Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1502/21.0T8LSB-A.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: CATARINA SERRA
Descritores: PROCEDIMENTOS CAUTELARES
ARROLAMENTO
CONTA BANCÁRIA
DEPOSITÁRIO
POSSE
RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
Data do Acordão: 06/23/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. No procedimento cautelar de arrolamento, a regra é a de que o depositário dos bens é o próprio possuidor ou detentor dos bens arrolados, ressalvando-se o caso de existir manifesto inconveniente em que os bens lhe sejam entregues (cfr. artigo 408.º, n.º 1, do CPC).

II. Havendo manifesto inconveniente em que o possuidor seja o depositário ou o depositário exclusivo dos saldos bancários arrolados, deve ser nomeado outro sujeito para, consoante os casos, assumir a qualidade de depositário em lugar dele ou, simplesmente, partilhar com ele esta qualidade.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO


1. BB instaurou os presentes autos contra AA, alegando, em síntese, que:

- Pretende instaurar inventário para partilha dos bens que integram a herança aberta pelo óbito do pai, CC, falecido em 02-11-2019, em ..., intestado;

- A requerida, que é sua mãe, foi casada com CC, no regime de comunhão de adquiridos e desempenha funções de cabeça-de-casal;

- A herança de CC é integrada por bens móveis e contas que ascendem a vários milhões de euros;

- A cabeça-de-casal recusa-se a fornecer informações e documentos relativos à herança (escritura de habilitação de herdeiros e modelo 1), tendo movimentado contas bancárias à revelia do requerente;

- Tendo o inventariado falecido em ..., verifica-se que foi feito constar, falsamente, da escritura de habilitação de herdeiros, que residia na ..., por forma a, através da aplicação da lei ..., condicionar, ilicitamente, as regras de partição da herança (na lei ... o quinhão hereditário do cônjuge é na proporção de 'A);

- Foram omitidos bens e valores no Modelo 1 da participação do óbito às Finanças.


2. Foi dispensada a audição da requerida e, realizada audiência final, foi proferida decisão, em 26.08.2020, com o seguinte teor:

Tudo visto e ponderado, tendo em atenção as considerações expendidas e as normas atrás citadas, julgo parcialmente procedente, por provada, a presente providência cautelar e, em consequência, decreto o arrolamento dos seguintes bens:

a) a totalidade dos bens móveis que compõem o recheio do imóvel que corresponde à residência da requerida, sito em ..., ..., ..., em ...;

b) a totalidade dos bens móveis que compõem o recheio do imóvel sito na Rua ..., ..., em ...;

c) o veículo automóvel de marca e modelo ... com a matrícula ...-PI-...;

d) os saldos de contas bancárias tituladas pelo falecido CC à data do seu óbito (ocorrido em 02/11/2019), em todas as instituições bancárias, nomeadamente e sem restringir, nos bancos "BPI" e "BIG";

e) os saldos de quaisquer depósitos, títulos, instrumentos financeiros ou cofres fortes domiciliados no ... SA, com sede em, ..., na ..., tituladas por CC ou AA, nomeadamente, a conta bancária com a referência N.…93;

f) os saldos de quaisquer depósitos, títulos, instrumentos financeiros ou cofres fortes domiciliados no ... SA, com sede na ..., na ..., tituladas por CC ou AA, nomeadamente, a conta bancária com a referência ...77...;

g) Os saldos de quaisquer depósitos, títulos, instrumentos financeiros ou cofres fortes domiciliados no ... com sede em ..., ..., tituladas por CC ou AA, nomeadamente, a conta bancária com a referência ...96

O arrolamento ora ordenado, deve observar as formalidades previstas no artigo 406°, n.°s 1 a 5, do CPC.


*


Ao abrigo do disposto no artigo 405°, 3, do CPC, nomeio como depositário dos bens a arrolar a ora requerida, AA; como agente de execução e avaliador desses as pessoas melhor identificadas pelo requerente na audiência de 25/08/2020 (cfr. acta correspondente).

Oportunamente, notifique a requerida nos termos e para o efeito do disposto no artigo 372° do CPC.


*


Custas a cargo do requerente (cfr. artigos 539°, n.° 1, do CPC).

Notifique o requerente, desde já, da presente decisão.


3. Notificada da realização do arrolamento, a requerida deduziu oposição, na qual pugnou:

a) pela revogação do arrolamento;

b) Ou, subsidiariamente, pela alteração do decidido nos seguintes termos:

“(...) que os bens que são apenas da Requerida por direito não seja incluídos no arrolamento, e que esta se mantenha como depositária dos bens arrolados, em particular das contas bancárias, sob pena de a mesma ficar sem possibilidade de liquidar todas as dívidas que o Requerente deixou, bem como de administrar a herança que é seu dever enquanto cabeça de casal da herança de CC.

Para sustentar a oposição, a requerida:

1 - Excepcionou que o inventariado tinha, à data do falecimento, residência habitual na ..., pelo que sendo aplicável o Regulamento n.° 650/2012 (doravante, designado por “Regulamento”), os Tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para a tramitação dos autos de Inventário de que estes autos de arrolamento são acessórios.

Encontrando-se pendente na ... autos em que se discute da aplicação da Lei ..., deve, por essa razão, ser e revogado o decidido.

2 - Excepcionou que o requerente é administrador de várias sociedades afiliadas à G.…, S.A., cujo capital social é representado por 1.000 acções ao portador, sendo que, dessas 6.670, integram as forças da herança.

Uma vez que as acções (ao portador) se encontravam nos escritórios da sociedade, à qual lhe foi negado o acesso, pelo requerente, a cabeça-de-casal foi impedida, por aquele, de controlar e fiscalizar a actividade societárias.

A requerida viu-se obrigada a instaurar vários procedimentos cautelares, por forma a poder cumprir com as suas funções, na medida em que o requerente - pretendendo manter o controlo das empresas que, em parte, integram as forças da herança, lhe negou o acesso ao escritório e a entrega das acções (ao portador) da GESTCOPI - SGPS, S.A, - tendo, ainda, subtraído ao acervo um iate e um avião, que se destinava a actividade comercial (cfr. autos com os n.°s 11269/20...., que corre os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Comércio ... - Juiz ...; n.° 18602/20.... do ..., J.…; n.° 17187/20…, do Juízo Central Cível ... - Juiz ...; n.° 15555/20…, que correu termos no Juízo de Comércio ..., J.…).

Por decisão do fiscal único de 01-07-2020, que a designou como administradora única da sociedade GESTCOPI - SGPS, S.A (doc. 9) a requerida tomou contacto com as contas das sociedades, tendo concluído que o requerente, abusando das suas funções de administrador das afiliadas as onerou, através da contração de empréstimos hipotecários, junto da banca (doc. 12 e 14), tendo-as descapitalizado, através da transferência de quantias que ascendem a mais de dois milhões de euros, para empresas de que é beneficiário efectivo (docs. 11, 15, 23 e 37 e 38 e docs. 4, 12, 20 e 25)

A requerida conclui que tendo o requerente causado um prejuízo de mais de 2.900.000€, tendo subtraído o avião e o iate e discutindo-se a lei aplicável, não se encontra, ainda, definido o acervo hereditário, o que fundamenta que não tenha já instaurado inventário.

3 - Finalmente impugnou a factualidade alegada relativa ao perigo da mora e impugnou, juridicamente, o modo como foi realizado o arrolamento, o qual, defende, apenas deveria abranger metade do valor dos depósitos, devendo, também, ficar como depositária dos valores depositados, uma vez que se vê obrigada a proceder ao pagamento de dívidas decorrentes da gestão levada a cabo pelo requerente, para administrar a herança.


4. No dia 17.09.2020, foi proferido o seguinte despacho pelo Tribunal de 1.ª instância:

Requerimento entrado no sistema Citius em 17/09/2020 pelo Sr. Agente de Execução:

O Sr. Agente de Execução pede esclarecimento no sentido de saber se deve «notificar as entidades bancárias da requerida para i) descreverem e informarem o processo do valor dos saldos bancários existentes na data em que a decisão de arrolamento foi proferida, 26/08/2020, ii) nomeando essas mesmas entidades fiel depositários dos saldos existentes, e por fim iii) impedirem a movimentação pela requerida da conta a débito».

Apreciando.

Versando sobre caso semelhante ao presente arrolamento de saldos bancários, pronunciou-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27/02/2018, relatado por DD, no Processo 131/11.1TBVLF-B.C1, disponível em www.dgsi.pt, nos seguintes termos: «1. - O arresto pressupõe uma relação bilateral entre credor e devedor, estando em causa o receio daquele de perda da garantia patrimonial do seu crédito, caso em que pode requerer o arresto de bens (apreensão judicial) do seu devedor, com função de garantia e com o efeito de os atos de disposição dos bens arrestados serem ineficazes em relação ao requerente/credor. 2. - o procedimento cautelar de arrolamento depende de um justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, podendo ser requerido por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens, não se exigindo, assim, que se trate de “credor” contra “devedor”. 3. - É adequado a prevenir o risco de dissipação ou ocultação de bens no caso, depósitos em conta bancária e acautelar o efeito útil do processo de inventário para partilha o arrolamento e não o arresto. 4. - Nesse caso, havendo receio de que os interessados titulares da conta bancária ocasionem o extravio/dissipação desses depósitos bancários, assim impedindo a sua entrega a quem couberem em partilha, não devem tais interessados ser nomeados depositários, por ocorrer manifesto inconveniente nos termos do art.º 408.º, n.º 1, do NCPCiv., antes se justificando a nomeação da respetiva entidade bancária como depositária, a dever impedir a movimentação da conta a débito, sem o que o procedimento não cumpriria a sua essencial função conservatória».

Na esteira do mencionado Acórdão e atendendo ao disposto no art.º 408.º, 1, do CPC e ao receio de que a Requerida extravie/dissipe os depósitos bancários, nomeia-se como depositária a respetiva entidade bancária, a dever impedir a movimentação da conta a débito.

Pelo exposto, esclarece-se o Senhor Agente de Execução que deverá proceder conforme requerido e mencionado em b) do seu requerimento.

Notifique o Senhor Agente de Execução e o Requerente”.


5. Em 24/9/2020, foi proferido o seguinte despacho, também pelo Tribunal de 1.ª instância:

Requerimento de 22/09/2020 - REFª: ...21:

A Requerida requer que se mantenha como depositária dos bens arrolados, em particular das contas bancárias, sob pena de a mesma ficar sem a possibilidade de liquidar todas as dívidas que o requerente deixou, bem como da sua própria sobrevivência pessoal, que se encontra atualmente posta em risco, e mais requer que o Requerente seja condenado como litigante de fé.

