Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1572/14.8TBVNG.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ACÁCIO DAS NEVES
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRA CONTRATUAL
ATROPELAMENTO
COMBOIO
REGIME APLICÁVEL
CULPA DO LESADO
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
Data do Acordão: 09/29/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :        

I. Atento o disposto nos artigos 662º nº 4 e 674º, nº 3 do CPC não cabe nas competências do STJ sindicar as decisões da Relação relativas à apreciação das provas e à fixação da matéria de facto, a menos que em causa esteja uma situação de “ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova”.

II. Ao atravessamento nas plataformas das estações de caminhos de ferro não se aplica o regime jurídico estabelecido no Regulamento das Passagens de Nível aprovado pelo DL nº 568/99, de 23 de dezembro, onde se estabelece a imposição de determinada sinalização, mas sim as regras  de atravessamento, circulação e  estacionamento nas estações e apeadeiros estabelecidas no Regime Jurídico do Domínio Público Ferroviário, aprovado pelo DL nº 276/2003 de novembro.

III. Assim os avisos sonoros de aproximação de comboios (que, in casu, tiveram lugar) devem ser considerados como adequados e suficientes, não sendo exigível às rés a adoção de outras sinaléticas ou avisos. 

IV. Tendo-se provado que a acidentada autora recorrente não se apercebeu do comboio, tendo procedido ao atravessamento da plataforma apressadamente, olhando para o chão, sem prestar atenção à circulação dos comboios, sem parar junto à linha amarela existente na plataforma que separa o eixo das linhas férreas, ignorando os avisos da entrada dos comboios, assim como os demais avisos que lhe foram diretamente dirigidos, mediante um silvo prolongado proveniente de um assobio, como de gritos a dizer “olhe o comboio”, a culpa na produção do acidente tem que ser atribuída exclusivamente à autora recorrente.

V. Provada a culpa (exclusiva) da autora, afastada ficam as invocadas concorrência de culpas ou responsabilidade pelo risco.

Decisão Texto Integral:

Revista nº 1572/14.8TBVNG.P1-A.S2

            Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

AA intentou ação declarativa comum contra C.P. – Comboios de Portugal, EPE e Infraestruturas de Portugal, S.A., pedindo que as rés fossem condenadas a verem declarado que:

            (i) - O acidente que lesou a A. foi causado por violação dos seus deveres de organização e segurança, na passagem de nível, e omissão dos deveres de adequação da passagem de nível às exigências técnicas previstas nos diplomas que regem as passagens de nível; e em consequência do facto a

            (ii) - devem indemnizar solidariamente a A. por todos os danos presentes e futuros que lhe causaram, patrimoniais ou não patrimoniais, a liquidar oportunamente;

            (iii) - Subsidiariamente, e caso não se prove, ou a culpa das RR., ou da A., devem aquelas ser condenadas com base no risco e a indemnizarem solidariamente a A. como se pede”.

Alegou para tanto e em resumo ter sido vítima de um acidente ferroviário na estação da ..., sendo embatida por um comboio quando atravessava a passagem de nível dessa estação, não existindo qualquer sinalização nem qualquer guarda a assinalar a circulação de comboios, acidente esse do qual lhe resultaram lesões diversas, geradoras de incapacidades.

A então REFER apresentou contestação, na qual se defendeu por exceção, invocado a incompetência material do tribunal, e por impugnação, e defendendo a responsabilidade da autora pela ocorrência do acidente.

Por sua vez, a CP apresentou contestação na qual defendeu igualmente a responsabilidade da autora na produção do acidente.

Foi designada e teve lugar a audiência prévia, na qual, para além do mais, se julgou improcedente a invocada incompetência material do tribunal.

            Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença, na qual a ação foi julgada improcedente, sendo as rés absolvidas do pedido.

           

            Na sequência e no âmbito de recurso de apelação da autora, a Relação do Porto, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, julgou improcedente o recurso e confirmou a sentença recorrida.

           

            Uma vez mais inconformada interpôs a autora recurso de revista normal (que não foi admitida, o que originou reclamação, que foi desatendida) e, subsidiariamente, de revista excecional (que foi admitida pela Formação a que alude o nº 3 do artigo 672º do CPC), onde formulou as seguintes conclusões:

a) A douta decisão recorrida alterou o quadro factual da decisão de facto, mantendo todavia o resultado da sentença de 1ª instância;

b) Em face da alteração, e da relevância especial dos três factos (9, 37 e 16 bis), na economia da causa de pedir da ação, entende a A., em sua modesta opinião, que deve ter-se por arredada a dupla conforme;

c) Por outro lado, e ainda na questão de facto, há que ter em conta que a versão dos factos 15 a 18, 21 e 45, e o aditado 16 bis, contraria a outra versão sobre o acidente consubstanciada sobretudo nos factos nº 29 e 30, pois a 1ª permite concluir que a passagem da A. ao longo do passadiço não foi irreflectida, mas calculada, enquanto a outra deixa intuir que a A. foi insensível às consequências da sua actuação; ou seja, existiu um acto volitivo na 1ª versão, ainda que por algum erro de percepção tenha ocorrido o acidente, enquanto na 2ª houve um inteiro alheamento ao acidente com a invasão da zona de salvaguarda do comboio, após a passagem da linha amarela.

