Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99B087
Nº Convencional: JSTJ00036804
Relator: SIMÕES FREIRE
Descritores: CONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
BOA-FÉ
INTERPRETAÇÃO DA LEI
LEI APLICÁVEL
REVOGAÇÃO
RETROACTIVIDADE DA LEI
APLICAÇÃO DA LEI
JUSTO TÍTULO
PRAZOS
Nº do Documento: SJ19990422000872
Data do Acordão: 04/22/1999
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 1377/95
Data: 01/23/1997
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - TEORIA GERAL/DIR CONTRAT / DIR REAIS.
DIR CONST - DIR FUND.
Legislação Nacional: CCIV867 ARTIGO 476 ARTIGO 510 ARTIGO 511 ARTIGO 512 ARTIGO 513 ARTIGO 514 ARTIGO 515 ARTIGO 516 ARTIGO 517 ARTIGO 518 ARTIGO 2304 ARTIGO 2305 ARTIGO 2306 ARTIGO 2307 ARTIGO 2308.
CCIV66 ARTIGO 12 ARTIGO 204 N2 ARTIGO 1304 ARTIGO 1340 ARTIGO 1341.
CRP97 ARTIGO 8 ARTIGO 13.
L 54 DE 1913/06/16.
DL 47344 DE 1966/11/27.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1971/01/15 IN BMJ N203 PAG163.
ACÓRDÃO STJ DE 19974/07/12 IN BMJ N239 PAG186.
ACÓRDÃO STJ DE 1984/12/06 IN BMJ N342 PAG375.
ACÓRDÃO STJ DE 1993/01/14 IN BMJ N423 PAG397.
ACÓRDÃO STJ DE 1997/01/09 IN CJ STJ ANOV T1 PAG637.
ACÓRDÃO RE DE 1976/03/11 IN BMJ N257 PAG159.
ACÓRDÃO STJ DE 1990/01/30 PROC78654.
ACÓRDÃO STJ DE 1994/11/08 PROC82933.
Sumário : I - A questão do boa fé tem de equacionar-se em relação à época em que o facto foi praticado.
II - O regime do art. 1340 do C. Civ. é inovador e, como tal, insusceptível de aplicação retroactiva.
III - Sendo esse regime inovador quanto aos pressupostos da acessão, ele é inaplicável aos factos passados.
IV - A Lei 54, de 16-07-1913, encontra-se em vigor, não tendo sido revogada pelo art. 3 do DL 47344, de 27-11-66.
V - A Lei 54 não viola o princípio da igualdade, nem o disposto nos arts. 6 da CEDH e 8 da CRP.
VI - No segundo Código Civil de 1867 a boa fé exigia justo título; o C. Civ. actual estabeleceu requisitos diferentes para a boa fé.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA e BB demandaram o Município de Almada, em acção com processo ordinário, articulando, em síntese, que são proprietários do terreno e da casa nele construída, que identificam, direito que adquiriram por usucapião e por acessão industrial, que invocam, mas que por deliberação do Réu de 05-02-1988, foram ordenados o despejo sumário da casa e a demolição desta, concretizados com consequentes danos patrimoniais e não patrimoniais para eles, que especificam, para concluírem pedindo o reconhecimento do direito de propriedade sobre os referidos terreno e casa e a condenação do réu a não poder vender o espaço terraplanado (a par de outros pedidos formulados e para cujo conhecimento foi decidida, com trânsito em julgado, a incompetência em razão da matéria do tribunal comum - cfr. Ac. deste Supremo de 19-11-1991, a folhas 311/315.
O réu citado contestou para, na essência, alegar que o terreno em causa pertence ao seu domínio público, subtraído ao comércio privado e, por isso, insusceptível de aquisição por usucapião, e ainda contradizer factos articulados pelos autores.
Conclui pela improcedência da acção.
Os autores responderam, na réplica, à matéria de defesa por excepção deduzida na contestação, no sentido da improcedência da mesma. Ampliaram também o pedido de forma a que, na procedência da acção, se ordene o cancelamento do registo existente.
Em tréplica o réu opôs-se à ampliação do pedido.
Em despacho unitário saneou-se o processo, decidindo-se pela admissão da ampliação do pedido e condensou-se a matéria de facto.
No prosseguimento da acção foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente, declarando o autor AA dono da vivenda sita na Rua ... sob o art. 2987, da 3ª Repartição de Finanças de Almada, com condenação do réu a reconhecer esse direito, mas julgando-se, no mais improcedente, com absolvição do réu do pedido nessa parte.
