Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5ª SECÇÃO | ||
Relator: | SANTOS CARVALHO | ||
Descritores: | ADMISSIBILIDADE DE RECURSO DIREITO AO RECURSO RECURSO PENAL REJEIÇÃO DE RECURSO DUPLO GRAU DE JURISDIÇÃO INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONALIDADE PRINCÍPIO DA IGUALDADE PRINCÍPIO DA IGUALDADE DE ARMAS | ||
Data do Acordão: | 12/02/2010 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECLAMAÇÃO PARA A CONFERÊNCIA | ||
Decisão: | INDEFERIDA | ||
Sumário : | I - Sendo a decisão recorrida um acórdão absolutório do Tribunal da Relação, tirado em recurso de decisão da 1ª instância que condenara o arguido em pena de multa, não está abrangida pelos casos de irrecorribilidade configurados no art.º 400.º do CPP07, nem em qualquer outra norma legal, pelo que, à primeira vista, tudo aponta para a aplicação da regra geral definida no art.º 399.º, isto é, para a recorribilidade. II - Parece-nos evidente que não se devem esgrimir argumentos de ordem lógico-sistemática para contrariar essa ideia da recorribilidade, até porque a regra é a da recorribilidade e, portanto, as exclusões devem ser tratadas de forma restritiva quanto aos casos de não recorribilidade. III - Aos tribunais não cabe discutir o critério legislativo, ou a falta dele, no que respeita às questões que podem ou não chegar ao Supremo Tribunal de Justiça pela via do recurso, umas mais graves que não lhe podem ser colocadas, outras de menor dimensão e que são sujeitas à sua reapreciação. Tal critério, bom ou mau, é definido no âmbito da competência da política legislativa, reservada à Assembleia da República. Para além de que a regra geral é a da recorribilidade. Não é, pois, por esse motivo, de ordem lógico-sistemática, que se pode recusar a recorribilidade da decisão proferida nestes autos pela Relação. IV - A simples leitura dos art.ºs 399.º e 400.º do CPP permite que existam em simultâneo estas duas situações: - não é recorrível para o STJ o acórdão da Relação, proferido em recurso, que condenou o arguido numa pena não privativa da liberdade por determinado crime e que, assim, revogou a absolvição da 1ª instância (art.º 400.º, n.º 1, al. e, do CPP); - é recorrível para o STJ o acórdão da Relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido por determinado crime e que, assim, revogou a condenação do mesmo na 1ª instância numa pena não privativa da liberdade (art.ºs 399.º e 400.º, este “a contrario”). V - Trata-se, porém, da mesma situação, embora em posições invertidas, pois uma é simetricamente o inverso da outra. Apesar da manifesta semelhança, há um tratamento legislativo diferente ao nível da interposição dos recursos. VI - A primeira situação não é passível de um juízo de inconstitucionalidade. Na verdade, o art.º 32.º, n.º 1, da Constituição dispõe que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. Mas, o Tribunal Constitucional tem reafirmado em diversos acórdãos e ao longo dos anos que «A Constituição não impõe ao legislador a obrigação de consagrar o direito de recorrer de todo e qualquer acto do juiz, admitindo-se embora, no processo penal, o direito a um duplo grau de jurisdição como decorrência da exigência constitucional do principio da defesa, mas já não o direito a um triplo grau de jurisdição» (v.g. Acs. do TC n.ºs 163/90 de 23-05-1990, 331/02 de 10-07-2002, 377/03 de 15-07-2003, 375/05 de 07-07-2005, 64/06 de 24-01-2006, 530/07 de 29-10-2007). VII - Assim, o facto do arguido no caso da al. e) do n.º 1 do art.º 400.º do CPP07 não dispor de um terceiro grau de recurso não viola a Constituição, pois o núcleo essencial dos seus direitos de defesa já ficou ressalvado com o duplo grau de jurisdição, para mais num caso em que a decisão final nem sequer o privou nem lhe restringiu o direito à liberdade. VIII - Contudo, o que já não é tolerável do ponto de vista dos direitos de defesa é que no caso simetricamente oposto a esse, em que ao arguido continua vedado o direito a novo recurso, agora por falta de interesse em agir (pois foi absolvido na segunda instância da acusação, após condenação na 1ª instância em pena não privativa da liberdade), a acusação, isto é, o Ministério Público ou Assistente, possa recorrer. IX - Nas “duas imagens invertidas”, o arguido não teria direito a interpor recurso em qualquer delas, mas permitir-se-ia ao M.º P.º e ao Assistente, numa delas, um direito que àquele não assiste (o terceiro grau de jurisdição). X - Criar-se-ia uma desigualdade de armas, desfavorecendo o arguido e beneficiando a acusação. XI - O tratamento diferente que a lei processual dá aos dois casos de recorribilidade anteriormente indicados, simetricamente opostos e, portanto, indissociáveis, já que não se pode encarar um sem vislumbrar o outro, como num espelho que inverte a imagem da mesma “figura”, coloca o arguido nesta situação absurda: naquele em que é condenado, não lhe é permitido recorrer para obter a sua absolvição, no outro em que é absolvido, a acusação pode recorrer para obter a sua condenação! XII - Esta diferença de tratamento, em casos que deveriam ser tratados como iguais, é irrazoável e arbitrária, para mais com ofensa do núcleo fundamental do direito de defesa. XIII - Há ofensa, nesta interpretação das normas de processo penal, dos art.ºs 13.º e 32.º, n.