Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08B4010
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS BERNARDINO
Descritores: DANO CAUSADO POR COISAS OU ACTIVIDADES
DIREITO DE PROPRIEDADE
PROVA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
PRESUNÇÃO DE CULPA
Nº do Documento: SJ200903120040102
Data do Acordão: 03/12/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
1. Em acção de indemnização, fundada em responsabilidade civil por factos ilícitos, em que os autores reclamam indemnização por danos materiais causados pelos réus, no exercício de uma actividade perigosa, em prédio de que aqueles se arrogam donos, por sucessão mortis causa, e onde habitam, o invocado direito de propriedade sobre o prédio não constitui o objecto da acção (como nas acções reais, maxime na de reivindicação), apenas integrando a respectiva causa de pedir.

2. Assim, a prova de que são donos do prédio e, por via disso, titulares do direito de indemnização, basta-se com a junção de certidão, comprovativa de que o prédio lhes foi adjudicado em partilha judicial, homologada por sentença transitada em julgado, não lhes sendo exigível a prova da aquisição originária do domínio por parte dos seus antecessores.

3. O estabelecimento ou a determinação do nexo de causalidade naturalística entre o facto e o dano constitui matéria de facto da exclusiva competência das instâncias, que o Supremo, enquanto tribunal de revista, não pode sindicar.

4. Tendo, para a implantação de uma construção, sido efectuados rebentamentos de rocha com explosivos, ao longo de cerca de sete meses, sendo as explosões fortes, verificadas durante a semana, em número de três e por vezes quatro por dia, provocando, pelo seu ruído, sustos e vibrações, e causando, durante esse período, nos autores, que viviam a cerca de 350 metros do local das explosões, intranquilidade e ansiedade, ausência de bem-estar físico e psíquico, estamos perante danos não patrimoniais por estes sofridos, e indemnizáveis porque, pela sua gravidade objectiva, se ajustam ao rigor limitativo da lei (art. 496º/1 do CC), merecendo a tutela do direito.

5. No n.º 2 do art. 493º do CC estabelece-se uma presunção de culpa para quem, no exercício de uma actividade perigosa, causar danos a outrem, só ficando o lesante exonerado da responsabilidade se provar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para evitar a produção de tais danos.

6. É insuficiente a observância dos deveres inerentes à normal diligência, pois onde a periculosidade está ínsita na acção há o dever de proceder tendo em conta o perigo; o dever de evitar o dano torna-se, assim, mais rigoroso, quando se actua com a nítida previsão da sua possibilidade, pelo que o sujeito deve adoptar, mesmo que com sacrifícios, todas as medidas aptas para evitar o dano.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1.