Esta contradição não permite a aplicação do direito aos factos (artº 682 nº 3 CPC), pois a culpabilidade da conduta da A. não é compatível com a 1ª versão.

d) Invoca ainda a A. a falta de fundamento da decisão de facto do nº 30, impugnado pela A., na medida em que se mostram desvirtuados os fundamentos atendidos para esse ponto de facto; na verdade, as provas analisadas pelo douto acórdão, salvo o devido respeito, não conduzem à conclusão tirada, ou seja, que a A. ultrapassou a linha amarela, pelo que há ofensa do preceituado no artº 607 nº 4 CPC

e) Se de todo em todo não forem atendidos os argumentos que levam ao desvio da dupla conforme, a recorrente, ao abrigo do disposto no artº 672 nº 1 alª a) e b) CPC, pede que seja atendida a revista excecional.

f) De facto, a questão da qualificação da passagem existente na estação da ..., atravessamento de cais, ou passagem de nível, merece ser apreciada, não somente pelas consequências que daí advêm para a A. e outros utentes dessa passagem, mas também para prevenir acidentes ferroviários; sendo propósito firme do legislador contribuir para a modernização das estruturas, a fim de salvaguardar os interesses de pessoas e bens, têm o dever os tribunais de aplicar as leis que tendem a esse fim. A questão tem assim uma vertente de interesse social, não deixando de ter o seu ineditismo, atenta a jurisprudência consultada sobre o assunto.

g) Salvo todo o respeito, a douta decisão recorrida não qualificou devidamente, face à realidade concreta, o espaço de travessia pedonal da estação da .... A matéria provada afirma que ele interliga dois espaços públicos (ruas ou estradas) – artº 1º do Regulamento do DL 568/99 de 23-12 -, pelo que só por isso deve ser arredada a qualificação de atravessamento de cais, de uso exclusivo à estação (artº 2º nº 3 do Regulamento).

h) Todavia, mesmo que a passagem em causa não fosse classificada como passagem de nível, as entidades exploradoras não ficam isentas da responsabilidade da segurança das pessoas que a utilizam (artº 22 DL 39780 de 21-08-1954).

i) Quanto à questão da culpabilidade da A. no acidente, a douta decisão recorrida não ponderou devidamente a factualidade referida no ponto 9, aqui dado por reproduzido brevitatis causa.

j) Na verdade, impugnados que foram os factos nº 29 e 30, e a sua falta de fundamento, nada há na matéria de facto que comprovadamente demonstre que a A. ultrapassou a linha do gabarit. Os factos levam à conclusão que não foi o caso.

k) Registam os autos as omissões das RR. que conduziram ao acidente.

Mesmo que alguma culpa fosse imputada à A., não se vendo qual, não podem as RR. ser desresponsabilizadas do evento, seja a título de concorrência de culpas (artº 570), seja a título de concorrência de culpa e risco (artº 505), conforme a boa jurisprudência o vem entendendo, aceite que seja que a atividade exploradora das RR. é potenciadora de risco (artº 493 nº 2 CC).

l) A A. sofreu graves danos físicos, patrimoniais e morais, devendo por isso ser ressarcida, quer em termos de perdas salariais, danos futuros e sofrimento, no valor peticionado.

m) O douto acórdão por erro de interpretação e aplicação das normas aos factos, devidamente apurados, deve ser revogado e prolatado douto acórdão, nos termos do qual seja a recorrente ressarcida dos danos causados pelas RR. . Assim se fará a esperada JUSTIÇA

           

           A ré CP contra-alegou, pugnando pela inadmissibilidade da revista ou pela improcedência da mesma.

            Dispensados os vistos, cumpre decidir:

           

Atento o teor das conclusões recursórias, enquanto delimitadoras do objeto da revista, são as seguintes as questões nelas suscitadas (para além das questões da dupla conforme e da admissibilidade da revista excecional – que já foram objeto de apreciação e de que veio a resultar a admissão da revista, ainda que apenas, como revista excecional) de que cumpre conhecer:

            - contradição de factos provados;

            - falta de fundamentação de facto provado;

- qualificação da travessia pedonal da estação da ... como passagem de nível;

- inexistência de culpa da autora recorrente;

- concorrência de culpas ou de culpa e risco;

- ressarcimento dos danos.

 

É a seguinte a factualidade dada como provada e como não provada pelas instâncias:

            Factos provados:

1 - No dia …. 2013, pelas 18 h e 30 m, foi a A. vítima de um acidente envolvendo um comboio, na Estação ferroviária da ...,

2 - Junto à referida estação correm 4 linhas para circulação de comboios, ficando a Estação do lado nascente das linhas ferroviárias;

3 - As quais estão separadas no meio por uma plataforma de embarque e desembarque de passageiros;

4 - A referida plataforma, destinada a peões, onde a A. foi lesionada, fica a cerca de 40 m da estação;

5 – Existe uma passagem, no topo da Rua ..., para quem acede à estação da ... pelo lado poente – caso da A.;

6 - Nas linhas desta Estação, que fazem a ligação Lisboa-Porto ou Porto Lisboa, circulam frequentemente comboios, sem paragem, a velocidade na ordem de 100 a 120 km por hora;

7 - O acesso à passagem referida em 5., a partir do referido lado poente, não tem qualquer restrição, estando sempre franqueado;

8 - Não existindo aí qualquer sinal de aviso ou de proibição;

9 – Também não existe no trajeto dessa passagem qualquer sinal luminoso ou sinal sonoro específico de aviso de passagem de comboios, indicativo de proibição de atravessamento ou avisador da aproximação de qualquer comboio, relativamente a qualquer das linhas férreas aí existentes, sem prejuízo da existência da sinalização sonora que permite os avisos acústicos mencionados em 31 (facto este resultante da alteração efetuada pela Relação).