º 1, da Constituição, por violação material dos direitos à igualdade e de defesa (através do recurso) no processo penal. XIV - Note-se que estamos aqui a reportar-nos a um caso específico, em que a condenação na 1ª instância foi numa pena não privativa de liberdade e que, posteriormente, reapreciada pela Relação em sede de recurso, foi determinada a absolvição do arguido. Pois, se a condenação na 1ª instância fosse em pena privativa de liberdade, nenhuma objecção se poria ao recurso para o STJ por parte da acusação contra o acórdão absolutório da Relação, pois que na situação simetricamente oposta (absolvição na 1ª instância e condenação na Relação em pena privativa da liberdade) o arguido poderia interpor recurso para o STJ (cfr. al. e, a contrario, do n.º 1 do art.º 400.º do CPP). XV - Concluímos, assim, que é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 13º e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação dos artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no sentido de que é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo Ministério Público ou pelo Assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido por determinado crime e que, assim, revogou a condenação do mesmo na 1ª instância numa pena não privativa da liberdade. | ||
Decisão Texto Integral: | I. No presente processo, em 15 de Outubro de 2010, o relator proferiu a seguinte decisão sumária:
DECISÃO SUMÁRIA
1. A foi julgado na 1ª Vara Criminal de Lisboa, no âmbito do processo n.º 263/06.8JFLSB, estando então pronunciado, após acusação do M.º P.º, acompanhada pelo Assistente B, pela prática de um crime de corrupção activa para a prática de acto ilícito, previsto e punível no art.º 374.°, n.º 1, por referência aos art.ºs 376.°, n.º 1, e 386.°, n.º 1, ambos do C. Penal, bem como no art.º 18.°, n.º 1, por referência aos art.ºs 16.°, n.º 1, e 3.°, n.º 1, alínea i), da Lei 34/87 de 16/7, na redacção da Lei 108/2001 de 28/11. Por acórdão de 23/02/2009, foi condenado, naquela 1ª instância, como autor material de um crime de corrupção activa para acto lícito, p. e p. pelo art.º 18.°, n.º 2, da Lei 34/87 de 16/7, na redacção da Lei 108/2001 de 28/11, na pena de 25 (vinte e cinco) dias de multa à razão diária de € 200 (duzentos euros), o que perfaz o montante global de € 5000 (cinco mil euros). Desse acórdão condenatório recorreram para o Tribunal da Relação de Lisboa quer o arguido, que pediu a sua absolvição, quer o M.º P.º e o Assistente, estes a pedirem a condenação do arguido pela prática do crime por que estava pronunciado. Por acórdão de 22-04-2010, o Tribunal da Relação de Lisboa veio a absolver o arguido, com o fundamento de que os factos provados na 1ª instância não configuravam os elementos típicos do crime de corrupção activa de titular de cargo político.
2. Inconformados, recorrem o Ministério Público e o Assistente para o Supremo Tribunal de Justiça. O primeiro pediu a anulação do acórdão por falta de pronúncia quanto à impugnação da matéria de facto, ou o reenvio por existência de vícios do art.º 410.º, n.º 2, do CPP, ou a condenação do arguido por corrupção activa para acto ilícito (embora, por lapso tenha escrito “lícito). O segundo pediu a condenação do arguido pelo crime por que estava pronunciado. O arguido respondeu e pediu a manutenção da sua absolvição. Todos se pronunciaram sobre a questão prévia da recorribilidade da decisão para o STJ. O recurso foi admitido e subiu para este Tribunal, onde o Ministério Público, em opinião divergente do seu colega da Relação, se pronunciou pela irrecorribilidade. Nos termos do art.º 417.º, n.º 2, do CPP, arguido e Assistente pronunciaram-se sobre o Parecer do M.º P.º no STJ.
3. Fazendo uma súmula das opiniões já manifestadas nos autos pelos diversos intervenientes processuais quanto à referida questão prévia, vemos que os mesmos se pronunciaram do seguinte modo:
a) O Ministério Público junto do Tribunal da Relação: «… Não se desenhando, assim, urna situação de dupla conforme absolutória, não se enquadra o aresto desta Relação no regime de irrecorribilidade consagrado na alínea e) do n.º 1 do art.º 400.° do C.P.P., nem, quer-nos parecer, em qualquer dos restantes segmentos normativos enumerados nas demais alíneas deste preceito; d) Ora, decorrendo, por um lado, do disposto no art.º 399.° do C.P.P. o princípio geral da recorribilidade das decisões, e, por outro, a excepção de não admissibilidade de recurso nos casos expressamente previstos, afigura-se-nos, salvo melhor entendimento, que não pode deixar de se concluir pela inexistência de qualquer norma que, "in casu", obste à interposição do presente recurso para o S.T.J.».
b) O Assistente: «…a regra geral do ordenamento processual-penal nacional é a da recorribilidade das decisões "cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei", nos termos expostos no artigo 3992 do Código de Processo Penal. Por outro lado, do artigo 432°-, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal resulta que são recorríveis as "decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º". «…Salvo o devido respeito por opinião mais avalizada, quanto a esse crime, verifica-se, sem margem para dúvida, dupla conforme absolutória. «1.2. - Como bem se sabe o direito ao recurso (elemento que integra o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido, objecto de tutela constitucional – art.º, 32°, n.º 1, da C.R.P. - ) não é irrestrito de sorte que a lei fundamental, se não impõe que tenha de haver recurso de todas as decisões jurisdicionais que afectem direitos e interesses dos sujeitos e participantes processuais, não exige igualmente que se assegure um triplo grau de jurisdição, antes pressupõe tão só a existência de um duplo grau de jurisdição. 4. Cumpre decidir a questão prévia da recorribilidade.
