Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1130/14.7TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: HENRIQUE ARAÚJO
Descritores: QUEBRA DE SEGREDO PROFISSIONAL
SEGREDO PROFISSIONAL
ORDEM DOS ADVOGADOS
RECUSA
ADVOGADO
APOIO JUDICIÁRIO
Data do Acordão: 02/15/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO EM GERAL / INSTRUÇÃO DO PROCESSO – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS.
Doutrina:
-António Arnauld, Iniciação à Advocacia, p. 66;
-Parecer do Conselho Geral de 02-04-1981, ROA, Ano 41, p. 900 e ss., e in C:\Users\andre.r.capricho_st\Desktop\1130-14 (Rel. 17 - segredo profissional).doc - _ednref1
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 639.º, N.ºS 1 E 3, 641.º, N.º 2, ALÍNEA B) E 417.º, N.º 3, ALÍNEA B).
ESTATUTO DA ORDEM DOS ADVOGADOS (EOA), APROVADO PELA LEI N.º 145/2015, DE 09 DE SETEMBRO: - ARTIGO 92.º, N.ºS 1, ALÍNEA B), 2 E 3.
REGULAMENTO DE ORGANIZAÇÃO E FUNCIONAMENTO DO SISTEMA DE ACESSO AO DIREITO E AOS TRIBUNAIS NA ORDEM DOS ADVOGADOS, REGULAMENTO N.º 330-A/2008 DE 24 DE JUNHO.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:


- DE 23-02-2017.
Sumário :
I - É admissível a revista se não se verifica a situação prevista no art. 639.º, n.º 3, do CPC (conclusões deficientes, obscuras, complexas ou insuficientes) – o que sempre legitimaria convite ao aperfeiçoamento – nem, muito menos, a situação de falta absoluta de conclusões, de que fala o art. 641.º, n.º 2, al. b), do CPC.

II - Na generalidade, entende-se por segredo profissional a reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções ou como consequência do seu exercício, factos que lhe incumbe ocultar, quer porque o segredo lhe é exigido, quer porque ele é inerente à própria natureza do serviço ou à sua profissão.

III - No caso do advogado, o segredo profissional está disciplinado no art. 92.º do EOA, permitindo a cláusula geral do seu n.º 1, que se incluam no referido segredo, para além das elencadas, outras situações que conflituem com os interesses que ela visa proteger.

IV - Radicando no princípio da confiança, no dever de lealdade do advogado para com o constituinte, o dever de segredo profissional transcende a mera relação contratual, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação para com o constituinte, para com a própria classe, a OA e a comunidade em geral.

V - Por isso, consideram-se abrangidas pelo segredo profissional todas as situações que sejam susceptíveis de significar a violação da relação de confiança entre o advogado e o seu patrocinado e também todas as situações que possam representar quebra da dignidade da função social que a advocacia prossegue.

VI - Deve, porém, ceder, excepcionalmente, perante outros valores que, no caso concreto, se lhe devam sobrepor, designadamente, quando os elementos sob segredo se mostrem imprescindíveis para a protecção e efectivação de direitos ou interesses jurídicos mais relevantes.

VII - No caso dos autos, é ilegítima a recusa da OA, impondo-se o levantamento do segredo profissional atinente a documentação integrante do processo interno de nomeação de patrono, sendo este de inegável importância para a decisão da causa.
Decisão Texto Integral:

PROC. N.º 1130/14.7TVLSB.L1.S1           

            REL. 17[1]

                                                                       *

          ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

           Nesta acção declarativa de condenação que AA propõe contra BB, pretende o Autor fazer valer contra esta o direito a uma indemnização, que quantifica em 62.000,01 €, acrescida de juros, invocando que a Ré, como patrona oficiosa do demandante, violou ilícita e culposamente os deveres deontológicos e profissionais, ocasionando a improcedência da acção que aquele instaurara na 8ª Vara Cível, sob o n.º 561/11.9TVLSB.