A requerimento do réu a sentença foi aclarada no despacho de folhas 605, no sentido de que "os autores são donos da vivenda, mas não do terreno em que a mesma está implantada".
Os autores apelaram da sentença e agravaram do despacho de aclaração da sentença, recursos que foram admitidos, mas a Relação de Lisboa, por acórdão de 23-01-1997, a folhas 693/703, negando provimento à apelação e considerando prejudicada a matéria do agravo, confirmou a sentença recorrida.
Deste acórdão pediram revista os autores, alegando a visar a sua revogação ou anulação, concluíram:
Há duas decisões recorridas e, como tal, dois recursos, pelo que é inintigível a parte decisória do acórdão;
A condenação em custas sempre seria sem prejuízo do apoio judiciário concedido;
A reclamação de 10-07-1996 ainda está por decidir;
Por força do disposto no art. 710 n. 1 do CPC deve conhecer-se dos recursos - de agravo e de apelação - pela ordem da sua interposição e relativamente a casa recurso devia descriminar-se a matéria de facto considerada pelo tribunal a quo para aplicar o direito a decidir;
As conclusões dos recorrentes não foram analisadas, mas sim umas outras conclusões, que não se identificam com aquelas;
Foi desrespeitado o teor do acórdão n. 258 do Venerando Tribunal de Conflitos, proferido em 13-07-1993;
Foi também desrespeitado o teor do acórdão do STJ de 30-01-1990, proferido no recurso de agravo n. 82933, quanto à interpretação autêntica do art. 204 n. 2 do C. Civil;
Quer a inconstitucionalidade da norma do art. 3 do CCJ, quer a interpretação incrostada aos arts. 1340 do C. Civil vigente e aos arts. 2304 a 2308 e 510 a 518 do C. se Seabra, não foi analisada;
No domínio privado do Estado ou da autarquia, aquele e esta reconduzem-se ao "status" de qualquer particular em matéria de usucapião e acesso, pelo que a Lei 54 de 16-07-1913 é inconstitucional, por ofender o princípio da igualdade de armas ou de meios, consagrado no art. 6 n. 1 da CEGH e o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei, constantes do art. 8 n. 2 e 13 da CRP;
Aliás a citada lei está revogada pelo DL 47344 de 25-11-1966, visto tais institutos possessórios constituírem matéria cível e não administrativa;
As considerações sobre a posse de má fé estão desfocadas e são inaplicáveis ao presente caso, dada a matéria de facto provada;
A contagem do prazo de usucapião está errada, em desfavor acentuado contra os recorrentes, sendo que o início do prazo se faz seguramente do ano de 1958;
As afirmações relativas à aplicação do disposto no art. 712 do CPC são gratuitas e desprovidas do mínimo de argumentação aceitável;
Sobre a acessão, o Tribunal da Relação de Lisboa não disse absolutamente nada, caindo numa arrepiante superficialidade ; o pedido expresso formulado na apelação foi no sentido de se revogar a decisão em crise, pelo que é imperceptível a afirmação judicial em contrário;
A pretensa aclaração da sentença de 1ª instância consubstancia inovação lesiva para os autores;
Não foram tratados todos os pedidos formulados na petição inicial, quanto à condenação da Câmara Municipal de Almada a não poder vender o espaço terraplanado/inibição de alienação, cancelamento do registo, reposição da vivenda e prejuízos advindos;
Sobressai do acórdão uma notória omissão de pronúncia sobre as questões, erro de julgamento e défice argumentativo.
Face às conclusões das alegações dos recorrentes, que delimitam o objecto do recurso (cfr. arts. 684 n. 3 e 690, n. 1 do CPC), são questões postas para resolver;
a) Ininteligibilidade da parte dispositiva do acórdão recorrido;
b) Não uso pela Relação da Faculdade conferida pelo art. 712 n. 2 do CPC;
c) Nulidade do acórdão recorrido tendo em causa a omissão do conhecimento de múltiplas questões, a saber: objecto do recurso de agravo subido com a apelação; reclamação de 10-07-1996; alguns dos pedidos formulados - de condenação do réu e não poder vender o terreno terraplanado, cancelamento do registo existente, reposição da vivenda e prejuízos advindos;
d) Inconstitucionalidade da norma do art. 3 do CCJ então vigente e da "interpretação incrostada" ao art. 1340 do C. Civil e aos arts. 2304 a 2308 e 510 a 518 do C. Civil de Seabra,;
e) Desrespeito dos acórdãos do Supremo quanto à interpretação autêntica do art. 204 n. 2 do C. Civil;
f) Saber se a posse dos autores é de má fé;
g) Saber se está em vigor a Lei 54 de 16-07-1913;
h) Inconstitucionalidade desta lei;
i) Saber se a usucapião invocada se consumou;
j) Saber se há lugar à condenação de custas de parte a quem tenha sido concedido apoio judiciário;

Factos provados.
