Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
263/06.8JFLSB.L1.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: SANTOS CARVALHO
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DIREITO AO RECURSO
RECURSO PENAL
REJEIÇÃO DE RECURSO
DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO
INTERPRETAÇÃO
CONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE DE ARMAS
Data do Acordão: 12/02/2010
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA
Decisão: INDEFERIDA
Sumário :


I - Sendo a decisão recorrida um acórdão absolutório do Tribunal da Relação, tirado em recurso de decisão da 1ª instância que condenara o arguido em pena de multa, não está abrangida pelos casos de irrecorribilidade configurados no art.º 400.º do CPP07, nem em qualquer outra norma legal, pelo que, à primeira vista, tudo aponta para a aplicação da regra geral definida no art.º 399.º, isto é, para a recorribilidade.

II - Parece-nos evidente que não se devem esgrimir argumentos de ordem lógico-sistemática para contrariar essa ideia da recorribilidade, até porque a regra é a da recorribilidade e, portanto, as exclusões devem ser tratadas de forma restritiva quanto aos casos de não recorribilidade.

III - Aos tribunais não cabe discutir o critério legislativo, ou a falta dele, no que respeita às questões que podem ou não chegar ao Supremo Tribunal de Justiça pela via do recurso, umas mais graves que não lhe podem ser colocadas, outras de menor dimensão e que são sujeitas à sua reapreciação. Tal critério, bom ou mau, é definido no âmbito da competência da política legislativa, reservada à Assembleia da República. Para além de que a regra geral é a da recorribilidade. Não é, pois, por esse motivo, de ordem lógico-sistemática, que se pode recusar a recorribilidade da decisão proferida nestes autos pela Relação.

IV - A simples leitura dos art.ºs 399.º e 400.º do CPP permite que existam em simultâneo estas duas situações:

- não é recorrível para o STJ o acórdão da Relação, proferido em recurso, que condenou o arguido numa pena não privativa da liberdade por determinado crime e que, assim, revogou a absolvição da 1ª instância (art.º 400.º, n.º 1, al. e, do CPP);

- é recorrível para o STJ o acórdão da Relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido por determinado crime e que, assim, revogou a condenação do mesmo na 1ª instância numa pena não privativa da liberdade (art.ºs 399.º e 400.º, este “a contrario”).

V - Trata-se, porém, da mesma situação, embora em posições invertidas, pois uma é simetricamente o inverso da outra. Apesar da manifesta semelhança, há um tratamento legislativo diferente ao nível da interposição dos recursos.

VI - A primeira situação não é passível de um juízo de inconstitucionalidade. Na verdade, o art.º 32.º, n.º 1, da Constituição dispõe que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. Mas, o Tribunal Constitucional tem reafirmado em diversos acórdãos e ao longo dos anos que «A Constituição não impõe ao legislador a obrigação de consagrar o direito de recorrer de todo e qualquer acto do juiz, admitindo-se embora, no processo penal, o direito a um duplo grau de jurisdição como decorrência da exigência constitucional do principio da defesa, mas já não o direito a um triplo grau de jurisdição» (v.g. Acs. do TC n.ºs 163/90 de 23-05-1990, 331/02 de 10-07-2002, 377/03 de 15-07-2003, 375/05 de 07-07-2005, 64/06 de 24-01-2006, 530/07 de 29-10-2007).

VII - Assim, o facto do arguido no caso da al. e) do n.º 1 do art.º 400.º do CPP07 não dispor de um terceiro grau de recurso não viola a Constituição, pois o núcleo essencial dos seus direitos de defesa já ficou ressalvado com o duplo grau de jurisdição, para mais num caso em que a decisão final nem sequer o privou nem lhe restringiu o direito à liberdade.

VIII - Contudo, o que já não é tolerável do ponto de vista dos direitos de defesa é que no caso simetricamente oposto a esse, em que ao arguido continua vedado o direito a novo recurso, agora por falta de interesse em agir (pois foi absolvido na segunda instância da acusação, após condenação na 1ª instância em pena não privativa da liberdade), a acusação, isto é, o Ministério Público ou Assistente, possa recorrer.

IX - Nas “duas imagens invertidas”, o arguido não teria direito a interpor recurso em qualquer delas, mas permitir-se-ia ao M.º P.º e ao Assistente, numa delas, um direito que àquele não assiste (o terceiro grau de jurisdição).

X - Criar-se-ia uma desigualdade de armas, desfavorecendo o arguido e beneficiando a acusação.

XI - O tratamento diferente que a lei processual dá aos dois casos de recorribilidade anteriormente indicados, simetricamente opostos e, portanto, indissociáveis, já que não se pode encarar um sem vislumbrar o outro, como num espelho que inverte a imagem da mesma “figura”, coloca o arguido nesta situação absurda: naquele em que é condenado, não lhe é permitido recorrer para obter a sua absolvição, no outro em que é absolvido, a acusação pode recorrer para obter a sua condenação!

XII - Esta diferença de tratamento, em casos que deveriam ser tratados como iguais, é irrazoável e arbitrária, para mais com ofensa do núcleo fundamental do direito de defesa.

XIII - Há ofensa, nesta interpretação das normas de processo penal, dos art.ºs 13.º e 32.º, n.º 1, da Constituição, por violação material dos direitos à igualdade e de defesa (através do recurso) no processo penal.

XIV - Note-se que estamos aqui a reportar-nos a um caso específico, em que a condenação na 1ª instância foi numa pena não privativa de liberdade e que, posteriormente, reapreciada pela Relação em sede de recurso, foi determinada a absolvição do arguido. Pois, se a condenação na 1ª instância fosse em pena privativa de liberdade, nenhuma objecção se poria ao recurso para o STJ por parte da acusação contra o acórdão absolutório da Relação, pois que na situação simetricamente oposta (absolvição na 1ª instância e condenação na Relação em pena privativa da liberdade) o arguido poderia interpor recurso para o STJ (cfr. al. e, a contrario, do n.º 1 do art.º 400.º do CPP).

XV - Concluímos, assim, que é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 13º e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação dos artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no sentido de que é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo Ministério Público ou pelo Assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido por determinado crime e que, assim, revogou a condenação do mesmo na 1ª instância numa pena não privativa da liberdade.

Decisão Texto Integral:

I. No presente processo, em 15 de Outubro de 2010, o relator proferiu a seguinte decisão sumária:

DECISÃO SUMÁRIA

1. A foi julgado na 1ª Vara Criminal de Lisboa, no âmbito do processo n.º 263/06.8JFLSB, estando então pronunciado, após acusação do M.º P.º, acompanhada pelo Assistente B, pela prática de um crime de corrupção activa para a prática de acto ilícito, previsto e punível no art.º 374.°, n.º 1, por referência aos art.ºs 376.°, n.º 1, e 386.°, n.º 1, ambos do C. Penal, bem como no art.º 18.°, n.º 1, por referência aos art.ºs 16.°, n.º 1, e 3.°, n.º 1, alínea i), da Lei 34/87 de 16/7, na redacção da Lei 108/2001 de 28/11.

Por acórdão de 23/02/2009, foi condenado, naquela 1ª instância, como autor material de um crime de corrupção activa para acto lícito, p. e p. pelo art.º 18.°, n.º 2, da Lei 34/87 de 16/7, na redacção da Lei 108/2001 de 28/11, na pena de 25 (vinte e cinco) dias de multa à razão diária de € 200 (duzentos euros), o que perfaz o montante global de € 5000 (cinco mil euros).

Desse acórdão condenatório recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa quer o arguido, que pediu a sua absolvição, quer o M.º P.º e o Assistente, estes a pedirem a condenação do arguido pela prática do crime por que estava pronunciado.

Por acórdão de 22-04-2010, o Tribunal da Relação de Lisboa veio a absolver o arguido, com o fundamento de que os factos provados na 1ª instância não configuravam os elementos típicos do crime de corrupção activa de titular de cargo político.

2. Inconformados, recorrem o Ministério Público e o Assistente para o Supremo Tribunal de Justiça.

O primeiro pediu a anulação do acórdão por falta de pronúncia quanto à impugnação da matéria de facto, ou o reenvio por existência de vícios do art.º 410.º, n.º 2, do CPP, ou a condenação do arguido por corrupção activa para acto ilícito (embora, por lapso tenha escrito “lícito). O segundo pediu a condenação do arguido pelo crime por que estava pronunciado.

O arguido respondeu e pediu a manutenção da sua absolvição.

Todos se pronunciaram sobre a questão prévia da recorribilidade da decisão para o STJ. O recurso foi admitido e subiu para este Tribunal, onde o Ministério Público, em opinião divergente do seu colega da Relação, se pronunciou pela irrecorribilidade.

Nos termos do art.º 417.º, n.º 2, do CPP, arguido e Assistente pronunciaram-se sobre o Parecer do M.º P.º no STJ.

3. Fazendo uma súmula das opiniões já manifestadas nos autos pelos diversos intervenientes processuais quanto à referida questão prévia, vemos que os mesmos se pronunciaram do seguinte modo:

a) O Ministério Público junto do Tribunal da Relação:

«… Não se desenhando, assim, urna situação de dupla conforme absolutória, não se enquadra o aresto desta Relação no regime de irrecorribilidade consagrado na alínea e) do n.º 1 do art.º 400.° do C.P.P., nem, quer-nos parecer, em qualquer dos restantes segmentos normativos enumerados nas demais alíneas deste preceito; d) Ora, decorrendo, por um lado, do disposto no art.º 399.° do C.P.P. o princípio geral da recorribilidade das decisões, e, por outro, a excepção de não admissibilidade de recurso nos casos expressamente previstos, afigura-se-nos, salvo melhor entendimento, que não pode deixar de se concluir pela inexistência de qualquer norma que, "in casu", obste à interposição do presente recurso para o S.T.J.».

b) O Assistente:

«…a regra geral do ordenamento processual-penal nacional é a da recorribilidade das decisões "cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei", nos termos expostos no artigo 3992 do Código de Processo Penal. Por outro lado, do artigo 432°-, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal resulta que são recorríveis as "decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º".
Finalmente, constatamos que a situação de uma decisão absolutória proferida pelo Tribunal da Relação que não tenha confirmado a decisão da primeira instância não está prevista em nenhuma das situações tipificadas do artigo 400°- do Código de Processo Penal, logo é recorrível.
Efectivamente, a Lei nº 48/2007 de 29.3 manteve a regra da dupla conforme -- que já vinha da Lei nº 59/98 - no caso de acórdãos absolutórios mas, ao invés, impõe claramente a conclusão de que o acórdão absolutório proferido, em recurso, pelo Tribunal da Relação após condenação pela primeira instância é sempre recorrível.»