           Alega o Autor que a Ré nunca o contactou nem se deixou contactar, o que motivou pedido de substituição do patrono junto da Ordem dos Advogados, pedido esse que não foi aceite porquanto a Ordem lhe indicação de que o processo estava a ser devidamente acompanhado.

           O Autor, após a realização da audiência prévia, veio requerer a notificação do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados para juntar aos autos “cópia dos esclarecimentos/exposições apresentadas pela Ré no âmbito do processo de nomeação de patrono n.º 13619/2010” - cfr. fls. 103.

           Ordenada essa notificação pelo despacho de fls. 110, e após insistência para cumprimento do notificado, o Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados recusou a entrega da pretendida cópia, informando que os elementos solicitados se encontram abrangidos pelo sigilo profissional - cfr. fls. 110, 115, 130 e 131.

            Insistiu o Autor pela apresentação dessa documentação através do requerimento de fls. 135/136.

           O Mmº Juiz titular dos autos, antes de prosseguir o incidente visando o levantamento do sigilo profissional, determinou a notificação da Ré para informar se estaria disponível para solicitar ao Presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados o levantamento do sigilo profissional, tendo a mesma respondido negativamente – cfr. fls. 151 /152 e 156.

            Os autos subiram à Relação de Lisboa a fim de ser apreciado o levantamento do sigilo profissional, no seguimento do despacho de fls. 187 a 191.

           A Relação de Lisboa, por acórdão de 26.04.2017, decidiu ser ilegítima a recusa da Ordem dos Advogados, determinando que esta dê cumprimento à solicitação do tribunal, remetendo “cópia dos esclarecimentos/exposições apresentadas pela Ré no âmbito do processo de nomeação de patrono n.º 13619/2010”, com referência aos despachos do Conselho Distrital datados de 05.12.2012, 06.02.2013, 24.04.2013 e 11.09.2013.

A Ordem dos Advogados veio interpor recurso de revista deste acórdão, concluindo do seguinte modo:

A)       Mal andou a decisão sob censura ao considerar que os elementos em apreço não se encontram abrangidos pelo sigilo profissional do Advogado;

B)        Com efeito, tal decisão só pode partir de um pré-conceito errado acerca da essencialidade do sigilo para o exercício da Advocacia e para o correcto funcionamento do sistema de Administração da Justiça gizado pela nossa ordem jurídico-constitucional;

C)       Assim, ao considerar que entre o Advogado e a Ordem (o que inclui, naturalmente, os Advogados que integram os órgãos pelos quais se manifesta a vontade da pessoa coletiva) não existe segredo, que o procedimento de escusa ou de pedido de substituição do Patrono nomeado no âmbito do apoio judiciário é um procedimento administrativo igual a qualquer outro e que as informações aí reveladas e obtidas / reveladas não estão sob a alçada do segredo, coloca, com uma incompreensível displicência, em perigo a autorregulação profissional desejada pelo legislador e o regular funcionamento do sistema de acesso ao Direito (assegurado, em grande medida pela Ordem e pelos Advogados que compõem, que confiam e dependem do sigilo profissional), revelando uma insanável contradição;

D)       Não está em causa a defesa do sigilo como valor absoluto, está tão-só em causa reconhecer que no caso há sigilo, que poderá ceder de acordo com as regras próprias para o efeito – questão estritamente jurídica que deve ser dilucidada por este Colendo Supremo Tribunal;

E)        Assim, o erro que resulta da sentença é a incorrecta qualificação jurídica da matéria em apreço (como não sigilosa), a desconsideração da natureza especial do segredo em causa, do melindre das informações, das razões pelas quais as mesmas têm de ser protegidas;

F)        E é também a falta de compreensão em relação à natureza especial do procedimento em causa e, sobretudo, a falta capacidade para perceber que o segredo é estabelecido como conditio sine qua non para o exercício livre e independente da Advocacia, elemento estruturante do nosso Estado de Direito, e não apenas no interesse do cidadão, do particular que é representado pelo Advogado, existem, assim, razões de interesse público para a existência do segredo, que em muito excedem os interesses particulares daquele que é patrocinado;