AA e mulher BB intentaram em 04.02.98, no Tribunal Judicial da comarca de Gondomar, contra T... – P... E..., S.A. e K... DE P... – S... de E... e C... I..., L.da, acção com processo ordinário, pedindo que as rés sejam solidariamente condenadas a pagar-lhes o montante indemnizatório de 4.700.000$00, com juros de mora à taxa legal desde a citação.
Alegaram, para tanto, que no prédio urbano de que são donos, e onde residem, sito na Travessa do ...., lugar de B..., M..., Gondomar, foram produzidos danos vários, que especificam, em consequência de fortíssimos rebentamentos com explosivos, entre Março e Setembro de 1995, em terrenos a menos de 500 metros de distância, onde a 2ª ré, sob a supervisão e fiscalização da 1ª, dona da obra, levava a efeito a construção da denominada “Central T... de C... C... da T... do O...”. Os custos da reparação dos danos ascendem a 3.200.000$00, tendo a habitação sofrido uma desvalorização não inferior a 500.000$00; e, para além desses danos, também a tranquilidade e o bem estar físico e psíquico dos autores, que são pessoas idosas, foram fortemente abaladas ao longo dos sete meses em que ocorreram os rebentamentos, o que constitui dano não patrimonial, que deve ser indemnizado com quantia não inferior a 500.000$00, devendo ainda ser indemnizados por igual montante, pelos gastos que a presente acção lhes acarretará.
As rés contestaram.
Defendeu-se a primeira, excepcionando a sua ilegitimidade e impugnando a matéria de facto alegada pelos autores, sustentando, em síntese, que não existe relação de causa-efeito entre as detonações e as anomalias no prédio destes, sendo também inexistentes quaisquer danos não patrimoniais com gravidade bastante para merecerem a tutela do direito.
Requereu ainda a intervenção acessória das seguintes sociedades, membros do consórcio construtor da Central:
- S... A...,
- S..., S.A., e
- K... T... GMBH.
A segunda ré alegou que as obras de construção da Central foram realizadas por empresas especializadas no sector, com quem celebrou contratos de empreitada, e que foram as responsáveis pela execução dos diversos trabalhos de construção civil inerentes à implantação da dita Central, não tendo ela, ré, qualquer intervenção nas concretas operações de detonação, mas sabendo que estas foram realizadas no estrito cumprimento das normas legais e regulamentares em vigor na matéria, não podendo os alegados danos no prédio dos autores ter sido causados por tais detonações.
Requereu ainda a intervenção acessória das sociedades que executaram os trabalhos, a saber
- SOMEC – S... M... de C..., S.A., e
- Sociedade de E... A..., S.A.
O chamamento requerido pela primeira ré foi indeferido; mas a intervenção requerida pela segunda foi admitida, tendo sido ordenada a citação destas duas sociedades, agora referidas, nos termos do n.º 1 do art. 332º do CPC.
Na sequência da operada citação veio a chamada Sociedade de E... A..., S.A. apresentar contestação, em que alega ter usado de especiais cautelas na execução dos trabalhos, designadamente dos que envolveram o recurso a explosivos, sempre feito com rigorosa observância das normas legais de utilização dos mesmos e dos procedimentos de segurança nelas exigidos. Impugnou os factos alegados pelos autores, e requereu a intervenção acessória da COMPANHIA DE SEGUROS I..., com a qual diz ter celebrado um contrato de seguro de responsabilidade civil do ramo “Montagem – Construção – Máquinas”, tendo por objecto os trabalhos da empreitada que levou a cabo.
Também contestou a SOMEC – S... M... de C..., S.A., alegando, antes de mais, que, por sentença transitada em julgado, homologatória de deliberação da Assembleia de Credores que aprovou a providência de recuperação de empresa, requerida, em processo próprio, pela chamada, foi estabelecido o modo de pagamento, aos credores, dos respectivos créditos – pelo que, a vir a ser condenada na presente acção, deverá, quanto ao pagamento do crédito dos autores, observar-se o caso julgado formado pela dita sentença. Acrescentou que os rebentamentos a que procedeu não foram aptos a provocar os danos alegados pelos autores, e foram levados a cabo com estrita observância das normas existentes.
Foi proferido, de seguida, despacho judicial, indeferindo a requerida intervenção acessória da Companhia de Seguros I... – decisão de que a requerente do chamamento interpôs recurso de agravo, que foi admitido, com subida imediata e em separado, mas a que foi negado provimento.
Os autores apresentaram ainda respostas às contestações, e, no seguimento normal do processo, veio a ser proferido o despacho saneador – no qual, além do mais, foi julgada improcedente a excepção de ilegitimidade da ré T..., bem como a excepção de caso julgado invocada pela SOMEC – e operada a selecção da matéria de facto, com a indicação dos factos assentes e os inseridos na base instrutória.
Em 28.04.2003, já na fase de produção da prova (pericial), os autores vieram requerer a intervenção principal das sociedades – SOMEC – S... M... de C..., S.A. e Sociedade de E... A..., S.A. – já admitidas como partes acessórias. Tal requerimento foi indeferido, por despacho judicial que reputou extemporânea a dedução do incidente.
Os autores agravaram desse despacho, e o recurso foi admitido, com subida imediata e em separado, e com efeito meramente devolutivo.
Efectuada a audiência de julgamento, foi proferida sentença julgando a acção improcedente, por não provada, com a consequente absolvição das rés do pedido.
Os autores interpuseram, da sentença, o pertinente recurso de apelação.
Sem êxito o fizeram, já que a Relação do Porto, em acórdão oportunamente proferido, julgou improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.
Ainda inconformados, os autores trazem agora a este Supremo Tribunal recurso – de revista – do acórdão da Relação.
E, no remate das respectivas alegações de recurso, formulam, em síntese, as seguintes conclusões:
1ª - Existe uma conexão segura entre a produção dos danos provados e os rebentamentos ocorridos, como flui dos factos provados (respostas aos quesitos n.os 14, 15 e 18), sendo ainda certo que, em três outros processos com a mesma causa de pedir, foi tal conexão estabelecida e a ré K... condenada a indemnizar os lesados;
2ª - A ré K... está obrigada a indemnizar os autores, pelos danos causados no imóvel (€ 7.210,00 mais IVA), já que, verificando-se presunção legal de culpa, nos termos do art. 493º/2 do Cód. Civil, a ré não ilidiu tal presunção;
3ª - Foi à ré K... que foi confiada a área de construção civil da Central T... da T... do O..., dentro do consórcio contratado com a ré T..., como dona da obra, com vista a posteriormente iniciar a sua actividade de produção de energia eléctrica. E, conforme ficou provado nos aludidos processos com a mesma causa de pedir, a ré K... fiscalizava toda a obra e tinha intervenção no processo de rebentamentos, ultrapassando, em muito, o que integra o poder de fiscalização do empreiteiro, mantendo, a todo o momento, os poderes de controlo e direcção;
4ª - Os recorrentes provaram ter adquirido o prédio onde ocorreram os danos – provaram não só a aquisição derivada (por sucessão mortis causa), mas também a aquisição originária do domínio por parte do antecessor;
5ª - Ademais, o objecto principal da acção não incide sobre o direito de propriedade dos autores, e se havia irregularidade do articulado deveria ter o juiz convidado ao seu suprimento, nos termos do n.º 2 do art. 508º do CPC;
6ª - A ré K... deve ser condenada a pagar a indemnização peticionada a título de danos não patrimoniais, no valor de € 2493,98, face aos factos dados como provados, dos quais decorre que, durante sete meses, 3 a 4 vezes por dia, os recorrentes tiveram de suportar as fortes explosões levadas a cabo, o seu ruído e vibrações inerentes, o que lhes causou um mal-estar físico e psíquico, um estado de ansiedade e de intranquilidade permanente;
7ª - E deve ser ainda condenada nos juros de mora desde a citação, à taxa legal.

Em contra-alegações, a ré K... DE PORTUGAL – Serviços de E... e C... I..., L.da pugna pela improcedência do recurso.

Corridos os vistos legais, cumpre agora decidir.

2.