Alegou, em síntese, que: - A Requerida casou em 16.12.1973 com CC (cfr. assento de nascimento que ora se junta como Doc. n.º 1 e se por integralmente reproduzido). -Tendo o casamento sido celebrado no regime da comunhão de adquiridos (cfr. assento de nascimento junta como Doc. n.º 1). - CC faleceu em 02.11.2019 (cfr. assento de nascimento junto como Doc. n.º 1). - A Requerida é, na qualidade de viúva do de cujus, cabeça de casal da herança aberta por óbito de CC. - O autor da sucessão faleceu sem deixar testamento (cfr. habilitação de herdeiros que se junta como Doc. n.º 2 e se por integralmente reproduzida). - Deixando como únicos herdeiros a mulher, aqui Requerida e os dois filhos, um dos quais aqui Requerente (cfr. habilitação de herdeiros junta como Doc. n.º 2). - De entre os bens da herança, que cabe à Requerente gerir, consta um conjunto de empresas. - O Requerente subtraiu às empresas e à herança montantes superiores a 3 milhões de euros.

Apreciando.

Considerando que a Requerida é, na qualidade de viúva do de cujus, cabeça de casal da herança aberta por óbito de CC, que o autor da sucessão faleceu sem deixar testamento, deixando como únicos herdeiros a mulher, aqui Requerida e os dois filhos, um dos quais aqui Requerente (cfr. habilitação de herdeiros junta como Doc. n.º 2), que a Requerida casou em 16.12.1973 com CC (desconhecendo-se em que regime de bens, porquanto apenas uma certidão de assento de casamento pode demonstrá-lo), afigura-se-nos manifestamente desproporcionado aos fins do presente procedimento cautelar que a Requerida fique impedida de movimentar as contas bancárias na totalidade dos montantes dos respetivos saldos, antes devendo ficar depositária dos mesmos na proporção de 1/3, sem prejuízo de poder ser depositária em proporção superior, caso se demonstre que era casada com o autor da herança no regime de comunhão de adquiridos, conforme é invocado.

Pelo exposto, defiro parcialmente o requerido e nomeio a Requerida AA como depositária de 1/3 de cada saldo bancário arrolado.

Notifique e comunique de imediato ao senhor agente de execução o presente despacho, a fim de enviá-lo às correspondentes entidades bancárias, informando-as de que a Requerida pode proceder à movimentação das contas arroladas a débito na proporção de 1/3 do valor do respetivo saldo.


*


Indefere-se o pedido de condenação do Requerente como litigante de porquanto não resulta demonstrado que o Requerente tenha adotado alguma conduta processual prevista no art.º 542.º, 2, do CPC.

Notifique”.


6. Procedeu-se à realização da audiência final, após o que foi proferida decisão, em 2.08.2021, com o seguinte teor:

Por tudo o exposto, julgo a douta Oposição apenas parcialmente procedente, por provada e, em consequência:

a) nomeio a Requerida AA como depositária de 1/2 (metade) dos valores inicialmente arrolados dos saldos bancários descritos na informação de 01-10-2020 e melhor identificados no ponto 35 dos factos provados;

b) no mais, por se não terem alterado os seus pressupostos de facto, mantenho, nos seus precisos termos, a decisão de 26-08-2020.

Valor da causa: 60.000.000€ (sessenta milhões de euros)

Custas na proporção de 1/3 para a Requerente e de 2/3 para a Requerida.

Comunique a presente decisão ao Sr. Agente de Execução, que a deverá executar de imediato, comprovando a comunicação às instituições melhor identificadas na comunicação de 07-10-2020 (a fls. 428 dos autos em suporte de papel), que deverão reduzir, para a proporção ora determinada, a indisponibilidade de movimentação das contas ali identificadas”.


7. Inconformada, a requerida interpôs recurso de apelação.


8. Em 17.02.2022 o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu Acórdão com o seguinte dispositivo:

Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em, na improcedência da apelação, manter a decisão recorrida.

Custas pela recorrente”.


9. Ainda inconformada, a requerida vem interpor recurso de revista, ao abrigo dos artigos 370.º n.º 2 segunda parte, 629.º n.º 2 alínea d), 672.º n.º 1 alínea c) e 637.º n.º 2, todos do Código de Processo Civil (CPC)”.

Conclui assim a sua alegação:

A. O presente recurso de revista deve ser admitido porque a decisão recorrida proferida pelo TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA, em 18.02.2022, encontra- se em contradição com outras já transitadas em julgado, entre as quais, as proferidas pelo TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA em Acórdão de 27.02.2018, proc. n.º 131/11.1TBVLF-B.C1, e pelo TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES em Acórdãos de 08.10.2020, 2017/18.0T8BCL-B.G2, e de 04.02.2021, proc. n.º 2184/20.2T8VRL-B.G1, sobre a mesma questão fundamental de direito e no domínio da mesma legislação – o artigo 408.º n.º 1 do CPC cuja epigrafe é “Quem deve ser o depositário”.

B. Com efeito, a questão fundamental de direito que ora se submete à apreciação deste SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA consiste em saber quem é “o próprio possuidor ou detentor dos bens” que deverá ser o depositário “salvo de houver manifesto inconveniente em que [os bens] lhe sejam entregues”, quando os bens arrolados são saldos bancários.

C. Entendeu (erradamente) o Tribunal a quo que “em procedimento cautelar de arrolamento, constitui a regra geral a nomeação como depositário das entidades bancárias onde se encontram as contas bancárias arroladas, que apenas deverá ser afastada com a demonstração da inconveniência manifesta nessa nomeação”.

D. Entendendo que a Recorrente não é a depositária natural da totalidade dos saldos bancários arrestados, concluiu (erradamente) o Tribunal a quo que “cumpria-lhe à Recorrente alegar e demonstrar – ainda que indiciariamente – a factualidade consubstantiva da inconveniência manifesta na nomeação das entidades bancárias, para que, logicamente depois, se apurasse da pessoa mais adequada à nomeação. Contudo, a recorrente nada refere a este respeito, pelo que, concluímos, incumpriu o seu ónus de alegação e prova dessa factualidade constitutiva do direito de que se arroga (art. 342º, nº 1 do Código Civil)”.

E. Confirmando, assim, a sentença de 1.ª Instância que nomeou as entidades bancárias como depositárias da metade sobejante dos saldos bancários arrolados, apesar de ter nomeado a Recorrente como depositária da totalidade dos bens móveis arrolados e da outra metade dos saldos bancários.

F. Pelo contrário, e aplicando corretamente o disposto no artigo 408.º n.º 1 do CPC, nos três os Acórdãos-fundamento lê-se a exata mesma frase: “havendo receio de que os interessados titulares da conta bancária ocasionem o extravio/dissipação desses depósitos bancários, assim impedindo a sua entrega a quem couberem em partilha, não devem tais interessados ser nomeados depositários, por ocorrer manifesto inconveniente nos termos do art.º 408.º, n.º 1, do NCPCiv., antes se justificando a nomeação da respetiva entidade bancária como depositária, a dever impedir a movimentação da conta a débito sem o que o procedimento não cumpriria a sua essencial função conservatória.” (realces nossos)

G. Donde resulta que, em primeira linha, os titulares das contas bancárias são nomeados depositários dos saldos bancários arrolados e, só em segunda linha, – e apenas se provado o “manifesto inconveniente” dessa nomeação atento o caso concreto – serão afastados e substituídos pelas entidades bancárias.

H. Assim, a regra geral de nomeação de depositário de saldos bancários arrolados é exatamente a oposta face ao Acórdão Recorrido.

I. Além da apontada contradição que fundamenta o presente recurso, estão também cumpridas as demais condições de que depende a admissão do recurso de revista especial previsto no artigo 629.º n.º 2 alínea d) do CPC, a saber:

a. os pressupostos relativos ao valor da causa e da sucumbência, em cumprimento do artigo 629.º n.º 1 do CPC estão verificados, considerando que o valor da presente ação são sessenta milhões – valor claramente superior à alçada da Relação – e as metades sobejantes dos saldos bancários confiados às entidades bancárias, que aqui se reclamam, em muito ultrapassam a metade da alçada da Relação, como aliás resulta dos factos provados;

b. o recurso de revista ordinário apenas não é admissível em face da proibição expressa vertida no artigo 370.º n.º 2 do CPC;

J. Donde, a decisão impugnada é recorrível nos termos do artigo 629.º n.º 2 alínea d) do CPC e, por isso, o Recurso deve ser admitido e conhecido.

K. Quanto ao mérito do recurso, o Acórdão Recorrido deve ser revogado e substituído por outro que reconheça que a Recorrente é a natural depositária da metade dos saldos bancários confiados às entidades bancárias pela sentença do Tribunal de 1.ª Instância, reconhecendo que não há qualquer “manifesto inconveniente” nessa nomeação; o que se demonstra, desde logo, pelo facto de a Recorrente ser já a depositária da totalidade dos bens móveis e da outra metade dos saldos bancários arrolados.

L. O Tribunal a quo fez uma errada interpretação e aplicação do direito ao presente caso porque partiu do pressuposto de que a regra geral resultante do artigo 408.º n.º 1 do CPC seria a nomeação das entidades bancárias como depositárias dos saldos bancários arrolados “que apenas pode ser ultrapassada, demonstrando-se existir manifesto inconveniente nessa nomeação. Devendo-se, num segundo passo, apurar então quem deverá, em alternativa, ser nomeado depositário desses valores: a requerida [ora Recorrente], enquanto cabeça-de-casal do inventário principal, o requerente [ora Recorrido] ou qualquer outra pessoa”, contrariando o que determina e a lei e o que resulta dos Acórdãos-fundamento.

M. Pelo que andou bem a Recorrente quando demonstrou que é ela a natural depositária da metade sobejante dos saldos bancários arrolados e não há qualquer “manifesto inconveniente” nessa nomeação.

N. No âmbito de um processo de arrolamento, cujo processo principal é um inventário, o cabeça de casal é o fiel depositário dos bens da herança.

O. Na sentença de1.º Instância, o Tribunal nomeou a Recorrente fiel depositária da totalidade dos bens móveis e de metade dos saldos bancários, embora tivesse mantido as entidades bancárias como depositárias da metade sobejante dos saldos bancários.

P. A Recorrente é a cabeça de casal da herança, tendo, por isso, o dever de administrar (todos) os bens da herança.

Q. Se a cabeça de casal não foi removida de tal cargo, apenas significa que a mesma mantém a idoneidade necessária para administrar os bens da herança. Bem como mantém dever de o fazer.

R. Se a Recorrente já se encontra a administrar parte dos bens da herança – entre eles, a totalidade dos bens móveis e a metade sobejante dos saldos bancários – não se entende como possa ser possível considerar que a Recorrente não se encontra capaz de administrar a metade sobejante dos saldos bancários ou que exista um qualquer “manifesto inconveniente” que afete apenas essa metade sobejante dos saldos”.


10. O recorrido veio responder à alegação, pugnando pela inadmissibilidade da revista ou, pelo menos, pela sua improcedência, nos seguintes termos:

A) O presente recurso não é admissível, visto que nos presentes autos se está perante um procedimento cautelar e, conforme estatui o artigo 370.º, n.º 2 do CPC, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões proferidas no âmbito de procedimentos cautelares.