G)      A argumentação do acórdão impugnado é quase inexistente, sendo, data maxima venia, a mera remissão para a existência de um processo judicial especial de natureza urgente na jurisdição Administrativa imprestável para o caso em apreço – por ser insusceptível de desqualificar a existência de segredo e, assim, sujeição às regras do seu levantamento na sede em que nos encontramos;

H)      Em suma, a decisão recorrida limita-se a dizer que em sede Administrativa (Jurisdição Administrativa), e portanto, como antecâmara de uma acção impugnatória e, eventualmente, de uma acção de responsabilidade da Ordem dos Advogados, enquanto entidade pública, pelo exercício dos seus poderes, o segredo tem cedido no âmbito de um procedimento urgente e especial previsto no CPTA e, como tal, não há na jurisdição civil qualquer segredo, devendo o tema ser tratado como uma mera junção de elementos na posse de terceiros.

I)        É evidente o erro, mesmo que se concorde com as decisões da jurisdição administrativa, que não é o caso. Isto porque não se pode, sem mais, equivaler aqueles processos (os seus fins e a sua tramitação) a um mero pedido de cooperação de um Tribunal numa demanda que opõe dois privados. O argumento não colhe porque não há semelhança de situações e, assim, como erra, não permite fundamentar um juízo de que inexiste segredo;

J)        Demonstração que, aliás, seria impossível, já que é evidente a existência de segredo no caso em apreço;

K)        O legislador, em conformidade com os ditames constitucionais entendeu devolver à Ordem os poderes cabais de autorregulação do exercício da profissão. Sendo que, esta é uma questão que tem particular relevância numa matéria como o segredo;

L)       Sendo que, tendo em atenção este dado, é manifestamente contraditório defender que os elementos em causa nos autos não estão sujeitos a sigilo;

M)      É manifestamente inviável esta ideia de que a passagem da informação de um Advogado para outro Advogado – para que este último, enquanto Advogado e titular de um órgão da Ordem dos Advogados, possa decidir, em exclusivo, uma questão relativa ao concreto exercício da profissão, de um mandato (do afastamento de um Advogado, a pedido do próprio ou do patrocinado) – desqualifica a informação em causa;

N)     É por contar que a informação transmitida não muda a sua natureza, porque a especialidade do procedimento assim o garante, é que o Advogado conta aquilo que conta – que, diga-se, é essencial para que a Ordem possa tomar decisões correctas;

O)      O Advogado conta o que conta por causa da confiança na Ordem, nos Advogados que estão nos seus órgãos, e na vinculação da Ordem e dos Advogados ao sigilo quanto à informação transmitida;

P)        Daí que, em bom rigor, o Advogado não possa invocar o sigilo perante a sua Ordem, nem pedir o levantamento do sigilo para transmitir informações relativas a processo que tem a seu cargo no âmbito de procedimentos administrativos que se desenrolem no seu seio (disciplinares, relativos ao acesso ao Direito e outros). Sendo que, é precisamente para dar corpo normativo a este entendimento que existe o artigo 92.º, em especial o n.º 1 e a alínea b).

Q)   Existem, no entanto, casos em que este sigilo deve ceder? Sim, sem dúvida alguma! Mas deve ceder nos estritos termos que a lei exige, após um juízo de ponderação da Ordem ou dos Tribunais em relação à prevalência dos interesses. As informações ou documentos, em abstracto, podem e devem ser usados num processo judicial, mas não como meros documentos que, em cooperação, a Ordem faculta. Eles serão utilizados após a ponderação devida dos interesses em presença, num juízo que, em suma, é de proporcionalidade e de colisão de direitos.