[Na resposta ao MP no STJ]:

27. (…) quando se faz o confronto da actuai alínea e) do nº 1 do art. 400° do CPP (que refere inteligivelmente não ser admissível recurso: "De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa da liberdade ") com a interpretação supra proposta pelo Parecer do MP chega-se á conclusão de que não estamos nem no domínio da interpretação restritiva nem no domínio de uma interpretação extensiva;
28. Ou melhor, não estamos no domínio de uma legítima interpretação de uma norma excepcional, seja ela de que tipo for;
29. Com efeito, o sentido de tal interpretação alarga significativa e objectivamente o conjunto de casos/situações não passíveis de recurso, ou seja de situações também "excepcionalmente" não recorríveis;
30. Estaríamos, a seguir-se tal tese, a interpretar a alínea e) do artigo 400° do CPP de modo a não só abranger decisões condenatórias (em pena não privativa da liberdade) – como resulta claramente da letra da lei – mas também agora abrangendo um conjunto de decisões absolutórias nos termos enunciados;
31. Parece evidente que se trata de uma interpretação extensiva ilegítima de uma norma excepcional (…).
(…)
45. Independentemente dos tipos de interpretação, logo abrangendo necessariamente aquelas que legalmente se podem fazer sobre normas excepcionais, existe uma obrigatória conformidade de tais interpretações com a regra geral de interpretação da lei – e esta sem excepção! - contida no artigo 9° do Código Civil;
46. Tal preceito define os critérios que o intérprete (e/ou aplicador) deve seguir e contém no seu nº 2 um limite inultrapassável - também sem excepção -, qual seja o de não poder ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso;
47. Trata-se, à semelhança da figura do "denominador comum" na matemática, de uma constante imperativamente fixada a qualquer operação interpretativa;
48. Não se verificando tal denominador comum definido no nº 2 do artigo 9° do CC restam dois territórios marginais ao citado preceito para qualificar a acção do aplicador da lei;
49. Ou entramos no território da analogia só possível face a verificadas lacunas da lei – que não pode ser o caso dos presentes autos como supra justificado –,
50. Ou acabamos no território da violação directa da lei, maxime através de uma interpretação contra legem;
51. É este derradeiro cenário que resulta da aceitação da tese contida no Parecer do MP;
(…)
66. No fundo, mais uma vez, se aceitássemos a ideia contida nos pareceres acima referidos estaríamos a proceder a uma interpretação contra legem também, da alínea d), e não já só da alínea e), por não limitarmos a irrecorribilidade a acórdãos absolutórios conformes ...mas estendermos tal irrecorribilidade também a acórdãos absolutórios desconformes;
(…)
83. O direito constitucional ao recurso por parte do Assistente decorre quer do direito de acesso aos tribunais, com sede no artigo 20° da Constituição da República Portuguesa, quer do artigo 6°, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, estando inequivocamente consagrado na actual redacção do artigo 32° da CRP;
84. O direito constitucional do Assistente ao recurso da sentença, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito, é uma consequência do reconhecimento constitucional do seu direito de participação constitutiva na realização dos fins da justiça criminal;
(…)
90.0 artigo 32°, nº 1 da CRP tem hoje efectivamente seguinte redacção: "o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso ";
91. As "garantias" do processo criminal já não são apenas as garantias do arguido, mas as garantias dos sujeitos processuais interessados no pleito criminal, o arguido e o ofendido, seja constituído como assistente, seja representado pelo Ministério Público;
92. Este é também o entendimento do Tribunal Constitucional;
(…)
95. Uma interpretação da lei vigente que conclua pela proibição de recurso no caso dos presentes autos constitui, por violação dos artigos 399, 400 e 432 do CPP, conjugada com a violação das imperativas regras hermenêuticas, maxime do artigo 9° do Código Civil -- e, ainda dentro deste preceito, particularmente dos seus nºs 2 e 3 - uma denegação do direito ao recurso, um esvaziamento inaceitável de tal direito, corolário de um princípio fundamental da nossa ordem jurídica e nomeadamente do direito processual-penal;
96. Consequentemente, tal interpretação – que o Assistente não tem dúvidas em qualificar de contra legem – tem igualmente uma consequência no plano constitucional:
97. Assim, será inconstitucional, por violar os artigos 32.°, n.º 1 e nº 7, e 20°, da Constituição da República, o conjunto normativo dos artigos 399°, 400° e 432°, do CPP, caso seja interpretado no sentido de serem irrecorríveis os acórdãos absolutórios da Relação desconformes com os acórdãos condenatórios do Tribunal Colectivo de !ª instância;
98. Noutra formulação, será igualmente inconstitucional, por violar os artigos 32.°, n.º 1 e nº 7, e 20°, da Constituição da República, o conjunto normativo dos artigos 399°, 400° e 432°, do CPP, caso seja interpretado no sentido de não ser admissível recurso para o STJ de acórdão absolutório, proferido, em recurso, pela Relação, não confirmatório de decisão que, prolatada em primeira instância por tribunal colectivo, haja condenado o arguido em pena não privativa da liberdade;


c) O arguido:

«…Salvo o devido respeito por opinião mais avalizada, quanto a esse crime, verifica-se, sem margem para dúvida, dupla conforme absolutória.
Assim sendo, como é, o douto acórdão da Relação é irrecorrível quanto ao crime de corrupção activa para acto ilícito, atento o disposto no art.º 400°, 1, d).
A única questão que poderia, assim subsistir, seria a da recorribilidade do douto acórdão, na parte em que não confirmou a decisão de 1ª instância, ou seja, na parte em que absolveu o Arguido pelo crime de corrupção activa para acto lícito, pelo qual tinha sido condenado.
Também nessa parte a decisão é irrecorrível.
Tal crime é punível com pena de prisão até seis meses e foi punido, em 1ª instância numa pena de multa.
A revisão do Código de Processo Penal a que se procedeu em 2007 introduziu, como é sabido, em sede de recursos, um regime que fiem por referência as penas aplicadas e não as penas aplicáveis.
O Supremo Tribunal de Justiça, face às alterações legislativas daquela, em muitos e significativos aspectos, infelicíssima reforma, tem vindo a manter Jurisprudência no sentido de impedir que lhe sejam submetidas para apreciação bagatelas penais.
Tal Jurisprudência polariza-se na inadmissibilidade de recurso para o STJ de decisões do Tribunal Singular.
Ou seja, decisões que não aplicam, nem podiam aplicar, penas concretas de prisão superior a cinco anos.
É esse, a todas és luzes, o caso vertente.
Mais: é esse o caso, desde a primeira hora.
Na verdade, só por erro - que em nada prejudicou os Intervenientes, com especial relevo para o Arguido, que viu reforçadas as garantias da boa administração da Justiça mediante a intervenção do dum Tribunal Colectivo, portanto, mais qualificado, só por erro, dizíamos, é que este processo foi julgado por Tribuna! Colectivo, uma vez que não corre nenhuma das situações excepcionais em que, sendo o crime punível com pena de prisão não superior a cinco anos, o processo é subtraído à competência do Juiz Singular.
Desde início, por conseguinte, jamais o Arguido poderia - ou poderá - ser punido com pena concreta de prisão superior a cinco anos.
Ainda que pudesse vir a ser condenado pelo crime de corrupção activa para acto lícito, jamais poderia sequer ser punido em pena de prisão, sob pena de reformatio in pejus.
E se, por absurdo o pudesse ser, nunca essa pena poderia, em concreto, exceder seis meses de prisão - que é limite máximo previsto na moldura penal da corrupção activa para acto lícito.
O Supremo Tribunal de Justiça não pode perder tempo com este tipo de bagatelas penais - na verdade, á mais baixa de todas as penas de prisão previstas em todas as molduras previstas nos tipos consagrados na nossa lei penal.
Assim sendo, além de irrecorrível! por força do disposto na ai. d) do n.º 1 ° do art.º 400°, o douto acórdão impugnado, é também irrecorrível por força das disposições combinadas dos art.ºs 400.°, n.º 1, als. e) e g), e 432°, n.º 1, al. c).
No sentido da irrecorribilidade se pronuncia o Ex.mo Prof. Doutor JOSÉ MANUEL DAMIÃO DA CUNHA no douto Parecer que, a propósito, elaborou e agora se junta, e cujo conteúdo, com a devida vénia, se dá por reproduzido aqui.

d) O Ministério Público junto do STJ:

«1.2. - Como bem se sabe o direito ao recurso (elemento que integra o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido, objecto de tutela constitucional – art.º, 32°, n.º 1, da C.R.P. - ) não é irrestrito de sorte que a lei fundamental, se não impõe que tenha de haver recurso de todas as decisões jurisdicionais que afectem direitos e interesses dos sujeitos e participantes processuais, não exige igualmente que se assegure um triplo grau de jurisdição, antes pressupõe tão só a existência de um duplo grau de jurisdição.
E como também não se ignora, a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões penais encontra-se prevista especifica e autonomamente no art. 432° do C.P.P., sendo de uma forma directa nas alíneas a), c) e d) do nº 1 e em moldes indirectos na alínea b) do mesmo normativo que prevê a recorribilidade das decisões que não sejam irrecorríveis, proferidas em recurso, pelas relações, nos termos do art. 400°, n.º 1.
Ora, considerando que em causa acha-se, como já visto, uma decisão proferida, em recurso, pela Relação, impõe-se atentar no que flui do citado art. 400° nº 1 do C.P.P.. E fazendo-o cumpre desde logo constatar que em nenhuma das alíneas do mesmo n.º 1 do art. 400° do C.P.P., maxime nas alíneas c), d) e e), encontra cabimento o caso vertente.
E não encontra cabimento já que a decisão ora sob impugnação: a) conheceu, a final, do objecto do processo; b) trata-se de um acórdão absolutório não confirmatório da decisão proferida em primeira instância; c) não aplicou pena alguma, privativa ou não privativa de liberdade.
Em face disto, a primeira reacção poderia, de facto, ir no sentido de, considerando tratar-se de lacuna da lei, defender a recorribilidade da decisão - se não através da alínea e), visto o aresto impugnado não ter aplicado urna qualquer pena (privativa ou não privativa da liberdade) -, por argumento na alínea d), a contrario. Porém, logo com um escolho se depararia: é que a decisão da Relação aqui objecto de recurso, conquanto absolutória, não confirmou a prolatada em primeira instância.
Dificuldades a que não poderão deixar de acrescer as que, invocadas por quem - como nós, adiantamos - defende a irrecorribilidade da decisão em causa, se prendem com a clara intenção do legislador da Lei nº 48/2007, de 29.08 de restringir os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior merecimento e complexidade (esta conotada, por via da técnica usada para aferir da admissibilidade do recurso, com a espécie e medida da pena aplicada e com respeito ás quais a situação vertente não se coadunaria, não tanto pela natureza do bem jurídico violado, mas em resultado da espécie e molduras das penas previstas para os crimes de corrupção activa para acto ilícito e lícito) e de que constituem manifestações bem paradigmáticas as limitações decorrentes: a) tratando-se de recurso directo para o S.T.J., do preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 432° do C.P.P. e, h) estando em causa decisões proferidas pelas relações, em recurso, do estatuído na al. f) do nº 1 do art. 400° do mesmo diploma legal.
Ora, face a esta situação [em que, para integração de eventual lacuna (que, não se afigurando real e verdadeira, antes parece ter ficado a dever-se a uma redacção menos hábil, escorreita e cuidada, como tantas vezes aliás acontece e que determina o Supremo Tribunal de Justiça a fixar o sentido como determinada norma, pouco expressiva no seu conteúdo, deve ser interpretada), as possibilidades de resolução (colidindo, por força, com o pensamento e vontade do legislador de vedar o recurso de segundo grau para o S.T.J. de uma condenação em multa ou em qualquer pena não privativa de liberdade ou ainda de um acórdão absolutório da Relação), não respeitam de todo em todo a unidade do sistema instituído em matéria de recursos nem tão pouco se compatibiliza com o sentido literal da citada norma da alínea e), e muito menos da alínea d), do nº 1 do art. 400° do C.P.P., crê-se igualmente que a resolução da problemática em apreço passa por proceder-se a uma interpretação restritiva da mesma alínea e) do nº 1 do art. 400° do C.P.P. e que vai no sentido de não ser admissível recurso para o S.T.J. de acórdão absolutório, proferido, em recurso, pela Relação, não confirmatório de decisão que, prolatada em primeira instância, haja condenado o arguido em pena não privativa de liberdade, como aliás vem considerando a jurisprudência deste Supremo Tribunal.