B) Apenas nos casos em que os recursos são sempre admissíveis – i.e., nas situações elencadas no artigo 629.º, n.º 2 do CPC – é que se pode recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça de decisões proferidas no âmbito de procedimentos cautelares.

C) Ora, o recurso apresentado pela Recorrente também é feito nos termos do artigo 672.º n.º 1 alínea c) do CPC, o que não permite, nos termos do artigo 370.º, n.º 2, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.

D) Da conjugação do disposto nos arts. 370.º, n.º 2, 629.º, n.º 2, 671.º, n.º 3, e 672.º, n.º 1, todos do CPC, decorre que não é admissível recurso de revista excepcional das decisões da Relação proferidas em procedimentos cautelares.

E) Não se verificam os requisitos de acesso à revista excepcional, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art. 672.º do CPC que depende da verificação de: (i.) incidência de ambos os Acórdãos sobre a mesma questão fundamental de direito; (ii.) contradição entre a resposta dada pelo Acórdão recorrido e por outro Acórdão das Relações ou do Supremo, já transitado em julgado; (iii.) a oposição entre Acórdãos deve ser frontal e não apenas implícita ou pressuposta; (iv.) a questão de direito sobre a qual se verifica a controvérsia deve ser essencial para determinar o resultado numa e noutra das decisões; (v.) a divergência deve verificar-se num quadro normativo substancialmente idêntico; (vi.) inexistência de acórdão de uniformização sobre a questão jurídica em causa a que o Acórdão recorrido tenha aderido; (vii.) como requisito específico, de ordem formal, o recorrente deve enunciar nas alegações de recurso os aspectos de identidade que estão na génese da interposição excepcional do recurso de revista.

F) A interposição, a título principal, de recurso de revista ao abrigo do disposto nos arts. 370.º, n.º 2 e 629.º, n.º 2, al. d, do CPC e, a título subsidiário, de recurso de revista excepcional com fundamento no art. 672.º, n.º 1, al. c), do CPC, exclui este último, porquanto o recurso de revista excepcional depende da verificação de todos os requisitos gerais da admissibilidade do recurso de revista normal, com excepção do relativo à dupla conforme, e, no caso dos procedimentos cautelares, o recurso de revista normal não é admissível senão nos casos especiais previstos no art. 629.º, n.º 2, do CPC.

G) Não se verifica a alegada contradição de julgados relevante, enquanto condição da admissibilidade do recurso de revista, no sentido de que as decisões em confronto tenham convocado um quadro normativo ou regras de conteúdo e alcance substancialmente idênticos e tenham subjacente um núcleo factual idêntico ou coincidente, na perspectiva das normas ali diversamente interpretadas e aplicadas.

H) E, por outro lado, não se verifica a alegada contradição relevante perante questão que tenha influência no sentido da decisão.

I) A sustentação da admissibilidade da revista deve fazer-se a partir da apresentação e apreciação de um único Acórdão, relativamente a cada questão de direito cuja resposta motive a interposição de revista, não devendo ser imposto ao Supremo Tribunal de Justiça o ónus de proceder à sua destrinça, condição que a Recorrente, não cumpriu, apresentando três Acórdãos fundamento, pelo que também por tal razão não pode o recurso de revista interposto pela Recorrente ser admitido.

J) A Recorrente mais não pretende que em repetição dos seus argumentos (improcedentes) para o Tribunal da Relação de Lisboa de 17.02.2022, que decidiu pela improcedência da apelação e manter a decisão recorrida, ver alterada por via de recurso de revista a decisão das entidades bancárias serem nomeadas depositárias de ½ das contas bancárias.

K) Parece ser entendimento para a Recorrente– que para que se configure uma contradição de julgados no sentido e para os efeitos do artigo 629.º, n.º 2, al. c), do CPC basta que os acórdãos divergentes versem “a mesma questão fundamental de direito” e sejam proferidos “no domínio da mesma legislação”.

L) No presente recurso não se verifica a identidade substancial, no sentido em que não só a questão de direito é, em abstracto, idêntica como que é idêntico o quadro concreto em que ela se põe, isto é, “o núcleo da situação de facto, à luz da norma aplicável, pelo que não existe conflito jurisprudencial.

M) Resulta assim manifesto que não existe qualquer conflito de interpretação e aplicação processual do art. 408.º do CPC, devendo o recurso de revista interposto pela Recorrente ser recusado e/ou julgado totalmente improcedente,

N) Porquanto, nos três acórdãos fundamento e referenciados não se verifica qualquer oposição de julgados entre o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17/02/2022 e os Acórdãos, proferidos pelo Tribunal da Relação de Coimbra e pelo Tribunal da Relação de Guimarães (Acórdãos fundamento), no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito.

O) Em todos os Acórdãos a interpretação e aplicação processual do art. 408.º do CPC é a mesma, e são entre eles mutuamente citados, nomeadamente o Acórdão do STJ de 1998.

P) A Recorrente (erradamente) parece não entender que, o procedimento cautelar de arrolamento pretende, no seu recorte legal, responder a situações de perigo de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, resultando da lei adjectiva, que havendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, pode requerer-se o arrolamento deles (art.º 403º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sendo o arrolamento dependência da ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas (n.º 2 do mesmo diploma).

Q) Pelo que, havendo receio de que os interessados titulares da conta bancária ocasionem o extravio/dissipação desses depósitos bancários, assim impedindo a sua entrega a quem couberem em partilha, não devem tais interessados ser nomeados depositários, por ocorrer manifesto inconveniente nos termos do art.º 408.º, n.º 1, do NCPCiv., antes se justificando a nomeação da respectiva entidade bancária como depositária, sem o que o procedimento não cumpriria a sua essencial função conservatória.

R) Por despacho do douto tribunal de primeira instância, proferido em 17.09.2020: “.... Na esteira do mencionado Acórdão e atendendo ao disposto no art.º 408.º, nº 1, do CPC e ao receio de que a Requerida extravie/dissipe os depósitos bancários, nomeia-se como depositária a respetiva entidade bancária, a dever impedir a movimentação da conta a débito. Pelo exposto, esclarece-se o Senhor Agente de Execução que deverá proceder conforme requerido e mencionado em b) do seu requerimento.” (sublinado nosso)

S) Na decisão final, proferida em 02.08.2021, pelo douto Tribunal de primeira Intância entendeu que:

“Em face da prova indiciariamente produzida, entende o Tribunal que se encontram reunidos os requisitos legais de decretamento da providência em discussão, concretamente fumus bonus iuris, periculum in mora e ainda os concretamente previstos no artigo 403º, n.º 1, do CPC. (…)” (sublinhado nosso)

Em consequência:

“b) no mais, por se não terem alterado os seus pressupostos de facto, mantenho, nos seus precisos termos, a decisão de 26-08-2020.”

T) A Recorrente, no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa, não pôs em em causa a verificação dos requisitos de decretamento do arrolamento, pois conformou-se com esse mesmo decretamento, apenas colocou em causa a nomeação como depositários, das entidades bancárias onde se encontram as contas bancárias arroladas, na proporção respectiva de ½ dos valores.

U) O fundamento da proporção de ½ dos valores é cristalinamente explicado pelo despacho de 20.09.2020:

“Antes de mais, cumpre referir que o despacho de 24/09/2020 não procedeu a qualquer levantamento do arrolamento decretado, mas apenas determinou que a Requerida ficasse depositária de 1/3 de cada saldo arrolado, podendo movimentá-lo, tendo como subjacente o facto de que, pelo menos 1/3 de cada saldo arrolado, pertence à Requerida e de, por isso, nenhum prejuízo poderia advir ao Requerente. Atento o exposto e considerando que a Requerida é titular de, pelo menos, 1/3 dos valores dos saldos arrolados e que o cumprimento da decisão de 24/09/2020 não poderá trazer qualquer prejuízo ao Requerente, defiro o ora requerido e, em consequência, a alteração

V) E, na decisão final de 02/08/2021:

“Quanto à quarta questão:

A manutenção do arrolamento, tal como executado, recai sobre direito próprio da Requerida à disponibilidade de metade do saldo das contas, por força do regime de bens?

A primeira nota que se impõe é a de que se encontram arroladas as contas bancárias identificadas no ponto 35 dos factos provados, tendo a Requerida possibilidade de movimentar 1/3 dos montantes aí depositados.

A segunda nota que se impõe é a de que a meação do cônjuge no património comum, em regime de comunhão de adquiridos, corresponde a uma quota ideal do património autónomo.

Ora, a Requerida não alegou, nem demonstrou que as quantias depositadas nas contas arroladas lhe pertencessem em exclusividade.

Assim, e conforme douto ac. de 14-05- 2004 do TRL, haverá que atentar a que: “quanto à propriedade das quantias depositadas, e no que toca às relações entre os titulares e o banco, vale a presunção do art.° 516° do Cód. Civil, no que respeita à repartição do saldo: presume-se que todos os titulares participam em partes iguais no saldo, sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulte que são diferentes as suas partes, podendo a presunção ser ilidida nos termos gerais.”

X) O douto tribunal de primeira instância na decisão final confirmou os pressupostos da decretação do arrolamento de 26.08.2020 e o receio de que a Requerida extravie/dissipe os depósitos bancários, manteve como depositária na proporção de ½ a respectiva entidade bancária no arrolamento das contas bancárias.

Z) Alterando o Tribunal de primeira instância somente a proporção de 1/3 inicial para ½ tendo presente “de que a meação do cônjuge no património comum, em regime de comunhão de adquiridos, corresponde a uma quota ideal do património autónomo. “

AA) Mas os pressupostos da decretação do arrolamento mantiveram-se e, o receio de que a Recorrente extravie/dissipe os depósitos bancários, pelo que a entidade bancária é a depositária natural, sem o que o procedimento não cumpriria a sua essencial função conservatória.

BB) A Recorrente, no recurso interposto para o Tribunal da Relação de Lisboa, não pôs em em causa a verificação dos requisitos de decretamento do arrolamento, e o receio de extravio ou dissipação dos bens, pois conformou-se com esse mesmo decretamento.

CC) A Recorrente nas suas conclusões do Recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa declarou expressamente:

“H. Apesar de não haver - nem tampouco ter sido produzida prova bastante de que existam - motivos que justifiquem um qualquer "justo receio de extravio, ocultação ou dissipação” dos bens da herança do Inventariado, pelo que o arrolamento não devia nem podia - por falta de um requisito essencial, i.e., periculum in mora - ter sido decretado.

I. A ora Recorrente - porque nada tem a esconder e está a prestar contas da sua administração enquanto cabeça de casal - não obsta a que exista uma listagem dos bens que compõem a herança do seu falecido marido. Em causa no recurso encontra-se apenas a questão da nomeação do depositário daqueles saldos bancários arrolados;”

DD) A Recorrente apenas colocou em causa a nomeação como depositários, das entidades bancárias onde se encontram as contas bancárias arroladas, na proporção respectiva de ½ dos valores.