R)       Entende a Recorrente Ordem dos Advogados, face a tudo o exposto, que é evidente que andou mal a Relação de Lisboa, ao considerar que no caso em apreço inexistia matéria coberta a sigilo, violando, assim, esta regra basilar da Advocacia, a especialidade do procedimento em causa e, em suma, o disposto no artigo 92.º, n.º 1, alínea b) do Estatuto da Ordem dos Advogados, razão pela qual deve ser revogada, reconhecendo-se a existência de sigilo profissional e procedendo à ponderação de interesses legalmente exigida.

           Contra-alegou o Autor, suscitando como questão prévia a inadmissibilidade da revista, de acordo com o disposto no artigo 641º, n.º 2, alínea b), do CPC, por não ter sido devidamente cumprido o ónus de concluir.

Precavendo a improcedência da questão prévia, o recorrido bate-se pelo não provimento da revista.

                                                                       *

           Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões da recorrente, a única questão a dirimir é a de saber se é legítima a recusa da Ordem dos Advogados em fornecer os documentos solicitados pelo tribunal, por violação do segredo profissional.

                                                                       *


II. FUNDAMENTAÇÃO


OS FACTOS

1.        No âmbito do processo n.º 561/11.9TVLSB, da 8ª Vara Cível de Lisboa, a Ordem dos Advogados enviou ao Autor, que a recebeu, a comunicação datada de 09.11.2012, indicando-lhe que, em substituição do patrono anteriormente nomeado, Dr. CC, foi nomeada a Drª DD, ora Ré; mais indicava a morada do escritório da referida advogada – Rua …, … – …, 1600-637 Lisboa –, bem como o respectivo contacto telefónico (doc. n.º 2 junto com a petição inicial, a fls. 27).

2.        No âmbito desse processo, o Autor apresentou ao tribunal, em 26.11.2012, o requerimento cuja cópia consta de fls. 33, indicando que “está a aguardar que o Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados lhe nomeie novo Defensor Oficioso, dado que, até esta data, não conseguiu contacto algum com a advogada nomeada, Drª DD (doc. n.º 4 junto com a petição inicial).

3.         No âmbito do aludido processo e com referência aos respectivos autos de nomeação de patrono (com o n.º 13619/2010), a Ordem dos Advogados enviou ao Autor, que a recebeu, a missiva datada de 12.12.2012, comunicando-lhe o despacho proferido e datado de 05.12.2012, com o seguinte teor:

            “Despacho:

            Notificar o Senhor beneficiário de que este Conselho tem notícia de que o processo está devidamente acompanhado pela Senhora Advogada nomeada, não havendo fundamento para a substituição” – doc. n.º 6 junto com a petição inicial, a fls. 36-37 dos autos.

4.         Em 27.12.2012, o Autor comunicou com a Drª EE, na qualidade de “Vogal do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados”, conforme consta do documento junto a fls. 38-39, indicando, nomeadamente, que “aquando da nomeação da Senhora Advogada em questão, de imediato mas debalde, tentou entrar em contacto com a mesma.

           Por o processo em Juízo estar agora somente para a fase das alegações, de imediato contactou o signatário o CDL para verificar e concretizar o pedido de substituição da Senhora Advogada nomeada.

            (…)

           Estando seguro que nesta altura V.ª Ex.ª estará possuidora do que efectivamente ocorre, não está assegurado qualquer patrocínio ao beneficiário, tem Patrona Nomeada mas não a conseguiu contactar até hoje, pois aquando do recebimento da V. comunicação datada de 12.12.12, mas entregue nos CTT apenas a 17.12.12 e, recebida pelo destinatário a 19.12.12 de novo procurou o paradeiro da Srª Drª DD.

           À disposição de V.ª Ex.ª para qualquer aclaração, junto cópias do envelope do CDL e do requerimento entre em Juízo” – doc. n.º 7 junto com a petição inicial.

5.         No âmbito do mesmo processo judicial, o Autor apresentou ao tribunal, em 30.01.2013, o requerimento cuja cópia consta de fls. 40, indicando, nomeadamente, como segue:

            “(…) 1- Em 12.12.12 recebeu da Ordem a informação de que a Patrona Oficiosa nomeada se mantinha em funções …

           2- Como se o Patrocinado com a mesma não consegue contactar …

            3- Tentou de novo até 27.12.12 contactar a Senhora Advogada nomeada sem qualquer sucesso.

