Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
944/16.8T8VRL.G1.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
BEM IMÓVEL
DIREITO DE PROPRIEDADE
UNIÃO DE FACTO
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
CRÉDITO
DIREITO DE RETENÇÃO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Data do Acordão: 06/27/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL / DISPOSIÇÕES E PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / REVISTA EXCEPCIONAL.
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA / GARANTIAS ESPECIAIS DAS OBRIGAÇÕES / DIREITO DE RETENÇÃO.
Doutrina:
- Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10.ª ed., p. 491 e ss.;
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10.ª ed., p. 480 e ss.;
- Cristina Dias refere, Dissolução da união de facto, CDP 11, p. 77 e 79;
- F. Brito Pereira Coelho, Dissolução da união de facto e enriquecimento sem causa, RLJ 145, p. 18, 20, 113, 116, 117 e ss.;e
- J. Duarte Pinheiro, O Direito de Família Contemporâneo, 3.ª ed., p. 732;
- Júlio Gomes, O enriquecimento sem causa e a união de facto, CDP 58, p. 5 e 16;
- Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 11.ª ed., p. 371 e ss.;
- Pereira Coelho e Guilherme Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol. I, 5.ª ed., p. 82.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 5.º, N.º 2, ALÍNEA B), 662.º, N.º 2, ALÍNEA B) E 672.º, N.º 1, ALÍNEAS A) E B).
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 473.º, N.º 1 E 2 E 754.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 36.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 20-03-2014, PROCESSO N.º 2152/09;
- DE 03-11-2016, PROCESSO N.º 390/09;
- DE 24-03-2017, PROCESSO N.º 1769/12;
- DE 24-10-2017, PROCESSO N.º 3712/15, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 11-04-2019, PROCESSO N.º 219/14, IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DO PORTO:

- DE 04-02-2016.
Sumário :
I. Para além de pontuais normas de protecção, próprias de diversas áreas (trabalho, fiscal, funcionalismo público e segurança social), o regime legal nada prevê sobre as relações patrimoniais entre os membros da união de facto: não existe um regime de bens, nem têm aplicação as regras que disciplinam os efeitos patrimoniais do casamento, independente do regime de bens – administração de bens, dívidas, liquidação e partilha.

II. Assim, afastada a possibilidade de aplicação analógica das normas reguladoras das relações patrimoniais do casamento e nada tendo sido acordado entre os membros da união de facto (através dos designados contratos de coabitação), as relações patrimoniais entre estes ficam sujeitas ao regime geral das relações obrigacionais e reais.

III. Não sendo viáveis, perante o circunstancialismo fáctico provado, outras soluções jurídicas (v.g., sociedade de facto, compropriedade, contrato de trabalho), resta, para resolver os problemas patrimoniais causados pela ruptura da união de facto, o recurso ao enriquecimento sem causa.

IV. Em casos como o dos autos, em que a vivência em comum se prolongou por mais de 20 anos, é legítimo presumir, como fez a Relação, que a contribuição do réu para as obras efectuadas no imóvel da autora, teve por pressuposto a manutenção da vida em comum (era aí que estava instalada a casa de morada de família, tendo as obras por finalidade melhorar as condições de habitabilidade, que eram precárias).

V. Os valores despendidos por cada um dos membros da união de facto, na contribuição para as despesas e encargos normais e correntes da vida doméstica, mesmo que haja diferença entre os valores suportados por cada um deles, não são restituíveis, representando o cumprimento de obrigações naturais.

VI. Esses contributos de cada um dos membros da união de facto devem ser avaliados globalmente, no conjunto das relações mantidas entre eles.

VII. No caso, a valorização do património da autora com as obras realizadas, na parte suportada pelo réu, é integralmente neutralizada, senão mesmo superada, pelas vantagens patrimoniais alcançadas pelo réu, decorrentes da poupança de despesas, designadamente com o trabalho doméstico efectuado pela autora, e por ter habitado, sem qualquer custo, no imóvel da autora durante cerca de 23 anos.

VIII. Nesta situação, pode, pois, concluir-se que não se verificam os primeiros requisitos do enriquecimento sem causa – o enriquecimento da autora à custa do empobrecimento do réu.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

AA instaurou a presente acção declarativa com processo comum contra BB.

Pediu a condenação do réu a:

a- reconhecer o direito de propriedade daquela sobre a totalidade do imóvel identificado no artigo 3º da petição inicial;

b- a abandonar tal imóvel, restituindo-o à Autora, livre de pessoas, incluindo o próprio réu, e de coisas que sejam propriedade daquele; e

c- a pagar-lhe até que tal restituição se verifique, a importância de dez euros diários.

Como fundamento, alegou que é exclusiva proprietária do prédio urbano que identifica, que adveio à sua posse por aquisição através de doação e que se mostra registado a seu favor; 

O réu, sem que para isso disponha de qualquer título legal, vem ocupando uma parte do imóvel em causa, sem autorização e contra a vontade desta.

 

O réu contestou, defendendo-se por excepção e por impugnação.

Invocou o enriquecimento sem causa da autora, com quem viveu em união de facto, pretendendo o reembolso da quantia que despendeu nas obras realizadas naquele imóvel, para o tornar habitável, e, bem assim, o valor de valorização deste;

Invocou o direito de retenção sobre aquele imóvel enquanto a autora não o reembolsar da quantia despendida e do valor de valorização do imóvel.

No mais, impugnou parte da factualidade aduzida pela autora.

Concluiu pela improcedência da acção.

E pediu em reconvenção que se:

a) declare judicialmente a união de facto entre a autora e o réu;

b) condene a autora a restituir e pagar ao réu o valor total de € 54.980,00, acrescido de juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral e efectivo pagamento;

c) declare que o Réu goza do direito de retenção do imóvel, enquanto não for pago do crédito que detém sobre a Autora, o que esta deve ser condenada a reconhecer.