4. Cumpre decidir a questão prévia da recorribilidade.

Os factos descritos nos autos ocorreram em 2006, mas a condenação na 1ª instância já foi em 2009 e a da 2ª em 2010.

Pode colocar-se, portanto, um problema de aplicação da lei processual no tempo, pois entre os factos e a sentença condenatória houve uma mudança de redacção das normas que regulam a recorribilidade das decisões penais, por virtude da reforma do CPP de 2007.

O art.º 5.º do CPP dispõe que a lei processual penal é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior (n.º 1). Porém, (n.º 2) a lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar:

a) Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa; ou

b) Quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo.

Esta disposição aplica-se, obviamente, ao recurso no processo penal e, concretamente, na parte que agora nos importa, às regras que respeitam à sua interposição.

Não vamos aqui escalpelizar, de novo, os argumentos que levaram o STJ à jurisprudência firme de que, em processo penal, a lei que regula a recorribilidade de uma decisão, ainda que esta tenha sido proferida em recurso pela Relação, é a que se encontrava em vigor no momento em que a 1ª instância decidiu, salvo se lei posterior for mais favorável para o arguido.

E não o vamos fazer, pois essa jurisprudência já foi sufragada pelo acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/2008, in DR de 2009-03-19. Remetemos a fundamentação, portanto, para a que aí foi explanada.

Deste modo, no caso em apreço, aplicam-se as regras de recorribilidade que hoje se encontram em vigor e não as da altura em que se iniciou o processo.

*

Em matéria de recorribilidade no processo penal rege o princípio geral que se encontra enunciado no art.º 399.º do código respectivo, onde se diz que “é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.”

Os casos em que as decisões judiciais não são recorríveis estão essencialmente tipificados no art.º 400.º do CPP e, por vezes, em normas avulsas, devendo interpretar-se, tanto uma como as outras, como leis de excepção, valendo, na dúvida, a regra geral.

A decisão recorrida é um acórdão absolutório do Tribunal da Relação, tirado em recurso de decisão da 1ª instância que condenara o arguido em pena de multa.

Será recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça?

Se bem atentarmos nos recursos do M.º P.º e do Assistente, ambos têm um objectivo final: a condenação do arguido pelo crime por que estava pronunciado, o de corrupção activa para acto ilícito.

Nessa vertente, todavia, o recurso nunca poderia ser admitido, pois já houve uma dupla absolvição: a da 1ª instância (que ao condenar o arguido pelo crime de corrupção activa para acto lícito, absolveu-o, implicitamente, pelo crime mais grave) e, obviamente, a da Relação (que entendeu não haver qualquer crime de corrupção).

Rege nesta parte, portanto, o disposto na al. d) do n.º 1 do art.º 400.º do CPP07.

Tal constatação não basta para resolver o problema da recorribilidade, pois entre o crime de corrupção activa para acto ilícito e o de corrupção activa para acto lícito há uma relação de concurso legal aparente, de especialidade, em que ambos os crimes têm os mesmos elementos essenciais do tipo, mas em que cada um tem elementos suplementares que modificam a pena, pelo que é forçoso que se conheça do menos (crime menos grave) ainda que se tenha pedido a condenação pelo mais.

*

A decisão recorrida é uma decisão final que conheceu do mérito e que não confirmou a condenação da 1ª instância (quanto ao crime de corrupção activa para acto lícito) e, por isso, a recorribilidade não está excluída pelas alíneas c) e d) do art.º 400.º do CPP07, a primeira a considerar irrecorríveis os acórdãos da relação que não conheçam, a final, do objecto do processo, a segunda a determinar a irrecorribilidade dos acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância.

Também não foi aplicada qualquer pena e, por isso, a situação não cabe nos casos de irrecorribilidade das alíneas e) e f) da mesma norma.

Assim, a decisão não está abrangida pelos casos de irrecorribilidade configurados no art.º 400.º do CPP07, nem em qualquer outra norma legal, pelo que, à primeira vista, tudo aponta para a aplicação da regra geral definida no art.º 399.º, isto é, para a recorribilidade.

*

Parece-nos evidente que não se devem esgrimir argumentos de ordem lógico-sistemática para contrariar essa ideia da recorribilidade, como fazem o arguido e o M.º P.º no STJ, até porque a regra é a da recorribilidade e, portanto, as exclusões devem ser tratadas de forma restritiva quanto aos casos de não recorribilidade.

Mas, vejamos o que se diz com tal tipo de argumentos.

Se o sistema de recursos para o STJ já pecava por ser defeituoso antes da reforma de 2007, depois dela vieram a surgir muitas outras dúvidas, de natureza diferente, que terão resultado de alterações legislativas de última hora introduzidas no projecto inicial de revisão do CPP e que lhe desvirtuaram a linha orientadora.

Parecem existir duas claras linhas de força nas regras que constam das diversas alíneas da actual redacção do art.º 400.º do CPP, quando conjugadas com os art.ºs 427.º e 432.º.

Uma, a do primado da dupla conforme, pelo que, quando duas instâncias estão de acordo quanto à questão de mérito, só se permite uma tripla apreciação em sede de recurso ordinário em casos considerados de grande gravidade. Outra, a de que ao STJ, como última instância de recurso, só cabem os tais casos considerados de grande gravidade, aferida pela pena aplicada e não pela pena aplicável, dada a sua natureza de tribunal de revista, com função essencialmente uniformizadora da jurisprudência.

Assim, no que respeita ao princípio da dupla conforme, verifica-se que não há recurso para o STJ se a Relação confirmar uma absolvição da 1ª instância ou uma pena que aí tenha sido aplicada até 8 anos de prisão (art.º 400.º, n.º 1, als. d e f, do CPP). E quanto ao princípio de que ao STJ só chegam, pela via do recurso, os casos considerados de maior gravidade, veja-se a norma que não permite o recurso se a Relação condenar o arguido em pena não privativa da liberdade, qualquer que tenha sido a decisão da 1ª instância (absolvição, condenação em multa ou em prisão, etc.) e atente-se na norma que não permite o recurso directo para o STJ de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos (art.º 432.º, n.º 1, al. c).

Mas estas linhas orientadoras não surgem como absolutas, pois sofrem de duas ou três excepções, cuja compreensibilidade não é evidente.

Com efeito,

é admitida uma tripla apreciação em sede de recurso nos casos em que a Relação, em decisão desconforme com a 1ª instância, condena o arguido em pena privativa da liberdade, ainda que fixada no mínimo de 30 dias de prisão (art.º 400.º, n.º 1, al. e, “a contrario”). A gravidade do caso, aqui, não resulta da duração da pena, como noutras alíneas da mesma norma, mas da circunstância do arguido ter o direito de ver reapreciada a sua situação após a sua primeira condenação em pena privativa da liberdade.

Mas já não é permitido o recurso ao arguido, por força da mesma alínea e), no caso em que a Relação, em desconformidade com a 1ª instância, que até pode ter tido uma sentença absolutória, o vir a condenar em pena não privativa da liberdade. Aqui, apesar de não haver dupla conforme, o legislador terá entendido que a aplicação de uma mera pena de multa ou de outra não privativa da liberdade por um tribunal superior não tinha dignidade para seguir para a última instância de recurso.

Por fim, ainda como excepção ao princípio de que ao STJ só chegam os casos mais graves, aferidos pela dimensão da pena aplicada, há a situação presente, em que parece permitir-se o recurso para o STJ, como já vimos, nos casos em que a Relação, em decisão desconforme com a 1ª instância, absolve o arguido do crime, qualquer que tenha sido a pena aplicada na 1ª instância, mesmo que não privativa da liberdade.

Esta última situação não parece enquadrar-se no restante esquema legal. Efectivamente, é pouco compreensível que o STJ não possa reapreciar em sede de recurso ordinário um caso em que a Relação confirmou uma condenação numa pena pesada de 8 anos de prisão, mas já o possa fazer se, como é o caso dos autos, o arguido foi condenado na 1ª instância em pena de multa e depois absolvido pela Relação.

Contudo, não parece que devamos seguir por esta via, pois aos tribunais não cabe discutir o critério legislativo, ou a falta dele, no que respeita às questões que podem ou não chegar ao Supremo Tribunal de Justiça pela via do recurso, umas mais graves que não lhe podem ser colocadas, outras de menor dimensão e que são sujeitas à sua reapreciação. Tal critério, bom ou mau, é definido no âmbito da competência da política legislativa, reservada à Assembleia da República.

Para além de que a regra geral é a da recorribilidade.

Não é, pois, por esse motivo, de ordem lógico-sistemática, que se pode recusar a recorribilidade da decisão proferida nestes autos pela Relação, quanto à existência do crime de corrupção activa para acto lícito.