EE) Ora, tendo o douto tribunal de 1ª instância confirmado os pressupostos da decretação do arrolamento de 26.08.2020 e o receio de que a Requerida extravie/dissipe os depósitos bancários, ocorrendo assim manifesto inconveniente nos termos do art.º 408.º, n.º 1, CPC, no que respeita à nomeação da Recorrente como depositária, manteve como depositária a respectiva entidade bancária no arrolamento das contas bancárias.

FF) O mesmo é dizer, que ocorre manifesto inconveniente em nomear a Recorrente depositária quando está verificado o receio de que a mesma extravie/dissipe os depósitos bancários, neste caso, a entidade bancária é a depositária natural, sem o que o procedimento não cumpriria a sua essencial função conservatória, independentemente de a Recorrente ser cabeça de casal da herança do de cujus.

GG) No Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17/02/2022, é expressamente referido que essa nomeação corresponde, à regra supletiva, que apenas pode ser ultrapassada, demonstrando-se existir manifesto inconveniente nessa nomeação.

HH) Com efeito, não sendo nomeada fiel depositária, a Recorrente por receio de extravio/dissipação dos depósitos bancários, foi nomeada a entidade bancária depositária.

II) Os Acórdãos fundamento, entenderam aplicando o art. 408.º n.º 1 do CPC: “ havendo receio de que os interessados titulares da conta bancária ocasionem o extravio/dissipação desses depósitos bancários, assim impedindo a sua entrega a quem couberem em partilha, não devem tais interessados ser nomeados depositários, por ocorrer manifesto inconveniente nos termos do art.º 408.º, n.º 1, do NCPCiv., antes se justificando a nomeação da respetiva entidade bancária como depositária, a dever impedir a movimentação da conta a débito, sem o que o procedimento não cumpriria a sua essencial função conservatória.”

JJ) E, que no “arrolamento de conta bancária o depositário natural é precisamente a entidade bancária onde ela se encontra. O arrolamento faz-se identificando a conta e descrevendo o saldo e a data respectiva” – assim, o Ac. STJ de 27/01/1998, Proc. 97A997 (Cons. Lopes Pinto), com sumário disponível em www.dgsi.pt”

KK) Colocada a questão nos Acórdãos fundamento que se o depositário deve ser “o próprio possuidor ou detentor dos bens”, e no caso seria depositário quem tem a titularidade da conta bancária em questão, poderia este, nesse âmbito, proceder ao levantamento ou transferência do depositado na conta e, assim, impedir o aludido objetivo conservatório do procedimento, ora a aplicação do art.º 408.º, n.º 1, do CPC ressalva, quanto a tais possuidores ou detentores, situações de “manifesto inconveniente em que lhes sejam entregues” os bens.

LL) Nestes casos atento o receio comprovado, impõe-se, para evitar o risco de extravio/dissipação, que não sejam os titulares da conta nomeados depositários, antes devendo tal cargo ser atribuído à própria entidade bancária onde a conta foi aberta.” (sublinhado nosso)

MM) A alegada divergência alegada pela Recorrente não se verifica em qualquer dos Acórdãos fundamento, no que diz respeito à interpretação e aplicação processual do art. 408.º do CPC por confronto com o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, questionado pela Recorrente.

NN) O Acórdão questionado do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17.02.2022, entendeu que no caso, não estando em causa a verificação dos requisitos de decretamento do arrolamento e do justo receio de extravio e dissipação das contas bancárias, pois a Recorrente conformou-se com esse mesmo decretamento, apenas estava em causa a nomeação como depositários, das entidades bancárias onde se encontram as contas bancárias arroladas, na proporção respectiva de ½ dos valores:

“Ora, essa nomeação corresponde, como vimos, à regra supletiva, que apenas pode ser ultrapassada, demonstrando-se existir manifesto inconveniente nessa nomeação. Devendo-se, num segundo passo, apurar então quem deverá, em alternativa, ser nomeado depositário desses valores: a requerida, enquanto cabeça-de-casal do inventário principal, o requerente ou qualquer outra pessoa.

Sucede que a requerida, ora recorrente, assenta a sua argumentação partindo do pressuposto oposto, pois, como refere nas suas conclusões:

KK. Não existe qualquer “manifesto inconveniente” em que a Recorrente seja a fiel depositária de todas as contas bancárias e do saldo global.

Ao invés, cumpria-lhe alegar e demonstrar – ainda que indiciariamente – a factualidade consubstantiva da inconveniência manifesta na nomeação das entidades bancárias, para que, logicamente depois, se apurasse da pessoa mais adequada à nomeação.”

OO) Assim, a Recorrente não pode deixar de verificar a convergência de respostas dadas quer no Acórdão Recorrido quer nos três Acórdãos fundamento à questão jurídica neles versada.

PP) Como também resulta do Acórdão recorrido, as respostas dadas pelos Tribunais são a mesma e uma só: havendo justo receio de extravio/dissipação as entidades bancárias devem ser nomeadas depositárias, ou dito de outra forma não deve ser nomeado depositário o seu titular por manifesto inconveniente.

QQ) E, como se demonstrou não se verifica qualquer conflito de interpretação e aplicação processual ao disposto no art. 408.º do CPC, devendo também por estes motivos o recurso da Recorrente não ser admitindo, confirmando- a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa”.


11. Em 27.04.20220 veio o Exmo. Desembargador Relator proferir um despacho em que se mandava subir o recurso nos termos do artigo 672.º, n.º 3, do CPC.


12. Subido o recurso a este Supremo Tribunal, proferiu, em 27.05.2022, a presente Relatora um despacho convidando a recorrente “a esclarecer, no prazo de cinco dias, qual, de entre os três acórdãos que indica, é o acórdão transitado em julgado que pretende que seja considerado como acórdão fundamento para o efeito da contradição de julgados, conforme prescrito no artigo 637.º, n.º 2, do CPC”.


13. Em resposta, veio a recorrente indicar como Acórdão fundamento o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 4.02.2021, Proc. 2184/20.2T8VRLB.G1.


*


Questão prévia sobre a admissibilidade do recurso

Como é sabido, antes de se conhecer o objecto do recurso deve apreciar-se a sua admissibilidade, uma vez que a resposta a esta questão pode precludir aquele conhecimento.

Ambas as partes se pronunciaram sobre esta questão: a recorrente pugnando pela admissibilidade do recurso e o recorrido pugnando pela sua inadmissibilidade.

Como decorre claramente do que é relatado atrás, o presente recurso é interposto no âmbito de um procedimento cautelar, estando a revista fortemente condicionado pelo disposto no artigo 370.º, n.º 2, do CPC.

Dispõe-se nesta norma:

 “Das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, incluindo a que determine a inversão do contencioso, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível”.

Remete, de forma implícita, o artigo 370.º, n.º 2, para o artigo 629.º, n.º 2, do CPC, que enuncia, justamente, os casos em que o recurso é sempre admissível.

Entre estes casos encontra-se, na al. d), o caso em que o recurso é admissível pelo facto de se verificar contradição entre o acórdão recorrido e outro acórdão da mesma ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.

É justamente este o fundamento a recorrente que invoca para a admissibilidade da presente revista.

 Enquadrado o presente recurso no artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC, há que ver se estão preenchidos os requisitos impostos pela norma, entre os quais avultam a impossibilidade de recorrer por via ordinária por motivos estranhos ao valor da alçada da Relação (o que significa que devem estar preenchidos os requisitos da alçada e da sucumbência) e a existência de uma contradição entre dois Acórdãos[1].

No caso afirmativo, o obstáculo recursivo da dupla conforme é irrelevante, pois, como afirma Abrantes Geraldes, “a al. d) tem aplicação mesmo quando o acórdão da Relação de que se pretenda recorrer tenha confirmado a decisão da 1.ª instância, do modo que, tratando-se de acórdão que esteja em contradição com outro acórdão (da Relação ou do Supremo), é admitida a revista sempre que esteja vedada por razões diversas das que emergem do n.º 1 do art. 629.º”[2].

Não se encontrando impedimentos à admissibilidade do recurso no que toca aos demais requisitos do artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC, há, no entanto, que apreciar com especial atenção o último, ou seja, a contradição de julgados.

A contradição de julgados para efeitos desta norma há-de ser apreciada segundo critérios idênticos aos adoptados nos restantes recursos de revista que dependem de oposição de julgados, ou seja, nos recursos interpostos ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, als. c), e do artigo 671.º, n.º 2, al. b), do CPC, nos recursos de revista excepcional interpostos ao abrigo do artigo 672.º, n.º 1, al. c), do CPC e nos recursos para uniformização de jurisprudência, interpostos ao abrigo do artigo 688.º, n.º 1, do CPC[3].

Discorrendo a propósito dos recursos do último tipo, enuncia Abrantes Geraldes os requisitos fundamentais da contradição de julgados[4]. Destacar-se-ia, de entre eles, com especial interesse para o caso em apreço, os seguintes estar em causa uma ou mais questões de direito, existir uma relação identidade da questão de direito, a questão de direito em causa ser essencial para o resultado das decisões e existir uma oposição ou contradição frontal entre as decisões.

Concluir-se-á, em suma, que existe oposição de julgados ou contradição jurisprudencial quando – e apenas quando – o Acórdão recorrido estiver em oposição frontal com outro proferido no domínio da mesma legislação que respeite à mesma questão de direito de carácter essencial.

Passe-se, pois, ao confronto do Acórdão recorrido com o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 4.02.2021, Proc. 2184/20.2T8VRLB.G1, que é invocado como Acórdão fundamento.


*

Veja-se, em primeiro lugar, a questão de direito que é apreciada em cada um dos acórdãos.

1. No Acórdão recorrido, a questão de mérito, tal como expressamente, enunciada é a da “nomeação de depositário às contas bancárias arroladas”.

2. No Acórdão fundamento, a questão de mérito é fundamentalmente, a mesma, ou seja, consiste também em “analisar quem deve ser nomeado depositário dos depósitos bancários”.

Veja-se agora qual foi a solução dada por cada um dos Tribunais à questão e como se encontra fundamentada.

1. Na parte relevante do Acórdão recorrido pode ler-se:

Nos termos do art. 408º do Código Processo Civil, sob a epígrafe Quem deve ser o depositário:

1 - O depositário é o próprio possuidor ou detentor dos bens, salvo se houver manifesto inconveniente em que lhe sejam entregues.

2 - O auto de arrolamento serve de descrição no inventário a que haja de proceder-se.

Esta a norma fundamental que resolve a questão. Contudo, antes de a revisitarmos, recordemos o procedimento cautelar em que nos inserimos.

O procedimento cautelar de arrolamento pretende, no seu recorte legal, responder a situações de perigo de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis.

Assim, como resulta da lei adjetiva, havendo justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, pode requerer-se o arrolamento deles (art.º 403º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sendo o arrolamento dependência da ação à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas (n.º 2 do mesmo diploma).

