Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
06A880
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO CAMILO
Descritores: ACÇÃO EXECUTIVA
RESERVA DE PROPRIEDADE
CANCELAMENTO DE INSCRIÇÃO
Nº do Documento: SJ200605180008806
Data do Acordão: 05/18/2006
Votação: MAIORIA COM 1 VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : Comprovado o registo definitivo da penhora de um veículo automóvel sobre o qual consta registada anteriormente uma reserva de propriedade a favor da exequente, não pode prosseguir a execução respectiva, quanto ao mesmo bem, sem que a exequente comprove o cancelamento da mesma reserva de propriedade.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


No processo de execução com processo sumário que o Empresa-A instaurou contra AA e BB, a Exequente agravou do despacho (fls. 59 dos presentes autos) que determinou a suspensão da acção até o Exequente documentar o cancelamento da reserva de propriedade quanto ao veículo penhorado.
Na Relação foi negado provimento ao agravo, tendo o exequente interposto o presente agravo para este Supremo Tribunal.
Nas suas alegações formulou as conclusões seguintes:
- É perfeitamente admissível, é válido, é legitimo, é legal, que o detentor da reserva de propriedade possa nomear à penhora o bem sobre que incide tal reserva, sendo certo que nesse caso estará a renunciar ao seu "domínio" sobre o bem, tanto mais que nos casos em que o detentor da reserva de propriedade opta pelo pagamento da quantia em divida - em detrimento da resolução do contrato e do funcionamento da reserva de propriedade para chamar a si o bem sobre a qual a mesma incide - deixa de poder fazer operar a reserva de propriedade constituída, deixa de poder reivindicar para si o bem.
- A não ser assim, em tais casos - opção pelo pagamento da quantia em dívida - o acordo, entre credor e devedor, de constituição de reserva de propriedade por parte do credor faria com que este não pudesse nomear à penhora o bem sobre o qual havia incidido tal reserva, pelo que, em tais casos a constituição de reserva de propriedade por parte do credor não só não o beneficiaria como o prejudicaria, inclusivamente, em relação aos outros credores do devedor, o que, para além de ser claramente injusto e ir contra o espírito do direito, estaria em manifesta oposição com a vontade das partes ao acordar na reserva de propriedade.
- A validade, legitimidade e legalidade de o detentor da reserva de propriedade poder nomear à penhora o bem sobre tal reserva incide, é ainda mais evidente e justificada nos casos em que a reserva de propriedade foi constituída pelo devedor em favor do credor apenas como mera garantia do cumprimento de um contrato de mútuo para financiamento da aquisição, pelo devedor, do veículo automóvel sobre que incide a reserva, e não para assegurar ao credor a propriedade do bem; pois nesse caso a reserva de propriedade visa apenas garantir que enquanto o contrato de mútuo não estiver cumprido o veículo cuja aquisição tal mútuo financiou não possa ser vendido pelo devedor sem conhecimento e autorização do credor, por forma a assegurar que em caso de incumprimento do contrato, pelo menos o veículo financiado possa assegurar, precisamente através da sua nomeação à penhora, o pagamento coercivo da divida, de parte dela pelo menos, e impedir que tal veículo possa ser penhorado por terceiros.
- O facto de a reserva de propriedade estar eventualmente registada não impede o prosseguimento da penhora, pois de acordo de harmonia com o disposto no artigo 824º do Código Civil e 888º do Código de Processo Civil, aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam.
- No caso de surgirem dúvidas sobre a propriedade dos bens objecto de penhora, deve-se agir de acordo com o que se prescreve no artigo 832º do Código de Processo Civil caso a penhora ainda não tenha sido efectuada ou esteja a sê-lo, ou com o que se prescreve no artigo 119º do Código do Registo Predial caso a penhora já tenha sido realizada e a dúvida surja por o bem não estar registado em nome do executado mas em nome de outrem.