            Perante tal factualidade entregou na Ordem dos Advogados, em 27.12.2012 o requerimento de que se junta cópia e que até agora não foi apreciado e mereceu qualquer despacho.

           Contactados os serviços do CDL da AO, informaram os mesmos o signatário de que a qualquer momento o requerimento entregue a 27.12.12 mereceria despacho.

            Esta a informação que posso disponibilizar a V.ª Ex.ª, dado que a Patrona Oficiosa nomeada nunca conseguiu ser pelo beneficiário contactada, nem contactou o abaixo assinado a comunicar qualquer data para reunião” – doc. n.º 8 junto com a petição inicial.

6.        No âmbito do aludido processo de Nomeação de Patrono, em 06.02.2013, a Drª EE, na qualidade de “Vogal do Pelouro do Apoio Judiciário” proferiu o despacho cuja cópia consta de fls. 41 dos autos, com o seguinte teor:

           “Atenta a exposição do(a) Advogado(a) nomeado(a), Dr.(a) DD, decide-se,

1. Notificar o(a) Senhor(a) Advogado(a) de que deve permanecer no patrocínio até indicação noutro sentido e diligenciar para que fiquem acautelados os direitos do(a) beneficiário(a) do Apoio Judiciário.

2. Cumpram-se as notificações habituais” – doc. n.º 9 junto com a petição inicial.

7.        A Ordem dos Advogados enviou ao Autor, que a recebeu, a missiva datada de 07.05.2013, comunicando-lhe o despacho proferido em 24.04.2013, cuja cópia consta de fls. 44, com o seguinte teor:

            “Atenta a exposição do(a) Advogado(a) nomeado(a) Dr.(a) DD, decide-se,

1. Notificar o(a) Senhor(a) Advogado(a) de que deve permanecer no patrocínio até indicação noutro sentido e diligenciar para que fiquem acautelados os direitos do(a) beneficiário(a) do Apoio Judiciário.

2. Cumpram-se as notificações habituais, incluindo o Senhor beneficiário” – doc. n.º 11 junto com a petição inicial.

8.         Em 21.05.2013, o Autor comunicou com a Drª EE, na qualidade de “Vogal do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados”, conforme consta do documento junto a fls. 45-46, indicando, nomeadamente, que:

           “(…) recebo com surpresa a manutenção da Patrona Oficiosa Advogada DD, a qual, como já alertei V.ª Ex.ª não consigo contactar.

           Com a respectiva manutenção como Patrona, tenho encarecidamente de solicitar ao CDL a gentileza de a advogada nomeada me indicar forma de contacto. Não pode a mesma, em fase de alegações prejudicar o meu direito de acesso à justiça.

            Como não consigo encontrar e reunir com a mesma, como tenho de proceder?

           De quem a responsabilidade civil terei de demandar, por não verificar assegurados os meus legais direitos de acesso à justiça.

            Finalmente, no dia 22 de Fevereiro de 2013 atendeu-me o tlm ... a Drª BB, a qual me afirmou ter decorrido no passado dia 19 de Fevereiro a audiência de Julgamento, afirmando que eu tinha sido notificado pelo Tribunal para tal, o que não corresponde à verdade (…).

           Para completo descanso do Patrocinado, não pode a Patrona ignorar os requerimentos que este remeteu ao CDL e aos autos, em que, sem qualquer ambiguidade invoca os motivos por que requer a substituição da Patrona nomeada, impossibilidade de contacto.

           Aguardando o desfecho da ocorrência próxima, Recurso, peço desculpa a V.ª Ex.ª pelo teor desta comunicação que, faço questão de se encontrar arquivada no processo de nomeação para apuramento futuro de responsabilidades, dado ter sido impossível para o interessado apresentar as testemunhas na data da última audiência, conforme em 22 de Outubro tal ficou pendente perante a Meritíssima Magistrada Judicial” – doc. n.º 12 junto com a petição inicial.