O autor AA construiu a vivenda inscrita na matriz cadastral urbana da ... sob o n. 2987, da 3ª Repartição de Finanças do concelho de Almada.
Essa vivenda encontra-se implantada num lote de terreno situado no prédio descrito na 2ª Conservatória do Registo Predial de Almada sob o n. 13350 a folhas 161 do livro B-37.
No ano de 1958, após o Verão, o A. AA iniciou a construção de uma obra que, após vários melhoramentos, viria a corresponder à aludida vivenda, um lote com a área e confrontações referidas no documento a folhas 21.
Desde então, o autor AA, à vista de todos e sem oposição, tem habitado a vivenda, aí tomando as refeições, dormindo, recebendo familiares, amigos e correspondência.
Sempre viveram nessa vivenda, convictos de que a mesma lhe pertencia.
Pelo menos em 18-12-1969, ao ser proferido o despacho que consta do documento a folha 19, o Presidente da Câmara Municipal de Almada reconheceu o autor AA como proprietário da habitação em causa.
Em 13-04-1988 essa vivenda foi demolida na sequência da deliberação da Câmara Municipal de Almada.
A vivenda construída pelo autor, incluindo os melhoramentos, teria, na altura da propositura da acção, em 1988, o valor de 12400 contos.
O terreno onde a mesma estava implantada teria, na mesma altura (1988), o valor de 7658000 escudos.

O direito.
Até esta altura vimos reproduzindo o acórdão deste Tribunal de 03-03-1988, que consta a folhas 806 a 819 e que, no que dele consta, não mereceu reparo das partes.
Nas conclusões das suas alegações a folhas 894 os autores dão como reproduzidas as conclusões formuladas nas alíneas a) a s) do n. 5. Estas reproduzem por fotocópias, excepto as alíneas a) e b), as formuladas a folhas 738 e 739 do antecedente recurso para este Tribunal.
Do recurso anterior foram apreciadas as folhas 806 e seguintes as questões enunciadas nas alíneas a) a d), esta motivando, em parte, a anulação do acórdão recorrido por falta de apreciação da inconstitucionalidade da interpretação do art. 1340 do C. Civil vigente e arts. 2304 a 2308 e 510 a 518 do C.Civil de Seabra por omissão de pronúncia. Falta apreciar as matérias objecto de recurso constantes das alíneas d), de cuja apreciação no acórdão recorrido de novo se recorre e relativamente à inconstitucionalidade dos arts. 1340 do C. Civil vigente e arts. referidos do C. Civil de Seabra, e alíneas seguintes.
A matéria anteriormente apreciada e que não sofreu reparos das partes encontra-se definitivamente apreciada.

D) Inconstitucionalidade da interpretação do art. 1340 do C. Civil vigente e arts. 2304 a 2308 e 510 a 518 do C. Civil de Seabra.
Na decisão, ora proferida na Relação, de que se socorre, foi decidido que não havia a invocada inconstitucionalidade. Dado que nas novas alegações essa matéria se mantém e os autores não concordam com o decidido em segunda instância há que apreciá-la.
Cumpre decidir esta questão.
Não se vê que os normativos em causa violem qualquer preceito constitucional na forma como foram interpretados. Ou seja, pode haver a construção da casa sem que isso implique a aquisição do terreno em que está implantada, designadamente nos termos do art. 1341 do C. Civil.
E também a interpretação feita no acórdão recorrido não é violadora da constituição.
Com efeito o art. 6 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, aceite no nosso ordenamento jurídico pela Lei 65/78 de 13-10, não resulta que seja ilegal ou inconstitucional a interpretação seguida. Nem se vê onde violado aquele art. 6. Tão pouco se ofende o princípio da igualdade (art. 13 da Constituição). O que aqueles normativos exigem são determinados pressupostos para a acessão e, decidindo-se na perspectiva duma correcta interpretação deles, não são violados os normativos apontados da CEDH e CRP. Quanto à interpretação destes preceitos, adiante nos iremos debruçar sobre tal matéria.