Os factos descritos nos autos ocorreram em 2006, mas a condenação na 1ª instância já foi em 2009 e a da 2ª em 2010. Pode colocar-se, portanto, um problema de aplicação da lei processual no tempo, pois entre os factos e a sentença condenatória houve uma mudança de redacção das normas que regulam a recorribilidade das decisões penais, por virtude da reforma do CPP de 2007. O art.º 5.º do CPP dispõe que a lei processual penal é de aplicação imediata, sem prejuízo da validade dos actos realizados na vigência da lei anterior (n.º 1). Porém, (n.º 2) a lei processual penal não se aplica aos processos iniciados anteriormente à sua vigência quando da sua aplicabilidade imediata possa resultar: a) Agravamento sensível e ainda evitável da situação processual do arguido, nomeadamente uma limitação do seu direito de defesa; ou b) Quebra da harmonia e unidade dos vários actos do processo. Esta disposição aplica-se, obviamente, ao recurso no processo penal e, concretamente, na parte que agora nos importa, às regras que respeitam à sua interposição. Não vamos aqui escalpelizar, de novo, os argumentos que levaram o STJ à jurisprudência firme de que, em processo penal, a lei que regula a recorribilidade de uma decisão, ainda que esta tenha sido proferida em recurso pela Relação, é a que se encontrava em vigor no momento em que a 1ª instância decidiu, salvo se lei posterior for mais favorável para o arguido. E não o vamos fazer, pois essa jurisprudência já foi sufragada pelo acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/2008, in DR de 2009-03-19. Remetemos a fundamentação, portanto, para a que aí foi explanada. Deste modo, no caso em apreço, aplicam-se as regras de recorribilidade que hoje se encontram em vigor e não as da altura em que se iniciou o processo. * Em matéria de recorribilidade no processo penal rege o princípio geral que se encontra enunciado no art.º 399.º do código respectivo, onde se diz que “é permitido recorrer dos acórdãos, das sentenças e dos despachos cuja irrecorribilidade não estiver prevista na lei.” Os casos em que as decisões judiciais não são recorríveis estão essencialmente tipificados no art.º 400.º do CPP e, por vezes, em normas avulsas, devendo interpretar-se, tanto uma como as outras, como leis de excepção, valendo, na dúvida, a regra geral. A decisão recorrida é um acórdão absolutório do Tribunal da Relação, tirado em recurso de decisão da 1ª instância que condenara o arguido em pena de multa. Será recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça? Se bem atentarmos nos recursos do M.º P.º e do Assistente, ambos têm um objectivo final: a condenação do arguido pelo crime por que estava pronunciado, o de corrupção activa para acto ilícito. Nessa vertente, todavia, o recurso nunca poderia ser admitido, pois já houve uma dupla absolvição: a da 1ª instância (que ao condenar o arguido pelo crime de corrupção activa para acto lícito, absolveu-o, implicitamente, pelo crime mais grave) e, obviamente, a da Relação (que entendeu não haver qualquer crime de corrupção). Rege nesta parte, portanto, o disposto na al. d) do n.º 1 do art.º 400.º do CPP07. Tal constatação não basta para resolver o problema da recorribilidade, pois entre o crime de corrupção activa para acto ilícito e o de corrupção activa para acto lícito há uma relação de concurso legal aparente, de especialidade, em que ambos os crimes têm os mesmos elementos essenciais do tipo, mas em que cada um tem elementos suplementares que modificam a pena, pelo que é forçoso que se conheça do menos (crime menos grave) ainda que se tenha pedido a condenação pelo mais. * A decisão recorrida é uma decisão final que conheceu do mérito e que não confirmou a condenação da 1ª instância (quanto ao crime de corrupção activa para acto lícito) e, por isso, a recorribilidade não está excluída pelas alíneas c) e d) do art.º 400.º do CPP07, a primeira a considerar irrecorríveis os acórdãos da relação que não conheçam, a final, do objecto do processo, a segunda a determinar a irrecorribilidade dos acórdãos absolutórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância. Também não foi aplicada qualquer pena e, por isso, a situação não cabe nos casos de irrecorribilidade das alíneas e) e f) da mesma norma. Assim, a decisão não está abrangida pelos casos de irrecorribilidade configurados no art.º 400.º do CPP07, nem em qualquer outra norma legal, pelo que, à primeira vista, tudo aponta para a aplicação da regra geral definida no art.º 399.º, isto é, para a recorribilidade. * Parece-nos evidente que não se devem esgrimir argumentos de ordem lógico-sistemática para contrariar essa ideia da recorribilidade, como fazem o arguido e o M.º P.º no STJ, até porque a regra é a da recorribilidade e, portanto, as exclusões devem ser tratadas de forma restritiva quanto aos casos de não recorribilidade. Mas, vejamos o que se diz com tal tipo de argumentos. Se o sistema de recursos para o STJ já pecava por ser defeituoso antes da reforma de 2007, depois dela vieram a surgir muitas outras dúvidas, de natureza diferente, que terão resultado de alterações legislativas de última hora introduzidas no projecto inicial de revisão do CPP e que lhe desvirtuaram a linha orientadora. Parecem existir duas claras linhas de força nas regras que constam das diversas alíneas da actual redacção do art.º 400.º do CPP, quando conjugadas com os art.ºs 427.º e 432.º. Uma, a do primado da dupla conforme, pelo que, quando duas instâncias estão de acordo quanto à questão de mérito, só se permite uma tripla apreciação em sede de recurso ordinário em casos considerados de grande gravidade. Outra, a de que ao STJ, como última instância de recurso, só cabem os tais casos considerados de grande gravidade, aferida pela pena aplicada e não pela pena aplicável, dada a sua natureza de tribunal de revista, com função essencialmente uniformizadora da jurisprudência. Assim, no que respeita ao princípio da dupla conforme, verifica-se que não há recurso para o STJ se a Relação confirmar uma absolvição da 1ª instância ou uma pena que aí tenha sido aplicada até 8 anos de prisão (art.º 400.º, n.