Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7412/08.0TBCSC.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: PIRES DA ROSA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
CONCLUSÕES
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO SE CONHECENDO RECURSO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
- Miguel Teixeira de Sousa, in Reflexões sobre a Reforma dos Recursos em Processo Civil (www.scribd.com/doc2186804), e Dupla Conforme: Critério e âmbito da Conformidade» em Cadernos de Direito Privado, n.º 21, p. 24.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC) / 2013: - ARTIGOS 635.º, 639.º, 671.º, N.º3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 10-05-2012, REVISTA Nº645/08.0TBALB.C1.S1;
-DE 04-12-2012, REVISTA N.º714/09.0TVLSB.L1.S1.
Sumário :
I - A aparente simplicidade do art. 671.º, n.º 3, do NCPC (2013), não deixa de exigir algum esforço interpretativo, a fim de integrar correctamente algumas situações, evitando a afirmação de uma desconformidade ou de uma conformidade aferidas, apenas e tão só, por um critério formal de coincidência ou não do conteúdo decisório.

II - Aquilo que se pretendeu com o sistema da dupla conforme mais não foi do que racionalizar o acesso ao STJ, numa altura em que os números demonstravam que existia um percurso típico de interposição de recurso para a Relação, seguindo de revista para o STJ.

III - Uma visão estritamente formalista, da letra da lei e da sua concatenação com o processo, levar-nos-ia à afirmação de que a confirmação não poderia nunca coexistir com alteração, razão pela qual – verificando-se esta – nunca se estaria perante uma situação de dupla conforme.

IV - Contudo, não existe qualquer racionalidade em não permitir o recurso numa situação de confirmação total da decisão recorrida (que para todos os efeitos equivale a uma improcedência do recurso), mas já o permitir numa confirmação parcial – ainda que formal – em que a parte recorrida é exactamente aquela que confirmou, e não o segmento desconforme.

V - Se, relativamente ao segmento que foi objecto de recurso, respectivamente, por banda da autora e do réu, existe uma dupla conformidade entre as decisões das instâncias, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diversa, sem que tenha a autora levado ao objecto do recurso a absolvição de um réu, levada a cabo pela Relação – que constitui o único segmento desconforme do acórdão da Relação com a sentença da 1.ª instância –, não pode deixar de entender-se que não é admissível o recurso de revista normal.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:



ASSOCIAÇÃO DE BENEFICIÊNCIA E SOCORROS MUTUOS “AA”

intentou, no Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Cascais, contra

BB,

CC

DD

EE

FF

GG, LDA

HH

acção ordinária, que recebeu o nº 7412/08.0TBCSC, peticionando a condenação dos réus, solidariamente, no pagamento de uma indemnização, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, que computou em 180 000,00 euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da data da prática dos factos e a incidir sobre o valor que se apurar relativamente aos danos.

Em resumo, alegou:

o 1.º réu, no exercício do cargo de presidente da Direcção da Autora locupletou-se, à custa desta, por diversos meios (que enumera);

a 2.ª ré era casada com o 1.º réu no regime de comunhão de adquiridos e teve benefícios com a actuação deste;

a 3.ª ré era tesoureira da autora, sabia destes factos;

o 4.º réu era titular de metade do capital social da sociedade Intercepção, tendo participado nos factos, nomeadamente na emissão de facturas;

o 5.º réu era director financeiro e também sabia o que se sucedia;

a 6.ª ré elaborava a contabilidade da autora;

o 7.º réu era o técnico oficial de contas.

Devidamente citados (cf. respectivamente fls. 358, 357, 356, 355, 352, 354 e 353) vieram os réus contestar invocando a ilegitimidade passiva dos réus HH, GG e CC, e a ineptidão da petição inicial, terminando requerendo a improcedência do pedido e a condenação da autora como litigante de má fé.

A fls. 354 veio a Autora apresentar réplica, na qual formulou uma ampliação do pedido na qual requereu a condenação dos réus «em todas as multas e coimas que tenha de suportar, resultantes do rombo na sua tesouraria».