A Autora replicou, invocando a ineptidão da reconvenção por falta de causa de pedir e arguiu a excepção de prescrição do direito que o réu vem exercer nos autos, com fundamento no enriquecimento sem causa;

Impugnou parte da factualidade alegada pelo réu e invocou, por sua vez, que o Réu é que está enriquecido à custa daquela, quer por ter vivido gratuitamente no imóvel em causa ao longo de anos, quer por ter beneficiado dos trabalhos domésticos prestados pela Autora.

Concluiu pela improcedência do pedido reconvencional e como na petição inicial.

Foi admitida a reconvenção.

No saneador, foi julgada improcedente a ineptidão da reconvenção, relegando-se para a sentença final o conhecimento da excepção da prescrição.

Após a realização do julgamento, foi proferida sentença com este dispositivo:

1- Julgo a presente acção parcialmente procedente e, consequentemente:

a) Condeno o réu a reconhecer o direito de propriedade da autora sobre a totalidade do imóvel identificado no artigo 3º da petição inicial. 

b) Condeno o réu a abandonar tal imóvel, restituindo-o à autora, livre de pessoas, incluindo o próprio réu, e de coisas que sejam propriedade dele réu, com a ressalva de que essa restituição apenas terá que ter lugar quando a autora pagar ao réu a quantia fixada na reconvenção.

c) Condeno o réu a pagar à autora, até que tal restituição se verifique, a importância de quatro euros diários, a contar do dia seguinte ao do pagamento pela autora da quantia fixada na decisão da reconvenção.

d) Absolvo o réu do demais peticionado.

2- Julgo também apenas parcialmente procedente a reconvenção, pelo que:

a) Declaro judicialmente a união de facto entre a autora e o réu.

b) Condeno a autora a restituir e pagar ao réu o valor total de € 11.000,00 (onze mil euros), acrescido de juros de mora à taxa legal, desde a notificação da reconvenção até integral e efectivo pagamento.

c) Declaro que o réu goza do direito de retenção do imóvel, enquanto não for pago do crédito sobre a autora, o que condeno a autora a reconhecer.

3- Custas da acção a cargo de autora e réu, na proporção de ¼ e ¾, respectivamente, e da reconvenção a cargo do reconvinte e da reconvinda, na proporção de metade para cada um.

Discordando desta decisão, a autora interpôs recurso de apelação, que a Relação julgou improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Ainda inconformada, a autora veio pedir revista excepcional, que foi admitida, tendo formulado as seguintes conclusões:

(…)

18. Padecem a sentença de 1ª instância e o acórdão sob recurso, que a confirmou, de erros de julgamento, consistentes em erros de direito, alguns dos quais justificam, por si só, isto é, mantendo-se a matéria de facto, tal como ela foi fixada na sentença de 1ª instância, e igualmente no acórdão sob recurso, a anulação da parte desfavorável à recorrente da sentença de 1ª instância, igualmente do acórdão que confirmou tal sentença, conduzindo os outros a uma alteração dessas duas decisões.

19. Erros estes que são fundamentalmente quatro, que, já de seguida, se vão desenvolver e que consistem na errada aplicação (1) do enriquecimento sem causa, (2) da prescrição, (3) do direito de retenção e (4) da repartição das custas da reconvenção.

20. Na verdade, desde logo, refira-se, como se refere, que a Meritíssima Juíza de 1ª instância, bem como os Exmos. Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães, para condenarem a autora naquilo em que a condenaram, maxime no pagamento ao réu da importância de 11.000,00 euros, acrescida dos respetivos juros, fundaram-se no instituto do enriquecimento sem causa, previsto e regulado nos artigos 473.° a 482.°, todos do CC, figura esta que exige a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: (1) a existência de um enriquecimento, (2) a obtenção desse enriquecimento à custa de outrem, (3) e a falta de causa justificativa para ele.

21. Sendo certo que, no caso ajuizado, e mesmo dando de barato, sem contudo conceder que assim tenha sido, que, dos três pressupostos do enriquecimento sem causa atrás referidos, ficou provado que se verificaram os dois primeiros, ou seja, que a autora se enriqueceu à custa do réu, em 11.000,00 euros, o certo é que, para haver lugar ao enriquecimento sem causa, mister era também que o empobrecido, isto é, no caso o réu, provasse que efetuou a prestação, cuja repetição pretende, em função de uma causa, que aqui era a continuação e a subsistência da vida em comum, com quem ele esteve unido de facto, ou seja, a autora, e que essa causa cessou.

22. Ora, no caso sub iudicio, muito embora conste, como consta, dos factos provados, que a autora e o réu viveram, durante muitos anos, em união de facto, e que essa união de facto cessou em maio de 2013, de tais factos provados não consta, minimamente que seja, que o réu tenha pago os 11.000,00 euros em causa nestes autos, atinentes a obras realizadas no imóvel, propriedade da autora, onde ambos viviam em união de facto, no pressuposto, entretanto desaparecido, da continuação e subsistência da união de facto, que teve com a autora.

23. Não consta, nem, em boa verdade, podia constar, não só porque sobre esse facto não recaiu qualquer prova, a qual, e sendo esse facto, como é, constitutivo do direito do réu, a este incumbia (artigo 342.°-1, do CC), mas também porque ele não foi sequer alegado, alegação esta que também incumbia ao réu (artigo 5.°-1, do CPC).

24. Falta de alegação do réu essa que sempre seria impeditiva que esse facto pudesse ser levado em consideração nestes autos, ainda que a existência dele estivesse, que não está, nos mesmos autos provada (artigo 5.°-2, do CPC).