Para tanto, cabe ao requerente fazer prova sumária do direito relativo aos bens e dos factos em que fundamenta o receio do seu extravio ou dissipação (art.º 405.º, n.º 1, do citado Código.

Assim, produzidas as provas, o juiz ordena as providências se adquirir a convicção de que, sem o arrolamento, o interesse do requerente corre risco sério (n.º 2 do mesmo preceito), procedendo-se logo, nesse caso, à nomeação de depositário e avaliador (n.º 3), posto que o arrolamento consiste na descrição, avaliação e depósito dos bens (art.º 406.º, n.º 1 do mesmo Código), para o que é lavrado auto em que se descrevem os bens, em verbas numeradas, como em inventário, se declara o valor fixado pelo louvado e se certifica a entrega ao depositário ou o diverso destino que tiveram (n.º 2), sendo que tal depositário não tem de ser o “possuidor ou detentor dos bens”, no caso de haver “manifesto inconveniente em que lhe sejam entregues” (art.º 408º, n.º 1 supra citado).

Nos termos do disposto no n.º 5 do mesmo art.º 406.º do mesmo Código, são aplicáveis ao arrolamento as disposições relativas à penhora, em tudo quanto não contrarie o estabelecido nesta secção ou a diversa natureza das providências.

Tratando-se da penhora de depósito bancário, aquela é feita por comunicação eletrónica à entidade bancária, ficando o saldo bloqueado desde a data do envio da comunicação, impedindo, por isso, que as quantias bloqueadas sejam movimentadas, para o que a instituição é responsável pelos saldos bancários nela existentes ao tempo daquela comunicação (art. 780º, nºs 1, 2, 4 e 11, do referido Código, aplicável ex vi art.º 406.º, n.º 5).

Bem se compreende, então, que, como se decidiu no Acórdão do STJ de 27/01/1998, (Lopes Pinto), com sumário disponível em www.dgsi.pt.:

III. No arrolamento de conta bancária o depositário natural é precisamente a entidade bancária onde ela se encontra.

IV. O arrolamento faz-se identificando a conta e descrevendo o saldo e a data respectiva.

Ou seja, no arrolamento de conta bancária, o depositário será, em princípio, a entidade bancária onde se encontra essa mesma conta, salvo se houver manifesto inconveniente na entrega à mesma desses valores – essa será a regra resultante da articulação entre os citados arts. 406º, nº5, 408º, nº1 e 780º do Código Processo Civil.

No caso, como vimos, não está em causa a verificação dos requisitos de decretamento do arresto, pois a recorrente conformou-se com esse mesmo decretamento.

A recorrente apenas coloca em causa a nomeação como depositários, das entidades bancárias onde se encontram as contas bancárias arroladas, na proporção respectiva de ½ dos valores.

Ora, essa nomeação corresponde, como vimos, à regra supletiva, que apenas pode ser ultrapassada, demonstrando-se existir manifesto inconveniente nessa nomeação.

Devendo-se, num segundo passo, apurar então quem deverá, em alternativa, ser nomeado depositário desses valores: a requerida, enquanto cabeça-de-casal do inventário principal, o requerente ou qualquer outra pessoa.

Sucede que a requerida, ora recorrente, assenta a sua argumentação partindo do pressuposto oposto, pois, como refere nas suas conclusões:

KK. Não existe qualquer “manifesto inconveniente” em que a Recorrente seja a fiel depositária de todas as contas bancárias e do saldo global.

Ao invés, cumpria-lhe alegar e demonstrar – ainda que indiciariamente – a factualidade consubstantiva da inconveniência manifesta na nomeação das entidades bancárias, para que, logicamente depois, se apurasse da pessoa mais adequada à nomeação.

Contudo, a recorrente nada refere a este respeito, pelo que, concluímos, incumpriu o seu ónus de alegação e prova dessa factualidade constitutiva do direito de que se arroga (art. 342º, nº1 do Código Civil).

Sendo que a alteração pretendida com a impugnação sobre a decisão de facto em nada reflecte o cumprimento desse ónus, sendo factualidade irrelevante para a apreciação dessa questão.

Ou seja, a nomeação das entidades bancárias onde se encontram as contas bancárias arroladas, enquanto depositárias das mesmas, constitui a regra geral, que apenas deverá ser afastada com a demonstração da inconveniência manifesta nessa nomeação[5].

2. Entretanto, na parte relevante do Acórdão fundamento pode ler-se:

Ora, como, e em nosso entender correctamente, se refere na decisão recorrida, “(…) com o arrolamento permite-se aos cônjuges que possam continuar a dispor dos bens arrolados. E no caso de depósitos bancários, os possuidores ou detentores dos bens, são os titulares da conta ou contas a arrolar – cf. art.º 408.º, n.º 1, do CPC”.

(…) Com o arrolamento não se pode pretender prejudicar o gozo e utilização normal que os bens possibilitam, daí que o depositário seja sempre o seu possuidor ou detentor. Só em casos excepcionais, havendo manifesto inconveniente, é que os bens são retirados da disponibilidade do seu possuidor.

Pode assim dizer-se que, em regra, no arrolamento, os bens continuam a prestar ao seu detentor o gozo e utilidade que os caracteriza.

Quem tem interesse em opor-se à providência é o possuidor ou detentor, uma vez que, com o arrolamento, deixará de possuir o bem arrolado em nome próprio, passando a detê-lo em nome alheio e com especiais deveres (art. 843º do C.Civil) (Cfr Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, vol. 2, pág. 170, donde decorre que considera que nos casos abrangidos pelo art. 426, nº2, do CPC, é depositário possuidor ou detentor dos bens, o requerido no procedimento cautelar, a menos que tal seja manifestamente inconveniente.

(…) Como é referido no Ac. RP de 31 de Maio de 2004, CJ, Tomo IV, pág. 186, “com este arrolamento não pretendeu o legislador impedir a normal utilização dos bens arrolados pelos cônjuges, isto é, não se pretendeu que os bens ficassem impedidos de os utilizar, levantando ou movimentando as quantias depositadas, podendo os cônjuges continuar a dispor dos bens arrolados ainda que depositados em contas bancárias. O arrolamento das contas bancárias consiste na descrição e avaliação das contas e saldos das mesmas, sendo determinado e fixado o montante existente nas contas bancárias à data do arrolamento. O titular da conta, o cônjuge depositário, prestará contas da sua função de depositário, na medida em que as contas bancárias, nos termos do art. 1187 do C.C e 843, nº 1 e 845, do CPC. Assim deve o titular das contas bancárias ser nomeado depositário”.

Todavia, e como se refere no Acórdão da Relação de Coimbra, de 27/02/2018, “o procedimento cautelar de arrolamento depende de um justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, podendo ser requerido por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens, não se exigindo, assim, que se trate de “credor” contra “devedor”, e “é adequado a prevenir o risco de dissipação ou ocultação de bens – no caso, depósitos em conta bancária – e acautelar o efeito útil do processo de inventário para partilha o arrolamento e não o arresto. Nesse caso, havendo receio de que os interessados titulares da conta bancária ocasionem o extravio/dissipação desses depósitos bancários, assim impedindo a sua entrega a quem couberem em partilha, não devem tais interessados ser nomeados depositários, por ocorrer manifesto inconveniente nos termos do art.º 408.º, n.º 1, do NCPCiv., antes se justificando a nomeação da respectiva entidade bancária como depositária, a dever impedir a movimentação da conta a débito, sem o que o procedimento não cumpriria a sua essencial função conservatória”.

(…) Não se estranha, pois, que a jurisprudência – que tem admitido largamente o arrolamento de depósitos bancários – venha entendendo que a providência cautelar de arrolamento “visa conferir tutela urgente e acauteladora a direitos a brandir ulteriormente em situações de «receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos», pelo que logra proteger os direitos de ex-cônjuge que vise obviar à dissipação de depósitos bancários e dinheiro alegadamente pertencentes a ambos os elementos do casal não se justificando, pois, em tal caso, o recurso a procedimento cautelar não especificado”.

Poderia dizer-se, em contrário, que, devendo o depositário ser “o próprio possuidor ou detentor dos bens”, no caso seria depositário quem tem a titularidade da conta bancária em questão, que poderia, nesse âmbito, proceder ao levantamento ou transferência do depositado na conta e, assim, impedir o aludido objectivo conservatório do procedimento.

Porém, o art.º 408.º, n.º 1, do NCPCiv., ressalva, quanto a tal possuidor ou detentor, situações de “manifesto inconveniente em que lhes sejam entregues” os bens.

Ora, o caso dos autos, tal como relatado pela Requerente – e a fazer-se a prova necessária –, atento o receio alegado, sempre se imporia, para evitar o risco de extravio/dissipação, que não fossem os titulares da conta nomeados depositários, antes devendo tal cargo ser atribuído à própria entidade bancária onde a conta foi aberta.

Ora, considerado tudo o acabado de expender e bem assim a materialidade alegada, e designadamente, a transferência de dinheiro comum de conta comum para conta própria (268.000,00 €), bem como, o levantamento de conta comum de avultado valor (23.818,93€) num curto espaço de tempo, efectuada pelo Requerido, inequivocamente impõe que em ordem a evitar rico de extravio/dissipação, que não seja ele, titular das contas nomeado depositário, devendo antes ser atribuído tal cargo às própria entidades bancárias onde o dinheiro se encontra depositado.

(…) Destarte, na procedência da apelação, decide-se revogar a decisão recorrida e, em consequência, nomear como depositário das contas arroladas (com excepção do saldo da conta conjunta (entidade bancária Banco ..., IBAN ...00..............., da qual continuará fiel depositária a Recorrente), as entidades bancárias onde os respectivos valores se encontram depositados, montantes, esses, que ficam bloqueados, não podendo haver qualquer movimentação desses valores [6].


*


O que pode concluir-se de tudo isto?

Como se disse, tanto no Acórdão recorrido como no Acórdão fundamento se aprecia uma e mesma questão – a questão de saber de quem deve ser considerado depositário nos termos e para os efeitos do artigo 408.º, n.º 1, do CPC quando os bens arrolados são contas bancárias.

O artigo 408.º, n.º 1, do CPC tem o seguinte teor:

O depositário é o próprio possuidor ou detentor dos bens, salvo se houver manifesto inconveniente em que lhe sejam entregues”.

Como bem diz o Tribunal recorrido, estabelece esta norma uma regra de carácter supletivo: deve ser nomeado depositário dos bens arrolados quem é seu possuidor ou detentor, que pode apenas ser afastada (nomeando-se outro depositário) quando haja “manifesto inconveniente” em que os bens sejam entregues ao seu possuidor ou detentor.

Ambos os Acórdãos convergem no entendimento de que o artigo 408.º, n.º 1, do CPC determina que deve ser nomeado depositário quem é possuidor das contas bancárias, admitindo embora a hipótese de “manifesto inconveniente”.