Os réus responderam e, a fls. 418, requereram a suspensão da instância em virtude de pendência de questão prejudicial, consubstanciada no inquérito criminal.

Houve lugar a audiência preliminar, na qual se proferiu despacho saneador em que, concluindo-se pela improcedência das excepções invocadas, se seleccionou a matéria de facto assente e se fixou a base instrutória da causa.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, com respostas nos termos de fls. 1908 e seguintes, foi proferida a sentença de fls. 1974 e segs. que julgou a acção parcialmente procedente por parcialmente provada e, em consequência:

condenou os 1.º e 4.º réus, BB e EE a pagar à autora ASSOCIAÇÃO DE BENEFICÊNCIA E SOCORROS MÚTUOS AA, solidariamente, várias quantias (que discrimina), acrescidas de juros;

condenou o 1.º Réu, BB, e só ele, a pagar à Autora outras quantias (igualmente discriminadas) e juros;

condenou o 1.º Réu, BB, a pagar à Autora, ainda uma outra quantia e juros;

absolveu os 1.º e 4° Réus, BB e EE do demais peticionado;

absolveu do pedido os 2.°, 3.°, 5.°, 6.° e 7.° Réus, CC, DD, FF, GG e HH.

Inconformados, interpuseram recurso de apelação o Autor e o 1.º e 4.º réus.

Por acórdão de fls. 2516 a 2548 o Tribunal da Relação de Lisboa, na improcedência das apelações da autora e do 1.º réu e na procedência da apelação do 4.º réu, revogou a sentença apelada na parte em que condenou o réu EE, o 4º réu, solidariamente com o réu BB, a pagar à Autora as quantias referidas na alínea A) da parte decisória daquela sentença, absolvendo-o do pedido contra si formulado.

Ainda inconformada, mais uma vez, a Autora/apelante pede, agora, revista para este Supremo Tribunal.

Os réus não contra – alegam.

Cumpridos os vistos …

 as decisões de 1.ª instância e da Relação, como se pode ver, divergiram apenas num ponto:

enquanto a sentença de 1.ª instância, relativamente a parte do pedido, condenou solidariamente o 1.º e o 4.º réus, o Acórdão da Relação, por seu turno, revogou a condenação deste 4.º Réu, absolvendo-o do pedido na totalidade, confirmando no demais aquela decisão.

Assim, relativamente ao recurso de apelação interposto pela Autora – cujo objecto se cingia à condenação solidária de todos os réus (e não só e apenas do 1.º e 4.º réus) – a mesma viu o mesmo ser julgado improcedente e a decisão de absolvição do pedido dos restantes réus confirmada na Relação.

Relativamente ao recurso de apelação interposto pelo réu BB – e cujo objecto se cingia à reapreciação da matéria de facto e à sua condenação – o mesmo viu-o julgado improcedente e a decisão da sua condenação no pagamento das quantias, ali melhor discriminadas, confirmada.

Por último, e relativamente ao recurso de apelação interposto pelo 4.º réu, o mesmo mereceu provimento e, em consequência, foi a sentença da 1.ª instância – nesta parte – revogada, absolvendo-se este mesmo réu de todo o pedido contra ele dirigido pela Autora.

No mais, repete-se, o Acórdão da Relação confirma – sem qualquer voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente – a decisão de 1.ª instância, respeitante aos seguintes pontos:

- improcedência da acção no que tange à condenação solidária dos restantes 2.º, 3.ª, 5.ª, 6.º e 7.º réus no pedido;

- procedência parcial da acção no que tange à condenação do 1.º réu BB.

Dito isto,

aos autos é já aplicável o regime dos recursos constante do NCPCivil, aprovado pela Lei 41/2013, de 26-06, posto que a acção é posterior a 1 de Janeiro de 2008 e o acórdão da Relação, o acórdão recorrido, é posterior a 1 de Setembro de 2013.