º 1, als. d e f, do CPP). E quanto ao princípio de que ao STJ só chegam, pela via do recurso, os casos considerados de maior gravidade, veja-se a norma que não permite o recurso se a Relação condenar o arguido em pena não privativa da liberdade, qualquer que tenha sido a decisão da 1ª instância (absolvição, condenação em multa ou em prisão, etc.) e atente-se na norma que não permite o recurso directo para o STJ de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal colectivo que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos (art.º 432.º, n.º 1, al. c). Mas estas linhas orientadoras não surgem como absolutas, pois sofrem de duas ou três excepções, cuja compreensibilidade não é evidente. Com efeito, é admitida uma tripla apreciação em sede de recurso nos casos em que a Relação, em decisão desconforme com a 1ª instância, condena o arguido em pena privativa da liberdade, ainda que fixada no mínimo de 30 dias de prisão (art.º 400.º, n.º 1, al. e, “a contrario”). A gravidade do caso, aqui, não resulta da duração da pena, como noutras alíneas da mesma norma, mas da circunstância do arguido ter o direito de ver reapreciada a sua situação após a sua primeira condenação em pena privativa da liberdade. Mas já não é permitido o recurso ao arguido, por força da mesma alínea e), no caso em que a Relação, em desconformidade com a 1ª instância, que até pode ter tido uma sentença absolutória, o vir a condenar em pena não privativa da liberdade. Aqui, apesar de não haver dupla conforme, o legislador terá entendido que a aplicação de uma mera pena de multa ou de outra não privativa da liberdade por um tribunal superior não tinha dignidade para seguir para a última instância de recurso. Por fim, ainda como excepção ao princípio de que ao STJ só chegam os casos mais graves, aferidos pela dimensão da pena aplicada, há a situação presente, em que parece permitir-se o recurso para o STJ, como já vimos, nos casos em que a Relação, em decisão desconforme com a 1ª instância, absolve o arguido do crime, qualquer que tenha sido a pena aplicada na 1ª instância, mesmo que não privativa da liberdade. Esta última situação não parece enquadrar-se no restante esquema legal. Efectivamente, é pouco compreensível que o STJ não possa reapreciar em sede de recurso ordinário um caso em que a Relação confirmou uma condenação numa pena pesada de 8 anos de prisão, mas já o possa fazer se, como é o caso dos autos, o arguido foi condenado na 1ª instância em pena de multa e depois absolvido pela Relação. Contudo, não parece que devamos seguir por esta via, pois aos tribunais não cabe discutir o critério legislativo, ou a falta dele, no que respeita às questões que podem ou não chegar ao Supremo Tribunal de Justiça pela via do recurso, umas mais graves que não lhe podem ser colocadas, outras de menor dimensão e que são sujeitas à sua reapreciação. Tal critério, bom ou mau, é definido no âmbito da competência da política legislativa, reservada à Assembleia da República. Para além de que a regra geral é a da recorribilidade. Não é, pois, por esse motivo, de ordem lógico-sistemática, que se pode recusar a recorribilidade da decisão proferida nestes autos pela Relação, quanto à existência do crime de corrupção activa para acto lícito. * Já vimos que a simples leitura dos art.ºs 399.º e 400.º do CPP permite que existam em simultâneo estas duas situações: - não é recorrível para o STJ o acórdão da Relação, proferido em recurso, que condenou o arguido numa pena não privativa da liberdade por determinado crime e que, assim, revogou a absolvição da 1ª instância (art.º 400.º, n.º 1, al. e, do CPP); - é recorrível para o STJ o acórdão da Relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido por determinado crime e que, assim, revogou a condenação do mesmo na 1ª instância numa pena não privativa da liberdade (art.ºs 399.º e 400.º, este “a contrario”). Trata-se, porém, da mesma situação, embora em posições invertidas, pois uma é simetricamente o inverso da outra. Apesar da manifesta semelhança, há um tratamento legislativo diferente ao nível da interposição dos recursos. * A primeira situação não é passível de um juízo de inconstitucionalidade. Na verdade, o art.º 32.º, n.º 1, da Constituição dispõe que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso. É indiscutível, portanto, que o direito ao recurso faz parte do núcleo fundamental dos direitos de defesa. Sobre esta questão há jurisprudência firme do Tribunal Constitucional desde há muitos anos. «Em matéria de direito penal, a Constituição garante aos arguido que o processo penal lhes assegura "todas as garantias de defesa", ou seja, todos os direitos e instrumentos necessários para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação. Um dos meios ou uma das expressões do direito de defesa e o direito de recorrer, precisando todavia a jurisprudência que, ressalvado o "núcleo essencial" do direito de defesa centrado no direito de recorrer da sentença condenatória e dos actos judiciais que privem ou restrinjam a liberdade do arguido ou afectem outros direitos fundamentais seus, o direito de recorrer pode ser restringido ou limitado em certas fases do processo, podendo mesmo não ser admitido relativamente a certos actos do juiz» (Ac. do TC de 28-06-1994, proc. 113/92). Mas, o Tribunal Constitucional tem reafirmado em diversos acórdãos e ao longo dos anos que «A Constituição não impõe ao legislador a obrigação de consagrar o direito de recorrer de todo e qualquer acto do juiz, admitindo-se embora, no processo penal, o direito a um duplo grau de jurisdição como decorrência da exigência constitucional do principio da defesa, mas já não o direito a um triplo grau de jurisdição» (v.g. Acs. do TC n.ºs 163/90 de 23-05-1990, 331/02 de 10-07-2002, 377/03 de 15-07-2003, 375/05 de 07-07-2005, 64/06 de 24-01-2006, 530/07 de 29-10-2007). Assim, o facto do arguido no caso da al. e) do n.º 1 do art.º 400.º do CPP07 não dispor de um terceiro grau de recurso não viola a Constituição, pois o núcleo essencial dos seus direitos de defesa já ficou ressalvado com o duplo grau de jurisdição, para mais num caso em que a decisão final nem sequer o privou nem lhe restringiu o direito à liberdade. Nesse sentido muito recentemente voltou a pronunciar-se o TC, no acórdão n.