Vêm, das instâncias, provados os factos seguintes:
1) A “T... - P... E..., S.A.” é dona da Central E... a G... N... da T... do O..., em construção no lugar de B..., M..., em Gondomar (Alínea A) dos Factos Assentes);
2) A “T...” contratou com terceiros a construção da central com vista a, depois de concluída e recebida a obra, iniciar a actividade de produção de energia eléctrica (Alínea B) dos Factos Assentes);
3) A construção está a cargo de um consórcio de empresas, entre as quais a 2ª ré (Alínea C) dos Factos Assentes);
4) Assim, à segunda ré cabia o desenvolvimento dos trabalhos de construção civil necessários à instalação da central termoeléctrica (Alínea D) dos Factos Assentes);
5) Para a execução dos trabalhos de construção civil, a ré “K... de P...” celebrou contratos com empresas especializadas em construção civil (Alínea E) dos Factos Assentes);
6) Concretamente, a “K... de P...” contratou a interveniente “Somec” para que esta realizasse as obras inerentes à ensacadeira, edifício da tomada de águas e estruturas de rejeição do sistema de arrefecimento (Alínea F) dos Factos Assentes);
7) E contratou a interveniente “Sociedade de E... A..., SA” para que esta executasse todo o desmonte da rocha e escavações para a constituição das plataformas e implantação da Central (Alínea G) dos Factos Assentes);
8) A “Somec” e a “Sociedade de E... A...” desempenharam a sua actividade no âmbito de contratos celebrados com a ré “K...” entre 08.02.95 e 30.11.95 (Alínea H) dos Factos Assentes);
9) Na realização dos trabalhos para cuja realização foi contratada a “Somec”, foram efectuados quebramentos de rocha submersa com detonações dentro da água (Alínea I) dos Factos Assentes);
10) Pelo menos depois de finais do Verão de 1995 a “Sociedade de E... A...” iniciou a execução dos trabalhos de desmonte de pedra com o recurso a explosivos (Alínea J) dos Factos Assentes);
11) Na Travessa do ..., B..., em M..., existe um prédio constituído por casa de habitação e lavoura, de dois pavimentos e uma dependência para arrecadação, quintal e pátio, que se encontra inscrito na matriz predial sob o artigo 34°, em nome do autor marido (Alínea L) dos Factos Assentes);
12) Os autores residem no prédio referido em 11) (Resposta ao n.º 2 da base instrutória);
13) O prédio situa-se a uma distância de cerca de 350 metros dos terrenos onde foi iniciada a construção da Central T... (Resposta ao n.º 3 da base instrutória);
14) Os trabalhos de construção de que foi incumbida a ré “K...” foram levados a cabo sob a supervisão e fiscalização da “T...” (Resposta ao n.º 4 da base instrutória);
15) Para implantarem a construção foram levados a cabo rebentamentos de rocha com explosivos (Resposta ao n.º 5 da base instrutória);
16) Os rebentamentos decorreram desde Março a Setembro de 1995 (Resposta ao n.º 6 da base instrutória);
17) Os autores foram surpreendidos com as explosões, pois nenhuma das rés ou outras entidades os avisaram de que elas iriam ter lugar, com a frequência e potência usadas (Resposta ao n.º 7 da base instrutória);
18) As explosões eram fortes (Resposta ao n.º 8 da base instrutória);
19) Após o seu início as explosões decorriam durante a semana em número de três e, por vezes, mesmo, quatro, por dia (Resposta ao n.º 10 da base instrutória);
20) As explosões provocavam sustos, pelo seu ruído (Resposta ao n.º 11 da base instrutória);
21) Causavam vibrações (Resposta ao n.º 12 da base instrutória);
22) Durante os sete meses que duraram as explosões os autores viveram no prédio identificado em 11) com intranquilidade e ansiedade (Resposta ao n.º 13 da base instrutória);
23) Depois das explosões, no prédio referido em 11) surgiram danos (Resposta ao n.º 14 da base instrutória);
24) No referido prédio surgiram fissuras nas paredes (Resposta ao n.º 15 da base instrutória);
25) As fissuras nas telhas do beiral permitiam a infiltração de água no interior (Resposta ao n.º 18 da base instrutória);
26) Os autores sentiram-se intranquilos e sofreram a ausência de bem-estar físico e psíquico por causa das explosões (Resposta ao n.º 21 da base instrutória);
27) Nos termos do contrato celebrado com o consórcio construtor, é a este que cabe a realização de todos os trabalhos de construção da central, seja directamente através das empresas que o integram ou através do recurso a empresas com quem subcontrata alguns trabalhos e ou fornecimentos (Resposta ao n.º 23 da base instrutória);
28) Os trabalhos foram efectuados com autonomia pelo consórcio referido ou por quem este, para o efeito, contrata (Resposta ao n.º 24 da base instrutória);
29) A ré “T...” não procedeu a quaisquer rebentamentos de rocha, nem ordenou a sua realização (Resposta ao n.º 25 da base instrutória);
30) Antes da realização de qualquer explosão, as empresas responsáveis pela mesma emitiam avisos sonoros (Resposta ao n.º 27 da base instrutória);
31) O prédio referido em 11) é um edifício antigo, com largas dezenas de anos (Resposta ao n.º 28 da base instrutória, após alteração pela Relação);
32) Nos termos dos contratos celebrados com a “Somec” e a “A...”, estas tinham autonomia para realizar todas as operações necessárias à execução dos trabalhos contratados (Resposta ao n.º 29 da base instrutória);
33) E tinham toda a responsabilidade técnica pela execução de todas as operações técnicas inerentes à execução dos trabalhos, como empresas especializadas no respectivo sector de actividade (Resposta ao n.º 30 da base instrutória);
34) A ré “K...” apenas fiscalizava as operações de detonações realizadas (Resposta ao n.º 31 da base instrutória);
35) Em 1995 a “A...” iniciou a execução de trabalhos de desmonte de pedra com recurso a explosivos (Resposta ao n.º 32 da base instrutória);
36) As sessões de rebentamento efectuadas pela “A...” foram realizadas mediante um plano de segurança, avisos sonoros prévios, isolamento da área e um plano de rebentamento (Resposta ao n.º 33 da base instrutória);
37) Cada rebentamento foi feito segundo o método de micro-retardamento (Resposta ao n.º 35 da base instrutória);
38) Pelo menos a maioria dos rebentamentos realizados pela “Somec”, foram sujeitos a medições de ruído e de impacto (Resposta ao n.º 36 da base instrutória).

3.

Assentes os factos, vejamos as questões suscitadas no recurso.
Referir-se-á, antes de mais, que a Relação considerou
- não terem os autores feito prova de que são donos do prédio em causa;
- que, apesar de existir presunção legal de culpa, em virtude da natureza perigosa da actividade desenvolvida pela ré K... DE PORTUGAL, esta não pode vir a ser condenada a indemnizar os danos verificados no dito prédio, por não se ter demonstrado a existência de nexo de causalidade entre os danos e as explosões;
- que não estão provados danos não patrimoniais com gravidade bastante para justificar a tutela do direito.
E, assente nestas linhas de força, entendeu que a sentença recorrida seria de confirmar na íntegra.
Importa, por isso, analisar a valia, o mérito, destas asserções, postas em causa pelos recorrentes.