*

Já vimos que a simples leitura dos art.ºs 399.º e 400.º do CPP permite que existam em simultâneo estas duas situações:

- não é recorrível para o STJ o acórdão da Relação, proferido em recurso, que condenou o arguido numa pena não privativa da liberdade por determinado crime e que, assim, revogou a absolvição da 1ª instância (art.º 400.º, n.º 1, al. e, do CPP);

- é recorrível para o STJ o acórdão da Relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido por determinado crime e que, assim, revogou a condenação do mesmo na 1ª instância numa pena não privativa da liberdade (art.ºs 399.º e 400.º, este “a contrario”).

Trata-se, porém, da mesma situação, embora em posições invertidas, pois uma é simetricamente o inverso da outra. Apesar da manifesta semelhança, há um tratamento legislativo diferente ao nível da interposição dos recursos.

*

A primeira situação não é passível de um juízo de inconstitucionalidade.

Na verdade, o art.º 32.º, n.º 1, da Constituição dispõe que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

É indiscutível, portanto, que o direito ao recurso faz parte do núcleo fundamental dos direitos de defesa.

Sobre esta questão há jurisprudência firme do Tribunal Constitucional desde há muitos anos.

«Em matéria de direito penal, a Constituição garante aos arguido que o processo penal lhes assegura "todas as garantias de defesa", ou seja, todos os direitos e instrumentos necessários para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Um dos meios ou uma das expressões do direito de defesa e o direito de recorrer, precisando todavia a jurisprudência que, ressalvado o "núcleo essencial" do direito de defesa centrado no direito de recorrer da sentença condenatória e dos actos judiciais que privem ou restrinjam a liberdade do arguido ou afectem outros direitos fundamentais seus, o direito de recorrer pode ser restringido ou limitado em certas fases do processo, podendo mesmo não ser admitido relativamente a certos actos do juiz» (Ac. do TC de 28-06-1994, proc. 113/92).

Mas, o Tribunal Constitucional tem reafirmado em diversos acórdãos e ao longo dos anos que «A Constituição não impõe ao legislador a obrigação de consagrar o direito de recorrer de todo e qualquer acto do juiz, admitindo-se embora, no processo penal, o direito a um duplo grau de jurisdição como decorrência da exigência constitucional do principio da defesa, mas já não o direito a um triplo grau de jurisdição» (v.g. Acs. do TC n.ºs 163/90 de 23-05-1990, 331/02 de 10-07-2002, 377/03 de 15-07-2003, 375/05 de 07-07-2005, 64/06 de 24-01-2006, 530/07 de 29-10-2007).

Assim, o facto do arguido no caso da al. e) do n.º 1 do art.º 400.º do CPP07 não dispor de um terceiro grau de recurso não viola a Constituição, pois o núcleo essencial dos seus direitos de defesa já ficou ressalvado com o duplo grau de jurisdição, para mais num caso em que a decisão final nem sequer o privou nem lhe restringiu o direito à liberdade.

Nesse sentido muito recentemente voltou a pronunciar-se o TC, no acórdão n.º 353/2010, de 6/10/2010, proc. 30/2010, confirmando ser conforme à Constituição a interpretação de que não é recorrível para o STJ o acórdão da relação, tirado em recurso, que aplicou uma pena de prisão suspensa na sua execução, após absolvição na 1ª instância: “(…) é claríssima a jurisprudência constitucional sobre o tema. Como se afirmou, por exemplo, no Acórdão nº 49/2003, e se confirmou nos Acórdãos nºs 255/2005, 487/2006 e 682/2006 (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), o direito ao recurso que, nos termos do nº 1 do artigo 32.º da CRP, integra as garantias de defesa do arguido constitucionalmente tuteladas, coincide, pelos seus fundamentos, com a garantia de um duplo grau de jurisdição, ou seja, com a garantia de que a causa seja reexaminada por um tribunal superior, perante o qual tenha o arguido a possibilidade de apresentar de novo a sua visão sobre os factos ou sobre o direito aplicável. Por outras palavras, não decorre da Constituição a imposição, em processo penal, do esgotamento de todas as instâncias que a lei preveja. Ao legislador é portanto lícito determinar a irrecorribilidade das decisões da relação que, em recurso de decisões absolutórias proferidas em 1ª instância, condenem o arguido, desde que tal determinação se não apresente como algo manifestamente desproporcionado ou lesivo de quaisquer outros princípios constitucionais.»

*

Contudo, o que já não é tolerável do ponto de vista dos direitos de defesa é que no caso simetricamente oposto a esse, em que ao arguido continua vedado o direito a novo recurso, agora por falta de interesse em agir (pois foi absolvido na segunda instância da acusação, após condenação na 1ª instância em pena não privativa da liberdade), a acusação, isto é, o Ministério Público ou Assistente, possa recorrer.

Nas “duas imagens invertidas”, o arguido não teria direito a interpor recurso em qualquer delas, mas permitir-se-ia ao M.º P.º e ao Assistente, numa delas, um direito que àquele não assiste (o terceiro grau de jurisdição).

Criar-se-ia uma desigualdade de armas, desfavorecendo o arguido e beneficiando a acusação.

É certo que o Processo Penal não é um processo de partes. Mas o direito de defesa, constitucionalmente protegido, exige a igualdade de armas, pelo menos após o encerramento do inquérito.

«O princípio da igualdade de armas, em processo penal de um Estado de Direito, está ao serviço do arguido, visando garantir que ele não seja colocado em inferioridade no processo (…). O direito ao recurso, enquanto dimensão essencial do princípio da defesa não pode ser visto como uma garantia do assistente mas tão só do arguido» (Ac. do TC de 27-10-1992. proc. 277/91).

A “igualdade de armas” no processo prende-se também com o princípio constitucional da igualdade.

O princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição exige a dação de tratamento igual aquilo que, essencialmente, for igual, reclamando, por outro lado, a dação de tratamento desigual para o que for dissemelhante, não proibindo, por isso, a efectivação de distinções. Ponto é que estas sejam estabelecidas com fundamento material bastante e, assim, se não apresentem como irrazoáveis ou arbitrárias” (Ac. do TC de 01-03-1994, proc. 504/92).

Ora, o tratamento diferente que a lei processual dá aos dois casos de recorribilidade anteriormente indicados, simetricamente opostos e, portanto, indissociáveis, já que não se pode encarar um sem vislumbrar o outro, como num espelho que inverte a imagem da mesma “figura”, coloca o arguido nesta situação absurda: naquele em que é condenado, não lhe é permitido recorrer para obter a sua absolvição, no outro em que é absolvido, a acusação pode recorrer para obter a sua condenação!

Esta diferença de tratamento, em casos que deveriam ser tratados como iguais, é irrazoável e arbitrária, para mais com ofensa do núcleo fundamental do direito de defesa.

Há ofensa, nesta interpretação das normas de processo penal, dos art.ºs 13.º e 32.º, n.º 1, da Constituição, por violação material dos direitos à igualdade e de defesa (através do recurso) no processo penal. Não se nega à “acusação” (M.º P.º ou Assistente) o direito, também constitucionalmente protegido, de recorrerem das decisões desfavoráveis, mas têm de o fazer em pé de igualdade com a defesa, nunca com superioridade de meios.

Note-se que estamos aqui a reportar-nos a um caso específico, em que a condenação na 1ª instância foi numa pena não privativa de liberdade e que, posteriormente, reapreciada pela Relação em sede de recurso, foi determinada a absolvição do arguido. Pois, se a condenação na 1ª instância fosse em pena privativa de liberdade, nenhuma objecção se poria ao recurso para o STJ por parte da acusação contra o acórdão absolutório da Relação, pois que na situação simetricamente oposta (absolvição na 1ª instância e condenação na Relação em pena privativa da liberdade) o arguido poderia interpor recurso para o STJ (cfr. al. e, a contrario, do n.º 1 do art.º 400.º do CPP).

Concluímos, assim, que é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 13º e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação dos artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no sentido de que é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo Ministério Público ou pelo Assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido por determinado crime e que, assim, revogou a condenação do mesmo na 1ª instância numa pena não privativa da liberdade.

Termos em que se recusa a aplicação dessas normas com tal interpretação, que consideramos inconstitucional e, tendo em conta ainda o que se disse sobre os efeitos do disposto na al. d) do n.º 1 do art.º 400.º do CPP07 quanto ao crime de corrupção activa para acto ilícito, não se admitem os recursos do Ministério Público e do Assistente, que assim serão rejeitados.

5. Pelo exposto, por decisão sumária do relator, rejeitam-se os recursos do Ministério Público e do Assistente, por inadmissibilidade legal.

Nos termos dos art.ºs 515.º n.º 1, al. b), do CPP e 87.º, n.ºs 1, al. a) e 3, do CCJ, fixa-se em 2 (duas) UC a taxa de justiça a cargo do Assistente.

Nos termos do art.º 420.º, n.º 3, do CPP, o Assistente pagará, ainda, uma importância de 3 (três) UC.

Notifique.

II. Desta decisão sumária reclamaram para a conferência, nos termos do art.º 417.º, n.ºs 6 e 8, do CPP, o Ministério Público e o Assistente, os quais, em resumo, discordaram do seguinte:

A) O Ministério Público:

“…o Ministério Público discorda da douta decisão sumária por continuar a entender que, e contrariamente ao nesta decidido, não há recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão do Tribunal da Relação que conheça de recurso interposto de deci­são - seja do Tribunal Singular, Colectivo ou do Júri - que aplique pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a cinco anos, na linha da jurisprudência citada quando da vista nos termos do artigo 416.° do C.P.P., e sob pena de, diversamente, criar-se uma «contradição intrínseca que o equilíbrio normativo sobre o regime dos recursos para o STJ não pode comportar»
Devem, pois, os autos prosseguir para Conferência, a fim de que sobre a presente questão recaia acórdão que, atendendo a presente reclamação, declare irrecorrível a decisão do Tribunal da Relação.

