas de conceitos normativos e abstractos; e, no fim de contas, não se oferecia uma presunção, mas uma definição (uma segunda definição) do contrato de trabalho. Continuava, pois, a não existir no CT uma verdadeira presunção da existência do contrato de trabalho” [Direito do Trabalho, 14.ª ed., Almedina, p. 154]”.

Donde concluiu o acórdão recorrido que  “… em termos práticos, a Recorrente ré teria que provar os factos necessários e suficientes para se concluir pela existência do alegado contrato de trabalho subordinado entre o A. e a CC.

Ora, como é bom de ver, não fez essa prova”.

Aderimos integralmente a esta posição, pois a recorrente não fez prova dos factos suficientes para fazer funcionar a invocada presunção.

Na verdade, apenas provou que o autor prestava os seus serviços utilizando os materiais e equipamentos da CC, conforme resulta do facto nº 11.

O que é manifestamente insuficiente para se considerarem integrados os pressupostos de actuação da presunção estabelecida no artigo 12º do CT/2003.

É certo que se provou ainda que o autor assistiu a uma acção de formação fornecida pela CC (facto nº 10).

Mas este facto isolado, também não permite concluir pela existência dum contrato de trabalho entre o A e esta empresa.

 Por isso, e improcedendo também esta questão, temos de confirmar a decisão recorrida.

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         Termos em que se acorda nesta Secção Social em negar a revista.

         Custas a cargo da recorrente.

Anexa-se sumário do acórdão

         Lisboa, 1 de Junho de 2017

Gonçalves Rocha (Relator)

Leones Dantas

Ana Luísa Geraldes