3.1. O direito de propriedade afirmado pelos autores – em termos, diga-se desde já, claramente deficientes, porque não suportado na alegação dos factos correspondentes (1) – sobre o prédio onde alegam ter sido produzidos os danos, foi impugnado pela ré T... (art. 16 da contestação), nos termos aludidos no n.º 3 do art. 490º do CPC (desconhecimento, sem obrigação de conhecer, da realidade da alegação).
Em consequência de tal impugnação, foi, na selecção da matéria de facto, elaborado um quesito (o 1º da base instrutória) com a seguinte formulação: Os autores são donos do prédio descrito em L)?
Sendo evidente que tal quesito não contém matéria de facto, envolvendo, antes, uma questão de direito, bem se compreende que, no despacho decisório da matéria de facto, proferido após a realização da audiência de julgamento, haja o Ex.mo Juiz do Círculo Judicial de Gondomar exarado o seguinte:
Quesito 1º: Consigna-se que se não responde a este quesito por força do disposto no art. 646º n.º 4 do Cód. Proc. Civil.
Certo é, no entanto, que antes do início da audiência de julgamento os autores juntaram aos autos, a fls. 629 e ss., uma fotocópia certificada, extraída dos autos de inventário por óbito de CC e mulher DD, pais da ora autora/recorrente BB, da qual resulta que o prédio aqui aludido foi, com os demais bens dos inventariados, objecto de partilha no dito inventário, vindo a integrar o quinhão hereditário da autora, casada em comunhão geral de bens com o autor, sendo a partilha efectuada homologada por sentença de 23.11.82, transitada em julgado.
Foi admitida a junção aos autos deste documento, através do seguinte despacho judicial (fls. 642):
Admito a junção aos autos do documento apresentado, relegando-se para sede de resposta aos quesitos e/ou sentença consideração sobre a utilidade probatória do mesmo.
A verdade, porém, é que tal documento não foi tido em conta na sentença da 1ª instância, onde se considerou que
- “não foi, pelos autores, alegada factualidade que pudesse preencher a aquisição originária dos prédios de que dizem ser donos, com vista à usucapião”; e
- “não carrearam para os autos qualquer outra prova da propriedade, nomeadamente o registo do imóvel em seu nome”, com vista a beneficiarem da inerente presunção;
- nem sequer juntaram “qualquer escritura pública onde se declarasse a transmissão da propriedade para (eles), independentemente do seu valor no que concerne àquela transmissão”.
- limitaram-se a juntar uma certidão de habilitação notarial, que, “como se sabe, não é forma de aquisição do direito de propriedade de quem quer que seja pelo que teriam os autores que lavrar partilha notarial ou através de inventário, donde resultasse que os aludidos prédios lhe ficaram a pertencer”.
No recurso de apelação, os autores impugnaram a resposta ao quesito 1º, sustentando que deveria obter a resposta de provado.
E a Relação, a tal propósito, ponderou (tendo já em conta a aludida certidão):
Os autores/recorrentes na petição inicial limitaram-se a invocar serem donos do prédio que se encontra identificado na alínea L) dos factos assentes, não alegando, nesse sentido, quaisquer outros factos.
Apoiam-se, para prova da referida propriedade, na certidão judicial junta aos autos, da qual decorre que o prédio aqui em questão foi transmitido à autora BB, na sequência de partilha efectuada no âmbito do proc. de inventário facultativo n.º 664/1981 do 4º Juízo Cível do Porto – 3ª secção, aberto por óbito dos seus pais.
A autora teria, assim, adquirido a propriedade do imóvel dos autos por sucessão “mortis causa”.
Ora, se a aquisição da propriedade é originária (como acontece na usucapião) o autor apenas terá que provar os factos de que emerge esse direito. Mas, inversamente, se a aquisição é derivada, como sucede no caso “sub judice”, não basta ao autor provar a existência do acto translativo do direito (compra e venda/adjudicação do imóvel em inventário, por ex.), tendo também que provar a aquisição originária do domínio por parte dos antecessores.
É que a aquisição derivada não é constitutiva do direito de propriedade, mas tão somente translativa desse direito.
Como tal, os autores, que não beneficiam da presunção a que se refere o art. 7 do Cód. do Registo Predial, a qual faria inverter o respectivo ónus da prova, por força do disposto no art. 344 n.º 1 do Cód. Civil, uma vez que o imóvel dos autos não se encontra registado em seu nome, sempre teriam que alegar e provar que o direito de propriedade já existia na esfera do transmitente, carreando para os autos, na petição inicial, matéria factual da qual resultasse a aquisição originária por parte dos seus antecessores.
Não o fizeram, de tal modo que da base instrutória não consta qualquer facto relacionado com a dita aquisição originária.
A junção da certidão atrás referida, extraída de um processo de inventário, só teria os efeitos pretendidos pelos autores, como prova da aquisição derivada, se essa junção fosse acompanhada pela alegação de factos integrativos da aquisição originária.
Deste modo, tal certidão mostra-se irrelevante, como irrelevante se mostra o depoimento prestado pela testemunha Ramiro Dias quanto à posse dos autores sobre o imóvel, até porque nenhum facto relativo a essa posse consta da base instrutória.
Consequentemente, concluindo-se que não basta aos autores, no presente caso, para provar a sua propriedade sobre o imóvel dos autos, fazer a prova da verificação do acto translativo desse direito, antes se exigindo a alegação e a prova da aquisição originária do domínio por parte dos seus antecessores, está condenado ao insucesso o seu recurso neste segmento.