Divergem, porém, em quem é o possuidor ou detentor, portanto, o “depositário natural” das contas bancárias. Com efeito, enquanto no Acórdão recorrido se parte do princípio de que o possuidor é a entidade bancária, no Acórdão fundamento pressupõe-se, diversamente, que o possuidor é o titular das contas.

Assim, não obstante, em ambos os Acórdãos se decidir, a final, que devem ser nomeadas como depositárias as entidades bancárias, a nomeação destas corresponde, no Acórdão recorrido, à aplicação da regra contida no artigo 408.º, n.º 1, do CPC e, no Acórdão fundamento, à aplicação da ressalva contida na parte final daquela norma (“salvo quando houver manifesto inconveniente…”).

Tudo ponderado, é inevitável concluir que existe contradição de julgados.

É verdade que o arrolamento tem lugar em contextos diferentes: no caso do Acórdão recorrido o arrolamento é incidental de processo de inventário para partilha de bens da herança e no caso do Acórdão fundamento o arrolamento é preliminar de acção de divórcio. Mas isso não invalida nem sequer ensombra o facto de estar em causa a interpretação de uma única e mesma norma – a norma do artigo 408.º, n.º 1, do CPC.

Existindo contradição de julgados e, verificando-se os restantes pressupostos do artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC, deve a revista ser admitida.

Admitida a revista ao abrigo do artigo 629.º, n.º 2, al. d), do CPC (um dos casos em que o recurso é sempre admissível), o obstáculo recursivo da dupla conforme torna-se, como se disse, irrelevante.


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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a (única) questão a decidir, in casu, é a de saber se a recorrente deve ser a depositária dos saldos bancários.


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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:

1 - CC faleceu no dia 2 de Novembro de 2019, em ..., no estado de casado com a requerida, AA;

2 - O Requerente, nascido em .../.../1974, é filho da requerida e de CC;

3 - EE, nascido em .../.../1977, é filho da Requerida e de CC;

4 - No dia 20 de Novembro de 2019, perante o Sr. Notário FF, foi outorgada escritura de habilitação de herdeiros, na qual GG, HH e II, na qualidade de outorgantes, declararam que: “(...) faleceu, sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, CC, natural da freguesia ..., concelho ..., com a última residência habitual na ..., ..., no estado de casado no regime de direito português da comunhão de adquiridos, com AA. Que, não obstante o autor da herança ter falecido em Portugal, onde se encontrava temporariamente, tinha a sua residência habitual na ..., ..., local onde residia pelo menos desde dois mil e catorze, onde tinha o seu centro de interesses familiar e a sua vida social, conforme resulta, designadamente, do atestado de residência passado pela ..., ..., ..., ..., da autorização de residência n.° ... da qual arquivo fotocópia, sendo arrendatário de um imóvel situado em ..., ..., e do seguro de saúde junto das entidades suíças a que corresponde o cartão n.° ...23 da qual arquivo fotocópia. Que, de acordo com o artigo 21° do Regulamento n.° 650/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4/7/2012, a lei aplicável à sucessão é a lei do Estado onde o falecido tinha residência habitual, no caso concreto a lei .... Que (...), como seus únicos e universais herdeiros sucederam-lhe: a) o cônjuge AA (...), b) os filhos BB, solteiro, maior (...) e EE (...).”

5 - No dia 2/11/2019, e desde há mais de vinte anos, CC tinha a sua residência habitual em Portugal, na Rua ..., ..., em ..., onde mantinha organizada toda a sua vida familiar, pessoal e social;

6 - Requerente e requerida encontram-se desavindos desde o óbito de CC.

7 - Desde dezembro de 2019 e até Abril/Maio de 2020, o requerente solicitou diversas vezes à requerida o teor da escritura de habilitação de herdeiros de CC e da relação de bens deste entregue à Autoridade Tributária, tendo a requerida recusado entregar/exibir tais documentos.

8 - Na sequência do facto descrito em 7°, em Abril/Maio de 2020, o requerente diligenciou e obteve junto das entidades competentes os referidos documentos, altura em que teve conhecimento do seu teor.

9 - À data de 2 de Novembro de 2019, CC era titular, ou pelo menos co-titular com a requerida, de:

9.1. uma conta bancária domiciliada no ... SA, com sede em ..., na ..., com a referência N.…93;

9.2. uma conta bancária domiciliada no ... SA, com sede na ..., ..., com a referência ...77..., com saldo positivo de, pelo menos, 23.470.885,00 € (vinte e três milhões quatrocentos e setenta mil oitocentos e oitenta e cinco euros);

9.3. uma conta bancária domiciliada no ..., com sede em ..., ..., com a referência n.° ...40- ..., com saldo positivo de, pelo menos, 30.275.301,79 € (trinta milhões duzentos e setenta e cinco mil trezentos e um euros e setenta e nove cêntimos);

9.4. uma conta bancária domiciliada no BPI com o n.° ...59, com o saldo de, pelo menos, € 348.078,80;

9.5. uma conta bancária domiciliada no BIG com o n.° ...00, com o saldo de, pelo menos, € 2.011,63;

9.6. participações sociais (6670 ações) da sociedade com o NIF ...;

9.7. diversos títulos e valores mobiliários melhor descritos na certidão fiscal de fls. 118 verso e 119 frente, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;

9.8. quinze imóveis melhor descritos a fls. 118 frente e 143, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais;

9.9. um veículo automóvel da marca ..., matrícula NH-...-...;

9.10. um automóvel ... com a matrícula portuguesa ...-PI-...

9.11. totalidade do recheio da sua residência habitual, sita na Rua ..., ..., em ..., no valor estimado de € 4.000.000,00 (quatro milhões de euros), da qual fazem parte integrante, entre outros, os seguintes objectos: (i) obras de arte variadas com um valor estimado de € 400.00,00 (quatrocentos mil euros; (ii) coleção de moedas raras adquiridas por CC ao seu falecido pai, num valor estimado entre € 350.000 e € 400.000,00; (iii) Libras de ouro; (iv) Joias várias; pulseiras de ouro e diamantes tipo ...; (v) Relógios de pulso; (vi) Serviço de porcelana ...; (vii) Faqueiros em prata; (viii) Mobiliário antigo adquiridos em leilões à ..., no valor estimado de € 400.000,00; (ix) Quadros adquiridos em leilão, no valor estimado de € 250.000,0; (x) Esculturas e outras peças de arte; (xi) Tapetes persa; (xii) Duas esculturas do artista plástico JJ;

9.12. totalidade do recheio da casa que corresponde ao atual domicílio da Requerida, sita em ..., ..., ..., em ... no valor estimado de € 2.750.000,00 (dois milhões setecentos e cinquenta mil euros), da qual fazem parte, entre outros, os seguintes objectos: mobiliário vário, obras de arte, tapeçarias, serviços de porcelana e faqueiros.

10 - No dia 29/04/2020, a requerida, na qualidade de cabeça-de-casal de CC, entregou junto da Autoridade Tributária a declaração modelo I de participação de transmissões gratuitas.

11 - Dessa declaração não constam:

11.1. as contas bancárias domiciliadas na ..., melhor referidas em 9.1., 9.2. e 9.3.

11.2. quatro prédios urbanos, sitos em ..., com os artigos matriciais ...66..., 00..., ...32..., ...29...; e um prédio rústico, com o artigo matricial ...59.

11.3. o veículo automóvel identificado em 9.10.

11.4. o recheio do imóvel sito na Rua ..., ..., ..., melhor descrito em 9.11

11.5. o recheio do imóvel sito em ..., ..., ..., ..., melhor descrito em 9.12.

12 - Junto de familiares a Requerida arroga-se “dona” de todos os bens deixados pelo seu falecido marido, declarando que o quinhão do requerente é apenas de três milhões de euros;

13 - Após a morte de CC, a Requerida ofereceu às suas netas e nora, filhas e esposa do seu filho EE, joias e libras de ouro pertencentes a CC.

14 - As contas bancárias identificadas em 9.1., 9.2. e 9.3. eram geridas, à data de 02/11/2019, pelo Banco BPI ..., a quem o falecido CC e a aqui requerida haviam conferido um mandato de gestão discricionária para o referido efeito.

15 - Em julho de 2020, numa deslocação à ..., a requerida revogou o mandato conferido ao aludido BPI ....

16 - Entre 01/01/2020 e 21/07/2020, a conta bancária domiciliada no ... (melhor identificada em 9.3) sofreu diversos movimentos, a débito e a crédito, apresentando nessa data um saldo final de 2.475.629,18 € (dois milhões quatrocentos e setenta e cinco mil seiscentos e vinte e nove euros e dezoito cêntimos), tendo a requerida procedido a movimentos a débito no valor de mais de doze milhões de euros.

17 - No dia 15 de julho de 2020, foi emitido pelo juiz em funções na ..., ..., um certificado dos herdeiros de CC, no qual se fez constar que este teve a sua última residência habitual na ....

18 - O Requerente instaurou uma ação declarativa de condenação com vista à declaração judicial da falsidade da escritura de habilitação de herdeiros referida em 4°, a qual corre termos no Juízo Local Cível, Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca ... sob o n.° 14853/20....

19 - O inventariado teve residência fiscal na ... desde 11.12.2014 (cfr. doc. n.° 12);

20 - Em Fevereiro de 2017, encontrando-se em território suíço, o falecido CC sofreu um acidente vascular cerebral, que o deixou com profundas mazelas físicas;

21 - Em 27.07.2020, o Requerente apresentou, junto do Tribunal ... (...), um recurso da habilitação de herdeiros emitido pelo juiz do município de ... - onde CC teve a sua última residência, processo que corre os seus termos (acordo);

22 - O Requerente é administrador de várias sociedades afiliadas à G.…, S.A., cujo capital social é representado por 1.000 acções ao portador, sendo que dessas 6.670 integram as forças da herança;

23 - Uma vez que as acções (ao portador) se encontravam nos escritórios da sociedade, à qual lhe foi negado o acesso, pelo Requerente, a cabeça-de-casal foi impedida, por aquele, de controlar e fiscalizar a actividade societárias.