B) O assistente:

13. (…) não se subscreve a tese inicial contida na Decisão Sumária ora por força do disposto no artigo 400°, 1, alínea d) do CPP07, reclamada de que, por força do disposto no artigo 400.º, 1, alínea d) do CPP07, sempre seria irrecorrível a decisão a quo com o propósito de ver apreciada e aceite uma condenação do arguido pelo crime de corrupção activa para acto ilícito;
14. De facto, na Decisão Sumária sufraga-se um entendimento de que nestes casos, como o dos autos, se verificou já uma situação de dupla absolvição:
a) Uma resultante da decisão da Relação que absolveu
b) E outra resultante de uma "absolvição implícita" na 1ª instância quando o arguido foi condenado por crime de corrupção mas para acto lícito.
15. A absolvição nestes autos apenas foi pela primeira vez decidida no Tribunal da Relação de Lisboa e é tão provisória como a condenação decidida na primeira instância, a qual não pode manifestamente ser considerada uma absolvição, especialmente para efeitos da linear e correcta interpretação do que seja a dupla conforme absolutória;
16. Diferente interpretação viola a lei processual penal e, ao restringir os direitos das partes, nomeadamente do Assistente/Ofendido, viola igualmente a Constituição da República Portuguesa como adiante se sintetizará;
(…)
60. Com efeito, a lei pretendeu salvaguardar a possibilidade de as partes verem sindicadas, pelo STJ, decisões desconformes das instâncias inferiores, particularmente quando a decisão da 2ª instância tem natureza absolutória;
61. É que, ao contrário das situações em que existe uma condenação em pena de multa (ou seja pena não privativa da liberdade) decidida pela Relação, nas situações contrárias, a decisão absolutória da 2ª instância não nos confere qualquer informação sobre uma eventual sanção punitiva (privativa ou não privativa da liberdade) caso tivesse havido uma decisão condenatória;
62. Repare-se que o regime da nova redacção do nº 1 do artigo 400° do CPP nunca se reporta à moldura legal do crime, como, por exemplo, acontecia com a anterior redacção das alíneas e) e f) do nº 1 desse artigo 400°;
63. Actualmente, em caso de decisões condenatórias, o que conta é a pena efectivamente aplicada, enquanto nos casos de absolvição não existe qualquer pena efectiva para avaliar da gravidade da situação;
64. Este vazio, esta indefinição, que só existe nos casos de decisão absolutória da Relação, constituiu certamente a razão principal para a fixação do regime actual de recorribilidade como se vem defendendo no presente caso;
65. Por isso mesmo a actual redacção do artigo 400°, nº 1, d), do CPP só podia restringir o recurso de decisões absolutórias ao caso da dupla conforme;
66. Não havendo dupla conforme não há parâmetro e é exactamente por isso que se justifica o recurso;
67. A compreensível limitação da possibilidade de recurso para o STJ aos casos de dupla absolutória conforme é a clara motivação para a existência de uma norma excepcional como a contida no artigo 400°, nº 1, alínea d) do CPP que o legislador não quis alterar e a lei manteve intocável;
(…)
77. Em suma: a decisão absolutória da Relação proferida nos presentes autos é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça;
(…)
82. O direito constitucional ao recurso por parte do Assistente decorre quer do direito de acesso aos tribunais, com sede no artigo 20° da Constituição da República Portuguesa, quer do artigo 6°, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, estando inequivocamente consagrado na actual redacção do artigo 32° da CRP;
83. O direito constitucional do Assistente ao recurso da sentença, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito, é uma consequência do reconhecimento constitucional do seu direito de participação constitutiva na realização dos fins da justiça criminal;
84. O direito de participação do ofendido no processo penal foi introduzido pela quarta revisão constitucional;
85. Lê-se agora no artigo 32°, nº 7 que "o ofendido tem o direito a intervir no processo, nos termos da lei";
86. Em consonância com este pensamento, na quarta revisão constitucional foi ainda constitucionalizado o direito ao recurso no artigo 32.° da Constituição da República, quer de sentença condenatória, quer de sentença absolutória, quer em benefício do arguido, quer em beneficio do ofendido;
87. A proposta de alteração inicial do texto constitucional restringia, na verdade, o direito de recurso à "sentença condenatória ", mas a proposta aprovada eliminou a referência ao tipo de sentença, pelo que se impõe o entendimento de que o direito de recurso abrange ambos os tipos de sentenças e outras decisões judiciais e beneficia igualmente o arguido e o ofendido, esteja ele constituído como Assistente ou esteja representado pelo Ministério Público (Diário da Assembleia da República, 7ª legislatura, 2ª sessão legislativa, n.º 20, de 12.9.1996, sobre a sessão de 11.9.1996, p. 528);
88. O artigo 32°, nº 1 da CRP tem hoje efectivamente a seguinte redacção: "o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso ";
89. As "garantias" do processo criminal já não são apenas as garantias do arguido, mas as garantias dos sujeitos processuais interessados no pleito criminal, o arguido e o ofendido, seja constituído como assistente, seja representado pelo Ministério Público;
90. Este é também o entendimento do Tribunal Constitucional;
(…)
93. Na Decisão Sumária parte-se do pressuposto de que o caso dos presentes autos está num grupo de situações simétricas daquele outro previsto no artigo 400°, nº 1, e), in fine do CPP;
94. Ora, neste capítulo remete-se para o que já escrevemos nos pontos 61 a 67 donde decorre, por um lado, não estarmos, na realidade, perante situações simétricas e, por outro, justificar-se o recurso nos casos de ausência de dupla conforme;
95. Na decisão sumária percorre-se seguidamente um trilho que nos leva a concluir estarmos perante um triplo grau de recurso, sendo este triplo grau não exigível - de acordo com a decisão sumária - quer pela lei constitucional quer pela sua jurisprudência;
96. Tal trilho serve para, a final, concluir que, não existindo semelhante grau de recurso para o arguido, estaríamos perante uma violação do princípio da igualdade de armas ...e, assim sendo, deve-se coarctar o direito ao recurso que a lei positiva prevê!
97. Vamos por partes de modo a manifestar mais secamente o desacordo com o caminho escolhido e o lugar chegado na Decisão Sumária;
98. Em primeiro lugar, para o Assistente, a garantia de recurso para o STJ é, no presente caso, uma mera garantia de um duplo grau de jurisdição porquanto a absolvição apenas foi proferida pela Relação;
99. Ora, o Assistente tem o direito constitucional de intervir no processo e mais especificamente o direito de intervir na fase de recurso (artigo 32, n.º 7 da CRP);
100. O Tribunal Constitucional tem reconhecido o direito do Assistente ao recurso como incluindo, no mínimo, o direito de recorrer de sentenças absolutórias;
101. No caso sub judice a decisão absolutória foi proferida pelo Tribunal da Relação pelo que se impõe o direito ao recurso para o Supremo Tribunal de Justiça;
102. Mas mesmo que se entendesse estarmos perante uma situação em que a lei processual penal prevê uma tripla jurisdição, certo é que tal regime é comum a um universo alargado de processos penais, cíveis e administrativos, apenas para dar alguns exemplos, sem que isso possa naturalmente ferir qualquer norma ou princípio constitucional;
103. Poderão alguns defender - não é o caso do Assistente como resulta do supra exposto - não ser exigível aquele regime ...mas o legislador e a lei consagraram-no para casos como o dos presentes autos;
104. A Decisão Sumária, contudo, após equiparar a situação destes autos a outra que considerou simétrica conclui que deve restringir o direito ao recurso previsto no CPP para a parte acusadora - negando o direito ao recurso - porque o arguido, na tal situação que considerou simétrica, não pode recorrer;
105. Já vimos porque razão o Assistente não subscreve a tese da simetria ou do espelho entre as situações analisadas, sendo agora tempo de, por dever de patrocínio e à cautela, passar a raciocinar com base nos pressupostos da decisão sumária: existência de simetria e triplo grau de recurso!
106. Ainda que estivesse correcta a avaliação dos pressupostos feita na Decisão Sumária, sempre será inaceitável cortar-se a uma das partes o direito a uma instância de recurso prevista expressamente na lei!
107. Como é possível aceitar-se que as normas do CPP que prevêem a possibilidade de mais uma instância de recurso - aqui nos presentes autos da decisão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça - sejam inconstitucionais?
108. Se estivéssemos numa situação inversa compreenderíamos;
(…)
112. Será assim uma aberração defender-se que, em casos equiparados e perante uma constatada desigualdade de armas, não é o recurso que a lei expressamente prevê que pode ser considerado inconstitucional mas antes a norma que impede o recurso da outra parte? E que, essa sim, poderá ferir a Constituição.
113. A resposta parece ao Assistente óbvia: o nivelamento tem de ser feito por cima, por ser mais garantístico, e não por baixo, por retirar garantias;
114. Esta regra deve valer para a generalidade das situações onde se possa efectuar o mesmo tipo de observação e avaliação;
115. A título exemplificativo veja-se o caso previsto no artigo 107, nº 6 do CPP, preceito que permite a prorrogação do prazo previsto no artigo 411 °, nºs 1 e 3 do CPP;
116. Porém, não existe semelhante norma para estabelecer o mesmo direito para o recorrido (seja ele acusador ou arguido), conforme resulta da leitura do artigo 413° do CPP;
117. Em nome do princípio da igualdade de armas deve, na lógica da Decisão Sumária, cortar-se o direito à prorrogação do prazo para o recorrente - ou seja, recusar-se a aplicação da norma com base na sua inconstitucionalidade - ou, pelo contrário, reconhecer-se que o recorrido tem de ter também tal direito e, consequentemente, atribuir-lhe tal possibilidade de prorrogação do prazo, sob pena de inconstitucionalidade?
118. Só é aceitável a escolha imperativa da última solução, assim não se violando nem a lei nem a CRP, antes pelo contrário, só assim se cumprindo os imperativos constitucionais;
119. Destarte, no caso dos presentes autos, em que não há dupla conforme absolutória, não existe qualquer inconstitucionalidade na aplicação das normas contidas nos art.ºs 399°, 400° e 432° do CPP no sentido de se conferir o direito ao recurso à(s) parte(s) acusadora(s);
120. Noutra sede, a da irrecorribilidade das decisões em que tenha sido aplicada pena não privativa da liberdade e não haja dupla conforme, aí é que se poderá discutir a (in)constitucionalidade do regime processual positivo português;
121. Uma interpretação da lei vigente que conclua pela proibição de recurso no caso dos presentes autos constitui, por violação dos artigos 399, 400 e 432 do CPP, conjugada com a violação das imperativas regras hermenêuticas, maxime do artigo 9° do Código Civil - e, ainda dentro deste preceito, particularmente dos seus nºs 2 e 3 - uma denegação do direito ao recurso, um esvaziamento inaceitável de tal direito, corolário de um princípio fundamental da nossa ordem jurídica e nomeadamente do direito processual-penal,
122. Consequentemente, tal interpretação tem igualmente uma consequência no plano constitucional:
123. Assim, é inconstitucional, por violar os artigos 32.°, n.º 1 e nº 7, e 20°, da Constituição da República, o conjunto normativo dos artigos 399°, 400° e 432°, do CPP, caso seja interpretado no sentido de serem irrecorríveis os acórdãos absolutórios da Relação desconformes com os acórdãos condenatórios do Tribunal Colectivo de 1ª instância;
124. Noutra formulação, é igualmente inconstitucional, por violar os artigos 32.°, n.º 1 e nº 7, e 20°, da Constituição da República, o conjunto normativo dos artigos 399°, 400° e 432°, do CPP, caso seja interpretado no sentido de não ser admissível recurso para o STJ de acórdão absolutório, proferido, em recurso, pela Relação, não confirmatório de decisão que, prolatada em primeira instância por Tribunal Colectivo, haja condenado o Arguido em pena não privativa da liberdade;
125. Ou ainda, tendo em mente o teor da Decisão Sumária, é inconstitucional, por violar os artigos 32.°, n.º 1 e nº 7, e 20°, da Constituição da República, a interpretação das alíneas d) e e) do nº 1 do art. 400° do CPP, conjugado com os artigos 9 e 11 do CC, no sentido de não ser admissível recurso para o STJ de acórdão absolutório, proferido em recurso, pela Relação, não confirmatório de decisão que, prolatada em primeira instância, haja condenado o arguido em pena de multa por crime de corrupção para acto lícito, estando o arguido acusado pelo crime de corrupção para acto ilícito e pugnando o Assistente pela condenação do Arguido por esse crime, com pena privativa da liberdade;
126. Todas as interpretações acima enunciadas violam ainda o princípio da reserva de lei (artigo 165, n.º 1, al. e) in fine da CRP} e o princípio da subordinação dos tribunais à lei (artigo 203 da CRP), uma ver que, a serem processadas tais interpretações pelo STJ, o tribunal se imiscui ilegitimamente na função legislativa, procedendo a uma “reconstrução” manifestamente contra legam da vontade do legislador, ultrapassando todos os limites constitucionais da interpretação dos preceitos referidos (400°, nas suas várias alíneas, e 399° do CPP) de modo que o STJ se converte em legislador e a tarefa da interpretação jurídica se converte em manipulação arbitrária da lei;
127. Todas as interpretações acima enunciadas violam igual e directamente o direito constitucional do assistente de intervir no processo e mais especificamente o seu direito de intervir na fase de recurso (artigo 32, n.º 7 da CRP), como anteriormente enunciado;
128. É igualmente violado o direito convencional do ofendido de intervir no processo e conformar a sanção dele resultante á lua da jurisprudência do TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS DO HOMEM (acórdãos Bekos e Koutropoulos v. Grécia, datado de 13.12.2005, e Okkali v. Turquia, datado de 17.10.2006), quer em casos em que o tribunal reconhece a existência de uma infracção, mas não condena os infractores (jurisprudência Bekos e Koutropoulos), quer em casos em que o tribunal condena os infractores em pena manifestamente insuficiente (jurisprudência Okkali);
NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO DEVE A PRESENTE RECLAMAÇÃO SER, EM CONFERÊNCIA, JULGADA PROCEDENTE, PROSSEGUINDO OS AUTOS A SUA MARCHA PROCESSUAL HABITUAL ATA DECISÃO FINAL,