[Sobre esta questão, os autores nas suas alegações, subsidiariamente, referiram também que, se a não alegação de factos integrativos de aquisição originária constituía irregularidade, haveria que ter sido proferido despacho vinculado nos termos do art. 508 n.º 2 do Cód. do Proc. Civil, o que não ocorreu.
Diz-se neste preceito que «o juiz convidará as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou a correcção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.»
Porém, a norma que realmente se ajusta à situação alegada pelos autores, será não este n.º 2, mas sim o n.º 3 do mesmo art. 508, onde se estabelece que «pode ainda o juiz convidar qualquer das partes a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação do articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.»
Centrando-nos então neste n.º 3, o que decorre, tanto da letra da lei – “pode o juiz” – como dos princípios gerais subjacentes ao processo civil, é que o preceito legal acima referido contem um dever não vinculado ou uma mera faculdade.
Ou seja, o legislador concede ao juiz a faculdade de, no âmbito dos seus poderes discricionários, sanar a falta de articulação de factos relevantes para a decisão, faculdade essa que o juiz poderá utilizar ou não, dentro do seu prudente arbítrio.
Sobre esta matéria escreveu-se no Acórdão da Relação do Porto de 7.12.2006 (p. 0636576, in www.dgsi.pt) que o art. 508 do Cód. do Proc. Civil “constitui um exemplo paradigmático de que na actual lei adjectiva civil se procurou colocar o acento tónico na supremacia do direito substantivo sobre o processual, nos princípios da cooperação e da descoberta da verdade material e justa composição do litígio, designadamente despindo-se esse princípio da cooperação dos seus anteriores rigores formais. ... Porém, isso não significa que existe uma imposição ou obrigação, antes se trata de despacho que o juiz proferirá no seu prudente critério, não vinculado, portanto. E daí, também, que a sua omissão não gera qualquer nulidade processual e não é sindicável por via recursiva”.
Por conseguinte, o juiz não estava obrigado a proferir despacho-convite ao aperfeiçoamento nos termos do art. 508 do Cód. do Proc. Civil, pelo que, igualmente neste segmento subsidiário, improcedem as alegações da recorrente.]
Os recorrentes, no recurso para este Supremo Tribunal, afrontam, desde logo, a consideração, acima expressa, da sentença da 1ª instância, de que se limitaram a juntar certidão de habilitação notarial, apelando para a natureza do documento, acima mencionado, que juntaram antes do julgamento.
E, nesta parte, é evidente que lhes assiste razão, pois é patente o erro da asserção constante da aludida sentença.
Mas eles vão mais longe, questionando também o entendimento da Relação, que considerou insuficiente, para prova do invocado direito de propriedade, a certidão extraída do inventário – que apenas prova a aquisição derivada – sendo ainda necessário que tivessem provado a aquisição originária do domínio por parte dos seus antecessores.
E fazem-no, sustentando que, ao contrário do que refere a Relação, provaram não só a aquisição derivada, como também a aquisição originária do domínio por parte do antecessor. É que, a seu ver, aquela aludida certidão prova não só que o prédio em causa foi, no inventário, adjudicado à autora, como também que, para tal, já se encontrava registado em nome do antecessor, o inventariado.
É seguro, porém, que – quanto à prova da aquisição originária por parte do antecessor – lhes falece razão. A certidão extraída do inventário não tem essa eficácia probatória: dela não consta que o prédio se achava registado em nome do inventariado.
Não obstante, afigura-se-nos que a decisão da Relação, no ponto em apreço, não pode sufragar-se.
Repare-se que a exigência da prova da aquisição originária para a afirmação da titularidade do direito de propriedade é feita no âmbito das acções reais, particularmente da acção de reivindicação (a acção real por excelência), em que o reconhecimento do direito de propriedade do autor constitui o próprio objecto da acção, que outro não é que o próprio pedido (art. 1311º/1 do CC).
O direito de propriedade na acção de reivindicação surge, pois, não como causa de pedir, mas como objecto da acção, como efeito jurídico que com a acção se pretende obter.
A causa de pedir, nas acções reais, é o facto jurídico de que deriva o direito real (art. 498º/4 do CPC). Daí que, para ser reconhecido ao autor, numa acção de reivindicação, o direito de propriedade, há-de este alegar e provar factos susceptíveis de gerar esse direito, segundo a ordem jurídica constituída; são esses factos, postos em contacto com a ordem jurídica, que constituem a causa de pedir, o fundamento ou fundamentos da acção (2) .
É, pois, para as acções reais – e, designadamente para a acção de reivindicação – que têm plena justificação as considerações acima transcritas, extractadas do acórdão recorrido.
Assim, se o autor invoca como título do seu direito uma forma de aquisição originária da propriedade, v.g., a usucapião ou a acessão, apenas precisa de provar o facto de que emerge o seu direito. Já se a aquisição é derivada, não lhe basta provar a concreta forma de aquisição verificada, v.g,, que comprou a coisa ou que esta lhe foi doada, pois que nem a compra e venda nem a doação são constitutivas do direito de propriedade, mas apenas translativas desse direito, sendo preciso, pois, provar que o direito já existia no transmitente (3).
Para a aquisição derivada vale o princípio nemo plus juris ad alium transferre potest quam ipse habet, o que tem como consequência que o título de aquisição não basta para provar que ao adquirente pertence um direito real que possa valer contra qualquer possuidor ou detentor, apenas provando que para aquele passaram os direitos que pertenciam ao alienante, se acaso algum lhe pertencia.
Mas, no caso em análise não estamos perante uma acção real, nem está em causa a reivindicação do direito de propriedade sobre o prédio identificado nos autos: não é este o thema decidendum.
Do que se trata é de uma mera acção de indemnização, fundada em responsabilidade civil por factos ilícitos, em que os autores reclamam indemnização por danos patrimoniais causados em prédio de que se arrogam donos, por sucessão mortis causa, e onde habitam.
O acto da partilha torna os respectivos beneficiários sucessores únicos na posse do de cujus. Feita a partilha – dispõe o art. 2119º do CC – cada um dos herdeiros é considerado, desde a abertura da herança, sucessor único dos bens que lhe foram atribuídos.
Por isso, mesmo aceitando que a partilha tem natureza meramente declarativa, entendemos que, no caso concreto, tendo em conta a natureza da acção, em que o invocado direito de propriedade dos autores sobre o prédio de quo agitur apenas integra a causa de pedir – é, tão só, um dos fundamentos do pedido, e não o próprio objecto da acção – mais lhes não é exigível, para prova de que são donos do dito prédio e, ipso facto, titulares do direito à indemnização por danos nele ilicitamente causados pelos réus (ou algum deles), do que a prova documental de que este lhes foi adjudicado em partilha judicial, homologada por sentença transitada em julgado. Repare-se que a impugnação do direito de propriedade dos autores, apenas deduzida pela ré T..., não se traduziu na negação da existência do direito na esfera patrimonial daqueles, nem na afirmação de que tal direito pertencia a outrem, mas, como já se deixou referido, tão só na alegação do desconhecimento (sem obrigação de conhecer) sobre a realidade ou veracidade da respectiva alegação dos demandantes.
Vale, então, concluir que, para os efeitos da presente acção, os autores, com a junção aos autos da certidão a que vimos aludindo, fizeram prova suficiente de que são os donos do prédio onde ocorreram os danos cujo ressarcimento reclamam, não sendo razoável exigir-lhes a probatio diabolica de que falam alguns tratadistas.
E, com dizer-se isto, perde interesse a análise da questão de saber se resultou violado – e, em caso afirmativo, quais as consequências dessa violação – o dever de cooperação do tribunal, isto é, o dever de informar os demandantes das deficiências ou insuficiências da sua petição inicial e de os convidar a supri-las (questão que, aliás, a Relação abordou proficientemente, nos termos acima transcritos).