E) Violação do art. 204 n. 2 do C. Civil, quanto à interpretação autêntica do ac. 78654 de 30-01-1990 (folhas 778) e n. 82933 de 08-11-1994 (folhas 783).
Estes acórdãos estão certificados a folhas 779 e seguintes.
No acórdão 78654 o requerente veio pedir a restituição provisória da posse "do espaço terraplanado onde se encontravam implantadas as instalações demolidas e até respectiva construção ou indemnização", o que foi indeferido liminarmente. Da matéria de facto indicada o requerente seria arrendatário do prédio onde se encontravam as instalações.
Na decisão entendeu-se que, dados os termos do art. 1037 do C. Civil, era de ordenar o prosseguimento da restituição provisória. O direito que se pretendia defender era o do arrendatário, que abrangia determinado prédio urbano entendendo-se como tal qualquer edifício incorporado no solo (arts. 204 n. 2 do C. Civil).
No ac. 82933 indica estarmos perante a mesma situação de facto, agora em embargo de obra nova, e continua-se aí a discutir do arrendatário, consagrado no art. 1037 do C. Civil, de usar dos meios possessórios no âmbito do direito de arrendamento contra o acto de demolição de barracões e início duma edificação no respectivo solo.
Nem os acórdãos referidos fazem uma interpretação autêntica do art. 204 n. 2 do C. Civil, nem era essa a questão posta e a alusão ao artigo em causa vem apenas a propósito da matéria em discussão, não sendo o núcleo da questão decidida.
O que se discute, no caso dos autos, é a acessão industrial imobiliária.
A noção de prédio urbano, abrangendo sempre o solo ou necessariamente o solo brigaria com o instituto da acessão industrial imobiliária (art. 1341). E mais ainda tendo em conta a data da construção e o regime anterior ao C. Civil de 1966.

F) Posse.
Decidiu-se no acórdão recorrido que inexistia boa fé na posse dos autores quanto ao terreno onde foi construída a vivenda.
Resulta da matéria de facto que no ano de 1958, após o Verão, o autor AA iniciou a construção de uma obra que, após vários melhoramentos, viria a corresponder à vivenda em causa.
Pelo menos em 18-12-1969, ao ser proferido o despacho que consta a folhas 19, o Presidente da Câmara Municipal de Almada reconheceu o A. AA como proprietário da habitação.
O prédio urbano está implantado em terreno da Câmara Municipal de Almada descrito na 2ª Conservatória sob o art. 13350, a folhas 16 e v do LB-37.
A questão da boa fé tem de equacionar-se em relação à época em que foi levada a cabo a construção.
Como ensinam Pires de Lima e A. Varela (C. Civil anotado, vol III-162) o regime do art. 1340 é "inovador e, como tal, insusceptível de aplicação retroactiva". Com o art. 1340 "deixou de se exigir, para aplicação do regime fixado, que o dono dos materiais sementes ou plantas, possuísse o terreno alheio, em nome próprio, com boa fé e justo título" (ob. e 1. citados). E dizem os mesmos autores, com referência ao código de 1966 (pág. 20) que "possui boa fé, na verdade, quem ignora que está a laser os direitos de outrem...".
E podíamos interrogar-nos sobre aplicabilidade, do regime do C. Civil de 1966, ao caso dos autos.
O art. 12 n. 2 do C. Civil de 1966 que "quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; ..........................."
E tal preceito tem sido interpretado no sentido em que nos casos em que os factos têm eficácia constitutiva, essa eficácia tem de ser apreciada perante a lei vigente ao tempo em que os factos tiverem lugar. Neste sentido se decidiu nos Acs. do STJ de 15-01-1971, BMJ 203-163, de 12-07-1974, BMJ 239-186 e Ac. RL de 23-05-1973, BMJ 227-199.
Era diferente o regime do C. Civil de 1867, quanto à acessão, em relação ao código vigente.
Dizia o art. 2306:
"Se o dono dos materiais, sementes, ou plantas, tiver feito em terreno alheio obras, sementeiras, ou plantações, possuindo, aliás, esse terreno em próprio nome, com boa fé, e justo título, observar-se-á o seguintes:
......................................................................................................"