25. Nunca podendo pois o facto em causa, ou seja, ter o réu pago os 11.000,00 euros em causa, no pressuposto, que entretanto desapareceu, da continuação e subsistência da união de facto, que teve com a autora, ainda que ele estivesse, que não está, provado nos autos, ser, por falta da respetiva alegação, tomado nos mesmos autos, em consideração, por a isso se opor, como a isso se opõe, o artigo 5.°-2, do CPC.

26. E, na ausência desse pressuposto do enriquecimento sem causa, não pode o mesmo, e ainda que se verificassem, que não se verificam, os restantes dois pressupostos da figura jurídica em questão, ser aplicado no âmbito destes autos, nem, em consequência, ter sido, como foi, a autora condenada a pagar ao réu a importância de 11.000,00 euros, naquilo que constitui o primeiro erro de direito de que sofre a sentença apelada, e o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que a confirmou, erro esse que deverá levar à anulação desse acórdão (artigo 639.°-1, do CPC).

27. De qualquer forma, mesmo que no caso em análise se verificassem, que não se verificam, os três atrás referidos pressupostos do enriquecimento sem causa, por parte da autora à custa do réu, o certo é que o        direito do réu a obter a restituição da importância, com que a autora, à custa dele, se teria, na hipótese teórica e dialética colocada, enriquecido, e fosse tal importância, a de 11.000,00 euros, que consta da sentença apelada, fosse ela a de 54.980,00 euros, peticionada na reconvenção, já teria prescrito, quando a reconvenção foi apresentada em tribunal no dia 11 de julho de 2016.

  28. E isto, porque tal prescrição, é, nos termos do artigo 482.°, do CC, de 3 anos, a contar da data em que o credor, no caso o réu, teve conhecimento do direito que lhe compete, e da pessoa do responsável, conhecimento esse que, no caso em análise, o réu teve, não quando foi, em 09 de junho de 2016, citado para a presente ação, como se pretende na sentença sob recurso, e no acórdão que a confirmou, naquilo que constitui o segundo erro de direito de ambos, mas sim quando cessou a união de facto, o que sucedeu, como resulta dos factos provados, em 9 maio de 2013, ou seja, mais de 3 anos antes, do dia 11 de julho de 2016, que, como atrás se referiu já, foi aquele em que o réu, através da reconvenção que deduziu, exercitou em juízo o direito que se arrogou ter, à restituição pelo enriquecimento sem causa em questão.

29. Tendo tal prescrição sido na réplica tempestivamente invocada pela autora.

30. De qualquer forma, ainda que o réu tivesse, que não tem, direito a receber, da autora, a importância de 11.000,00 euros, que a sentença sob recurso condenou esta a pagar àquele, e que esse direito não estivesse, como está prescrito, nunca poderia gozar ele réu, do direito de retenção sobre o imóvel em questão neste processo.

31. E isto porque, por um lado, esse direito de retenção não se integra no elenco dos casos especiais de direito de retenção, elenco esse constante, de uma forma taxativa ou fechada, do artigo 755.°, do CC, e, por outro lado, fenecem a tal direito de retenção, invocado pelo réu, os pressupostos gerais da existência do mesmo direito de retenção, que constam do artigo 754.°, do mesmo CC.

32. Fenecimento esse que decorre, em primeiro lugar, porque, ainda que o crédito invocado pelo réu existisse, que não existe, ele não resultaria de despesas feitas por causa da coisa em causa, isto é, do imóvel que tem vindo a ser referido, pois que, quem teve essas despesas, não foi o réu, mas sim o empreiteiro, que levou a cabo as obras em questão, pelo que o direito de retenção, a existir, apenas a ele empreiteiro caberia.

33. Depois, e em segundo lugar, porque o réu não está obrigado a entregar nenhuma coisa, no caso o imóvel em questão, à autora, pois que a autora já está, e desde há muito anos, na posse de tal imóvel, e na qualidade, que ela tem de única proprietária dele, pois que, aquilo a que o réu está obrigado, é a abandonar o imóvel, juntamente com as coisas dele réu.

34. Aliás não seria aceitável configurar-se um direito de retenção de um imóvel, que permitisse que o retentor pudesse, ou tivesse que compartilhar uma casa de habitação, designadamente diversos compartimentos e utensílios dela, nomeadamente a cozinha e o respetivo equipamento e a casa de banho, e, já agora, porque não, se outro não houvesse, o próprio quarto de dormir, ou até, talvez, mesmo a cama, com a dona da mesma casa, com quem está incompatibilizado.

35. Constituindo pois o terceiro erro da sentença sob recurso, e do acórdão que a confirmou, o consistente em neles ter sido, como foi, declarado que o réu gozava do direito de retenção sobre o imóvel que tem vindo a ser referido, até que a autora lhe pague os 11.000,00 euros, que a mesma sentença, e o acórdão confirmatório dela, a condenou a pagar ao réu, erro esse suscetível não de anular a parte desfavorável da sentença de 1ª instância, e o acórdão que a confirmou, mas sim de levar a que dessas duas decisões jurisdicionais seja retirada a parte que reconheceu ao réu o direito de retenção em questão.

36. Traduzindo-se o quarto erro da sentença sob recurso, o que decorre dela, ao contrário do determinado no artigo 527.°, do CPC, ter distribuído, como distribuiu, as custas da reconvenção, em partes iguais entre o réu e a autora, quando, o decaimento do autor, que viu reduzida a pretensão reconvencional dele, de 54.980,00 euros, para 11.000,00 euros, foi quase 5 vezes maior do que o da autora, que defendia nada ter a pagar, e foi condenada ao pagamento de 11.000,00 euros, não permitindo também este quarto erro à anulação da parte desfavorável da sentença de 1ª instância em questão, e do acórdão confirmatório dela, mas apenas alteração dessas duas decisões no que tange à condenação em custas.