Assente está, assim, a aplicação aos presentes autos do regime dos recursos resultante do NCPCivil, na sua mais ampla dimensão.

E, no âmbito do regime recursivo aplicável, dispõe o art.671.º, n.º3 que sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.

Manteve-se assim a consagração do conceito de dupla conforme, introduzida na reforma do regime dos recursos em 2007, importando, por isso, clarificar o conceito de dupla conforme a que alude o referido n.º 3, posto que – como assinala Miguel Teixeira de Sousa, in Reflexões sobre a Reforma dos Recursos em Processo Civil (www.scribd.com/doc2186804), e Dupla Conforme: Critério e âmbito da Conformidade» em Cadernos de Direito Privado, n.º 21, pág. 24 – a aparente simplicidade do preceito não deixa de exigir algum esforço interpretativo, a fim de integrar correctamente algumas situações, evitando a afirmação de uma desconformidade ou de uma conformidade aferidas, apenas e tão só, por um critério puramente formal de coincidência ou não do conteúdo decisório da sentença.

Aquilo que se pretendeu com o sistema da dupla conforme mais não foi do que racionalizar o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, numa altura em que os números demonstravam que existia um percurso típico de interposição de recurso para a Relação, seguido de Revista para o STJ.

Assim, entendeu o legislador que, fora das excepções que previu então no art.721.º-A do CPCivil, não se justificava o recurso para o STJ sempre que o acórdão da Relação confirmasse de forma inequívoca a decisão de 1.ª instância.

Uma visão estritamente formalista, da letra da lei e da sua concatenação com o processo, levar-nos-ia à afirmação de que a confirmação não poderia nunca coexistir com alteração, razão pela qual – verificando-se esta – nunca se estaria perante uma situação de dupla conforme.

E o facto é que, descendo ao concreto dos presentes autos, o Acórdão da Relação não confirmou, em absoluto, a decisão da primeira instância: ele revogou a decisão da primeira instância na parte em que esta havia condenado solidariamente – em parte do pedido – o 4.º Réu (conjuntamente com o 1.º).

Mas se é um facto que neste concreto aspecto o acórdão da Relação não confirmou a decisão da primeira instância, não deixa porém de ser inequívoco que esse mesmo acórdão confirma – na improcedência dos dois outros recursos de apelação interpostos – dois segmentos da decisão de 1.ª instância:

- a absolvição do pedido dos 2.º, 3.º, 5.ª, 6.ª e 7.ª Réus;

- a condenação (parcial) no pedido do 1.º Réu.

Relativamente a estes dois segmentos, que foram objecto de recurso, respectivamente, por banda da autora e do 1.º réu, existe uma dupla conformidade entre as decisões das instâncias, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente.

Vejamos agora o objecto do recurso.

Como se sabe, é jurisprudência uniforme, e princípio do regime recursivo em processo civil, constituírem as conclusões da alegação do recorrente, as balizas delimitadoras do objecto do recurso – arts.635.º e 639.º do NCPCivil, anteriores arts.684.°, n.º3, e 685.°-A, n.º1 –, pelo que não se pode conhecer de questões que a elas não sejam levadas, ainda que afloradas no corpo alegatório (neste sentido ver entre muitos outros Ac. do STJ de 04-12-2012, Revista n.º714/09.0TVLSB.L1.S1 - Gregório Silva Jesus).

Com efeito, o recurso é delimitado objectivamente pelas respectivas conclusões que, por sua vez, identificam e fazem o recorte das questões que deverão ser objecto de cognoscibilidade por parte do tribunal de recurso.

Neste recurso para o STJ as conclusões das alegações da Autora reproduzem, quase na íntegra, à excepção dos pontos 1., 2. e 3. , as conclusões das alegações apresentadas no recurso de apelação, recurso este em que a Autora pretendeu atacar a bondade da decisão de 1.ª instância que absolveu os 2.º, 3.º, 5.º, 6.º e 7.º réus.