E preceituava o art. 476 que "posse de boa fé é aquela que procede de título cujos vícios não são conhecidos do possuidor. Posse de má fé é a que se dá na hipótese inversa". E justo título é qualquer modo legítimo de adquirir, independentemente do direito do transmitente. Entendia-se que a posse não era de boa fé se a transmissão se verificava sem que entre as partes se tivesse realizado qualquer negócio capaz de transferir o domínio (Pires de Lima e A. Varela, Noções fundamentais de Direito Civil, vol: II-60). A ideia de que não há boa fé sem justo título, título capaz de transferir o domínio, constituem os requisitos do art. 2306 do C.C. de 1867 e é assim afirmado na RLJ 100-12 e segs., onde se invoca abundante doutrina e jurisprudência neste sentido.
Daqui se conclui que, tendo-se as obras iniciado em 1958, eram de má fé e, nos termos da doutrina e da jurisprudência maioritária, então vigente, aquela posse não conduzia à transferência de domínio sobre o solo. Isto porque o regime do art. 1340 do C. Civil de 1966 é inovador quanto aos pressupostos da acessão, sendo inaplicável aos factos passados; no regime do C. Civil de 1867 a boa fé exigia justo título, o que não se mostra existir no caso dos autos.

G) Lei 54 de 16-06-1913.
Os autores põem em causa que esta lei esteja em vigor.
Decidiu-se no acórdão recorrido que esta lei se encontra em vigor, invocando-se em abono dessa tese o preceituado no art. 1304 do C. Civil e o decidido no Ac. do STJ de 06-12-1984, bmj 342-375.
Dispõe o art. 1304 do C. Civil:
"O domínio das coisas pertencentes ao Estado ou a quaisquer outras pessoas colectivas públicas está igualmente às disposições deste código em tudo o que não for especialmente regulado e não contrarie a natureza daquele domínio".
E dizem Pires de Lima e A. Varela (C. Civil anotado, vol. III, pág. 89):
"A forma genérica foi adoptada intencionalmente, para que as regras especiais sobre o domínio privado do Estado não fossem afectadas com a publicação do Código Civil, solução de que poderia duvidar-se na falta de preceito expresso (art. 3 do DL 47344)".
Além do aresto acima referido, ainda defende aquela posição o Ac. da R. É de 11-03-1976, BMJ 257-159 e, embora debruçando-se sobre uma hipótese diferente, mas defendendo que o regime privado do Estado é afectado por normas especiais que constituem o regime administrativo do domínio privado se pode ver o parecer da PGR no BMJ 348-154 e seguintes. E mesmo aqui, na nota 37, se defende a vigência da lei em causa como foi defendido em parecer para que se remate.
Face à letra da lei e ao entendimento da doutrina e da jurisprudência, não se pode pôr em dúvida a vigência da Lei 54 de 16-07-1913 e que a mesma não foi revogada pelo art. 3 do DL 47344.

H) Inconstitucionalidade da lei 54 de 16-07-1913.
Defendem os autores a inconstitucionalidade da lei 54 por ofender o princípio da igualdade de armas ou meios consagrados no art. 6 n. 1 da CEDH e art. 8 do CRP e o princípio da igualdade dos cidadãos perante a lei (art. 13 da CRP).
Entendemos que o direito à igualdade de armas ou de meios , como vem referido nas alegações, recebido na lei interna portuguesa, consagra duas vertentes: o direito à discussão contraditória e o direito à igualdade de armas. Como defende Lebre de Freitas (O Direito, 124-618) a "a igualdade de armas significa equilíbrio entre as partes na apresentação das respectivas teses, na perspectiva dos meios processuais de que para o efeito dispõem". "Assim é que a nível europeu, tem sido decidido que o direito a um processo equitativo que a parte possa expor as suas razões ao tribunal em condições não menos favoráveis do que as da parte contrária, que, consequentemente, as pessoas colectivas e físicas devem poder beneficiar dos mesmos direitos processuais e invocá-los nos mesmos termos ......"
Não se vê que, no caso dos autos, o direito à igualdade de "armas" haja sido violado e muito menos no sentido em que os autores parecem invocá-los com a arguida inconstitucionalidade. E nem foi nesse sentido que o referenciado princípio foi entendido no Ac. do STJ de 14-01-1993, BMJ 423-397.
Ao invocar-se que a Lei 54 viola o princípio da igualdade depreende-se que os autores entendem que o aumento do prazo para a aquisição por usucapião de bens do domínio privado do Estado em relação à aquisição, nas mesmas circunstâncias, de bens de particulares, viola o princípio insito no art. 13 da CRP, que dispõe:
"1 - Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2 - Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica ou condição social".