37. Tendo pois a sentença sob recurso violado, como violou, diversas disposições legais, designadamente, os artigos 342.°-1, 473.°, 482.° e 754.°, todos do CC, e 5.° e 527.°, do 4 CPC.

38. Devendo por isso, ou seja, por erros de julgamento, que foram erros de direito, que se traduziram, designadamente, na violação das normas legais atrás referidas, e muito embora sem perder de vista o maior respeito e a maior consideração, merecidos, devidos e tidos, pelos Exmos. Senhores Doutores Juízes Desembargadores que prolataram, no caso vertente, ser a parte sob recurso da sentença em causa, bem como o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que a confirmou, posto que mui doutos, anulados ou alterados, tal como atrás ficou preconizado (artigo 639.°-1, do CPC).

39. Prolatando-se, em substituição do douto acórdão recorrido, não menos douto acórdão, que considere a ação em questão totalmente procedente, e a reconvenção em causa completamente improcedente, ou então, subsidiariamente, que altere o acórdão sob recurso, no sentido de que o réu não goza do direito de retenção sobre o imóvel em causa nestes autos, e que reparta, de uma forma diferente, daquela pela qual elas foram, na sentença de 1ª instância, e do acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que a confirmou, repartidas, as custas, e de uma forma mais favorável à recorrente.

O réu contra-alegou, concluindo pela improcedência do recurso.

Cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

- Se estão preenchidos os requisitos do enriquecimento sem causa;

- Prescrição do direito exercido pelo réu;

- Se se verificam os requisitos do direito de retenção.

Importa referir que a recorrente suscitou ainda uma outra questão, respeitante à condenação em custas relativas à reconvenção.

Todavia, esta questão não assume aqui relevo autónomo; por duas razões:

Em primeiro lugar, é evidente que essa questão extravasa o âmbito em que foi admitida a revista excepcional. Na verdade, para este efeito, foram consideradas apenas as várias questões colocadas quanto ao mérito, elencadas no douto Acórdão da Formação de fls. 366 e segs, todas elas respeitantes aos requisitos do enriquecimento sem causa e deste derivadas (prescrição e direito de retenção).

Foi a estas questões, enquadradas numa situação de união de facto, que foi atribuída relevância jurídica e social, aptas a fundamentar o recurso de revista excepcional, nos termos do art. 672º, nº 1, als. a) e b), do CPC.

Por outro lado, a condenação em custas, decidida no acórdão recorrido, estará sempre dependente da decisão que venha a ser proferida quanto ao mérito.

Quer dizer, a manter-se a decisão de mérito, aquela condenação deve manter-se intocada, por não ser abrangida directamente pelo recurso de revista excepcional. Sendo aquela decisão de mérito alterada, a condenação em custas poderá ser modificada, mas em conformidade e em decorrência de tal alteração (não por força de uma impugnação autónoma).

III.

Vem provada a seguinte factualidade:

A- No dia 16 de Abril de 2012, através de escritura notarial, nessa data lavrada, no Cartório Notarial da notária CC, sito na Quinta da ..., lote 1, loja 2, ..., DD declarou que, por conta da quota disponível, com reserva de usufruto a favor da doadora, doa à sua filha AA, que declarou aceitar a doação, o seguinte prédio:

Prédio urbano composto de casa de dois pisos, sito em ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na respectiva matriz sob o artigo ..., com o valor patrimonial actual de 1.860,00 euros, correspondente à raiz e usufruto, respectivamente, 1.581,00 euros e 279,00 euros, e o atribuído de 1.581,00 euros, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número dois mil oitocentos e dez da dita freguesia de ..., inscrito a favor da doadora pela inscrição AP, cinco mil cento e vinte e cinco de seis de Julho de dois mil e nove.

B- A doadora era, aquando da celebração do contrato de doação, a única proprietária do imóvel objecto do contrato, por o ter adquirido por sucessão, por morte de seus pais, EE e FF, os quais até à data da sua morte, estiveram nas posse desse imóvel, durante mais de 20 anos, à vista de todos e sem oposição, com a convicção de que não lesavam direito de outrem.

C- No dia 16 de Outubro de 2013, faleceu a doadora DD.

D- A propriedade sobre o referido imóvel encontra-se registada no registo predial, a favor da autora, através da AP 414 de 2012/06/15.

E- O réu ocupa, sem autorização da autora e contra a vontade desta, uma parte do imóvel em questão.

F- A partir de 1990, o réu e a autora passaram a viver como se casados fossem partilhando cama, mesa e habitação.

G- E montaram a casa de morada de família no imóvel em causa nos autos, com um projecto de vida e economia comuns, tanto que fruto da vivência entre o réu e a autora, nasceu uma filha de ambos.

H- A autora e o réu, ao viverem em comum, quiseram constituir uma economia doméstica conjunta, para a qual participaram cada um com os seus proventos, contribuindo cada um deles para essa economia com os respectivos trabalhos e rendimentos, suportando ambos as despesas inerentes.

I- A autora era doméstica e prestava serviços esporádicos para terceiros.

J- O réu também sempre trabalhou.

K- Quando começaram a viver em comum, a autora e o réu foram viver para o imóvel em causa, que tinha fracas condições de habitabilidade.

L- Esse imóvel tinha um valor estimado correspondente a € 5.500,00 (cinco mil e quinhentos euros). 

M- O mesmo imóvel foi objecto de obras de reparação, conservação e ampliação, com a construção de mais um andar e uma casa de banho no piso novo.

N- As obras foram feitas com o consentimento da autora e com o esforço comum de autora e réu.

O- As obras executadas aumentaram o valor do imóvel, na medida do valor das mesmas obras, que foi de € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros).

P- O réu contribuiu com cerca de metade do valor das obras realizadas, concretamente, com o valor de, pelo menos, € 11.000,00 (onze mil euros).

Q- A autora e o réu desentenderam-se, tendo cessado a vida em comum, em Maio de 2013.