- Assim, tendo o ora recorrente optado pelo pagamento coercivo da divida em detrimento da resolução do contrato e do funcionamento da reserva de propriedade para chamar a si o bem sobre a qual a mesma incide - o que, como referido, seria, neste caso, ilegítimo -; tendo a exequente renunciado ao "domínio" sobre o bem - pois desde o início afirmou que o mesmo pertencia ao recorrido -; tendo, como dos autos ressalta, a reserva de propriedade sido constituída apenas como mera garantia, e para os efeitos antes referidos; prevendo-se nos artigos 824º do Código Civil e 888º do Código de Processo Civil, que aquando da venda do bem penhorado, o Tribunal deve, oficiosamente, ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam; e não se prevendo no artigo 119º do Código do Registo Predial o levantamento oficioso da penhora é manifesto que no acórdão recorrido - bem como aliás havia já sucedido na 1ª instância -, se errou e decidiu incorrectamente.
- No acórdão recorrido, ao decidir-se pela forma como se decidiu e ao confirmar-se o despacho de fls. proferido na 1ª instância, claramente se violou e erradamente se interpretou e aplicou - como já na 1ª instância se fizera - o disposto nos artigos 888º do Código de Processo Civil, artigos 409º, 824º do Código Civil, e artigo 119º do Código do Registo Predial.
- Errou-se, pois, no despacho de fls. e, assim no acórdão recorrido que o confirmou, ao considerar-se que a penhora do veículo dos autos, ou melhor, a venda do mesmo, não podia prosseguir pelo facto existir reserva de propriedade em nome do exequente, ora recorrente, suspendendo-se a execução até que mostre efectuado o cancelamento do registo da reserva de propriedade.
- Deve, pois, como se impõe, ser dado provimento ao presente recurso de agravo e, por via dele, revogar-se o acórdão recorrido, substituindo-se o mesmo por Acórdão que ordene o prosseguimento da penhora do veículo dos autos, seguindo-se os demais termos.

Não foram apresentadas contra-alegações.
Corridos os vistos legais, urge apreciar e decidir.
Como é sabido - arts. 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do Cód. de Proc. Civil, a que pertencerão todas as disposições a citar sem indicação de origem -, o âmbito dos recursos é delimitado pelo teor das conclusões dos recorrentes.
Das conclusões do aqui recorrente se vê que o mesmo, para conhecer neste recurso levanta as seguintes questões:
a)É lícito ao exequente a nomeação à penhora do veículo do executado sobre que incide a reserva de propriedade constituída a favor do exequente ?
b) O facto de a reserva de propriedade estar registada não impede o prosseguimento da execução, pois com a venda do bem penhorado, nos termos dos artigos 824º do cód. Civil e 888º, o tribunal deve oficiosamente ordenar o cancelamento de todos os registos que sobre tal bem incidam ?
c) No caso de surgirem dúvidas sobre a propriedade do bem penhorado, deve agir-se de acordo com o disposto no art. 832º, caso a penhora ainda não esteja efectuada, ou do preceituado no art. 119º do Cód. de Registo Predial, caso a penhora tenha sido realizada e a dúvida surja por o bem não estar em nome do executado ?
d) Optando o exequente pelo pagamento coercivo da dívida em detrimento da resolução do contrato e do funcionamento da reserva de propriedade para chamar a si o bem sobre que incide, renunciou o exequente ao "domínio" sobre o bem ?

Os factos e a dinâmica processual apurados e que relevam nos autos são os seguintes:
- Em execução de sentença que o Empresa-A moveu contra AA e BB, o Exequente nomeou à penhora, entre outros bens, o veículo automóvel da marca FORD, modelo TRANSIT, com matrícula Nº-0, da seguinte forma "Nos termos do artigo 924º do Código de Processo Civil, a exequente, ora requerente, nomeia à penhora (...) (iii) o veículo automóvel marca FORD modelo TRANSIT, com matrícula Nº-0, que pode ser encontrado junto à residência do executado AA, a quem pertence";
- Após efectivação da penhora do referido veículo, o Exequente juntou à execução nota de registo e certidão de encargos comprovativa do registo da penhora efectuada, requerendo o cumprimento do art.º 864, do CPC;
- Da certidão comprovativa de ónus ou encargos junta pelo exequente verifica-se constar dele o registo definitivo da penhora e ainda um anterior registo a favor do exequente de uma reserva de propriedade sobre o mesmo veículo penhorado.