º 353/2010, de 6/10/2010, proc. 30/2010, confirmando ser conforme à Constituição a interpretação de que não é recorrível para o STJ o acórdão da relação, tirado em recurso, que aplicou uma pena de prisão suspensa na sua execução, após absolvição na 1ª instância: “(…) é claríssima a jurisprudência constitucional sobre o tema. Como se afirmou, por exemplo, no Acórdão nº 49/2003, e se confirmou nos Acórdãos nºs 255/2005, 487/2006 e 682/2006 (todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), o direito ao recurso que, nos termos do nº 1 do artigo 32.º da CRP, integra as garantias de defesa do arguido constitucionalmente tuteladas, coincide, pelos seus fundamentos, com a garantia de um duplo grau de jurisdição, ou seja, com a garantia de que a causa seja reexaminada por um tribunal superior, perante o qual tenha o arguido a possibilidade de apresentar de novo a sua visão sobre os factos ou sobre o direito aplicável. Por outras palavras, não decorre da Constituição a imposição, em processo penal, do esgotamento de todas as instâncias que a lei preveja. Ao legislador é portanto lícito determinar a irrecorribilidade das decisões da relação que, em recurso de decisões absolutórias proferidas em 1ª instância, condenem o arguido, desde que tal determinação se não apresente como algo manifestamente desproporcionado ou lesivo de quaisquer outros princípios constitucionais.» * Contudo, o que já não é tolerável do ponto de vista dos direitos de defesa é que no caso simetricamente oposto a esse, em que ao arguido continua vedado o direito a novo recurso, agora por falta de interesse em agir (pois foi absolvido na segunda instância da acusação, após condenação na 1ª instância em pena não privativa da liberdade), a acusação, isto é, o Ministério Público ou Assistente, possa recorrer. Nas “duas imagens invertidas”, o arguido não teria direito a interpor recurso em qualquer delas, mas permitir-se-ia ao M.º P.º e ao Assistente, numa delas, um direito que àquele não assiste (o terceiro grau de jurisdição). Criar-se-ia uma desigualdade de armas, desfavorecendo o arguido e beneficiando a acusação. É certo que o Processo Penal não é um processo de partes. Mas o direito de defesa, constitucionalmente protegido, exige a igualdade de armas, pelo menos após o encerramento do inquérito. «O princípio da igualdade de armas, em processo penal de um Estado de Direito, está ao serviço do arguido, visando garantir que ele não seja colocado em inferioridade no processo (…). O direito ao recurso, enquanto dimensão essencial do princípio da defesa não pode ser visto como uma garantia do assistente mas tão só do arguido» (Ac. do TC de 27-10-1992. proc. 277/91). A “igualdade de armas” no processo prende-se também com o princípio constitucional da igualdade. “O princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da Constituição exige a dação de tratamento igual aquilo que, essencialmente, for igual, reclamando, por outro lado, a dação de tratamento desigual para o que for dissemelhante, não proibindo, por isso, a efectivação de distinções. Ponto é que estas sejam estabelecidas com fundamento material bastante e, assim, se não apresentem como irrazoáveis ou arbitrárias” (Ac. do TC de 01-03-1994, proc. 504/92). Ora, o tratamento diferente que a lei processual dá aos dois casos de recorribilidade anteriormente indicados, simetricamente opostos e, portanto, indissociáveis, já que não se pode encarar um sem vislumbrar o outro, como num espelho que inverte a imagem da mesma “figura”, coloca o arguido nesta situação absurda: naquele em que é condenado, não lhe é permitido recorrer para obter a sua absolvição, no outro em que é absolvido, a acusação pode recorrer para obter a sua condenação! Esta diferença de tratamento, em casos que deveriam ser tratados como iguais, é irrazoável e arbitrária, para mais com ofensa do núcleo fundamental do direito de defesa. Há ofensa, nesta interpretação das normas de processo penal, dos art.ºs 13.º e 32.º, n.º 1, da Constituição, por violação material dos direitos à igualdade e de defesa (através do recurso) no processo penal. Não se nega à “acusação” (M.º P.º ou Assistente) o direito, também constitucionalmente protegido, de recorrerem das decisões desfavoráveis, mas têm de o fazer em pé de igualdade com a defesa, nunca com superioridade de meios. Note-se que estamos aqui a reportar-nos a um caso específico, em que a condenação na 1ª instância foi numa pena não privativa de liberdade e que, posteriormente, reapreciada pela Relação em sede de recurso, foi determinada a absolvição do arguido. Pois, se a condenação na 1ª instância fosse em pena privativa de liberdade, nenhuma objecção se poria ao recurso para o STJ por parte da acusação contra o acórdão absolutório da Relação, pois que na situação simetricamente oposta (absolvição na 1ª instância e condenação na Relação em pena privativa da liberdade) o arguido poderia interpor recurso para o STJ (cfr. al. e, a contrario, do n.º 1 do art.º 400.º do CPP). Concluímos, assim, que é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 13º e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação dos artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no sentido de que é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo Ministério Público ou pelo Assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido por determinado crime e que, assim, revogou a condenação do mesmo na 1ª instância numa pena não privativa da liberdade. Termos em que se recusa a aplicação dessas normas com tal interpretação, que consideramos inconstitucional e, tendo em conta ainda o que se disse sobre os efeitos do disposto na al. d) do n.º 1 do art.º 400.º do CPP07 quanto ao crime de corrupção activa para acto ilícito, não se admitem os recursos do Ministério Público e do Assistente, que assim serão rejeitados.
5. Pelo exposto, por decisão sumária do relator, rejeitam-se os recursos do Ministério Público e do Assistente, por inadmissibilidade legal. Nos termos dos art.ºs 515.º n.º 1, al. b), do CPP e 87.º, n.ºs 1, al. a) e 3, do CCJ, fixa-se em 2 (duas) UC a taxa de justiça a cargo do Assistente. Nos termos do art.º 420.º, n.º 3, do CPP, o Assistente pagará, ainda, uma importância de 3 (três) UC. Notifique.