24 - A Requerida viu-se obrigada a instaurar vários procedimentos cautelares, por forma a poder cumprir com as suas funções, na medida em que o Requerente - pretendendo manter o controlo das empresas que, em parte, integram as forças da herança - lhe negou o acesso ao escritório e a entrega das acções (ao portador) da G..., S.A, (que aí se encontravam guardadas num cofre) (cfr. autos com os n.°s 11269/20...., que corre os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Comércio ... - Juiz ...; n.° 18602/20.... do ..., J.…; n.° 17187/20…, do Juízo Central Cível ... - Juiz ...; n.° 15555/20...., que correu termos no Juízo de Comércio ..., J...);

25 - O Requerente apossou-se de um iate e de um avião, que se destinava a actividade comercial, e que havia sido adquirido em leasing, pelo inventariado, no valor de 11.000USD; - cfr. PC n.° 17187/20.... do ... (doc. 6)

26 - Por decisão do fiscal único de 01-07-2020, que a designou como administradora única da sociedade G..., S.A (doc. 9) a Requerida tomou contacto com as contas das sociedades afiliadas, tendo concluído que o Requerente, abusando das suas funções de administrador, onerou as alifiliadas, através da contração de empréstimos hipotecários, junto da banca (doc. 12 e 14), tendo-as descapitalizado, através da transferência de quantias que ascendem a 955.121€, para empresas de que é beneficiário efectivo (docs. 11, 15, 23 e 37 e 38 e docs. 4, 12, 20 e 25);

27 - A P... (representada pelo aqui Requerente) intentou uma providência cautelar de suspensão de deliberações sociais contra a Gestcopi, mediante a qual procurou atacar a decisão referida em 26, e que correu termos no Juízo de Comércio ..., J..., com o número de processo 15008/20...., tendo sido julgada improcedente mediante douta decisão de 29-03-2021 - cfr. doc. 8, junto com a douta Oposição

28 - Foram instaurados os seguintes procedimentos cautelares:

a) n.° 11269/20…, que corre os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Comércio ... - Juiz ..., em que é Requerente AA, e Requerido, entre outros, BB;

b) n.° 18602/20…, que corre os seus termos no Juízo de Comércio ..., J..., em que são Requerentes a G... e as suas participadas, e em que é Requerido BB, aqui Requerente;

c) n.° 17187/20…, que corre os seus termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Central Cível ... - Juiz ...;

d) n.° 15555/20…, que correu termos no Juízo de Comércio ..., J..., em que era Requerente AA e Requerido, entre outros, BB

29- No procedimento cautelar referido em 28.a) o Tribunal decidiu:

“(-)

“a) o Requerido BB entregue à Requerente os títulos representativos do capital social da Requerida Gestcopi SGPS, S.A. das 2.329 acções que pertencem à Requerente, bem como, os títulos das ...70 pertencentes à Herança aberta por óbito de CC;

b) Os Requeridos BB, Gestcopi SGPS, S.A. e KK reconheçam à Requerente o direito de exercer todos os direitos sociais e económicos referentes às suas participações sociais na Requerida Gestcopi SGPS, S.A., independentemente da situação formal dos respectivos títulos;

c) Os Requeridos BB, Gestcopi SGPS, S.A. e KK reconheçam à Requerente o direito de exercer todos os direitos sociais e económicos referentes às participações sociais da herança de CC na Requerida Gestcopi SGPS, S.A., independentemente da situação formal dos respectivos títulos;

d) as acções referidas em a) se mantenham na posse da Requerente até à prolação de decisão na acção principal ou até à revogação da presente providência;

e) a Requerida Gestcopi SGPS, S.A. se abstenha de praticar quaisquer actos de disposição das acções representativas do capital dasRequeridas Gest Lease, S.A., IMOCOPI - Promoção e Gestão Imobiliária, S.A. e COPITRADE - Participação e Gestão de Empreendimentos Comerciais, S.A. até à eleição do Conselho de Administração ou do Administrador Único da Requerida Gestcopi - SGPS, S.A.;

f) asRequeridas Gest Lease, S.A. e COPITRADE - Participação e Gestão de Empreendimentos Comerciais. se abstenham de praticar quaisquer actos de disposição bens imóveis que detêm até à eleição do Conselho de Administração ou do Administrador Único da Requerida Gestcopi - SGPS, S.A.;

g) realizar quaisquer actos de disposição e de venda de bens imóveis que se encontrem registados em nome das participadas da Requerida Gestcopi - SGPS, S.A. até à eleição do Conselho de Administração ou do Administrador Único da Requerida Gestcopi – SGPS, S.A.;

h) No demais absolvem-se os Requeridos do pedido”. (confirmada mediante douto acórdão de 23-03-2021- cfr. docs. 3 e 4, juntos com a Oposição);

30 - No procedimento cautelar referido em 28. b), em 12-05-2021, o Tribunal decidiu reduzir o arresto anteriormente determinado ao arresto do quinhão hereditário do aqui Requerido - cfr. doc. 5, junto coma douta Oposição (para garantia de um crédito das Requerentes de 600.000€ + 355.121€, também referido nos nossos autos) - cfr. doc. 5, junto com a douta Oposição);

31 - No procedimento cautelar referido em 28. c), em 22-09-2020, o Tribunal decidiu: “(...) - determinar a entrega imediata pelos requeridos BB e S... Aero Flights à requerente AA, da aeronave Gu... ..., com o número de registo ...C;

- determinar a manutenção da posse do avião na pessoa da requerente até à decisão final; e

- ordenar que os requeridos se abstenham da prática de quaisquer atos de disposição, oneração ou quaisquer outros sobre o referido avião.” - doc. n.° 6, junto com a douta Oposição

32 - No procedimento cautelar referido em 28. d), em 22-12-2020, o Tribunal decidiu suspende a execução da deliberação de designação de BB para o cargo de Administrador Único da requerida GESTCOPI - SGPS, S.A., tomada na assembleia geral de 7 de Julho de 2020 - doc. n.° 7, junto com a douta Oposição

33 - Mais resultou provado que, conforme autos de procedimento cautelar com o n.° 18602/20.... do ... Juízo do Comércio do Tribunal Judicial ...:

“(...) À data do falecimento de CC, este e AA eram titulares de contas bancárias na ..., no valor de cerca de ...00 francos suíços (36.435.138,86 €).

(...). Em acção em curso na ..., AA alegou que o acervo do seu falecido marido (incluindo a sua meação) foi avaliado em cerca de 70.000.000 francos suíços (63.773.469,26 €). (...).

34 - Entre 21-07-2020 e 02-09-2020, a Requerente viu-se obrigada a proceder à transferência para pagamentos relativos a dívida cartão de crédito da C... (7.500€); prestações ao Bankinter mais ordenados (4.000€+5.000€+5.000€+5.000€+5.000€); Honorários Ge... (738€); Honorários C... (738€); Segurança social (885,33€); Segurança social 2.a Prestação 196,31 (falta a 3.a); IES G... (80€); IRC Predial I... (104.70€); IRC Ge... (4316,33€); I... (1369,44€); Cartão de Crédito 50.000€ - BPI (50.000€); Pagamento da mensalidade de julho do cartão de crédito da C... (2.000€); IMI da I... - 2.a prestação (490€); Despesas mensais Ge... (110€); Despesas mensais - Ge... (5.000€), num total de 93.042, 11€ - cfr. docs. juntos com os n.°s 47 a 59, com o douto Requerimento de 22-09-2020;

35 - Encontram-se arroladas, nos autos, as seguintes contas, em instituições bancárias portuguesas:

Caixa Geral de Depósitos, S.A. (conforme resposta electrónica)

Saldo existente Eur 22.194,84

Saldo ARROLADO (2/3 do Saldo existente) Eur 14.796,56

Saldo movimentável pela requerida (1/3 do Saldo existente) Eur 7.398,28

Banco BPI, S.A. (conforme resposta escrita)

Saldo existente Eur 2.603.854,08

Saldo ARROLADO (2/3 do Saldo existente) Eur 1.735.902,72

Saldo movimentável pela requerida (1/3 do Saldo existente) Eur 867.951,36

Bankinter, S.A. (conforme resposta escrita)

Saldo existente Eur 0,00

Banco de Investimento Global, S.A. (conforme resposta electrónica)

Saldo existente Eur 632,14

Saldo ARROLADO (2/3 do Saldo existente) Eur 421,43

Saldo movimentável pela requerida (1/3 do Saldo existente) Eur 210,71

Banco de Investimento Global, S.A. (conforme resposta electrónica)

Penhora de Valor Mobiliário Não Registado Valores Mobiliários Ações Não Cotadas

- acoes banif+acoes bes+slb

Saldo existente Eur 143,00

Saldo ARROLADO (2/3 do Saldo existente) Eur 95,34

Saldo movimentável pela requerida (1/3 do Saldo existente) Eur 47,66.


Em contrapartida, consta como não provado no Acórdão recorrido que:

a) À data de 2/11/2019, CC fosse titular, ou co-titular, de:

- um automóvel ... com a matrícula ... VS...

- um automóvel ... com a matrícula portuguesa ...-TH-...

b) A requerida declare que não pretende que o requerente herde quaisquer bens do falecido CC.

c) Após a morte de CC, a requerida procedeu à transferência para o seu nome do registo de propriedade do veículo automóvel todo-o-terreno ... com a matrícula ... VS-..., automóvel que, pelo menos à data da morte de CC, se encontrava em Portugal, na posse da requerida.

d) Após a morte de CC, a requerida procedeu à venda de joias, libras de ouro e moedas raras, integrantes de uma coleção pertencente àquele.

e) o valor do prejuízo causado pelo Requerente enquanto Administrador, entre utilizações de cartões de crédito das sociedades, transferências para as suas próprias contas, transferências para sociedades por si detidas, e o valor dos financiamentos obtidos junto do Bankinter e do Millenium BCP, cifra-se já em pelo menos € 2.900.000 - cfr. Procedimento Cautelar n.° 18602/20...., que corre os seus termos no Juízo de Comércio ..., J..., em que são Requerentes a G... e as suas participadas, e em que é Requerido BB, aqui Requerente e as conclusões do mesmo resultantes, bem como o facto vertido no ponto 34 dos factos provados (o montante das despesas em que a Requerente teve que incorrer ascendem a 93.043,11€);

f) A partir de janeiro de 2013, AA e CC passaram a residir em ..., na ...;

g) O casal residia na ..., tendo alterado a sua morada, após o acidente vascular cerebral referido em 19, para um T0, na ..., para facilitar a mobilidade de CC;

h) CC via a ... como a sua residência principal;

i) O Requerente, ao subtrair bens à herança e delapidar o património das empresas, impedindo a delimitação do acervo hereditário e impedir que a cabeça-de-casal o administrasse, impediu que esta procedesse ao inventário.


O DIREITO

Respeitando os presentes autos a procedimento cautelar de arresto, é conveniente, antes de mais, recordar em que consiste o arrolamento e as suas funções por confronto com o procedimento cautelar próximo do arresto.

O arrolamento encontra-se regulado, em geral, nos artigos 403.º e 409.º do CPC.

Segundo o artigo 406.º do CPC, o arrolamento consiste na descrição, na avaliação e no depósito dos bens e, nos termos do artigo 403.º do CPC, pode ser requerido quando exista justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos, ficando o arrolamento na dependência da acção à qual interessa a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas arroladas.

Como observa Marco Carvalho Gonçalves, “trata-se de uma providência cautelar de garantia ou de natureza conservatória que tanto pode ser utilizada quando seja necessário 'assegurar a manutenção de certos bens litigiosos' enquanto subsistir a discussão sobre a titularidade do direito desses bens na ação principal, como quando esteja em causa a necessidade de 'garantir a persistência de documentos para provar a titularidade do direito'[7].