10 - Nem o aviso “Pare, escute e olhe”, ou cruz de Santo André;

11 – Na altura do acidente, não se encontrava na plataforma referida em 3. qualquer guarda da estação;

12 - No acesso à passagem aludida em 5., pelo lado nascente – a partir do lado contrário ao que a A. fazia –, o peão esbarra com uma barreira de ferro paralela à linha, que o obriga a contorná-la, impedindo assim o acesso directo e imediato ao espaço da linha;

13 - A A., ao fazer a travessia da referida passagem, a partir do lado poente, passava pela plataforma, que se desenvolve para a sua direita, destinada ao embarque e desembarque de passageiros dos comboios que vêm do lado sul;

14 – Tal plataforma é mais alta em relação ao piso da linha cerca de 1,5 m;

15 - Quando a A. atravessava na dita passagem, do lado poente para o lado nascente, estava a chegar um comboio na linha do outro lado - linha 2 - proveniente do norte, e por isso a Autora parou junto à referida plataforma;

16 - A A. ia atravessar em primeiro, a seguir à plataforma, a linha nº 1;

16-bis - Na altura do atravessamento encontravam-se pessoas na gare da plataforma que serve a linha nº 1”. (facto aditado pela Relação).

17 – A Autora aproximou-se mais do espaço da linha n.º 1;

18 - Como não se apercebesse do trânsito de qualquer comboio, propôs-se retomar a marcha;

19 - A A., logo que entrou no espaço dessa linha n.º 1, foi atingida por um comboio que circulava sem paragem;

20 - Depois de colhida, foi projetada, tendo ficado caída e inanimada sobre a plataforma do seu lado esquerdo;

21 – A Autora avançou para o espaço da linha nº 1 confiada em que não havia trânsito na linha;

22 - Conduzida ao Centro Hospitalar de ..., foi-lhe diagnosticada fratura do 1/3 distal dos ossos da perna esquerda, com esfacelo na face interna da coxa esquerda e fratura de múltiplos arcos costais;

23 - Cada uma das composições que transita na linha férrea está sob a guarda, vigilância e interesse da 1ª R. “CP”, nomeadamente aquela que lesou a A.;

24 - A qual era conduzida por pessoa por si instruída, ao seu serviço e sob a sua conta e responsabilidade;

25 - A 2ª R. “Infraestruturas” é gestora da infraestrutura dos caminhos-de-ferro em que circulam as composições, e na qual se inserem passagens de nível;

26 - A A. nasceu em …-1959;

27 - À data do acidente, a A. trabalhava no … “...”, na ..., a servir à mesa e balcão;

28 – O acidente ocorreu quando a Autora se deslocou, vinda do exterior da Estação da ... (do lado do mar) e entrou no atravessamento da gare que permite o acesso entre as plataformas;

29 – A Autora entrou no percurso de acesso ao atravessamento apressadamente, olhando para o chão, sem prestar atenção à circulação dos comboios;

30 – A Autora não parou junto à linha amarela existente na plataforma que separa o eixo das linhas férreas;

31 – Momentos antes da travessia efectuada pela Autora, o responsável da Estação fez o anúncio sonoro avisando da entrada do comboio nº…, com destino a Ovar e com paragem na Estação;

32 – E alguns segundos depois fez o anúncio do comboio nº ..., com destino ao Porto-Campanhã, sem paragem;

33 – Os avisos sonoros estavam a funcionar em condições – o som era perceptível;

34 – Após ter efetuado os anúncios, o responsável da Estação deslocou-se para a plataforma do lado da via descendente (linha nº2), local onde se encontrava o operador de manobras, Sr. BB, e, ao visualizar a Autora a iniciar o atravessamento, pegou no assobio e efetuou um silvo prolongado, cerca de 3 a 5 segundos;

35 – Nesse momento, o operador de manobras gritou à Autora: “Olhe o comboio”;

36 – O acidente ocorreu num atravessamento entre cais;

37 – O atravessamento entre cais é um acesso destinado e utilizado pelos passageiros dos comboios, existindo uma abertura do lado poente que tanto permite o acesso às plataformas ferroviárias aí existentes, assim como a sua travessia para o lado nascente e o acesso à via pública igualmente a nascente (facto este resultante da alteração efetuada pela Relação).

38 – A Autora efetuou a travessia do atravessamento entre cais com vista a “cortar” caminho, já que ia trabalhar às 18:30h no restaurante “...”, sito a 500 metros da Estação da ...;

39 – A Autora poderia ter utilizado as duas Passagens de Nível existentes na Estação, uma localizada a norte, PK 320,704, e outra localizada a sul, PK 319;

40 - No local referido em 1. não existe qualquer passagem de nível;

41 - O acidente ocorreu na plataforma da estação ferroviária da ...;

42 - A A. acedeu, transitando de poente para nascente, ao interior da Estação da ..., utilizando, para tal, a entrada nela existente a poente, na Rua ...;

43 - Uma vez no interior da estação, efetuou a travessia das linhas 4 e 3, acedendo à respetiva plataforma;

44 - A A. pretendeu, então, atravessar as linhas 1 e 2 da estação no momento em que chegava e passava na linha nº2, de Norte para Sul, um comboio com paragem na estação da ...;

45 - Após a passagem deste, a A. preparou-se para iniciar a travessia das linhas 1 (sentido Aveiro – Porto) e 2 (sentido Porto – Aveiro);

46 - Ocupando e invadindo, inadvertidamente, o espaço de segurança da linha 1 (gabarit), delimitado por um traço amarelo, pintado a todo comprimento da plataforma contígua à linha nº1;

47 – Fê-lo no momento em que se aproximava e passou pela A. o comboio nº ..., no sentido Aveiro-Porto, sem paragem na Estação da ..., à velocidade de cerca de 120 km/h;

48 - A velocidade autorizada para o local e para comboios convencionais é de 125 km/h;

49 - A Estação está inserida numa reta, com visibilidade superior a quinhentos metros para cada lado;