- Foi então proferido o despacho de fls. 59 onde se decidiu a suspensão da execução quanto aos termos da penhora do referido veículo até que o exequente comprove nos autos que procedeu ao cancelamento do registo da reserva de propriedade.

Vejamos agora cada uma das questões levantadas pelo recorrente como objecto deste recurso.
a) Nesta primeira questão pretende o recorrente que é lícito ao mesmo a nomeação à penhora do veículo sobre o qual incide a reserva de propriedade.
Esta questão está para além do objecto deste recurso, pois que a referida nomeação à penhora foi admitida e a decisão impugnada limitou-se a, após a junção da referida certidão de ónus ou encargos onde constava o registo anterior da mencionada reserva de propriedade a favor do exequente, decretar a suspensão da execução até que o exequente comprove o cancelamento da mesma reserva, decisão esta confirmada pela negação de provimento do agravo interposto daquela decisão.
Por isso, não pode aqui ser conhecida da questão em causa por não estar abrangido pelo objecto do recurso.
b) Nesta segunda questão pretende o recorrente que a manutenção do registo da reserva de propriedade sobre o bem penhorado não impede o prosseguimento da execução, por o registo dever ser cancelado em obediência ao disposto nos arts. 824º do Cód. Civil e 888º.
Esta pretensão constitui o cerne do objecto deste recurso e tem sido objecto de decisões divergentes, quer neste Supremo quer nas Relações.
Como exemplo das decisões deste Supremo no sentido defendido pelo recorrente constam dos autos dois doutos acórdãos juntos por aquele.
E como exemplo de decisões deste mesmo Supremo no sentido seguido pelo douto acórdão em recurso, a decisão proferida em 25-11-2004, no agravo nº 7677/04 de que foi Relator, o Conselheiro Araújo de Barros.
Por nós - o presente relator - sempre seguimos a opinião que o douto acórdão agravado seguiu, quando fomos chamados a decidir a mesma questão em diversos recursos interpostos pelo aqui recorrente na Relação de Lisboa, quando ali prestávamos serviço como Desembargador.
Não vemos nos argumentos do recorrente ou na fundamentação das decisões juntas pelo mesmo, razão para mudar de opinião e vejamos porquê.
Com efeito, do disposto nos art.s 888º e 101º, nº 5 - este do Cód. de Registo Predial - resulta o cancelamento oficioso, por averbamento, dos registos dos direitos reais que caducarem nos termos do art. 824º, nº 2 do Cód. Civil.
E este último dispositivo, prevê que em venda executiva os bens são transmitidos livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto penhora ou garantia, com excepção dos que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo.
Por outro lado, a reserva de propriedade, nos termos do art. 409º, nº 1 do Cód. Civil consiste numa cláusula acessória de garantia que, segundo a doutrina dominante, se reconduz a uma condição suspensiva do efeito translativo da propriedade - cfr. Prof. Galvão Teles, in Direitos das Obrigações, 3ª ed., pág. 220 -, e que está sujeita a registo quando respeite a imóveis ou móveis sujeitos a registo, nos termos do nº 2 do citado artigo 409º, nomeadamente quando estipulada em contratos de alienação de veículos automóveis (art. 5º, nº q, al. b) do Dec.-Lei nº 54/74 de 12/2 ).
Ora a citada reserva não constitui um direito real de garantia, mas antes um direito real de gozo, cujo registo é anterior à penhora, pelo que, nos termos do nº2 do art. 824º citado, não caduca com a venda judicial, sendo esta ineficaz em relação ao mesmo titular da reserva.