3.2. Afirma-se na sentença da 1ª instância que, indemonstrada a propriedade dos autores sobre o prédio em causa, tal bastaria para a improcedência total da presente demanda (4).
Não obstante, o Ex.mo Juiz não se quedou por aí, e avançou na “averiguação da existência dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por parte das rés demandadas.”
Nessa tarefa, veio a concluir pela inverificação do requisito da ilicitude (5) , reputando ainda igualmente não demonstrado pelos autores (sobre quem recaía o respectivo ónus probatório) o nexo de causalidade entre as explosões e os apontados danos, e salientando, por fim, que não resultou provada a matéria do quesito 19º (custo da reparação dos danos no imóvel), nem a do quesito 20º (respeitante à desvalorização do referido imóvel).
Por seu turno, a Relação entendeu que a actividade que está em causa – uso de explosivos para o rebentamento de rochas – deve ser, pela natureza dos meios utilizados, definida como actividade perigosa, o que faz com que exista presunção legal de culpa a incidir sobre a ré K... DE PORTUGAL. Mas logo acrescentou que, num momento anterior ao do funcionamento desta presunção de culpa, sempre os autores/recorrentes teriam de provar a existência de danos no imóvel e o nexo de causalidade entre o facto lesivo e esses danos, sendo que, se é certo que se verificaram danos no prédio, menos certo não é que ficou por provar o nexo de causalidade entre esses danos e as explosões ocorridas.
E, de seguida, concluiu:
Por conseguinte, apesar de existir presunção legal de culpa em virtude da natureza perigosa da actividade desenvolvida pela ré “Koch de Portugal”, não poderá esta vir a ser condenada em indemnização por danos verificados no imóvel identificado nos autos, por não se ter demonstrado a existência do nexo de causalidade entre os danos e as explosões.
Os recorrentes discordam deste entendimento, sustentando que
- estão provados factos dos quais decorre a existência de “conexão segura” entre os rebentamentos com explosivos e os danos que vieram a produzir-se no seu prédio;
- essa conexão foi reconhecida em três outros processos que, com a mesma causa de pedir, correram termos no mesmo tribunal.
Como é evidente, este segundo argumento é totalmente destituído de valor.
O que se decidiu noutros processos semelhantes – e, para mais, em matéria de facto – não tem valimento na presente acção. Nem a circunstância de todas essas acções assentarem em factos idênticos aos que constituem a causa de pedir na presente acção significa sequer que se tenha provado, naquelas e nesta, uma identidade fáctica que impusesse uma mesma valoração jurídica.
Quanto ao primeiro argumento:
Entendeu a Relação que, embora se tenha dado como assente que após as explosões surgiram danos no prédio – fissuras nas paredes e fissuras nas telhas do beiral – não existe matéria fáctica donde resulte terem sido as explosões a causa desses danos, sendo certo que o respectivo ónus de alegação e prova cabia aos autores.
E, por isso, concluiu como acima se deixou relevado.
Constitui jurisprudência pacífica deste Tribunal a de que o estabelecimento ou a determinação do nexo de causalidade naturalística entre o facto e o dano constitui matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, que o Supremo, enquanto tribunal de revista, não pode sindicar.
A conclusão avançada pela Relação não pode, pois, aqui e agora, ser contrariada.
E, porque assim é, claudica o recurso dos autores quanto a esta questão nuclear, o que, significando que queda indemonstrado um dos pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, enunciados no art. 483º do CC, arreda o direito dos recorrentes à peticionada indemnização por danos patrimoniais (danos no prédio), cujo alegado valor, aliás, também não resultou provado.
Tal significa que as demais questões suscitadas pelos recorrentes, com relação com estes danos – maxime, a pretendida responsabilização, por eles, da ré K... DE PORTUGAL – ficam prejudicadas pela decisão dada à questão que vimos de analisar.