50 - A A. fez ocupação do espaço da plataforma da linha 1, reservado à passagem de comboios e delimitado com traço amarelo, confiada em que não havia trânsito na linha e sem atender a que o maquinista do comboio fez uso do sinal sonoro repetidamente, antes da entrada na Estação da ... e do início da plataforma contígua à linha 1;

51 - Tendo sido tocada, “de raspão”, pelo dito comboio nº ...;

52 - A aproximação do comboio foi precedida de uma informação sonora audível na plataforma, levada a cabo pelos agentes da gestora da infraestrutura ferroviária (Estação da ...), que é a “Infraestrutura, E.P.E.”;

53 - À A. foi prestado pelas Rés todo o auxílio e socorro;

54 - No acidente teve a A. as seguintes lesões: - ferida frontal; - ferida incisa profunda na face posterior da região nadegueira direita de aproximadamente ó conferência; - esfacelo grave da face medial da coxa esquerda; - esfacelo grave da coxa direita; - enfisema subcutâneo no tórax e dor esternal; - fratura de F1 – 4º dedo do pé esquerdo; - fratura cominutiva distal dos ossos da perna esquerda; - fratura proximal da cabeça do perónio esquerdo; - fratura sem desalinhamento do 1º ao 5º arcos costais esquerdos na vertente anterolateral e do 2º e 3º arcos costais direitos em dois pontos cada um; - discreto pneumotórax bilateral e pneumomediastino; - fígado com pequenas hipodensidades intra-parenquimatosas nos segmentos laterais do lobo esquerdo e no caudato tradutoras de pequenos hematomas; - pequena laceração do polo superior do baço associada a escassa quantidade de hemoperitoneu periesplénico e na goteira esquerda;

55 - Foi sujeita aos seguintes tratamentos: - durante o internamento no Serviço de Ortopedia foi submetida a osteotaxia com fixador externo à data de entrada, com alta a 28-06-2013; - submetida em Ortopedia a osteotaxia com fixador externo Hoffman de fractura dos ossos da perna esquerda, correção dos esfacelos e imobilização do 4º dedo com tala de Zimmer; - internada em Cirurgia Geral e posteriormente no Serviço de Ortopedia, num total de 35 dias; - em 29-07-2013 foi reinternada para extração de material de osteossíntese; - em 9-12-2013 foi reoperada para tratamento de foco de pseudoartrose, colocação de enxerto autólogo da crista ilíaca homolateral e osteossíntese com placa e parafusos mais osteotomia do perónio; - em 28-05-2014 apresentava pseudoartrose do perónio; - em 13-08-2014 mantinha programa de reabilitação; - em 30-05-2014 foi submetida a intervenção cirúrgica para correção de cicatriz deformante da coxa direita; - em 20-04-2016 foi submetida a intervenção cirúrgica com colheita de gordura abdominal e limpoenxerto do leito da cicatriz (cerca de 100 cc) na face medial da coxa esquerda; - Relatório da Unidade de Dor Crónica de 01-09-2015, segundo o qual tem as seguintes indicações terapêuticas: Lyrica – comprimido ao jantar; Metanor – 1 comprimido de 8 em 8 horas; Paracetamol – 1 comprimido de 8 em 8 horas; Brufen 400 mg – 1 comprimido de 8 em 8 hoas; Picalm, várias vezes ao dia; - Realizou sessões de fisioterapia;

56 - Depois do período operatório, a A. tem feito tratamentos de medicina física e reabilitação;

57 - Desde o acidente, a Autora deixou de trabalhar;

58 – A Autora teve alta dos tratamentos em 03-08-2016;

59 - A A. apresenta as seguintes sequelas do acidente, reavaliadas após a alta: - na face anterior direita da região frontal, cicatriz nacarada arciforme, com 3 cm de comprimento; - Membro superior direito: ligeiras queixas álgicas nos últimos graus do movimento do ombro; - Membro inferior direito: cicatriz hiperpigmentada de forma ondulante na face posterior da coxa, com alguma retração dos tecidos moles circundantes, que mede 16 cm de comprimento; - Adormecimento da região das cicatrizes; - Membro inferior esquerdo: marcha muito discretamente claudicante; cicatriz hiperpigmentada de direção vertical na face anterior da perna e do pé com 17 por 1 cm de maiores dimensões; cicatriz hiperpigmentada, retraída, horizontal, na face externa do terço médio da perna com 5 cm por 1 cm de maiores dimensões; cicatriz na face medial do terço distal da coxa, hiperpigmentada de direção horizontal e bifurcada na parte mais anterior, que mede 13 cm de comprimento e que condiciona alguma depressão dos tecidos moles circundantes; na região da crista ilíaca esquerda, cicatriz discretamente hiperpigmentada que mede 6 cm de comprimento; menor sensibilidade nas regiões cicatriciais; - Tornozelo: dor à palpação do terço distal da perna, principalmente na face anterior e no maléolo tibial;

60 - Em consequência das sequelas, tem as seguintes queixas e limitações funcionais: - dificuldade em subir e descer escadas, principalmente a descer por "sensação” de insegurança, e fenómenos dolorosos ao nível do tornozelo esquerdo; - não consegue pôr-se de joelhos, não consegue agachar-se por fenómenos dolorosos ao nível do joelho e tornozelo esquerdos; - dores ao nível da perna, tornozelo e pé esquerdos de forma contínua e ao nível do ombro direito de forma ocasional, tomando medicação prescrita para a sua atenuação; - não consegue tomar banho a não ser sentada num banco, por medo de cair e por sentir "instabilidade na perna esquerda"; - não vai às compras sozinha por falta de força, estabilidade e dores na perna esquerda; não consegue carregar pesos; - dificuldade em subir e descer escadas e agachar-se;