II. Desta decisão sumária reclamaram para a conferência, nos termos do art.º 417.º, n.ºs 6 e 8, do CPP, o Ministério Público e o Assistente, os quais, em resumo, discordaram do seguinte:
A) O Ministério Público: “…o Ministério Público discorda da douta decisão sumária por continuar a entender que, e contrariamente ao nesta decidido, não há recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão do Tribunal da Relação que conheça de recurso interposto de decisão - seja do Tribunal Singular, Colectivo ou do Júri - que aplique pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a cinco anos, na linha da jurisprudência citada quando da vista nos termos do artigo 416.° do C.P.P., e sob pena de, diversamente, criar-se uma «contradição intrínseca que o equilíbrio normativo sobre o regime dos recursos para o STJ não pode comportar» B) O assistente: 13. (…) não se subscreve a tese inicial contida na Decisão Sumária ora por força do disposto no artigo 400°, 1, alínea d) do CPP07, reclamada de que, por força do disposto no artigo 400.º, 1, alínea d) do CPP07, sempre seria irrecorrível a decisão a quo com o propósito de ver apreciada e aceite uma condenação do arguido pelo crime de corrupção activa para acto ilícito; III. Foram colhidos os vistos e realizada conferência com o formalismo legal. Cumpre decidir as reclamações contra a decisão sumária do relator.
A) RECLAMAÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO
O Ministério Público entende, na esteira de alguma jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, que não há recurso ordinário para este Tribunal de acórdão do Tribunal da Relação que conheça de recurso interposto de decisão - seja do tribunal singular, colectivo ou do júri - que aplique pena não privativa de liberdade ou pena de prisão não superior a cinco anos, pois assim ir-se-ia criar uma «contradição intrínseca que o equilíbrio normativo sobre o regime dos recursos para o STJ não pode comportar». Não nos vamos alongar sobre este tema, pois a decisão sumária sob reclamação já contém suficiente resposta. Recordemos, no entanto, que a referida jurisprudência refere que houve uma clara intenção do legislador da Lei nº 48/2007, de 29.08 de restringir os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça aos casos de maior gravidade (esta conotada, por via da técnica usada para aferir da admissibilidade do recurso, com a espécie e medida da pena aplicada) e de que constituem manifestações bem paradigmáticas as limitações decorrentes: a) tratando-se de recurso directo para o S.T.J., do preceituado na alínea c) do n.º 1 do art. 432° do C.P.P. b) estando em causa decisões proferidas pelas relações, em recurso, do estatuído na al. f) do nº 1 do art. 400° do mesmo diploma legal. Todavia, se, na verdade, como vem referido na decisão sumária, uma das linhas de força que orientou o legislador da reforma de 2007 na configuração normativa dos casos de recorribilidade para o STJ é a de que a este tribunal, como última instância de recurso, só devem caber os casos considerados de maior gravidade, aferida pela pena aplicada e não pela pena aplicável, o que é certo que tal não foi configurado como regra absoluta, impossível de ultrapassar, pois o próprio legislador logo admitiu pelo menos uma excepção, a que vem configurada no art.º 400.º, n.º 1, al. e), “a contrario”. Com efeito, através desta norma, o legislador quis fazer intervir o STJ numa terceira apreciação de recurso, nos casos em que a relação, julgando em recurso, aplique pena de prisão que não confirme a decisão da 1ª instância, ainda que a mesma seja fixada no mínimo de 30 dias. Bem longe, portanto, dos tais 5 anos de prisão que a referida jurisprudência considera como a pena a partir da qual se pode colocar o caso ao mais alto Tribunal. Assim, se o próprio legislador abriu excepção à “regra”, não faz sentido erigir agora a «regra» como barreira inultrapassável, cuja violação constituiria uma «contradição intrínseca» do sistema. Por outro lado, a regra geral não é a de que ao STJ só se apresentam os casos de maior gravidade, mas a de que todas as decisões são recorríveis se nada tiver sido disposto em contrário (art.º 399.º), pelo que não parece pertencer à melhor técnica jurídica a interpretação restritiva de certa norma ou de certo conjunto de normas, como faz agora o M.º P.º, visando demonstrar que não é admissível o recurso de determinada decisão. A interpretação restritiva não pode servir para aumentar o número de excepções à regra e sim para as diminuir, pelo que só deverá ser usada para confirmar que certa decisão é recorrível, não para lhe negar recorribilidade. Por isso, confirma-se a decisão sumária na parte em que decidiu que a interpretação dos art.ºs 399.º e 400.º do CPP permite a recorribilidade do acórdão da relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido, anteriormente condenado em 1ª instância numa pena não privativa da liberdade. Há que indeferir a reclamação do Ministério Público.
B) RECLAMAÇÃO DO ASSISTENTE
A reclamação do assistente assenta, essencialmente, nestas razões; 1ª- Não houve uma dupla absolvição do arguido quanto ao crime de corrupção activa para acto ilícito; 2ª- A decisão recorrida não cabe nas excepções à regra geral da recorribilidade; 3ª- O assistente goza do direito constitucional de recorrer das decisões que lhe são desfavoráveis; 4ª- Não há simetria de situações entre a ora debatida e a prevista no artigo 400°, nº 1, e), in fine, do CPP; 5ª- Não se verifica a inconstitucionalidade detectada na decisão sumária.