3.3. Resta a questão dos danos não patrimoniais.
Na verdade, os autores pretendem ser indemnizados pelos incómodos, mal-estar físico e psíquico, ansiedade e intranquilidade que dizem ter suportado durante sete meses, e decorrentes das fortes explosões ocorridas nas imediações da sua habitação.
Esta pretensão foi rejeitada pelas instâncias.
No acórdão recorrido ponderou-se, a propósito, que os factos dados como assentes, pelo seu carácter genérico, não permitem a atribuição de indemnização por danos não patrimoniais. Não obstante ter ficado provado que os autores, por causa das explosões, viveram com intranquilidade e ansiedade e sofreram ausência de bem-estar físico e psíquico, tal não passa de afirmações vagas e genéricas, das quais não resulta concretamente em que se traduziram aqueles estados de ansiedade, de intranquilidade, e de falta de bem-estar. E isso, as concretas consequências desses estados, algo abstractos, é que importaria apurar, determinando-se, por exemplo, se ocorreram insónias, depressões, cefaleias, e se, por esse motivo, houve acompanhamento médico e toma de medicamentos.
Que dizer?
Decorre do disposto no n.º 1 do art. 496º do CC a reparabilidade dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito. Nem todos os danos não patrimoniais são ressarcíveis: só aqueles que sejam suficientemente graves para justificar a tutela do direito.
Como se refere em acórdão deste Tribunal (7) , a gravidade do dano é um conceito relativamente indeterminado, carecido de preenchimento valorativo a fazer caso a caso, de acordo com a realidade fáctica apurada. Todavia, e como refere Antunes Varela (8), não obstante dever essa apreciação ter em conta as circunstâncias de cada caso, a gravidade deverá medir-se por um padrão objectivo, e não de acordo com factores subjectivos, ligados a uma sensibilidade particularmente aguçada ou especialmente fria e embotada do lesado; e, por outro lado, deverá ser apreciada em função da tutela do direito: o dano deve ser de tal modo grave que justifique a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado.
No caso em apreço, vem provado que na execução das obras de construção de uma Central E... a G... N..., no lugar de Broalhos, Medas, Gondomar, foram efectuados trabalhos de desmonte de pedra com recurso a explosivos.
Os autores vivem numa casa situada a cerca de 350 metros dos terrenos onde foi iniciada a construção da Central.
Para a implantação da construção foram levados a cabo rebentamentos de rocha com explosivos – rebentamentos que decorreram desde Março a Setembro de 1995.
Os autores foram surpreendidos com as explosões, pois nenhuma das rés ou outras entidades os avisaram de que elas iriam ter lugar, com a frequência e potência usadas.
As explosões eram fortes, e decorriam durante a semana, em número de três e, por vezes, quatro, por dia.
Pelo seu ruído provocavam sustos; e causavam vibrações.
Durante os sete meses que duraram as explosões os autores viveram no prédio com intranquilidade e ansiedade.
Os autores sentiram-se intranquilos e sofreram a ausência de bem-estar físico e psíquico por causa das explosões.
Perante este cenário de facto, parece-nos irrecusável a conclusão de que estamos perante danos concretos – e não, como defende a Relação, diante de meras afirmações que, pelo seu carácter vago e genérico, não traduzem ou não concretizam malefícios que os autores hajam suportado.
Embora a limitação legal (“danos ... que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”) deixe logo transparecer o rigor com que devem ser seleccionados os danos não patrimoniais indemnizáveis, cremos que as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida, apontam aqui, claramente, para a afirmação de que a realidade fáctica apurada configura a existência (real, concreta) de danos não patrimoniais sofridos pelos autores, ora recorrentes, e de que tais danos, pela sua gravidade objectiva, se ajustam ao rigor limitativo da lei – é dizer, do n.º 1 do art. 496º do CC.
Como não valorar nesse sentido a falta de sossego e de tranquilidade, a ansiedade, a ausência de bem-estar físico e psíquico, produzidas em quem tem de suportar, ao longo de sete meses (!), o ruído e as vibrações de fortes explosões provocadas por rebentamentos de rocha com explosivos, três ou quatro vezes por dia, e com “epicentro” a escassas centenas de metros da residência dos autores?