61 – A Autora apresenta sintomas de agitação psicofísica e "ataques de pânico" de forma ocasional e irritação e consternação face ao meio;

62 - A Autora apresenta alguma perturbação do sono ocasional, tomando medicação prescrita pela médica de família;

63 - A Autora apresenta irritação do couro cabeludo que se apresenta com espinhas e também alterações cutâneas ao nível das unhas;

64 – A Autora sente dificuldade em subir e descer escadas, agachar-se, levantar-se, sobretudo por causa das dores articulares a nível do joelho e tornozelo esquerdos e falta de força muscular na perna esquerda, sendo ajudada pela sua filha nas lides domésticas;

65 – A Autora tem tido estados depressivos, de ansiedade, perturbação do sono, irritabilidade, para os quais toma habitualmente um antidepressivo – fluvoxamina;

66 – A Autora tem como habilitações literárias a 6ª classe;

67 – A A. sofreu com o acidente, com os tratamentos, designadamente as várias sessões de fisioterapia, e continua a sofrer, tendo de lidar com a dor crónica;

68 - Foi-lhe fixado um quantum doloris de 5 em 7;

69 - A perna esquerda da A., não obstante as plásticas a que foi sujeita, continua com grandes marcas dos enxertos e das longas cicatrizes;

70 - A A. evita pôr-se em fato de banho na praia ou outros locais de veraneio em virtude das lesões e deformidades sofridas;

71 - Tendo-lhe sido atribuído, por dano estético, um grau 4 em 7;

72 – A Autora foi orientada para a área de psicologia e, daí, para psiquiatria, em 2014.

73 - A A. ficou com a roupa que trazia no corpo danificada, em razão do acidente (facto este aditado pela Relação).

Factos não provados:

a) A Autora tivesse sido lesionada numa passagem de nível pública da Estação da ...;

b) A passagem aludida em 5. sirva as pessoas que vivem na ...;

c) (facto eliminado pela Relação).

d) Na altura do acidente, não se encontrasse junto à linha nº 2 qualquer guarda da estação a assinalar a passagem de comboio sem paragem;

e) Na altura do acidente, os avisos do altifalante da estação não fossem percetíveis, por causa da má qualidade do som e quando misturado com o barulho dos passageiros que saem ou aguardam a chegada dos comboios em hora de grande afluência de passageiros;

f) (facto eliminado pela Relação).

g) Os peões tenham do lado nascente da passagem referida em 5. maior visibilidade de cada uma das linhas do que do lado poente;

h) A visibilidade ou alcance da linha nº1, junto à plataforma aludida em 3., seja mais reduzida do que a percecionada do outro lado – lado nascente;

i) (facto eliminado pela Relação).

j) O referido em 7. a 11. tivesse sido determinante no acidente sofrido pela Autora;

k) Nas circunstâncias mencionadas em 15., a Autora tivesse aguardado que o comboio passasse e deixasse a passadeira inteiramente livre;

l) Depois de passar tal comboio, a Autora tivesse olhado para o seu lado direito a fim de visionar a linha nº 1;

m) O mencionado em 17. tivesse ocorrido por a Autora não poder observar bem a linha nº1 a meio da plataforma;

n) Não tivesse sido indicada a passagem do comboio nº...;

o) O comboio tivesse atingido a Autora em parte da coxa esquerda;

p) No local do acidente tenha havido outros acidentes do mesmo tipo;

q) Se no local do acidente existisse sinal ou aviso luminoso ou aí estivesse um guarda, a Autora não teria avançado para o espaço da linha;

r) As Rés não tenham tratado de saber da A., nem das razões do acidente, nem das suas consequências, nem se tenham disposto a prestar-lhe qualquer ajuda;

s) À data do acidente, a Autora ganhasse o salário mínimo, se encontrasse em regime experimental e esperasse ficar com contrato de trabalho;

t) A Autora tivesse realizado 92 sessões de fisioterapia entre março de 2014 e novembro de 2014;

u) A Autora aguarde nova intervenção cirúrgica plástica para correcção da deformidade da perna esquerda;

v) O referido em 61. a 63. e 65. tenha ocorrido após o acidente e seja consequência do mesmo;

w) A Autora sinta dificuldade na marcha;

x) A Autora não consiga estar de pé mais de 1 hora seguida, tendo de repousar, na medida em que a perna e o tornozelo esquerdos incham, e tenha de comprar sapatos um número acima do que comprava por causa do inchaço;

y) Desde o acidente, a Autora não possa trabalhar por não poder movimentar-se sem auxílio de canadianas;

z) Desde o acidente, a Autora não pudesse retomar o trabalho por não se sentir em condições físicas nem anímicas para retomar qualquer trabalho;

aa) Depois o acidente, a Autora se veja impossibilitada de conseguir trabalho, por causa das suas limitações físicas;

bb) A Autora não faça a lide de casa;

cc) A Autora não possa cozinhar, o que dantes fazia;

dd) A Autora necessite do auxílio da filha para fazer a higiene pessoal;

ee) A Autora sinta que perdeu uma boa parte da sua autonomia, advindo-lhe daqui um transtorno psíquico decorrente de falta de confiança, nervosismo exacerbado, depressão, perda de alegria de viver;

ff) (facto eliminado pela Relação).

gg) Após o acidente e por causa dele, a Autora apresente um quadro depressivo com ataques de pânico, ansiedades, irritabilidade fácil, taquicardia, sudorese, tiques nervosos (roer unhas e irritação do couro cabeludo, que obriga a A. a coçá-lo instintivamente);

hh) Após o acidente, a Autora passasse a ter pesadelos e seja acometida de medos insuperáveis (por ex. com a aproximação da linha férrea, comboios, sons dos comboios, e velocidade dos veículos);

ii) A sexualidade da A., em razão do estado depressivo que a acomete e da tomada de antidepressivos e medicamentos para a dor crónica, esteja afectada e prejudicada.