Na decisão sumária afirmou o relator que «nessa vertente [do crime de corrupção activa para acto ilícito], todavia, o recurso nunca poderia ser admitido, pois já houve uma dupla absolvição: a da 1ª instância (que ao condenar o arguido pelo crime de corrupção activa para acto lícito, absolveu-o, implicitamente, pelo crime mais grave) e, obviamente, a da Relação (que entendeu não haver qualquer crime de corrupção). Rege nesta parte, portanto, o disposto na al. d) do n.º 1 do art.º 400.º do CPP07». Entende o Assistente, porém, que «a absolvição nestes autos apenas foi pela primeira vez decidida no Tribunal da Relação de Lisboa e é tão provisória como a condenação decidida na primeira instância, a qual não pode manifestamente ser considerada uma absolvição, especialmente para efeitos da linear e correcta interpretação do que seja a dupla conforme absolutória». Acontece, todavia, que para a finalidade de se saber se certa decisão é ou não recorrível face ao disposto no art.º 400.º, n.º 1, al. d), do CPP, a dupla conforme absolutória aí referida é constituída, por definição, por uma sentença absolutória de 1ª instância com carácter provisório (pois dela foi interposto recurso para a relação) e por um acórdão absolutório da relação que ainda é recorrível, pelo menos, para o TC e que, portanto, também tem carácter provisório. O que significa que, ao contrário do que diz o reclamante, para se saber se determinado acórdão absolutório da relação, proferido em recurso, é ou não recorrível para o STJ, torna-se imprescindível saber se tal decisão, ou mesmo a da 1ª instância, é na realidade “provisória”, pois se for “definitiva”, por já ter transitado em julgado, não há lugar a recurso ordinário. Isto é, basta haver duas absolvições em instâncias diversas para que já não haja recurso ordinário da segunda decisão, apesar do carácter «provisório» de ambas. Por outro lado, a absolvição na 1ª instância pelo crime de corrupção activa para acto ilícito, em rigor, não se pode ter como «implícita», como referiu o relator, mas sim como «necessária» face à decisão ali tomada. Na realidade, estando o arguido pronunciado por esse crime e tendo o tribunal convolado a pronúncia para crime menos grave, o crime mais grave da pronúncia foi, necessariamente, objecto de absolvição, pois a condenação foi por um crime diferente. Não resta dúvida, portanto, que neste processo não pode ser objecto de recurso o crime de corrupção activa para acto ilícito, pois, nessa vertente, a decisão da relação não é recorrível, já que existe dupla conforme absolutória (art.º 400.º, n.º 1, al. d), do CPP07). Improcede, nesta parte, a reclamação do Assistente.
A decisão sumária pronunciou-se no mesmo sentido pugnado pelo recorrente no que respeita à possibilidade de se interpretarem os art.ºs 399.º e 400.º do CPP – sem levar em conta um juízo sobre a constitucionalidade - no sentido de ser admissível recurso para o STJ de acórdão absolutório da relação, proferido em recurso, que se pronuncia sobre uma condenação da 1ª instância em pena não privativa da liberdade. Na verdade, não se acolheu na decisão sumária a tese de que essa interpretação deve ser afastada por força de razões de unidade e coerência do sistema e já aqui tivemos a oportunidade de a rebater novamente, a respeito da reclamação do Ministério Público. Sobre este ponto, portanto, nada mais há a dizer e, em rigor, nessa parte o Assistente não reclama da decisão sumária, pois aí esta é-lhe favorável. A decisão sumária reconheceu que o Assistente goza do direito constitucional de recorrer das decisões que lhe são desfavoráveis. Esse é ponto pacífico. Mas, do que o Assistente não goza, tal como qualquer outro sujeito processual, é do direito constitucional de recorrer por mais do que uma vez, num triplo grau de recurso, pois, perante essa exigência, muita vezes reclamada, o TC tem negado desde sempre que a Constituição exija mais do que um grau de recurso como garantia dos sujeitos processuais, nomeadamente, da defesa, em variadíssimos acórdãos e de há muitos anos para cá. O Assistente expressa o entendimento de que a decisão tirada em recurso pela Relação é diferente da que foi tomada na 1ª instância e que, portanto, ainda não teve oportunidade de recorrer dessa decisão inovadora. Teria, assim, o direito constitucional de dela recorrer, pois ainda não lhe foi dada essa oportunidade. Mas, o que o TC vem dizendo é que o direito constitucional de recorrer se esgota com a reapreciação do caso, tanto no plano de facto como no de direito, por um Tribunal Superior e que a obtenção de uma dupla conforme não está protegida constitucionalmente. Isto é, o tribunal de recurso pode ou não estar de acordo com o tribunal recorrido que mesmo assim por aí se queda o direito constitucional de recorrer. Haverá ou não uma terceira apreciação em sede de recurso ordinário de acordo com o que estiver disposto na lei adjectiva sobre a recorribilidade, mas não como exigência constitucional. Se assim não fosse, isto é, se o sujeito processual tivesse o direito constitucional de recorrer de qualquer decisão inovadora tirada em recurso, então os recursos poderiam vir a tornar-se sucessivos, num carrossel que só findaria com a dupla conforme. Mas, não é assim que a lei dispõe. O que importa, do ponto de vista constitucional, é que o «caso penal», considerado por si mesmo, independentemente da solução concreta que tenha sido adoptada, possa ser reapreciado por uma instância superior, tanto no plano de facto como no de direito. Ora, o Assistente já teve a oportunidade – que não desperdiçou – de recorrer da decisão da 1ª instância para a Relação, quer quanto à matéria de facto quer quanto à de direito. Se terá ou não agora uma nova oportunidade para recorrer, em recurso ordinário para o STJ, é algo que a interpretação das várias normas adjectivas o dirá, mas não como decorrência de um suposto direito constitucional à repetição do recurso.