É sabido que o arrolamento não desempenha a mesma função do arresto. Enquanto este é uma apreensão judicial de bens determinada pelo justificado receio do credor de perder a garantia patrimonial do seu crédito, aquele é a descrição, a avaliação e o depósito dos bens determinada pelo receio de qualquer pessoa de que os bens sejam objecto de extravio, ocultação ou dissipação.

Esclarece, entre outros, Rui Pinto:

Enquanto o arresto (cf. artigo 391.º) visa proteger um direito do crédito do requerente, garantido pelos bens do requerido, o arrolamento visa proteger direitos reais ou pessoais de gozo ou outros direitos (os quais não têm de ser do requerente, como decorre do n.º 1 do artigo 404.º) sobre certos bens ou documentos (…). Enfim, se o arresto é a providência cautelar, por excelência, do credor, o arrolamento não o é, pois que apenas na situação do artigo 404.º. n.º 2 podem os credores requerer arrolamento[8].

Nas palavras do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27.02.2018, Proc. 131/11.1TBVLF-B.C1:

O arresto pressupõe uma relação bilateral entre credor e devedor, estando em causa o receio daquele de perda da garantia patrimonial do seu crédito, caso em que pode requerer o arresto de bens (apreensão judicial) do seu devedor, com função de garantia e com o efeito de os atos de disposição dos bens arrestados serem ineficazes em relação ao requerente/credor. Já o procedimento cautelar de arrolamento depende de um justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, móveis ou imóveis, podendo ser requerido por qualquer pessoa que tenha interesse na conservação dos bens, não se exigindo, assim, que se trate de “credor” contra “devedor”. É adequado a prevenir o risco de dissipação ou ocultação de bens – no caso, depósitos em conta bancária – e acautelar o efeito útil do processo de inventário para partilha o arrolamento e não o arresto

Evidentemente, a realização da função do arrolamento pode ficar comprometida se o depositário não cumprir os deveres que lhe incumbem enquanto depositário. Mas este é um risco assumido e ponderado pelo sistema jurídico.

Entre outras considerações tecidas por José Alberto dos Reis a propósito da norma (homóloga) do artigo 434.º do CPC de 1939, retenha-se esta:

Os deveres e responsabilidades que impendem sobre o depositário obstam ao extravio ou dissipação dos bens arrolados e asseguram, portanto, a finalidade do arrolamento. Pode, é certo, dar-se o caso de o depositário não cumprir (…)[9].

Complementando esta ideia, observam perante a norma actual do artigo 408.º do CPC vigente José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre:

A partir do arrolamento, o possuidor passa a deter os bens arrolados em nome do tribunal: se tinha até aí posse em nome próprio, passa a tê-la em nome alheio. Por isso, tem agora os deveres gerais do depositário (art. 1187.º CC) e os especialmente constantes do art. 760-1, podendo ser removido se os não cumprir (art. 761) (…) Apesar deste novo estatuto do possuidor ou detentor, pode ser arriscado deixá-lo na posse e administração dos bens arrolados. Neste caso, o juiz, ponderadas as circunstâncias, escolherá outro depositário”.


*


No caso em apreço, estão, actualmente, nomeadas como depositárias dos saldos bancários a requerida e as entidades bancárias na proporção de ½ para cada uma.

Esta não foi a situação existente desde o início. Resultou de uma decisão em que culminou uma sucessão de decisões do Tribunal de 1.ª instância e vem fundamentada assim:

A manutenção do arrolamento, tal como executado, recai sobre direito próprio da Requerida à disponibilidade de metade do saldo das contas, por força do regime de bens?

A primeira nota que se impõe é a de que se encontram arroladas as contas bancárias identificadas no ponto 35 dos factos provados, tendo a Requerida possibilidade de movimentar 1/3 dos montantes depositados.

A segunda nota que se impõe é a de que a meação do cônjuge no património comum, em regime de comunhão de adquiridos, corresponde a uma quota ideal do património autónomo.

Ora, a Requerida não alegou, nem demonstrou que as quantias depositadas nas contas arroladas lhe pertencessem em exclusividade.

Assim, e conforme douto ac. de 14-05-2004 do TRL, haverá que atentar a que: “quanto à propriedade das quantias depositadas, e no que toca às relações entre os titulares e o banco, vale presunção do art.° 516° do Cód. Civil, no que respeita à repartição do saldo: presume-se que todos os titulares participam em partes iguais no saldo, sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulte que são diferentes as suas partes, podendo a presunção ser ilidida nos termos gerais.” -disponível in dgsi

Ora, não tendo sido ilidida a presunção da contitularidade dos depósitos existentes nas contas arroladas, nem tendo ficado demonstrado que a Requerida era a única titular das contas, haverá que restringir a percentagem dos saldos bancários arrolados cuja movimentação não poderá encontrar-se na disponibilidade de movimentação da Requerida, a metade.

Em suma, presumindo-se a propriedade dos depósitos a favor da Requerida na proporção de metade, o arrolamento - entendido como impossibilidade de disposição dos montantes ou valores depositados - dever-se-á restringir, a essa mesma proporção, o que se decide”.

Como se sabe, a decisão do Tribunal de 1.ª instância foi confirmada pelo Tribunal recorrido, com apoio no pressuposto de que o possuidor dos saldos bancários é a entidade bancária. Os termos (a fundamentação) da decisão foram vistos atrás, a propósito da admissibilidade da revista e da contradição de julgados.


*


A norma que adquire maior relevância para o caso dos autos é a norma do artigo 408.º. n.º 1, do CPC, onde se dispõe que “o depositário é o próprio possuidor ou detentor dos bens, salvo se houver manifesto inconveniente em que lhe sejam entregues”.

A norma é muito clara, seja quanto à regra seja quanto à ressalva: o depositário dos bens é, em princípio, o possuidor a não ser que haja razões para considerar que existe “manifesto inconveniente”.

Nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.06.1995, Proc. 087104, a propósito da norma antecessora do artigo 408.º, n.º 1, do CPC: “o artigo 426, n. 2, do Código de Processo Civil estabelece como regra a de que o depositário dos bens arrolados é o próprio possuidor ou detentor desses bens, salvo havendo manifesto inconveniente em que lhe sejam entregues”.

Recorrendo de novo à doutrina clássica, atente-se no que escreve José Alberto dos Reis:

O juiz tem de nomear depositário o possuidor ou detentor dos bens. A esta regra abre-se uma excepção: salvo se houver manifesto inconveniente em que os bens lhe sejam entregues. Como se trata de inconveniente manifesto, pode o juiz nomear outro depositário, mesmo sem solicitação do requerente das providências; mas normalmente o juiz não usará dessa faculdade senão a requerimento (…)[10].


Feito um levantamento da posição que os tribunais portugueses têm adoptado nesta matéria, restrita aos casos em que os bens são saldos bancários, é possível encontrar um único Acórdão no Supremo Tribunal de Justiça, já antigo. É ele o Acórdão de 17.01.1998, Proc. 97A997, onde se afirma que “[no] o arrolamento de conta bancária o depositário natural é precisamente a entidade bancária onde ela se encontra”.

Já nas Relações a jurisprudência é mais abundante. Mais ou menos explicitamente, o entendimento dominante parece ser o de que o depositário é o titular da conta, ressalvando-se o caso de manifesto inconveniente. Trata-se, entre outros, dos Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 22.03.2022, Proc. 10591/20.4T8SNT-B.L1, de 11.09.2018, Proc. 3412/16.4T8CSC-L1-7, de 12.11.2014, Proc. 273/14.1TBSCR-B.L1-8, de 31.05.2012, Proc. 1074/10.1TMLSB-E.L1-2, do Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2.05.2005, Proc. 0551153, do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27.02.2018, Proc. 131/11.1TBVLF-B.C1, dos Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 2.04.2021, Proc. 2184/20.2T8VRL-B.G1, de 26.11.2020, Proc. 1475/19.0T8BCL-A.G1, de 8.10.2020, Proc. 2017/18.0T8BCL-B.G2, de 30.01.2020, Proc. 2256/19.6T8BCL-B.G1, de 19.06.2014, Proc. 1281/12.2TBEPS-B.G1, de 30.04.2021, Proc. 964/11.9TBMAI-A.P1, e do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12.10.2016, Proc. 368/06-3.

Acompanhando e interpretando esta jurisprudência, propende-se para entender que a posse dos saldos bancários cabe, por princípio, à requerente, pois é ela quem, enquanto cabeça-de-casal, administra a herança (cfr. art. 2079.º do CC) e, portanto, tem o poder de dispor e movimentar a conta.

Mas é preciso lembrar o que fica dito atrás: pode haver razões para que o possuidor não seja o depositário ou não seja o depositário exclusivo dos bens arrolados, caso em que deve ser nomeado outro sujeito para, consoante os casos, assumir a qualidade de depositário em lugar dele ou, simplesmente, partilhar com ele esta qualidade.

Ora, a verdade é que foram sendo carreados para os autos factos que justificam, em concreto, que a recorrente não seja a exclusiva depositária dos saldos bancários. Extrai-se, designadamente, da factualidade provada a existência de um grave litígio entre o requerente e a requerida em torno do acervo dos bens da herança de que ambos são co-herdeiros, sendo de recear, atento o teor, entre outros, dos factos 11., 15. e 16, que os saldos das contas bancários possam ser dissipados. Assim sendo, tendo presente a presunção do artigo 516.º do CC, torna-se conveniente que a disponibilidade daqueles saldos pela recorrente se restrinja a apenas a metade e que o restante fique sob a guarda das entidades bancárias, estranhas àquele conflito.

Em conclusão, ponderadas as circunstâncias descritas, aparece como plenamente ajustado que o depósito dos saldos bancários seja repartido entre a recorrente e as entidades bancárias, nada havendo, pois, a alterar ao que resulta, a final, do Acórdão recorrido.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pela recorrente.

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Catarina Serra (relatora)

Rijo Ferreira

Cura Mariano

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[1] Cfr., sobre estes requisitos, Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, Coimbra, Almedina, 2020 (6.ª edição), pp. 60 e s.

[2] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., p. 73 (sublinhados nossos).

[3] Isto em razão da identidade de fundamento. Cfr., neste sentido, quanto aos recursos interpostos ao abrigo da al. c) e da al. d) do n.º 2 do artigo 629.º, do artigo 672.º, n.º 2, al. c) e do artigo 688.º, n.º 1, do CPC, Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., p. 73.

[4] Cfr. Abrantes Geraldes, Recursos no novo Código de Processo Civil, cit., pp. 529-537.
[5] Sublinhados nossos.
[6] Sublinhados nossos.
[7] Cfr. Marco Carvalho Gonçalves, Providências cautelares, Coimbra, Almedina, 2015, p. 255.
[8] Cfr. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, volume I, Coimbra, Almedina, 2018, p. 616.
[9] Cfr. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume II, Coimbra, Coimbra Editora, 1981, p. 135.
[10] Cfr. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume II, cit., pp. 125-126.