Desconsiderando a questão – também jurisprudencialmente discutida – da reprodução das alegações e/ou conclusões – o facto é que, nas suas conclusões para o STJ, a autora/recorrente não dirige uma única conclusão à revogação que a Relação fez da decisão da 1.ª instância – na parte em que havia condenado solidariamente o 4.º réu, juntamente com o 1.º réu, em parte do pedido – e que determinou a absolvição do 4.º réu do pedido.

A autora não dirige uma única conclusão contra a absolvição do 4.º réu do pedido, absolvição essa levada a cabo pela Relação e que constitui o único segmento desconforme do acórdão da Relação com a sentença de 1.ª instância.

Ou seja, limitou a Autora as suas conclusões, e necessariamente o seu recurso – intencionalmente ou não, desconhece-se - à absolvição dos 2.º, 3.º, 5.º, 6.º e 7.º Réus do pedido, absolvição essa que não resultou ex novo do Acórdão da Relação, mas que vinha já da sentença de 1.ª instância e na qual há, repete-se, sem qualquer margem para dúvidas, dupla conformidade entre as decisões das instâncias.

E é nesta perspectiva – tendo como norte a decisão recorrida e o objecto do recurso tal como a recorrente o delimita – que temos de olhar para o n.º 3 do art.671.º do CPC, não podendo descurar, a este propósito, aquilo que consta do preâmbulo do DL n.º 303/2007 de 24-08, onde se refere “A presente reforma dos recursos cíveis é norteada por três objectivos fundamentais: simplificação, celeridade processual e racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça, acentuando-se as suas funções de orientação e uniformização de jurisprudência. (…).

Submetem-se claramente nesse desígnio de racionalização do acesso ao Supremo Tribunal de Justiça a revisão do valor da alçada da Relação para € 30 000, que é acompanhada da introdução da regra de fixação obrigatória do valor da causa pelo juiz e da regra da dupla conforme, pela qual se consagra a inadmissibilidade de recurso do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e ainda que por diferente fundamento, a decisão proferida na 1.ª instância.(…)”.

Com efeito, não existe qualquer racionalidade em não permitir o recurso numa situação de confirmação total da decisão recorrida (que para todos os efeitos equivale a uma improcedência do recurso), mas já o permitir numa confirmação parcial – ainda que formal – em que a parte recorrida é exactamente aquela que confirmou, e não o segmento desconforme.

Não podemos esquecer que os recursos existem para sindicar as sucumbências e não se antevê que lógica e racionalidade existam em não permitir o recurso num caso e já o permitir noutro, sendo que as decisões na parte de que se recorre são conformes, e apenas é desconforme na parte de que não se recorre.

E é exactamente essa a situação dos presentes autos, perspectivada sob o ponto de vista da recorrente/autora:

recorre da absolvição dos 2.º, 3.º, 5.º, 6.º e 7.º Réus … onde existe uma conformidade entre a decisão de 1.ª instância e da Relação;

onde a desconformidade existe – não obstante não lhe ser favorável – não a leva a autora ao objecto de recurso, posto que a ela não existe a mínima referência nas conclusões das alegações.

Como se refere no Acórdão deste STJ de 10-05-2012 (Revista nº645/08.0TBALB.C1.S1, Lopes do Rego) « (…) na verdade, o referido conceito de dupla conformidade tem de ser interpretado, não em termos empíricos de coincidência puramente numérica ou matemática dos valores pecuniários das condenações constantes das decisões já proferidas pelas instâncias, mas com apelo a um elemento normativo, funcionalmente adequado à actual fisionomia dos recursos e do acesso ao STJ ».

Não pode, assim, deixar de entender-se que não é admissível o presente recurso.


~~

D   E   C   I   S   à  O



Não se conhece do recurso, por inadmissibilidade do mesmo nos termos do art.671.º, n.º 3, do NCPCivil.

Custas pela recorrente.

LISBOA, 04 de Junho de 2015


Pires da Rosa (Relator)

Maria dos Prazeres Beleza

Salazar Casanova