O Assistente entende que não há a simetria de situações anotada na decisão sumária do relator, entre a hipótese (1) de uma absolvição na 1ª instância a que se segue, na decisão do recurso, uma pena não privativa da liberdade e a hipótese (2) de uma pena não privativa da liberdade na 1ª instância a que se segue, na decisão do recurso, uma absolvição. Diz, em suma, que «…ao contrário das situações em que existe uma condenação em pena de multa (ou seja pena não privativa da liberdade) decidida pela Relação, nas situações contrárias, a decisão absolutória da 2ª instância não nos confere qualquer informação sobre uma eventual sanção punitiva (privativa ou não privativa da liberdade) caso tivesse havido uma decisão condenatória». Ora, esta é a visão típica do ofendido numa questão penal, a de que a acção de julgar só se exerce através da punição e não com a absolvição, visão essa que não se mostra de acordo com a ponderação criteriosa dos interesses em jogo, que só os tribunais podem fazer. Mas, se para o Assistente é a decisão da Relação que importa ou que «conta» (“«…ao contrário das situações em que existe uma condenação em pena de multa…decidida pela Relação”), então que dizer quando a Relação absolve, como é o caso dos autos? Na realidade, nas duas situações que o relator considerou simétricas há uma absolvição e uma condenação, embora simetricamente opostas quando ao tempo e ao tribunal que as proferiu. Em ambos os casos, portanto, há uma decisão que aplica uma pena não privativa da liberdade e uma outra decisão de menor gravidade (a absolvição), o que, ao contrário do referido pelo Assistente, “nos confere… informação sobre uma eventual sanção punitiva” na “decisão condenatória” já que esta foi uma pena “não privativa da liberdade”. Fica-se a saber que a questão penal, para os tribunais que até agora sobre ela se debruçaram, encontra a sua decisão na escolha entre uma absolvição e uma pena de multa, o que nos dá suficiente informação sobre a gravidade da sanção punitiva relevante para a questão da recorribilidade. É certo que se houvesse um terceiro grau de jurisdição, o novo tribunal chamado a intervir (por hipótese, o STJ) ainda poderia aplicar uma pena de prisão, caso o assistente ou o M.º P.º recorressem. Mas isso seria assim em qualquer das situações simetricamente opostas e não só numa delas, se a lei o permitisse. Se o arguido nestes autos tivesse sido absolvido na 1ª instância e depois condenado em multa na Relação, poderia o Assistente recorrer para o STJ e pedir a aplicação de uma pena de prisão? Não o poderia fazer, pois a isso se opõe o disposto no art.º 400.º, n.º 1, al. d), do CPP. Como pode agora o Assistente recorrer para o STJ a pedir a condenação em prisão do arguido se este nem chegou a ser condenado na Relação na pena de multa aplicada na 1ª instância? A simetria de situações existe e devia ter merecido do legislador ordinário uma resposta igual para ambas, o que, na realidade, não sucede, já que uma é expressamente irrecorrível, em prejuízo essencialmente do arguido, outra cai no «caldeirão» dos casos em que não está prevista expressamente a irrecorribilidade, tornando-a assim aparentemente recorrível, também em prejuízo do arguido! Já dissemos que não compete aos tribunais, por via da interpretação correctiva, solucionar esta diferença de tratamento. Mas, deverão ter em conta as respectivas implicações constitucionais. O Assistente considera que a questão de inconstitucionalidade suscitada pelo relator não procede, essencialmente, por duas razões: falta de simetria das situações em apreço e, se alguma inconstitucionalidade existe, então deveria ser resolvida de modo a permitir o recurso em ambas as situações e não no sentido contrário. Já vimos que existe uma perfeita simetria de situações, a que o relator chamou de «duas imagens invertidas» ou de «caso simetricamente oposto». Essas duas situações simétricas mereceram por parte do legislador um tratamento diferente, sempre em prejuízo dos direitos de defesa, pois no caso em que é condenado não pode recorrer a pedir a sua absolvição, no caso em que é absolvido pode a acusação recorrer e pedir a sua condenação. Como disse o relator: “Esta diferença de tratamento, em casos que deveriam ser tratados como iguais, é irrazoável e arbitrária, para mais com ofensa do núcleo fundamental do direito de defesa. Há ofensa, nesta interpretação das normas de processo penal, dos art.ºs 13.º e 32.º, n.º 1, da Constituição, por violação material dos direitos à igualdade e de defesa (através do recurso) no processo penal». Pergunta-se, então, porque não se deve resolver essa diferença de tratamento permitindo em ambos os casos o direito ao recurso? Porque não permitir ao arguido um novo recurso quando é condenado na relação, na decisão de um recurso, em pena não privativa da liberdade e também não permitir à acusação um novo recurso quando o arguido é absolvido na relação, depois de condenado na 1ª instância em pena não privativa da liberdade? Tanto mais que a regra é a da recorribilidade e não a da irrecorribilidade? Todavia, não é assim, pois a regra quanto a um terceiro grau de recurso, no plano constitucional – convém não esquecer que é disso de que estamos a falar – não é a da recorribilidade, mas a de só há uma recorribilidade excepcional, em casos definidos na lei ordinária. Ora, o legislador ordinário tomou uma opção expressa quanto a uma das situações simetricamente opostas – a da irrecorribilidade das decisões da relação, tiradas em recurso, que condenem o arguido em pena não privativa da liberdade – e fê-lo sem que se lhe possa opor qualquer juízo de inconstitucionalidade, como já tem sido dito por várias vezes pelo TC. Mas, permitiu a interpretação, embora por via não expressa, de que na outra situação simétrica poderia haver um novo grau de recurso. Não devendo as duas situações simétricas subsistirem nesse modelo, por imperativos de ordem constitucional, há que respeitar a vontade expressa do legislador ordinário e declarar que a outra situação simetricamente oposta tem de se adequar a tal vontade expressa, para que haja um integral respeito pelos direitos da defesa e pelo princípio da igualdade de armas em processo penal. Termos em que se mantém a decisão do relator de que é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 13º e 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação dos artigos 399.º e 400.º do Código de Processo Penal na versão que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, no sentido de que é admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, interposto pelo Ministério Público ou pelo Assistente, do acórdão do Tribunal da Relação, proferido em recurso, que absolveu o arguido por determinado crime e que, assim, revogou a condenação do mesmo na 1ª instância numa pena não privativa da liberdade.
IV - Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, reunidos em conferência, em indeferir as reclamações do Ministério Público e do Assistente e em manter o decidido pelo relator. Fixa-se em 3 (três) UC a taxa de justiça a cargo do Assistente, nos termos da tabela III do RCP. a) Rodrigues da Costa |