R- O imóvel tem o valor actual estimado de € 30.500,00 (trinta mil e quinhentos euros).

S- A mãe da autora, a autora, o réu e a filha de ambos viveram no imóvel em causa, durante mais de vinte anos, até à realização das obras referidas, nos anos de 2011 ou 2012.

T- O réu habita o imóvel em questão, desde 1990, nunca tendo pago qualquer quantia a título de compensação ou renda pela ocupação.

U- Foi sempre a autora, ao longo dos mais de vinte anos de vida em comum com o réu, quem tratou de todos os serviços domésticos, nomeadamente confeccionando as refeições, tratando das roupas, limpando a casa e cuidando da filha.

Com interesse para a decisão, não se provou que:

1- O imóvel em causa não tinha condições de habitabilidade, antes das obras;

2- O valor do imóvel, antes das obras, era de quatro mil escudos, correspondente a vinte euros; 

3- O réu, com dinheiro exclusivamente seu, custeou todas as obras feitas na casa, no valor de vinte e cinco mil euros.

4- O réu não tem outra habitação para onde possa ir morar.

5- O valor do imóvel, antes das obras, era de 30.000,00 euros;

6- O valor actual do imóvel é de € 57.500,00;

7- O réu doou à autora o valor de € 10.000,00, com que contribuiu para o pagamento das obras no imóvel em causa.

IV.

O réu pretende que lhe sejam restituídas as importâncias que despendeu nas obras efectuadas no imóvel referido nestes autos, pertencente à autora, invocando o instituto do enriquecimento sem causa.

Ficou provado que a autora e o réu viveram em união de facto desde 1990, durante 23 anos, habitando o referido imóvel, no qual procederam a obras de reparação e ampliação, tendo o réu contribuído em cerca de metade do custo dessas obras, ou seja, 11.000 euros. Autora e réu cessaram a vida em comum em Maio de 2013, continuando, porém, o réu a habitar o imóvel contra vontade da autora.

O art. 1º, nº 2, da Lei 7/2001, de 11/5, na redacção dada pela Lei 23/2010, de 30/8, define união de facto como a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.

Podendo ser considerada uma relação jurídica familiar, concretizando um direito, que é constitucionalmente garantido – o direito de constituir família (art. 36º, nº 1, da CRP) – tal não significa que deva ser concedido aos unidos de facto um tratamento igual ao que é dispensado aos cônjuges.

Casamento e união de facto são situações materialmente diferentes, não se justificando, nem havendo fundamento legal para estender a esta situação de facto as normas que disciplinam o casamento e respectivos efeitos[2].

É inegável, porém, que a união de facto passou a ser uma opção de vida de muitos casais, em detrimento do casamento, permitindo, tal como este, a realização pessoal dos seus membros. Acompanhando esta evolução, o direito tem consolidado o reconhecimento dessa realidade social e alargado os seus efeitos.

Reconhece-se, apesar disso, que o regime legal da união de facto tem "carácter fragmentário e disperso", embora não "necessariamente lacunoso", por ser de admitir ter sido intenção do legislador conferir efeitos limitados às uniões de facto[3].

Com efeito, para além de pontuais normas de protecção, próprias de diversas áreas (trabalho, fiscal, funcionalismo público e segurança social), o regime legal nada prevê sobre as relações patrimoniais entre os membros da união de facto: não existe um regime de bens, nem têm aplicação as regras que disciplinam os efeitos patrimoniais do casamento, independente do regime de bens – administração de bens, dívidas, liquidação e partilha.

Assim, afastada a possibilidade de aplicação analógica das normas reguladoras das relações patrimoniais do casamento e nada tendo sido acordado entre os membros da união de facto (através dos designados contratos de coabitação), as relações patrimoniais entre estes ficam sujeitas ao regime geral das relações obrigacionais e reais[4].

No caso, como se disse, o réu pretende que lhe sejam restituídas as importâncias despendidas nas obras efectuadas, que valorizaram o imóvel da autora, enriquecendo o património deste, invocando o instituto do enriquecimento sem causa.

Este enquadramento jurídico foi aceite no acórdão recorrido e não foi posto em causa neste recurso.

Não sendo viáveis, perante o circunstancialismo fáctico provado, outras soluções jurídicas[5], resta, para resolver os problemas patrimoniais causados pela ruptura da união de facto, o recurso ao enriquecimento sem causa, como tem sido entendido ou aceite, quer pela doutrina[6], quer pela jurisprudência[7].

O enriquecimento sem causa pressupõe a verificação cumulativa dos seguintes requisitos (art. 473º, nº 1, do CC): a existência de um enriquecimento; que este enriquecimento seja obtido à custa de outrem; a falta de causa justificativa para tal enriquecimento[8].

O enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, que pode traduzir-se quer no aumento do activo, quer numa diminuição do passivo, quer ainda numa poupança de despesas.

A essa vantagem patrimonial corresponde, em regra, a perda ou empobrecimento de outrem, existindo uma correlação entre aquela e este: o enriquecimento verifica-se à custa de outrem.

O enriquecimento carece de causa justificativa "quando o direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou facto que, de acordo com os princípios jurídicos, justifique a deslocação patrimonial"[9].

É o que se passa, em especial, com o que foi indevidamente recebido (conditio indebiti), o que foi recebido por virtude de causa que deixou de existir (conditio ob causam finitam) ou em vista de um efeito que não se verificou (conditio ob causam datorum) – art. 473º, nº 2, do CC.

No acórdão recorrido, muito bem fundamentado, afirmou-se a concluir:

"Naturalmente que com a dissolução da união de facto, a apelante ficou enriquecida no seu património na medida do contributo prestado pelo apelado para a execução daquelas obras, com o consequente empobrecimento deste último em igual medida, ou seja, onze mil euros.