III. Foram colhidos os vistos e realizada conferência com o formalismo legal.

Cumpre decidir as reclamações contra a decisão sumária do relator.

A) RECLAMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO

O Ministério Público entende, na esteira de alguma jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que não há recurso ordinário para este Tribunal de acórdão do Tribunal da Relação que conheça de recurso interposto de decisão - seja do tribunal singular, colectivo ou do júri - que aplique pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a cinco anos, pois assim ir-se-ia criar uma «contradição intrínseca que o equilíbrio normativo sobre o regime dos recursos para o STJ não pode comportar».

Não nos vamos alongar sobre este tema, pois a decisão sumária sob reclamação já contém suficiente resposta.

Recordemos, no entanto, que a referida jurisprudência refere que houve uma clara intenção do legislador da Lei nº 48/2007, de 29.08 de restringir os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior gravidade (esta conotada, por via da técnica usada para aferir da admissibilidade do recurso, com a espécie e medida da pena aplicada) e de que constituem manifestações bem paradigmáticas as limitações decorrentes:

a) tratando-se de recurso directo para o S.T.J., do preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 432° do C.P.P.

b) estando em causa decisões proferidas pelas relações, em recurso, do estatuído na al. f) do nº 1 do art. 400° do mesmo diploma legal.

Todavia, se, na verdade, como vem referido na decisão sumária, uma das linhas de força que orientou o legislador da reforma de 2007 na configuração normativa dos casos de recorribilidade para o STJ é a de que a este tribunal, como última instância de recurso, só devem caber os casos considerados de maior gravidade, aferida pela pena aplicada e não pela pena aplicável, o que é certo que tal não foi configurado como regra absoluta, impossível de ultrapassar, pois o próprio legislador logo admitiu pelo menos uma excepção, a que vem configurada no art.º 400.º, n.º 1, al. e), “a contrario”. Com efeito, através desta norma, o legislador quis fazer intervir o STJ numa terceira apreciação de recurso, nos casos em que a relação, julgando em recurso, aplique pena de prisão que não confirme a decisão da 1ª instância, ainda que a mesma seja fixada no mínimo de 30 dias. Bem longe, portanto, dos tais 5 anos de prisão que a referida jurisprudência considera como a pena a partir da qual se pode colocar o caso ao mais alto Tribunal.

Assim, se o próprio legislador abriu excepção à “regra”, não faz sentido erigir agora a «regra» como barreira inultrapassável, cuja violação constituiria uma «contradição intrínseca» do sistema.

Por outro lado, a regra geral não é a de que ao STJ só se apresentam os casos de maior gravidade, mas a de que todas as decisões são recorríveis se nada tiver sido disposto em contrário (art.º 399.º), pelo que não parece pertencer à melhor técnica jurídica a interpretação restritiva de certa norma ou de certo conjunto de normas, como faz agora o M.º P.º, visando demonstrar que não é admissível o recurso de determinada decisão. A interpretação restritiva não pode servir para aumentar o número de excepções à regra e sim para as diminuir, pelo que só deverá ser usada para confirmar que certa decisão é recorrível, não para lhe negar recorribilidade.

Por isso, confirma-se a decisão sumária na parte em que decidiu que a interpretação dos art.ºs 399.º e 400.º do CPP permite a recorribilidade do acórdão da relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido, anteriormente condenado em 1ª instância numa pena não privativa da liberdade.

Há que indeferir a reclamação do Ministério Público.

B) RECLAMAÇÃO DO ASSISTENTE

A reclamação do assistente assenta, essencialmente, nestas razões;

1ª- Não houve uma dupla absolvição do arguido quanto ao crime de corrupção activa para acto ilícito;

2ª- A decisão recorrida não cabe nas excepções à regra geral da recorribilidade;

3ª- O assistente goza do direito constitucional de recorrer das decisões que lhe são desfavoráveis;

4ª- Não há simetria de situações entre a ora debatida e a prevista no artigo 400°, nº 1, e), in fine, do CPP;

5ª- Não se verifica a inconstitucionalidade detectada na decisão sumária.

Na decisão sumária afirmou o relator que «nessa vertente [do crime de corrupção activa para acto ilícito], todavia, o recurso nunca poderia ser admitido, pois já houve uma dupla absolvição: a da 1ª instância (que ao condenar o arguido pelo crime de corrupção activa para acto lícito, absolveu-o, implicitamente, pelo crime mais grave) e, obviamente, a da Relação (que entendeu não haver qualquer crime de corrupção). Rege nesta parte, portanto, o disposto na al. d) do n.º 1 do art.º 400.º do CPP07».

Entende o Assistente, porém, que «a absolvição nestes autos apenas foi pela primeira vez decidida no Tribunal da Relação de Lisboa e é tão provisória como a condenação decidida na primeira instância, a qual não pode manifestamente ser considerada uma absolvição, especialmente para efeitos da linear e correcta interpretação do que seja a dupla conforme absolutória».

Acontece, todavia, que para a finalidade de se saber se certa decisão é ou não recorrível face ao disposto no art.º 400.º, n.º 1, al. d), do CPP, a dupla conforme absolutória aí referida é constituída, por definição, por uma sentença absolutória de 1ª instância com carácter provisório (pois dela foi interposto recurso para a relação) e por um acórdão absolutório da relação que ainda é recorrível, pelo menos, para o TC e que, portanto, também tem carácter provisório.

O que significa que, ao contrário do que diz o reclamante, para se saber se determinado acórdão absolutório da relação, proferido em recurso, é ou não recorrível para o STJ, torna-se imprescindível saber se tal decisão, ou mesmo a da 1ª instância, é na realidade “provisória”, pois se for “definitiva”, por já ter transitado em julgado, não há lugar a recurso ordinário.

Isto é, basta haver duas absolvições em instâncias diversas para que já não haja recurso ordinário da segunda decisão, apesar do carácter «provisório» de ambas.

Por outro lado, a absolvição na 1ª instância pelo crime de corrupção activa para acto ilícito, em rigor, não se pode ter como «implícita», como referiu o relator, mas sim como «necessária» face à decisão ali tomada. Na realidade, estando o arguido pronunciado por esse crime e tendo o tribunal convolado a pronúncia para crime menos grave, o crime mais grave da pronúncia foi, necessariamente, objecto de absolvição, pois a condenação foi por um crime diferente.

Não resta dúvida, portanto, que neste processo não pode ser objecto de recurso o crime de corrupção activa para acto ilícito, pois, nessa vertente, a decisão da relação não é recorrível, já que existe dupla conforme absolutória (art.º 400.º, n.º 1, al. d), do CPP07).

Improcede, nesta parte, a reclamação do Assistente.

A decisão sumária pronunciou-se no mesmo sentido pugnado pelo recorrente no que respeita à possibilidade de se interpretarem os art.ºs 399.º e 400.º do CPP – sem levar em conta um juízo sobre a constitucionalidade - no sentido de ser admissível recurso para o STJ de acórdão absolutório da relação, proferido em recurso, que se pronuncia sobre uma condenação da 1ª instância em pena não privativa da liberdade.

Na verdade, não se acolheu na decisão sumária a tese de que essa interpretação deve ser afastada por força de razões de unidade e coerência do sistema e já aqui tivemos a oportunidade de a rebater novamente, a respeito da reclamação do Ministério Público.

Sobre este ponto, portanto, nada mais há a dizer e, em rigor, nessa parte o Assistente não reclama da decisão sumária, pois aí esta é-lhe favorável.

A decisão sumária reconheceu que o Assistente goza do direito constitucional de recorrer das decisões que lhe são desfavoráveis.

Esse é ponto pacífico.

Mas, do que o Assistente não goza, tal como qualquer outro sujeito processual, é do direito constitucional de recorrer por mais do que uma vez, num triplo grau de recurso, pois, perante essa exigência, muita vezes reclamada, o TC tem negado desde sempre que a Constituição exija mais do que um grau de recurso como garantia dos sujeitos processuais, nomeadamente, da defesa, em variadíssimos acórdãos e de há muitos anos para cá.

O Assistente expressa o entendimento de que a decisão tirada em recurso pela Relação é diferente da que foi tomada na 1ª instância e que, portanto, ainda não teve oportunidade de recorrer dessa decisão inovadora. Teria, assim, o direito constitucional de dela recorrer, pois ainda não lhe foi dada essa oportunidade.