Mas, terão os autores direito a indemnização?
Em sede de responsabilidade civil extracontratual, cabe ao lesado provar a culpa do autor da lesão. A culpa do lesante é um dos pressupostos da obrigação de indemnizar (art. 483º/1 CC), e a sua prova recai, naturalmente, sobre quem invoca o correspondente direito.
Mas a esta regra escapam os casos em que a lei estabelece uma presunção legal de culpa: a presunção tem como efeito a inversão do ónus da prova (art. 344º/1 CC), o que tem como consequência que, havendo presunção legal, passa a recair sobre o autor do dano a prova de que não teve culpa na produção do evento danoso, só assim se eximindo à responsabilidade.
Um dos casos em que a lei estabelece uma presunção de culpa é o do art. 493º/2 do CC:
Quem causar dano a outrem no exercício de uma actividade, perigosa pela sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir (destaque de nossa autoria).
A doutrina e a jurisprudência qualificam como «actividade perigosa» aquela que, mercê da sua natureza ou da natureza dos meios utilizados, cria para os terceiros um estado de perigo, isto é, a possibilidade ou, ainda mais, a probabilidade de receber dano, uma probabilidade maior do que a normal derivada das outras actividades.
E o emprego de explosivos em rebentamentos de rocha é, claramente, pelos meios utilizados, uma actividade perigosa, como bem o entendeu a Relação.
Sendo assim, o lesante só poderá exonerar-se da responsabilidade pelos danos verificados desde que prove que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para evitar tais danos.
Estará, no caso, ilidida a presunção de culpa estabelecida no normativo acima transcrito?
Acha-se provado, a este respeito, que
- antes da realização de qualquer explosão, as empresas responsáveis pela mesma emitiam avisos sonoros (Resposta ao n.º 27 da base instrutória).
- as sessões de rebentamento efectuadas pela “Adriano” foram realizadas mediante um plano de segurança, avisos sonoros prévios, isolamento da área e um plano de rebentamento (Resposta ao n.º 33 da base instrutória);
- cada rebentamento foi feito segundo o método de micro-retardamento (Resposta ao n.º 35 da base instrutória);
- pelo menos a maioria dos rebentamentos realizados pela “Somec”, foram sujeitos a medições de ruído e de impacto (Resposta ao n.º 36 da base instrutória).
Deste factos decorre que a entidade responsável pelos rebentamentos não foi indiferente à perigosidade de tal actividade: tomou (algumas) medidas para evitar que dela resultassem danos.
Mas, estando provados danos, cabe perguntar se tomou todas as providências exigidas pelas circunstâncias.
O art. 493º/2 do CC constitui cópia quase literal do art. 2050º do Código Civil italiano (8) .
E, segundo informa VAZ SERRA (9) , o entendimento da doutrina italiana vai no sentido de que no exercício de uma actividade perigosa, o sujeito deve agir tendo em conta o perigo para os terceiros, sendo insuficiente a observância dos deveres inerentes à normal diligência, pois onde a periculosidade está ínsita na acção há o dever de proceder tendo em conta o perigo; o dever de evitar o dano torna-se, pois, mais rigoroso quando se actua com a nítida previsão da sua possibilidade, pelo que o sujeito deve adoptar, mesmo que com sacrifícios, todas as medidas aptas para evitar o dano. Quais devam ser essas medidas, di-lo-ão as particulares normas técnicas ou legislativas, inerentes às especiais actividades, ou as regras da experiência comum; certo é que as lesões evitáveis devem ser ressarcidas, só sendo excluída a responsabilidade relativamente às lesões absolutamente inevitáveis.
Adoptando-se este entendimento, afigura-se-nos que não resulta provado que tenham sido adoptadas, no caso em apreço, todas as providências, exigidas pelas circunstâncias, para evitar o dano sofrido pelos autores.
Estando em causa danos não patrimoniais produzidos pelo ruído das explosões e pelas vibrações que estas causavam, importava, além do mais, provar não só que todos os rebentamentos realizados foram sujeitos a medições de ruído e de impacto, como ainda que todos eles, no que concerne à sua intensidade, se contiveram dentro dos limites estabelecidos na lei.
Ora, sendo certo que os ditos rebentamentos foram efectuados por duas entidades, (contratadas pela responsável pela execução dos trabalhos), a “Sociedade de E... A..., S.A.” e a “SOMEC”, o que vem provado é que apenas os rebentamentos realizados pela segunda foram sujeitos a medições de ruído e de impacto (e não todos), não havendo igual prova relativamente aos efectuados pela “A..., S.A.”. E, nem sequer resultou provado, quanto aos que foram sujeitos a tais medições, que eles “jamais ultrapassaram o limite legal”: o quesito 37º, onde se continha esta matéria, recebeu a resposta de não provado.
Daqui decorre que a ré K... DE PORTUGAL, empresa responsável [dentro do consórcio aludido no n.º 3) dos factos provados] pelo desenvolvimento dos trabalhos de construção civil necessários à instalação da central termoeléctrica, que contratou as empresas especializadas em construção civil que efectuaram os rebentamentos, e que fiscalizava as operações de detonação efectuadas [n.os 4) a 8) e 34) dos factos provados] não ilidiu a presunção de culpa sobre ela incidente, pois não logrou provar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para evitar os danos, acima identificados, sofridos pelos autores/recorrentes. É, por isso, responsável pela reparação desses danos.
O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado, em qualquer caso, segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, e às demais circunstâncias do caso (entre as quais se contam, seguramente, a natureza da ofensa sofrida e os respectivos sofrimentos, físicos e psíquicos), devendo ainda ter-se em conta, na sua fixação, os padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência, as flutuações do valor da moeda, etc.(10) (art. 496º/3 CC).
Tendo em conta estes critérios, e sem perder de vista que, nestes casos, a indemnização não visa propriamente ressarcir, tornar indemne o lesado, mas oferecer-lhe uma compensação que contrabalance o mal sofrido, afigura-se-nos que o montante indemnizatório reclamado pelos recorrentes – € 2.493,98, que arredondaremos para € 2.500,00 – representa, numa ponderação actualizada (art. 566º/2 CC) do valor do dano não patrimonial em causa, um justo grau de “compensação”.
O que vale dizer que deve ser este o quantum indemnizatório a suportar pela ré K... DE PORTUGAL, sendo os juros moratórios apenas devidos a partir da data deste acórdão.

4.

Nos termos expostos, concede-se em parte a revista, revogando-se parcialmente, nos termos sobreditos, o acórdão recorrido, e condenando-se a ré K... DE PORTUGAL – Serviços de E... e C... I..., L.da a pagar aos autores, como indemnização pelos danos não patrimoniais por estes sofridos, o montante de € 2.500,00 (dois mil e quinhentos euros), com juros de mora desde a data do presente acórdão.
Custas, aqui e nas instâncias, pelos autores/recorrentes e pela recorrida K..., na proporção do vencido.

Lisboa, 12 de Março de 2009

Santos Bernardino (Relator)
Bettencourt de Faria
Pereira da Silva

__________________________________________
1- Os autores limitaram-se a alegar (n.º 1 da p.i.): Os autores são donos e legítimos possuidores (proprietários) de um prédio urbano constituído por casa de habitação e lavoura, de dois pavimentos e uma dependência para arrecadação, com quintal e pátio, sito na Travessa do ...., lugar de B..., M..., Gondomar. Doc. 1 e Doc. 2. O doc. 1 é uma mera fotocópia da caderneta predial urbana respeitante ao dito prédio, dela constando o nome do autor como Titular do rendimento; o doc. 2 é uma fotocópia de certidão da 1ª Rep. de Finanças do concelho de Gondomar, de 27.11.97, certificando que nessa data e por aquela Rep. de Finanças, não se encontraram quaisquer dívidas dos autores ao Estado, com referência aos últimos cinco anos.
2- Neste sentido, o Ac. do STJ de 29.04.92, no BMJ 416/595.
3- Cfr. P. LIMA/A. VARELA, Cód. Civil Anotado, vol. III, 1972, pág. 102
4- Tal afirmação é errada, e não resiste a uma análise, mesmo que perfunctória, do objecto de acção, na qual os autores reclamam também indemnização por danos não patrimoniais, para cuja verificação a propriedade do prédio é totalmente irrelevante.
5- Mas, também aqui não ponderou o pedido de indemnização por danos não patrimoniais, assente na violação de direitos – o direito à saúde, o direito ao bem estar – de outrem.
6- Ac. de 30.09.2003, na rev. 1949/03, da 6ª Secção.
7- Das Obrigações em Geral, 7ª ed., vol. I, pág. 600.
8- Esta norma tem como epígrafe Responsabilità per l’esercizio di attività pericolose, e tem a seguinte redacção: Chiunque cagiona danno ad altri nello svolgimento di un’attività pericolosa, per sua natura o per la natura dei mezzi adoperati, è tenuto al risarcimento, se non prova di avere adottato tutte le misure idonee a evitare il danno
9- Responsabilidade Civil, Separata do BMJ n.º 85, pág. 368.
10- A. VARELA, ob., vol. e ed.. cits., pág. 601.