Os encargos suportados pelo apelado com as referidas obras não consubstanciam indiscutivelmente encargos normais e correntes da vida familiar, posto que respeitam a obras de reparação, conservação e ampliação de uma casa.

O encargo suportado pelo apelado para a execução dessas obras tem como causa justificativa a união de facto, tanto assim que se tratou de encargos com obras de reparação, conservação e ampliação daquela que era a casa de morada de família dos conviventes, casa essa que dispunha de fracas condições de habitabilidade e assentou na decisão conjunta de ambos os conviventes de quererem constituir uma economia conjunta doméstica, para a qual participariam (e participaram) cada um com os seus proventos, contribuindo cada um deles para essa economia com os respetivos trabalhos e rendimentos, suportando ambos as inerentes despesas.

No entanto, dissolvida a união de facto em maio de 2013, e com ela o referido acordo dos conviventes de contribuírem para a economia doméstica conjunta, suportando ambos os inerentes encargos, é manifesto e não nos merece dúvidas, que a causa que justificou o contributo feito pelo apelado para a execução das referidas obras, desapareceu e com esse desaparecimento a apelante deixou de ter qualquer causa justificativa à luz do sistema jurídico para não restituir ao apelado os referidos onze mil euros que o mesmo despendeu e com o qual aquela viu enriquecido o seu património em detrimento do apelado.

Aqui chegados, impõe-se concluir encontrarem-se preenchidos os três pressupostos cumulativos do instituto do enriquecimento sem causa, pelo que nenhuma censura nos merece a sentença recorrida, ao condenar a apelante a restituir ao apelado a quantia de onze mil euros, acrescida de juros de mora, desde a data da notificação àquela da reconvenção, até integral e efetiva restituição, com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa.

Argumenta a apelante que assim não é, uma vez que para que se pudesse concluir pela existência do enriquecimento sem causa era necessário que o apelado tivesse alegado e provado que tinha contribuído para a execução daquelas obras no pressuposto da manutenção da vida em comum, o que, na sua perspetiva, não acontece, mas sem manifesta razão.

Na verdade, que o apelado contribuiu para as obras em referência no pressuposto da manutenção da vida em comum, resulta demonstrado do facto de se ter apurado que essas obras foram realizadas naquela que era a casa de morada de família do agregado familiar dos conviventes e, bem assim, de se ter provado que apelante e apelado, ao viverem em comum, quiserem constituir uma economia doméstica conjunta, para a qual participaram cada um com os seus proventos, contribuindo cada um deles para essa economia com os respetivos trabalhos e rendimentos, suportando ambos as despesas inerentes, o que é bem demonstrativo que o apelado contribuiu para aquelas obras no pressuposto da manutenção da união de facto.

Acresce precisar que, conforme se escreve no Ac. da RP. de 04/02/2016, «Os encargos periódicos de manutenção da casa, que são despesas normais e correntes próprias de quem vive, ainda que informalmente, uma comunhão de vida (união de facto), não podem fundar, por regra, uma pretensão de enriquecimento sem causa. Esta conclusão já não vale em relação aos bens que subsistem depois da cessação da união de facto. Sendo os pagamentos (para aquisição desses bens) feitos no âmbito de uma união de facto, quando esta deixa de existir deixa de haver a causa que os justificavam, presumindo-se por isso, daqueles factos, que eles foram feitos na pressuposição da manutenção da vida em comum (há pois uma presunção natural de não definitividade da atribuição (indiretamente) realizada pelo autor em favor da ré – uma presunção (natural) de condicionamento, no sentido em que a dita atribuição é querida como condicionada à própria subsistência da relação convivencial de união de facto (ainda que essa condições não seja explicitada)». (…)

Considerando, desde já, esta última questão abordada no acórdão recorrido, não parece que ofereça dúvidas a razoabilidade da conclusão a que chegou.

Com efeito, sobretudo em casos como este, em que a vivência em comum se prolongou por mais de 20 anos, é legítimo presumir, como fez a Relação, que a contribuição do réu para as obras efectuadas no imóvel da autora, teve por pressuposto a manutenção da vida em comum: era aí que estava e sempre esteve instalada a casa de morada da família, tendo as obras por finalidade melhorar as condições de habitabilidade do imóvel, que eram precárias.

Neste circunstancialismo, será de aceitar que não foi intenção do réu realizar uma doação a favor da autora, mas tão só a de contribuir para melhorar as condições em que habitavam com a filha, na convicção de que esta situação – a vivência em comum – se iria naturalmente manter.

Coloca-se aqui, todavia, um problema formal, invocado, aliás, pelo recorrente na revista: é que esse facto concreto – de que a contribuição do réu para as obras se verificou no pressuposto da subsistência da união de facto –, assim presumido, não foi alegado na contestação/reconvenção.

Trata-se de um facto novo, no sentido de não ter sido alegado pelas partes, e essencial, que pode ter-se como complementar daqueles que o réu havia alegado e que, tendo resultado da instrução e julgamento da causa, poderia ser considerado, nos termos do art. 5º, nº 2, al. b), do CPC.

Porém, como decorre desta norma, para que esse facto pudesse ser considerado, impunha-se que fosse cumprido previamente o contraditório em relação a tal aproveitamento.

Não tendo sido cumprido esse formalismo, a solução teria, em rigor, de passar pela anulação do julgamento, para que, ouvidas as partes sobre essa questão do aproveitamento do facto, este, se fosse caso disso, pudesse vir a ser aditado e considerado (art. 662º, nº 2, al. b), do CPC.

No caso, porém, essa solução não parece necessária: é que, procedendo a uma apreciação global do circunstancialismo provado, com destaque para a contribuição de cada um dos membros da união de facto para as ditas obras, o custo destas, a contribuição de cada um para a economia doméstica, o tempo de vivência em comum, a propriedade do imóvel, suscita reservas a conclusão a que se chegou sobre a verificação do primeiro requisito do instituto do enriquecimento sem causa, ou seja, o próprio enriquecimento da autora.