            I - Quanto à contradição de factos provados:

Diz a autora recorrente que a versão factual emergente dos factos dados como provados sob os nºs 15 a 18, 21 e 45 e o aditado nº 16 bis, está em contradição com aquela que resulta do que foi dado como provado sob os nºs 29 e 30.

 Naquele 1º conjunto de factos foi dado como provado que:

- Quando a A. atravessava na dita passagem, do lado poente para o lado nascente, estava a chegar um comboio na linha do outro lado - linha 2 - proveniente do norte, e por isso a Autora parou junto à referida plataforma;

- A A. ia atravessar em primeiro, a seguir à plataforma, a linha nº 1;

- Na altura do atravessamento encontravam-se pessoas na gare da plataforma que serve a linha nº 1”. (facto aditado pela Relação).

– A Autora aproximou-se mais do espaço da linha n.º 1;

 - Como não se apercebesse do trânsito de qualquer comboio, propôs-se retomar a marcha;

- A Autora avançou para o espaço da linha nº 1 confiada em que não havia trânsito na linha;

- Após a passagem deste, a A. preparou-se para iniciar a travessia das linhas 1 (sentido Aveiro – Porto) e 2 (sentido Porto – Aveiro);

 E no 2º conjunto de factos foi dado como provado que;

- A Autora entrou no percurso de acesso ao atravessamento apressadamente, olhando para o chão, sem prestar atenção à circulação dos comboios;

- A Autora não parou junto à linha amarela existente na plataforma que separa o eixo das linhas férreas;

            E diz a recorrente (corpo das alegações) que esta última disposição sequencial dos factos não se quadra com a anterior, na media em que, “uma coisa é o que a sequência e conjunto destes factos narra, ou seja, um atravessamento estouvado, contínuo e indiferente ("sem prestar atenção") ao perigo, correndo um risco desnecessário porque vai desatenta e apressada, sem ter até em conta a chegada do comboio na linha 2; outra é o percurso alegado e descrito nos factos 15 a 18 e 21, em que a A. vai a caminhar (mesmo se olha para o chão, pois para onde há-de olhar?) e fica à espera a meio da plataforma, porque está um comboio na linha 2; verifica a seguir se pode retomar a marcha, quando aquele deixa a via livre. Na verdade, a afirmação constante da matéria de facto, de que a A. se propôs retomar a marcha, confiadamente, por não se aperceber do trânsito de qualquer comboio (factos 18 e 21) pressupõe que ela verificou o trânsito e tomou o propósito de avançar ao não se aperceber de outro comboio.”

            Todavia, a nosso ver sem razão, na medida em que, contrariamente ao que defende a recorrente, os factos vertidos nos nºs 29 e 30 (2º conjunto de factos) em bom rigor não contrariam a versão factual constante dos demais factos (1º conjunto) mas apenas a complementam.

Com efeito, do 1º conjunto de factos não se pode retirar que a autora tenha parado junto à “linha amarela “existente na plataforma (na medida em que uma coisa é a plataforma e outra a linha amarela existente junto à plataforma referida no 2º conjunto de factos) ou que a autora tenha entrado no percurso de acesso ao atravessamento sem ser apressadamente, sem ser a olhar para o chão  e a prestar atenção à circulação dos comboios.

Aliás a circunstância de se ter dado como provado (1º conjunto) que a autora se não apercebeu do trânsito de comboios até se pode compreender em função do atravessamento ter sido feito nas circunstâncias referidas nos nºs 29 e 30 (2º conjunto) e em outras demais dadas como provadas sob os nºs 31 e 32 (antes da travessia foi feito anúncio sonoro avisando a entrada dum comboio e, segundos depois, de outro comboio), 33 (os avisos sonoros estavam em condições e eram audíveis), 34, 35, 50 e 52 (antes de a autora iniciar o atravessamento um operador de manobras efetuou um silvo prolongado e gritou-lhe “olhe o comboio”, e a aproximação do comboio foi precedida de sinais sonoros, a que a autora não atendeu).

E bem assim do facto de a autora não ter utilizado as duas passagens de nível existentes na estação (nº 39), o que dá a entender que a autora tinha efetivamente pressa em atravessar.

Inexiste assim a invocada contradição, improcedendo nesta parte as conclusões recursórias.       

            II- Quanto à falta de fundamentação de facto dado como provado:

Invoca a recorrente a falta de fundamento da decisão relativamente ao facto nº 30  dos factos provados (A Autora não parou junto à linha amarela existente na plataforma que separa o eixo das linhas férreas) porquanto, segundo a mesma se mostram desvirtuados os fundamentos atendidos para esse ponto de facto na medida em que “as provas analisadas pelo douto acórdão, salvo o devido respeito, não conduzem à conclusão tirada, ou seja, que a A. ultrapassou a linha amarela, pelo que há ofensa do preceituado no artº 607 nº 4 CPC”.

Todavia sem qualquer razão.

Com efeito, conforme se alcança do acórdão recorrido a Relação procedeu à apreciação da impugnação da matéria de facto na parte em questão (nºs 29 e 30 dos factos dados como provados na 1ª instância), procedendo à análise crítica das provas invocadas e acabando por firmar a sua convicção no sentido de secundar a convicção da 1ª instância.

Não faz assim qualquer sentido falar-se, conforme o faz a recorrente, em falta de fundamentação.