Mas, o que o TC vem dizendo é que o direito constitucional de recorrer se esgota com a reapreciação do caso, tanto no plano de facto como no de direito, por um Tribunal Superior e que a obtenção de uma dupla conforme não está protegida constitucionalmente. Isto é, o tribunal de recurso pode ou não estar de acordo com o tribunal recorrido que mesmo assim por aí se queda o direito constitucional de recorrer. Haverá ou não uma terceira apreciação em sede de recurso ordinário de acordo com o que estiver disposto na lei adjectiva sobre a recorribilidade, mas não como exigência constitucional.

Se assim não fosse, isto é, se o sujeito processual tivesse o direito constitucional de recorrer de qualquer decisão inovadora tirada em recurso, então os recursos poderiam vir a tornar-se sucessivos, num carrossel que só findaria com a dupla conforme. Mas, não é assim que a lei dispõe.

O que importa, do ponto de vista constitucional, é que o «caso penal», considerado por si mesmo, independentemente da solução concreta que tenha sido adoptada, possa ser reapreciado por uma instância superior, tanto no plano de facto como no de direito. Ora, o Assistente já teve a oportunidade – que não desperdiçou – de recorrer da decisão da 1ª instância para a Relação, quer quanto à matéria de facto quer quanto à de direito. Se terá ou não agora uma nova oportunidade para recorrer, em recurso ordinário para o STJ, é algo que a interpretação das várias normas adjectivas o dirá, mas não como decorrência de um suposto direito constitucional à repetição do recurso.

O Assistente entende que não há a simetria de situações anotada na decisão sumária do relator, entre a hipótese (1) de uma absolvição na 1ª instância a que se segue, na decisão do recurso, uma pena não privativa da liberdade e a hipótese (2) de uma pena não privativa da liberdade na 1ª instância a que se segue, na decisão do recurso, uma absolvição.

Diz, em suma, que «…ao contrário das situações em que existe uma condenação em pena de multa (ou seja pena não privativa da liberdade) decidida pela Relação, nas situações contrárias, a decisão absolutória da 2ª instância não nos confere qualquer informação sobre uma eventual sanção punitiva (privativa ou não privativa da liberdade) caso tivesse havido uma decisão condenatória».

Ora, esta é a visão típica do ofendido numa questão penal, a de que a acção de julgar só se exerce através da punição e não com a absolvição, visão essa que não se mostra de acordo com a ponderação criteriosa dos interesses em jogo, que só os tribunais podem fazer.

Mas, se para o Assistente é a decisão da Relação que importa ou que «conta» (“«…ao contrário das situações em que existe uma condenação em pena de multa…decidida pela Relação”), então que dizer quando a Relação absolve, como é o caso dos autos?

Na realidade, nas duas situações que o relator considerou simétricas há uma absolvição e uma condenação, embora simetricamente opostas quando ao tempo e ao tribunal que as proferiu. Em ambos os casos, portanto, há uma decisão que aplica uma pena não privativa da liberdade e uma outra decisão de menor gravidade (a absolvição), o que, ao contrário do referido pelo Assistente, “nos confere… informação sobre uma eventual sanção punitiva” na “decisão condenatória” já que esta foi uma pena “não privativa da liberdade”. Fica-se a saber que a questão penal, para os tribunais que até agora sobre ela se debruçaram, encontra a sua decisão na escolha entre uma absolvição e uma pena de multa, o que nos dá suficiente informação sobre a gravidade da sanção punitiva relevante para a questão da recorribilidade.

É certo que se houvesse um terceiro grau de jurisdição, o novo tribunal chamado a intervir (por hipótese, o STJ) ainda poderia aplicar uma pena de prisão, caso o assistente ou o M.º P.º recorressem. Mas isso seria assim em qualquer das situações simetricamente opostas e não só numa delas, se a lei o permitisse. Se o arguido nestes autos tivesse sido absolvido na 1ª instância e depois condenado em multa na Relação, poderia o Assistente recorrer para o STJ e pedir a aplicação de uma pena de prisão? Não o poderia fazer, pois a isso se opõe o disposto no art.º 400.º, n.º 1, al. d), do CPP. Como pode agora o Assistente recorrer para o STJ a pedir a condenação em prisão do arguido se este nem chegou a ser condenado na Relação na pena de multa aplicada na 1ª instância?

A simetria de situações existe e devia ter merecido do legislador ordinário uma resposta igual para ambas, o que, na realidade, não sucede, já que uma é expressamente irrecorrível, em prejuízo essencialmente do arguido, outra cai no «caldeirão» dos casos em que não está prevista expressamente a irrecorribilidade, tornando-a assim aparentemente recorrível, também em prejuízo do arguido!

Já dissemos que não compete aos tribunais, por via da interpretação correctiva, solucionar esta diferença de tratamento. Mas, deverão ter em conta as respectivas implicações constitucionais.

O Assistente considera que a questão de inconstitucionalidade suscitada pelo relator não procede, essencialmente, por duas razões: falta de simetria das situações em apreço e, se alguma inconstitucionalidade existe, então deveria ser resolvida de modo a permitir o recurso em ambas as situações e não no sentido contrário.

Já vimos que existe uma perfeita simetria de situações, a que o relator chamou de «duas imagens invertidas» ou de «caso simetricamente oposto».

Essas duas situações simétricas mereceram por parte do legislador um tratamento diferente, sempre em prejuízo dos direitos de defesa, pois no caso em que é condenado não pode recorrer a pedir a sua absolvição, no caso em que é absolvido pode a acusação recorrer e pedir a sua condenação.

Como disse o relator: “Esta diferença de tratamento, em casos que deveriam ser tratados como iguais, é irrazoável e arbitrária, para mais com ofensa do núcleo fundamental do direito de defesa. Há ofensa, nesta interpretação das normas de processo penal, dos art.ºs 13.º e 32.º, n.º 1, da Constituição, por violação material dos direitos à igualdade e de defesa (através do recurso) no processo penal».

Pergunta-se, então, porque não se deve resolver essa diferença de tratamento permitindo em ambos os casos o direito ao recurso? Porque não permitir ao arguido um novo recurso quando é condenado na relação, na decisão de um recurso, em pena não privativa da liberdade e também não permitir à acusação um novo recurso quando o arguido é absolvido na relação, depois de condenado na 1ª instância em pena não privativa da liberdade? Tanto mais que a regra é a da recorribilidade e não a da irrecorribilidade?

Todavia, não é assim, pois a regra quanto a um terceiro grau de recurso, no plano constitucional – convém não esquecer que é disso de que estamos a falar – não é a da recorribilidade, mas a de só há uma recorribilidade excepcional, em casos definidos na lei ordinária.

Ora, o legislador ordinário tomou uma opção expressa quanto a uma das situações simetricamente opostas – a da irrecorribilidade das decisões da relação, tiradas em recurso, que condenem o arguido em pena não privativa da liberdade – e fê-lo sem que se lhe possa opor qualquer juízo de inconstitucionalidade, como já tem sido dito por várias vezes pelo TC.

Mas, permitiu a interpretação, embora por via não expressa, de que na outra situação simétrica poderia haver um novo grau de recurso.

Não devendo as duas situações simétricas subsistirem nesse modelo, por imperativos de ordem constitucional, há que respeitar a vontade expressa do legislador ordinário e declarar que a outra situação simetricamente oposta tem de se adequar a tal vontade expressa, para que haja um integral respeito pelos direitos da defesa e pelo princípio da igualdade de armas em processo penal.

Termos em que se mantém a decisão do relator de que é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 13º e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação dos artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no sentido de que é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo Ministério Público ou pelo Assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido por determinado crime e que, assim, revogou a condenação do mesmo na 1ª instância numa pena não privativa da liberdade.

IV - Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, reunidos em conferência, em indeferir as reclamações do Ministério Público e do Assistente e em manter o decidido pelo relator.

Fixa-se em 3 (três) UC a taxa de justiça a cargo do Assistente, nos termos da tabela III do RCP.

Supremo Tribunal de Justiça, 2 de Dezembro de 2010
Santos Carvalho (Relator)
Rodrigues da Costa, vencido parcialmente nos termos da declaração em anexo)
Arménio Sottomayor