9.        Em 12.06.2013, o Autor dirigiu ao Presidente do Conselho Distrital da Ordem dos Advogados o requerimento cuja cópia consta de fls. 47, com o seguinte teor:

            “Em virtude da patrona oficiosa nomeada ter apresentado escusa a 2/06/13 venho incomodar V.ª Ex.ª com a possibilidade que alvitrei em 24/10/2012, requerimento de que junto cópia, no sentido de poder ser nomeada a Srª Drª FF que já é patrona (…) nos autos com este relacionados. Na altura foi junta a respectiva declaração de aceitação portanto já junta aos presentes autos de nomeação.

           Caso V.ª Ex.ª verificar existir outra possibilidade (…) muito grato ficaria, pois encontra-se a aguardar prazo para recurso o processo em causa” – doc. n.º 13 junto com a petição inicial.

10.      A Drª EE, na qualidade de “Vogal do Pelouro do Apoio Judiciário” proferiu o despacho datado de 11.09.2013, cuja cópia consta de fls. 48 dos autos, com o seguinte teor:        

           “Compulsando os autos, atenta a solicitação do Senhor beneficiário do Apoio Judiciário e as informações da Senhora Advogada nomeada, Drª DD, decide-se,

           Notificar o Senhor beneficiário de que o Processo Judicial se encontra findo, com sentença proferida em 8/4/2013, com trânsito em julgado, pelo que não se mostra necessária a substituição requerida” – doc. n.º 14 junto com a petição inicial.

O DIREITO


a) Da questão prévia

A questão prévia levantada pelo recorrido é manifestamente improcedente, conforme veremos em brevíssimas linhas.

Estabelece o artigo 639º, n.º 1, do CPC que o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.

A Ordem dos Advogados cumpriu escrupulosamente esse ónus, finalizando as alegações de recurso com 18 conclusões, perfeitamente claras, nas quais sintetiza os fundamentos da sua discordância quanto ao decidido na Relação de Lisboa.

Não se verifica a situação prevista no artigo 639º, n.º 3 (conclusões deficientes, obscuras, complexas ou insuficientes) – o que sempre legitimaria convite ao aperfeiçoamento – nem, muito menos, a situação de falta absoluta de conclusões, de que fala o artigo 641º, n.º 2, alínea b).

Por conseguinte, improcede a arguição da inadmissibilidade da revista.


b) Do mérito da revista

           Entendeu o acórdão recorrido que, no caso, não está em causa apurar a verificação de qualquer facto de que a ré, patrona oficiosa do autor, tenha tido conhecimento em virtude do exercício do patrocínio e da relação assim estabelecida com o seu patrocinado.

            Desenvolve este entendimento nos seguintes termos:

           “Aliás, não se vislumbra como considerar de maneira diferente ponderando que o que está em causa é precisamente avaliar se, como o autor alega, inexistiu qualquer contacto entre o requerente do apoio judiciário, ora autor e o patrono nomeado, a ora ré, no período subsequente à nomeação e pelo menos até 22-02-2013, data em que o autor invoca que a ré atendeu o seu telefonema.

               Ponderando os temas de prova enunciados pelo tribunal de primeira instância, a colaboração pedida à Ordem dos Advogados é pertinente à averiguação da seguinte matéria:

                - Se nos dias que se seguiram à nomeação da ré, o autor não foi contactado pela ré e as tentativas de contacto telefónico com a mesma, através dos números ... e ..., revelaram-      -se infrutíferas, dado que esta nunca atendeu os telefonemas efectuados pelo autor – número 2 dos temas de prova.

               - Se após três meses de tentativas de contacto, no dia 22-02-2013 a ré atendeu a chamada efectuada para o telemóvel n.º ..., tendo então dito ao autor que: ‘a audiência de julgamento realizou-se no dia 19/2/2013; o autor tinha sido notificado pelo Tribunal para tal; não atende chamadas sem número; não contactava ninguém por escrito, por não receber verbas no Instituto Financeiro do Ministério da Justiça, a Lei do Apoio Judiciário obrigava os beneficiários a escrever aos Patronos, caso estes não atendessem os telefones’.