Este artigo é um "corolário de igual dignidade humana de todas as pessoas" (Gomes Canotilho e Vital Moreira, CR, anotada, vol. I-148), "proibindo desde logo formas de tratamento ou de consideração social discriminatórias" (o. cit.). Não entendemos o princípio da igualdade como visando proibir leis que prevêem excepções a regras gerais de institutos em que não está em causa a dignidade dos cidadãos e qualquer tipo de discriminação. Assim, o T. Constitucional em acórdão de 31-03-1992 (BMJ 415-254) decidiu que "o princípio da igualdade não proíbe que a lei estabeleça distinções, proíbe, sim, o arbítrio, as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante ........ o princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação só é assim violado quando as medidas legislativas, contendo diferenciações de tratamento se apresentam como arbitrárias por carecerem de fundamento legal bastante".
em suma: a existência da Lei 54 para o regime dos bens do Estado, não viola o princípio da igualdade, nem os arts. 6 da CEDH e art. 8 da CRP.

I) Decurso do prazo para usucapião nos termos da Lei 54 de 16-07-1913.
Defendem os autores que o prazo para a usucapião se iniciou em 1958 e que, como tal, dado o seu decurso já haviam adquirido o terreno onde foi construída a vivenda quando ela foi demolida.
A matéria de facto com relevo para a decisão nesta parte é a seguinte:
No ano de 1958, após o Verão, o autor AA iniciou a construção da obra, que viria a corresponder à vivenda;
Desde então o autor AA, à vista de todos e sem oposição, tem habitado a vivenda, aí tomando as refeições, dormindo, recebendo familiares, amigos e correspondência;
Sempre viveram nessa vivenda, convictos de que lhe pertencia;
Pelo menos em 18-12-1969, ao ser proferido o despacho que consta do documento a ...........(ver o que se passa) ...............................
Pelo menos em 18-12-1969, ao ser proferido o despacho que consta do documento a folhas 19, o Presidente da Câmara Municipal de Almada reconheceu o autor como proprietário da habitação;
Em 13-04-1988 a vivenda foi demolida.
Não se diz nos factos dados como provados que o autor AA tenha praticado actos de posse em relação ao solo. E é este que está em causa.
Deve dizer-se que o autor alegou factos de posse relativamente ao terreno (art. 24 da petição), que não foram quesitados. Isso, em princípio implicaria a ampliação da matéria de facto para constituir a base suficiente para a decisão de direito (art. 729 do CPC). Com efeito nos termos do art. 1252 do Código vigente e 481 do Código anterior o animus presume-se e os factos alegados, vindo a provar-se, supririam a falta do animus (ver. o Ac. STJ de 09-01-1997, CJ (S) V-1-37).
Todavia, mesmo que houvesse posse do solo onde estava implantada a obra, a posse dos autores era de má fé, até por não haver título, e o prazo de prescrição positiva era de 30 anos (arts. 529 do C. Civil de 1867), acrescido de mais 15 anos por força da Lei 54. Não tinha decorrido em 1988 e só ocorreria em 2003 nos termos daquele código.
O Código Civil de 1966 veio estabelecer requisitos diferentes para a boa fé.
Admitida a aplicação do critério da boa fé do código actual e que era aplicável o prazo do art. 1296 de 20 anos, acrescido de metade por virtude da Lei 54 e atento o disposto no art. 297 n. 1 do C. Civil, mesmo nesta perspectiva, ainda não tinha decorrido o prazo a quando da demolição. O Código Civil de 1966 entrou em vigor em 01-06-1967 e contados 30 anos no domínio da sua vigência era ultrapassado o ano 1988 em que ocorreu a demolição.
Assim, os actos materiais de posse em relação ao terreno, não podiam conduzir à usucapião, por virtude do prazo alongado pela Lei 54.
Entendemos não ser de chamar à colação o decidido no Ac. deste Tribunal de 10-11-1993, BMJ 331-445, porque neste caso tratava-se de terrenos baldios e não está provado que tal suceda com o terreno aqui em causa.

J) Custas de parte com benefício de apoio judiciário.
Esta questão, apresentada sob a alínea b) a folhas 738 nas anteriores alegações para este Tribunal, foi agora omitida. Ver a alínea b) a folhas 855, pelo que não tem de ser aqui apreciada.
Nos termos expostos improcedem as alegações dos autores.
Nega-se revista.
Custas pelos autores.
Lisboa, 22 de Abril de 1999.
Simões Freire,
Roger Lopes,
Costa Soares.