O enriquecimento da autora existe, aparentemente, e à custa do réu, se nos cingirmos à contribuição deste para as obras efectuadas em imóvel que não lhe pertencia, sendo propriedade da autora.

Estes factos, porém, não são, só por si, decisivos e os únicos que relevam.

Tem sido reconhecido, sem discrepância, que os valores despendidos por cada um dos membros da união de facto, na contribuição para as despesas e encargos normais e correntes da vida doméstica, mesmo que haja diferença entre os valores suportados por cada um deles, não são restituíveis, representando o cumprimento de obrigações naturais[10].

Para além de deverem ser apreciados em função das possibilidades de cada um, como refere. F. Brito Pereira Coelho, "o (des)equilíbrio entre os valores dos contributos dos dois sujeitos deve ser avaliado globalmente, no quadro da relação convivencial por inteiro – na qual se inscrevem «prestações» convivenciais de diversíssima natureza, tanto patrimoniais como pessoais, todas elas visando contribuir para uma comunhão de vida globalmente equilibrada ou harmoniosa, e cuja «compensação» se vai fazendo «naturalmente», também de forma global"[11].

A perspectiva correcta, como também sublinha Júlio Gomes, "consiste não em analisar uma ou outra deslocação patrimonial de forma isolada, mas o conjunto das relações entre os membros da união de facto"[12].

Foi esta a perspectiva adoptada no Acórdão do STJ de 20.03.2014, acima citado, na ponderação das despesas efectuadas por um dos membros da união de facto (autor) na aquisição de uma casa, que ficou propriedade da companheira (ré).

Ponderou-se, assim, no Acórdão que teria de levar-se em conta também que o autor, e não apenas a ré, residiu igualmente no imóvel enquanto a união de facto subsistiu. Por outro lado, teria de considerar-se que nos sete anos em que a união de facto perdurou, a ré efectuou todos os serviços domésticos (refeições, roupa, limpeza e arrumação da casa), auferindo também um salário na ordem dos 600 euros que foi canalizado para despesas pessoais e domésticas.

Concluiu-se, em suma, que terá sido o autor, não a ré, quem saiu beneficiado, pois aquilo que despendeu foi superado pelo que poupou, através da contribuição prestada pela ré, pelo que não poderia dizer-se que tinha ocorrido uma efectiva deslocação patrimonial em benefício da ré, à custa do autor.

Este Acórdão foi objecto de anotação bastante crítica, a que já acima se fez referência[13].

No aspecto que agora focamos, refere-se aí que, ainda que se registasse um equilíbrio entre as contribuições dos membros da união de facto, "o certo é que, agora que a união de facto se dissolveu, a ré fica com a propriedade do apartamento, e uma propriedade que não pagou – fica a dever definitivamente esse valor, valor de que o autor, pelo contrário, fica totalmente privado, apesar de haver pago uma porção substancial do preço".

Não obstante, acrescenta-se:

"É certo que as prestações pagas pelo autor são também encargos da vida em comum, na medida em que visam custear a habitação do casal. Nesta medida – na medida, digamos, do valor normal da habitação (o valor correspondente às rendas que normalmente seriam pagas durante o período de convivência) – concedemos que se tratará de encargos da vida em comum, sendo, por conseguinte, irrestituíveis. Mas, sendo também isso, tais prestações são mais do que isso. Para lá disso – para lá, como dissemos, do valor normal da habitação –, trata-se já de parcelas do preço da propriedade do apartamento. Parece, portanto, inquestionável que há, objectivamente, e nesta precisa medida, um enriquecimento da ré à custa do autor"[14].

Júlio Gomes[15] discorda desta análise, sublinhando que, nesse caso, não houve uma repartição equitativa das despesas correntes, uma vez que estas eram suportadas em grande medida pela ré, enquanto o autor investiu na aquisição e na conservação da casa.

Acrescenta que o enriquecimento de um – na poupança de despesas correntes, na não realização dos trabalhos domésticos e ter fruído durante alguns anos da habitação que ajudou a pagar – foi compensado e neutralizado pelo enriquecimento do outro – resultante do valor patrimonial do prédio que integra o seu património.

E, com interesse para o nosso caso, pergunta se, por exemplo, faz sentido que um membro da união de facto – que pagou parte do preço de uma fracção, pertencente ao outro, para nela instalarem a casa de morada da família e onde viveu  em comum durante 30 anos – venha agora alegar que o outro se enriqueceu, quando ele próprio fruiu da habitação durante todo esse período.

No caso ficou provado que:

- Autora e réu passaram, em 1990, a viver em comum, como se casados fossem, contribuindo ambos com os seus proventos para a economia doméstica;

- Instalaram a casa de morada da família no imóvel referido nos autos, propriedade da autora e nela vieram a realizar obras de reparação e ampliação, tendo o réu contribuído com 11.000 euros, cerca de metade do respectivo custo;

- O réu sempre trabalhou; a autor prestava serviços esporádicos para terceiros e foi sempre ela quem tratou de todos os serviços domésticos (refeições, roupa, limpeza) e cuidou da filha;

- O réu nunca pagou qualquer quantia por habitar na casa;

- Autora e réu cessaram a vida em comum em Maio de 2013, continuando o réu, contra vontade da autora, a ocupar parte do imóvel.

Lançando mão do critério que referimos dever ser adoptado – de os contributos de cada um dos membros da união de facto serem avaliados globalmente, no conjunto das relações mantidas entre eles –, parece-nos ser de concluir pela inexistência de qualquer enriquecimento da autora, obtido à custa do réu.