                (…)

                Em suma, considerando que o tipo de informação solicitada à AO, afigura-se-nos que os elementos pretendidos não se encontram a coberto do segredo profissional imposto à advogada ora demandada, pelo que não se justifica sequer avaliar a situação em termos de levantamento de sigilo.

Acrescente-se que a ponderação de eventuais razões associadas, no âmbito do pedido de escusa, a factos de natureza pessoal e provada com nenhuma relação com o processo judicial propriamente dito, a que a AO vagamente alude – mesmo que estivesse em causa documentação alusiva a escusa, e não está, como já se referiu – extravasa o âmbito deste incidente e portanto escapa à apreciação desta Relação – essas razões enquadram-se na previsão do n.º 3, alínea b) do art. 417º do C.P.C.”.

Perspectiva diametralmente oposta tem a Ordem dos Advogados, que defende, nas conclusões do recurso, que a documentação solicitada está abrangida pelo sigilo profissional de advogado e que o acórdão recorrido viola o disposto no artigo 92º, n.º 1, alínea b) do Estatuto da Ordem dos Advogados, aprovado pelo DL 145/2015, de 9 de Setembro.

Vejamos:

Na generalidade, entende-se por segredo profissional a reserva que todo o indivíduo deve guardar dos factos conhecidos no desempenho das suas funções ou como consequência do seu exercício, factos que lhe incumbe ocultar, quer porque o segredo lhe é exigido, quer porque ele é inerente à própria natureza do serviço ou à sua profissão.

O segredo profissional de advogado está disciplinado no artigo 92º do EOA, aí se dispondo:

1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:

a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;

b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem [i]dos Advogados;

c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;

d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;

e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;

f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.

                A cláusula geral do n.º 1 do artigo 92º permite que se incluam no segredo profissional de advogado, para além das elencadas, outras situações que conflituem com os interesses que ela visa proteger.

O dever de guardar segredo profissional tem as suas raízes no princípio da confiança, no dever de lealdade do advogado para com o constituinte, mas também na dignidade da advocacia e na sua função de manifesto interesse público.

Nas palavras de António Arnauld[2], o fundamento ético-jurídico do sigilo profissional de advogado radica no princípio da confiança e na natureza social da função forense.

A obrigação de segredo transcende, por consequência, a mera relação contratual, assumindo-se como princípio de ordem pública e representando uma obrigação do advogado não apenas para com o seu constituinte, mas também para com a própria classe, a Ordem dos Advogados e a comunidade em geral.

Isso mesmo foi afirmado no acórdão da Relação de Lisboa de 23.02.2017:

“A par dos interesses individuais da preservação do segredo sobre determinados factos, protegem-se igualmente valores ou interesses de índole supra-     -individual e institucional que, por razões de economia, poderemos reconduzir à confiança sobre que deve assentar o exercício de certas profissões”.

Por isso, consideram-se abrangidas pelo segredo profissional todas as situações que sejam susceptíveis de significar a violação da relação de confiança entre o advogado e o seu patrocinado e também todas as situações que possam representar quebra da dignidade da função social que a advocacia prossegue. O segredo profissional não é só, em rigor, um dever do advogado por pertencer a uma classe, mas é, e sobretudo, um dever de toda essa classe e, por isso, vinculativo e obrigatório para cada membro dela[3].

Saliente-se que, além dos factos, o sigilo profissional abrange ainda quaisquer documentos ou outras coisas que se relacionem, directa ou indirectamente, com os factos sujeitos a sigilo – cfr. n.º 3 do artigo 92º.