Voto de vencido

Votei vencido por entender, na linha seguida pelo Ministério Público, que não é admissível recurso da decisão da Relação que, revogando decisão da 1.ª instância, absolve o arguido do crime por que havia sido condenado (neste caso, apenas o crime de corrupção activa para acto lícito, uma vez que há dupla conforme quanto à absolvição pelo crime de corrupção activa para acto ilícito), estando afastada, por essa via, a inconstitucionalidade da suposta norma aplicável. Isto, por força de uma interpretação que leve em conta todo o sistema de recursos em processo penal, nomeadamente no que diz respeito ao Supremo Tribunal de Justiça, nos termos da qual se há-de operar uma redução teleológica da norma do art. 400.º, n.º 1, alínea e) do art. 400.º do CPP, na redacção introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto. Friso: redução teleológica – e não interpretação restritiva como se diz no texto do acórdão que fez vencimento. Mas o melhor será explanar a minha posição, recorrendo à transcrição de parte de uma decisão sumária por mim subscrita no Proc. n.º 121-07.9TA, desta 5.ª Secção:
«No domínio da legislação anterior (…), era seguro que o caso configurado não era susceptível de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ).
»Na verdade, a regra fundamental dos recursos para o STJ, tal como hoje, encontrava-se plasmada no art. 432.º do CPP, em que avultavam as alíneas c), d) e e), que atribuíam a competência de forma directa e a alínea b), de forma indirecta.
»Das primeiras resultava que havia recurso directo para o STJ de acórdãos finais do tribunal de júri, do tribunal colectivo, visando neste caso o reexame da matéria de direito, e das decisões interlocutórias que devessem subir com os recursos daquelas decisões.
»Quanto à alínea b) remetia para o art. 400.º, n.º 1, que definia especificadamente, tal como na actualidade, a irrecorribilidade de certas decisões, quer para a Relação, quer para o STJ.
»De destacar, quanto a este, a alínea d) que estabelecia a irrecorribilidade para o STJ de acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmassem decisão de 1.ª instância.
»Para os acórdãos absolutórios das relações não confirmativos, regia o disposto na seguinte alínea e).
»Este normativo estabelecia a irrecorribilidade de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que fosse aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infracções ou em que o Ministério Público tivesse usado da faculdade prevista no art. 16.º, n.º 3.
»Lido em correlação com a alínea d), extraía-se a significação de que os acórdãos das relações que não confirmassem decisão de 1.ª instância só eram susceptíveis de recurso para o STJ se ao caso fosse aplicável pena de prisão superior a 5 anos.
»É que, para os efeitos da alínea e), tanto valia que os acórdãos das relações fossem absolutórios como condenatórios. Nos casos em que estivesse em causa uma pena de multa ou de prisão não superior a 5 anos, as relações decidiam definitivamente, quer confirmassem, quer não confirmassem a decisão de 1.ª instância. Entendia-se, no domínio dessa legislação, de forma uniforme, que, por se tratar de casos de pequena e média gravidade, um único grau de recurso bastava para assegurar plenamente o direito ao recurso, sem que houvesse dependência do pressuposto da chamada dupla conforme. Já nos casos mais graves, puníveis com pena superior a 5 anos, mas igual ou inferior a 8 anos de prisão, exigia-se que o acórdão condenatório da Relação fosse confirmativo da decisão da 1.ª instância como pressuposto da irrecorribilidade para o STJ.
»Deste modo, era líquido que a regra basilar do recurso para o STJ assentava em dois pressupostos: a natureza do tribunal (colectivo ou de júri) e a gravidade da pena: superior a 5 anos de prisão.
»Com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2008, de 29 de Agosto, a regra básica da recorribilidade das decisões para o STJ continuou a ser fixada no art. 432.º, alíneas c) e d), que não só está em continuidade com a linha anterior, como até a reforçou, visto que o critério da recorribilidade deixou de assentar na pena aplicável, mas na pena concretamente aplicada, o que, sem dúvida, restringe o recurso para o STJ, na orientação de que para este devem estar reservados os casos mais graves.
»Quanto à alínea b) constitui, tal como dantes, uma forma indirecta de determinar a competência para o recurso, visto que remete para o art. 400.º, e este não é específico para o Supremo Tribunal de Justiça, definindo-se, além disso, tal competência por via negativa, isto é, por enumeração dos casos de irrecorribilidade. Assim, a alínea b), do n.º 1, do art. 432.º diz que também são recorríveis para o STJ as decisões que não forem irrecorríveis nos termos do art. 400.º .
»Ora, este art. 400.º, na versão definitiva que acabou por adquirir, veio lançar algumas perplexidades, dúvidas e confusões. E mais do que isso: veio introduzir algum desconcerto no equilíbrio sistemático do Código, em matéria de recursos.
»É o que sucede, por exemplo, com a alínea e), do n.º 1, que estabelece não ser admissível recurso «de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que apliquem pena não privativa de liberdade», quando, na redacção anterior, se prescrevia não ser admissível recurso «de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que ⌠fosse⌡aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos, mesmo em caso de concurso de infracções ou em que o Ministério Público ⌠tivesse⌡ usado da faculdade prevista no art. 16.º, n.º 3».
»A tomar a actual disposição à letra, significaria ela, por interpretação a contrario, que seria admissível recurso de todos os acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que aplicassem pena privativa de liberdade, excepto quando, nos termos da alínea f) seguinte, esses acórdãos confirmassem decisão de 1.ª instância e a pena de prisão aplicada não fosse superior a 8 anos. Ou seja, sempre que se não verificasse a chamada dupla conforme, dentro do condicionalismo da alínea f), todo e qualquer acórdão das relações, que aplicasse pena privativa de liberdade, fosse ela qual fosse – por exemplo, uma pena de 30 dias de prisão, quando a decisão da 1.ª instância tivesse sido absolutória ou tivesse aplicado pena de multa ou pena alternativa à pena de prisão – seria susceptível de recurso para o STJ.
»Com efeito, seria essa a interpretação literal, tendo desaparecido, como desapareceu a referência limitativa, constante da alínea e), na redacção anterior, a pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos. Todavia, uma tal interpretação comporta aporias e contradições intra-sistémicas que a tornam inaceitável, à luz de uma correcta hermenêutica.
»É o que resulta do acórdão do STJ de 18-02-2009, proferido no Proc. n.º 102/09, da 3.ª Secção (Conselheiros Henrique Gaspar/Armindo Monteiro), que se debruçou sobre a questão de forma extensa e minuciosa.
»A determinada altura, diz-se nesse aresto:
Não sendo razoavelmente possível, pelos elementos objectivos que o processo legislativo revela, identificar a vontade do legislador no sentido de permitir a conclusão de que na alínea e) do nº 1 do artigo 400º do CPP disse mais do que quereria, não parece metodologicamente possível operar uma interpretação restritiva da norma.
Porém, a norma, levada isoladamente ao pé da letra, sem enquadramento sistémico, acolheria solução que é directamente afastada pelo artigo 432º, nº 1, alínea c), produzindo uma contradição intrínseca que o equilíbrio normativo sobre o regime dos recursos para o STJ não pode comportar.
Basta pensar que, na leitura isolada, estreitamente literal, um acórdão proferido em recurso pela relação, que aplicasse uma pena de trinta dias de prisão, não confirmando a decisão de um tribunal de Pequena Instância, seria recorrível para o STJ, contrariando de modo insuportável os princípios, a filosofia e a teleologia que estão pressupostos na repartição da competência em razão da hierarquia definida na regra-base sobre a recorribilidade para o STJ do artigo 432º, nº 1, alínea c) do CPP.
A contradição e a assimetria normativa e a consequente aporia intra-sistemática seriam, assim, tão patentes e tão intensas, que tornariam insuportável tal sentido.
Impõe-se, por isso, um acrescido esforço de interpretação.
Uma norma legal, contra o seu sentido literal mas de acordo com a teleologia imanente à lei, pode exigir uma limitação que não está contida no texto, acrescentando-se uma restrição que é requerida em conformidade com o sentido da norma.
Pode suceder, com efeito, que uma norma, lida «demasiado amplamente segundo o seu sentido literal», tenha de ser reconduzida e deva ser «reduzida ao âmbito de aplicação que lhe corresponde segundo o fim da regulação ou a conexão do sentido da lei», procedendo às «diferenciações requeridas pela valoração» e «exigidas pelo sentido e finalidade da própria norma» e pela finalidade ou sentido «sempre que seja prevalecente» de outra norma, que de outro modo seria seriamente afectada, seja pela “natureza das coisas” ou «por um princípio imanente à lei prevalecente num certo grupo de casos» (cfr., KARL LARENZ, “Metodologia da Ciência do Direito”, 2ª ed., p. 473-474).
Nestes casos, deverá o intérprete operar a “redução teleológica” da norma.
A redução ou correcção respeitará também o princípio da proporcionalidade e serve o interesse preponderante da segurança jurídica.
A perspectiva, o sentido essencial e os equilíbrios internos que o legislador revelou na construção do regime dos recursos para o STJ, com a prevalência sistémica, patente e mesmo imanente, da norma do artigo 432º, e especialmente do seu nº 1, alínea c), impõe, por isso, em conformidade, a redução teleológica da norma do artigo 400º, nº 1, alínea e) do CPP, de acordo com o princípio base do artigo 432º, nº 1, alínea c) do CPP, necessária à reposição do equilíbrio e da harmonia no interior da regime dos recursos para o STJ.
»Ora, se tal solução se impõe relativamente a acórdãos condenatórios das relações que condenem em pena privativa de liberdade, ainda que a 1.ª instância tenha aplicado pena não privativa de liberdade ou mesmo absolvido o arguido, desde que a pena aplicada seja de multa ou de prisão não superior a cinco anos, muito mais se há-de justificar, quando a 1.ª instância tenha condenado em pena de multa ou de prisão não superior a cinco anos e a relação, por acórdão proferido em recurso, tenha decretado a absolvição.
»Por um lado, fica satisfeito, com a possibilidade de reexame do caso por um tribunal superior, o direito ao recurso e, por outro, não se assoberba o tribunal que forma a cúpula da pirâmide da hierarquia dos tribunais com casos de pouca gravidade.
»Acresce que o direito ao recurso, mesmo num único grau, até nem tem, nas situações como a presente, o mesmo tipo de exigência. Com efeito, trata-se de situações de pequena gravidade em que a 1.ª instância condenou o arguido e a Relação absolveu.
»Efectivamente, o Tribunal Constitucional sempre entendeu que o direito ao duplo grau de jurisdição, como decorrência do art. 32.º, n.º 1 da Constituição da República, apenas tem justificação, com carácter de obrigatoriedade, em relação a decisões penais condenatórias e decisões respeitantes à situação do arguido, face à privação ou restrição da liberdade ou outros direitos fundamentais (Cf. o acórdão do TC n.º 565/2007 - DR 2.ª S. de 3/1/2008, e a extensa jurisprudência aí recenseada).
»No caso presente, nem sequer está em causa nenhuma dessas situações em que ainda se pudesse afirmar que o arguido foi condenado pela primeira vez na Relação em pena privativa ou restritiva da liberdade ou de outros direitos fundamentais.
»As antinomias, no sistema de recursos, a que a solução contrária poderia dar lugar são evidentes. Como se salienta no Acórdão deste Tribunal de 25/06/2008, Proc. n.º 1879-08, da 3.ª secção (Conselheiros Pires da Graça/Raul Borges), «seria irrisório que, por exemplo, fosse possível recurso para o STJ de acórdão da Relação que absolvesse de um crime de ofensas corporais simples por negligência, ou de um crime de ameaça, constante de decisão do tribunal singular, sendo que, por outro lado, já não seria possível o recurso de acórdão da Relação que confirmasse uma pena de 8 anos de prisão (por ex., por homicídio voluntário tentado) aplicada pelo tribunal colectivo.» E repare-se que, em ambos os casos, os recursos podiam ser restritos à matéria de direito, havendo no primeiro caso – uma bagatela penal – a possibilidade de duplo grau de recurso em matéria de direito e, no segundo – um caso de certa gravidade – apenas um único grau de recurso.
»Por conseguinte, face à incongruência inaceitável que uma tal solução geraria no equilíbrio e unidade do sistema de recursos, de resto contrariada pelas proclamadas intenções do legislador e pela exposição de motivos da proposta de lei 157/VII, de alteração do Código de Processo Penal: «Retoma-se a ideia de diferenciação orgânica, mas apenas fundada no princípio de que os casos de pequena ou média gravidade não devem, por norma, chegar ao Supremo Tribunal de Justiça» (ponto 16. e) dessa proposta), não resta outra solução senão a de proceder a uma redução teleológica da norma, nos moldes acima transcritos e constantes do acórdão de 18/02/09, proferido no Proc. n.º 102/09, da 3.ª Secção.
»Ou seja:
Em caso de absolvição pela Relação, deve considerar-se que só é recorrível para o STJ o acórdão da Relação que se debruce sobre crime em que a pena aplicada pelo tribunal da 1.ª instância tenha sido superior a 5 anos de prisão.»

A ser, porém, entendido que a lei prevê o recurso, como admitido na posição vencedora, então votaria pela inconstitucionalidade.


a) Rodrigues da Costa