Também aqui, à semelhança do que se referiu para a hipótese analisada no Acórdão do STJ acima citado, a vantagem da autora – a valorização do seu património com as obras realizadas, na parte suportada pelo réu – é, a nosso ver, integralmente neutralizada, senão mesmo ultrapassada, pelas vantagens patrimoniais alcançadas pelo réu, decorrentes da poupança de despesas, designadamente com o trabalho doméstico efectuado pela autora, e por ter habitado, sem qualquer custo, no imóvel da autora durante cerca de 23 anos, a que acrescem mais 6 anos até este momento, desde a ruptura da união de facto.

Repare-se que na própria Anotação (crítica) atrás referida, se ressalva do entendimento aí preconizado – de que há enriquecimento de um à custa do outro, na medida do preço que este despendeu na aquisição da casa – o valor normal do uso da habitação, isto é, o valor correspondente às rendas que normalmente seriam pagas, por constituir um encargo da vida em comum e, como tal, irrestituível.

Portanto, mesmo na perspectiva deste Autor só o que excedesse esse valor normal da habitação relevaria para aferir do enriquecimento.

Ora, no caso destes autos, para além da poupança de despesas que a autora, com o seu trabalho, propiciou ao réu, não oferece dúvidas que o valor de que este beneficiou (cfr., desde logo, o valor fixado na sentença pela ocupação do imóvel), por habitar sem qualquer custo o imóvel no longo período de tempo em que nele viveu com a autora, compensa, ou supera mesmo, o valor que ele despendeu com o custo das obras.

Podemos, pois, concluir que não se verificam os primeiros requisitos do enriquecimento sem causa – o enriquecimento da autora à custa do empobrecimento do réu –, o que conduz à improcedência do pedido de restituição formulado em reconvenção.

Chegados a esta conclusão, inexistindo o crédito invocado pelo réu contra a autora, fica afastado o direito de retenção, alegado pelo réu para garantir esse crédito (art. 754º do CC).

Por outro lado, fica também prejudicado, obviamente, o conhecimento da questão da prescrição desse direito de crédito colocada neste recurso.

Ainda em consequência da improcedência do pedido de restituição, há necessidade de ajustar a decisão final (sentença), quanto a outros pedidos.

Assim:

- No ponto 1. b) – A condenação do réu na restituição do imóvel não fica dependente de qualquer ressalva ou condição (de pagamento da quantia fixada a título de enriquecimento);

- No ponto 1. c) – A condenação no pagamento da importância de quatro euros diários até à restituição do imóvel não fica dependente de qualquer pagamento a efectuar pela autora;

- No tocante às custas, importa referir que a autora não contestou o pedido de reconhecimento da situação de união de facto formulado na reconvenção.

V.

Em face do exposto, concede-se a revista, revogando-se o acórdão recorrido e, em parte, a sentença, nestes termos:

1. Julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência:

a) Reconhece-se o direito de propriedade da autora sobre a totalidade do imóvel identificado no artigo 3º da petição inicial; 

b) Condena-se o réu a abandonar tal imóvel, restituindo-o à autora, livre de pessoas, incluindo o próprio réu, e de coisas que sejam propriedade dele réu;

c) Condena-se o réu a pagar à autora, até que tal restituição se verifique, a importância de quatro euros diários;

d) Absolve-se o réu do demais peticionado.

2. Julga-se parcialmente procedente a reconvenção e assim:

a) Declara-se que a autora e o réu viveram em situação de união de facto;

b) Absolve-se a autora dos demais pedidos formulados pelo réu.

3. - Custas da acção a cargo da autora e do réu, na proporção de 1/6 e 5/6, respectivamente; as da reconvenção ficam a cargo do réu.

As custas dos recursos ficam a cargo do réu.

                                              Lisboa, 27 de junho de 2019

Pinto de Almeida (Relator)

José Rainho

Graça Amaral

________________________________
[1] Proc. nº 944/16.8T8VRL.G1.S2
F. Pinto de Almeida (R. 303)
Cons. José Rainho; Cons.ª Graça Amaral
[2] Cfr. Acórdãos do STJ de 24.10.2017 (Proc. 3712/15) e de 11.04.2019 (Proc. 219/14), acessíveis em www.dgsi.pt., como os demais acórdãos adiante citados.
[3] Neste sentido, Júlio Gomes, O enriquecimento sem causa e a união de facto, em CDP 58-5.
[4] Neste sentido Pereira Coelho e Guilherme Oliveira, Curso de Direito da Família, Vol. I, 5ª ed., 82.
[5] Cristina Dias refere, em geral, como possíveis a sociedade de facto e a compropriedade para a partilha de bens, e o contrato de trabalho e o enriquecimento sem causa para as prestações realizadas no lar – Dissolução da união de facto, em CDP 11-77.
[6] Cfr. todos os Autores acima citados; também, F. Brito Pereira Coelho, Dissolução da união de facto e enriquecimento sem causa, RLJ 145-113 e segs e J. Duarte Pinheiro, O Direito de Família Contemporâneo, 3ª ed., 732.
[7] Cfr., entre outros, os Acórdãos do STJ de 20.03.2014 (Proc 2152/09), de 03.11.2016 (Proc 390/09), de 24.03.2017 (Proc. 1769/12) e de 11.04.2019 (Proc. 219/14).
[8] Em geral, sobre estes requisitos, Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª ed., 480 e segs; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 10ª ed., 491 e segs; Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Vol. I, 11ª ed., 371 e segs.
[9] Cristina Dias, Ob. Cit., 79.
[10] Cfr. Júlio Gomes, Ob. Cit., 16; F. Brito Pereira Coelho, Ob. Cit., 116.
[11] Ob. Cit., 117.
[12] Ob. Cit., 18.
[13] F. Brito Pereira Coelho, Ob. Cit., 116 e segs.
[14] Sublinhado nosso.
[15] Ob. Cit., 20.