 Deferido a um qualquer cidadão, pelos serviços competentes da Segurança Social, o pedido de apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono, é a Ordem dos Advogados quem procede à nomeação de advogado ao beneficiário do apoio, através do adequado processo interno, tramitado nos termos do Regulamento de Organização e Funcionamento do Sistema de Acesso ao Direito e aos Tribunais na Ordem dos Advogados (Regulamento n.º 330-A/2008 de 24 de Junho).

É nesse processo que se coligem as informações relacionadas com a nomeação do patrono, bem como todos os requerimentos e exposições dirigidos por este à Ordem dos Advogados, nomeadamente os que digam respeito a incidentes ocorridos durante o patrocínio.

Poremos, assim, o enfoque na alínea b) do n.º 1 do artigo 92º, supostamente violada pela decisão recorrida.

Recorde-se que o que aí se determina é que está obrigado ao segredo o advogado relativamente a factos de que tenha tomado conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados.

Explicita-se essa obrigação mediante o seguinte raciocínio: o advogado tem necessariamente de expor ao colega, que exerce o cargo na Ordem, e este, por seu turno, obriga-se ao sigilo nos mesmos termos do originário depositário dos factos sigilosos, havendo assim como que uma sucessão no dever do sigilo.

 Poderá obtemperar-se que uma coisa é o dever do advogado guardar segredo, em função do cargo desempenhado na Ordem dos Advogados, e outra coisa será a própria Ordem escudar-se no dever de guardar segredo para não divulgar os dados pretendidos.

Contudo, nos termos do artigo 1º, n.º 2, do EOA, a Ordem dos Advogados é uma pessoa coletiva de direito público, pertencendo à administração autónoma do Estado e desempenhando as suas funções, incluindo a função regulamentar, de forma independente dos órgãos do Estado. É mediante a actividade desenvolvida pela Ordem dos Advogados que se articulam os interesses profissionais dos advogados com o interesse público da justiça, cabendo-lhe, entre outras atribuições, colaborar na administração da justiça e assegurar o acesso ao direito.

Não custa, pois, aceitar que a própria Ordem dos Advogados, ao intermediar a relação de patrocínio entre o advogado nomeado e o beneficiário do apoio judiciário, esteja vinculada à obrigação de não divulgar factos que lhe tenham sido transmitidos pelo advogado nomeado no âmbito do processo interno de nomeação de patrono. Dizendo esses factos respeito à actividade da advocacia, que a Ordem superiormente regula com total autonomia, impõe-se a necessária reserva de modo a preservar a indispensável dignidade da função.

Evidentemente que, como qualquer outro segredo profissional (v.g. médicos, enfermeiros, funcionários públicos, contabilistas certificados, agentes de execução, etc.), o segredo profissional de advogado não é absoluto. Ele cede, excepcionalmente, perante outros valores que, no caso concreto, se lhe devam sobrepor, designadamente, quando os elementos sob segredo se mostrem imprescindíveis para a protecção e efectivação de direitos ou interesses jurídicos mais relevantes.

Cremos ser este o caso.

Considerando os contornos da relação material controvertida e os temas sujeitos a prova, acima identificados, afigura-se que a documentação solicitada à Ordem dos Advogados, atinente ao processo interno de nomeação de patrono, é de inegável importância para a decisão da causa.

Pelo que, sendo ilegítima a recusa, impõe-se o levantamento do segredo profissional, devendo a Ordem dos Advogados juntar ao processo “cópia dos esclarecimentos/exposições apresentadas pela Ré no âmbito do processo de nomeação de patrono n.º 13619/2010”.

                                               *

Nestes termos, confirma-se o acórdão recorrido, embora com fundamentação completamente diversa.

                                               *

Custas pela recorrente.

                                               *

                        LISBOA, 15 de Fevereiro de 2018

Henrique Araújo (Relator)

Maria Olinda Garcia

Salreta Pereira

______________
[1] Relator:       Henrique Araújo
  Adjuntos:    Maria Olinda Garcia
                        Salreta Pereira
[2] “Iniciação à Advocacia”, página 66.
[3] Parecer do Conselho Geral de 02.04.1981, em ROA, ano 41, páginas 900 e seguintes.