O que sucede é que, ao dizer que as provas analisadas não correspondem à conclusão tirada (o que, só por si, contradiz a invocada falta de fundamentação), a recorrente não está de acordo com a análise das provas e a convicção formada pela Relação.

Todavia, como é sabido e resulta do disposto nos artigos 662º nº 4 e 674º, nº 3 do CPC não cabe nas competências do STJ sindicar as decisões da Relação relativas à apreciação das provas e à fixação da matéria de facto.

Isto, a menos que em causa esteja uma situação de “ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova” – o que não foi invocado e não está minimamente em causa.

            Improcedem assim, também nesta parte, as conclusões recursórias.

           

III – Quanto à qualificação da travessia pedonal da estação da ... como passagem de nível:

           

Conforme referido no relatório supra, a autora ora recorrente fundou o pedido de indemnização formulado contra as rés, ora recorridas, na culpa destas na produção do acidente em causa nos autos, culpa essa derivada da inexistência de sinalização ou guarda a assinalar a circulação do comboio.
            E, conforme se alcança do acórdão recorrido, a Relação considerou não ser aplicável ao atravessamento das estações (caso dos autos) o regime jurídico estabelecido no Regulamento das Passagens de Nível aprovado pelo DL nº 568/99, de 23 de dezembro (Regulamento este no qual se estabelece a imposição de sinalização luminosa, com sinais sonoros instalados nos mesmos suportes dos sinais luminosos, e barreiras completas ou meias barreiras, de funcionamento manual ou automático - vide artigo 11º do Regulamento), mas sim as regras  de atravessamento, circulação e  estacionamento nas estações e apeadeiros estabelecidas no Regime Jurídico do Domínio Público Ferroviário, aprovado pelo DL nº 276/2003 de novembro.

É contra tal entendimento que se manifesta a recorrente, segundo a qual a Relação não qualificou devidamente, face à realidade concreta, o espaço de travessia pedonal da estação da ....

E isto, ainda segundo a recorrente, porque “a matéria provada afirma que ele interliga dois espaços públicos (ruas ou estradas) – artº 1º do Regulamento do DL 568/99 de 23-12 -, pelo que só por isso deve ser arredada a qualificação de atravessamento de cais, de uso exclusivo à estação (artº 2º nº 3 do Regulamento).”

Todavia sem razão, na medida em que no nº 3 do artigo 2º do Regulamento das Passagens de Nível se estabelece que não ficam abrangidos por este Regulamento os acessos de nível entre plataformas destinadas ao serviço exclusivo das estações ou apeadeiros”.

Isto sendo certo que o acidente se deu precisamente na plataforma existente junto à estação da ..., que separa as linhas de circulação de comboios, plataforma essa destinada a peões.

Ademais, atentas as evidentes diferenças e finalidades entre uma PN (passagem de nível), que permite o  atravessamento de uma linha ferroviária por uma estrada ou passagem onde circulam peões e veículos (muitas vezes com visibilidade reduzida), e uma plataforma (meramente destinada a peões) de uma estação de comboios (com evidente visibilidade, sendo que, in casu, se mostra provado que “a Estação está inserida numa reta, com visibilidade superior a quinhentos metros para cada lado”) -  é de todo compreensível e ajustado que só naquela primeira situação a lei exija a colocação da relevante sinalética que acima referimos.

E daí que no caso do atravessamento das plataformas das linhas férreas das estações ferroviárias, como aquela em que se deu o acidente em questão, os avisos sonoros de aproximação de comboios (que, in casu, tiveram lugar) se devam considerar como adequados e suficientes, não sendo exigível às rés a adoção de outras sinaléticas ou avisos.  

Diz ainda a recorrente que, ainda que a passagem em causa não seja classificada como passagem de nível, as entidades exploradoras não ficam isentas da responsabilidade da segurança das pessoas que a utilizam, invocando para o efeito o artigo 22º do Regime Jurídico do Domínio Público Ferroviário (DL 276/2003, que veio substituir o  DL 39780 de 21-08-1954).

Todavia, também aqui sem razão, na medida em que o que na al. a) daquele artigo se estabelece é que nas estações e apeadeiros Os peões e os condutores de veículos ou de animais devem obediência rigorosa à sinalização existente e aos avisos afixados, bem como às indicações dos agentes ferroviários em serviço, devendo apenas efetuar o atravessamento ou circular sobre a via férrea quando possam assegurar-se da inexistência de perigo”.

Não resulta daí a imposição de uma qualquer sinalização mas tão só o dever de  obediência rigorosa, por parte dos peões, à sinalização e avisos, porventura existentes, e bem assim ás indicações dos agentes ferroviários em serviço (indicações estas que, conforme resulta da matéria de facto provada e a que já supra nos referimos, até tiveram lugar (vide nºs 31 a 35).

Improcedem assim, também nesta parte, as conclusões recursórias.

           

IV - Quanto à inexistência de culpa da autora recorrente:

Conforme se alcança do acórdão recorrido, aliás na linha da 1ª instância, a Relação considerou que o acidente em causa é da inteira responsabilidade/culpa da autora recorrente – entendimento este do qual esta discorda.

E fundamenta tal posição no facto dado como provado sob o nº 9 (“Também não existe no trajeto dessa passagem qualquer sinal luminoso ou sinal sonoro específico de aviso de passagem de comboios, indicativo de proibição de atravessamento ou avisador da aproximação de qualquer comboio, relativamente a qualquer das linhas férreas aí existentes, sem prejuízo da existência da sinalização sonora que permite os avisos acústicos mencionados em 31”).