Deste modo temos de concluir que a citada reserva de propriedade como direito real de gozo que é não caduca com a venda judicial, por o seu registo ser anterior ao da penhora, nos termos do art. 824º nº 2 citado.
Desta forma, o prosseguimento da execução apenas se pode fazer quando estiverem removidos os obstáculos a que a venda do bem penhorado se faça como refere o art. 824º, nº 1 do Cód. Civil.
Por outro lado, incumbindo ao exequente o ónus de promoção processual, removendo todos os obstáculos ao prosseguimento da execução, terá aquele de cancelar a reserva de propriedade, de onde se presume a propriedade do veículo a favor do exequente - art. 7º do Cód. de Registo Predial - e comprovar tal nos autos.
Além disso, nos termos do art. 8º deste último código, a execução em face do registo da reserva de propriedade apenas pode prosseguir se o exequente nos autos pedir o cancelamento do registo, o que lhe é vedado por falta de interesse em agir, por o cancelamento apenas depender de acto seu.
Neste sentido citaremos os Professores A. Varela e P. de Lima, no seu Cód. Civil, anot., vol. II, pág. 230, da 4ª ed., ao referirem: "Para obter o pagamento coercivo do preço ( ou da parte residual do preço ), ele não poderá, obviamente, penhorar a coisa vendida, visto que ela lhe continua a pertencer plenamente..."
Desta forma, terá o exequente de promover o cancelamento do registo em causa, sob pena de não poder prosseguir a execução.
Improcede, assim, este fundamento do recurso.
c) Nesta terceira questão, pretende o recorrente que se surgirem dúvidas sobre a propriedade do bem, antes da penhora, recorre-se ao disposto no art. 832º ou, depois da penhora e esta tenha sido efectuada por dúvidas por o bem estar em nome de terceiro, ao disposto no art. 119º do Cód. de Registo Predial.
Também esta pretensão está fora do âmbito deste recurso.
Com efeito, a penhora foi efectuada e foi registada como definitiva.
Desta forma nem se verifica o caso de as dúvidas surgirem antes da penhora e nem o caso de o registo desta se haver efectuado como provisória, único caso de aplicação do citado art. 119º.
d) Finalmente, resta apreciar a pretensão do exequente de tendo nomeado à penhora o veículo sobre que incidia a reserva de propriedade, se dever considerar que renunciou à mesma reserva.
Do acima já dito, facilmente se vê a inocuidade desta pretensão.
Com efeito, mesmo que se entenda que a referida nomeação à penhora implica a renúncia à reserva de propriedade, ficará sempre a questão de ter o exequente de comprovar o respectivo cancelamento, como doutamente ordenou o despacho agravado.
E a necessidade desta prova resulta, como dissemos já, de caber ao exequente remover os obstáculos ao prosseguimento da execução e desde logo, por força do princípio da cooperação processual previsto no art. 266º.
É que para além de se poder levantar dúvidas no Conservador a quem cabe o referido cancelamento, sobre a real efectivação dessa renúncia, não deve ser o eventual comprador judicial do veículo penhorado a ser onerado com esse encargo de cancelamento, mas deve ser o exequente quem deve remover esses obstáculos, independentemente de saber a quem é atribuída a responsabilidade do pagamento dos respectivos encargos.
Por isso, sempre se mantém a obrigação imposta ao recorrente no despacho em apreço, soçobrando, desta forma, todo o fundamento do recurso.

Pelo exposto, nega-se provimento ao agravo e, por isso se confirma a douta decisão agravada.
Custas pelo recorrente.

Lisboa, 18 de Maio de 2006
João Camilo (Relator)
Fernandes Magalhães
Azevedo Ramos (Revendo anterior posição que subscrevi como adjunto, no acórdão do STJ de 2/11/04, proferida no proc. 1765/04.)