Todavia, sem razão, na medida em que, conforme supra expendemos, as rés não estavam obrigadas a adotar outros avisos ou sinais para além daquele que tiveram lugar.

E daí que se deva ter por afastado qualquer grau de culpa das rés.

Aliás não se vislumbra em que medida é que seriam necessário quaisquer sinais sonoros ou avisos passagem de comboios no trajeto da passagem em questão para além da sinalização sonora que foi dada como provada, na medida em que qualquer pessoa (e in casu a autora) que fizesse a travessia em questão sabia ou devia saber que a qualquer momento podia haver lugar à passagem de comboios.

E o certo é que a aproximação do comboio interveniente no acidente foi devidamente sinalizada à autora, que devia ir atenta e proceder na respetiva conformidade, em ordem a evitar o acidente – o que, manifestamente, não sucedeu.

Assim, inteiramente de acordo com o entendimento de ambas as instâncias, haveremos de concluir no sentido de que o acidente em causa nos autos ocorreu única e exclusivamente por culpa da autora. Foi ela a única responsável pela produção do acidente.

E, provada a culpa (exclusiva) da autora, afastada ficam as (subsidiariamente) invocadas concorrência de culpas ou responsabilidade pelo risco.

Neste sentido, vide acórdão do STJ de 25.11.2010 (proc. nº 896/06.2TBOVR.P1.S1, in www.dgsi.pt):

“I - A existência de um buraco num muro, que existe para resguardar a linha de caminho de ferro, numa estação de comboios, é condição do acidente em que uma pessoa que atravessava a linham para se dirigir a essa abertura foi colhida.

II - No entanto, tendo tal pessoa atravessado a mesma linha férrea sem tomar qualquer precaução e ignorando os avisos da eminente passagem de uma composição, a referida abertura do muro não é, no caso concreto, causa adequada do acidente.

 III - Não pode, por isso, a responsabilidade da empresa rodoviária concorrer com a responsabilidade da própria vítima na produção do evento danoso.”

E, ainda o acórdão da Relação do Porto de 16.01.2016 (proc. nº 630/15.6T8AVR.P1, igualmente in www.dgsi.pt):

“IV - As locomotivas ferroviárias gozam de prioridade absoluta nas passagens de nível e, por maioria de razão, nas estações sem paragem, bastando ao maquinista observar os princípios gerais de diligência exigíveis.

V - Não existe culpa, efetiva ou presumida, do maquinista quando circula à velocidade regulamentar, com os faróis acesos, assinala a sua aproximação a uma estação sem paragem com o sinal sonoro e frena a locomotiva logo que avista alguém na linha.

VI - Uma pessoa que atravessa uma via férrea em desrespeito de normas regulamentares, contra os avisos sonoros e as indicações dos agentes ferroviários, sem se assegurar da inexistência de perigo, com auriculares colocados e distraído, sem tomar atenção à aproximação de um comboio sem paragem, ainda que se encontre numa passadeira própria para efectuar o atravessamento, é a responsável pela eclosão do acidente.

VII - A atribuição da culpa exclusiva ao lesado exclui a responsabilidade pelo risco, prevista no n.º 1 do art.º 503.º do Código Civil, nos termos do art.º 505.º deste mesmo Código.

Subscrevemos assim inteiramente o que no acórdão recorrido se expendeu neste sentido:

“No caso em apreço está em causa o atravessamento no âmbito de uma estação, mas já não o atravessamento de uma passagem de nível. Apesar daquele atravessamento na Estação da ... estar essencialmente destinado para situações de necessidade com vista à utilização de comboios ou de instalações concessionadas, ou ainda para a realização de operações de transporte estritamente nos locais próprios para o efeito, não existe qualquer sinal ou vedação a indicar, expressa ou implicitamente, essa proibição de acesso. No entanto, resulta igualmente dos factos provados que o acidente ferroviário em que a A. foi interveniente foi da sua inteira responsabilidade, como decorre da factualidade descrita de 15 a 21, bem como de 28 a 36 dos factos provados. E isto porque a A. não se apercebeu do comboio circulante no sentido Sul-Norte, aproximando-se da faixa amarela existente no solo, motivo pela qual foi projetada por esse comboio. Aliás e como consta dos factos provados “A Autora entrou no percurso de acesso ao atravessamento apressadamente, olhando para o chão, sem prestar atenção à circulação dos comboios” (29) e também “não parou junto à linha amarela existente na plataforma que separa o eixo das linhas férreas” (30), ignorando os avisos da entrada dos comboios (31, 32, 33), assim como os demais avisos que lhe diretamente dirigidos, mediante um silvo prolongado proveniente de um assobio, como de gritos a dizer “Olhe o comboio” (34, 35). Havendo culpa por parte da mesma, toda a responsabilidade objectiva e a presunção de culpas anteriormente mencionadas por parte das RR. ficam afastadas.

Improcedem assim igualmente nesta parte as conclusões recursórias.

V- Quanto às demais questões:

Trata-se de questões cuja apreciação fica de todo prejudicada face à solução dada à questão de que acabámos de tratar.

VI - Termos em que se acorda em negar a revista e em confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

                                    Lx., 20.09.2020

(Nos termos e para os efeitos do artigo 15º-A do DL nº 10-A/2020, de 13 de março, aditado pelo DL nº 20/2020, de 1 de maio, o Relator, que assina eletronicamente, declara que os Exmos. Conselheiros Adjuntos, abaixo indicados, têm voto de conformidade e não assinam o presente acórdão por não o poderem fazer pelo facto de a sessão, dada atual situação pandémica, ter sido realizada por videoconferência).

Acácio das Neves (Relator)

 Fernando Samões (1º Adjunto)

  Maria João Vaz Tomé (2ª Adjunta).