Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
98P566
Nº Convencional: JSTJ00036562
Relator: BRITO CÂMARA
Descritores: BURLA
BOA-FÉ
Nº do Documento: SJ199904140005663
Data do Acordão: 04/14/1999
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMÓNIO.
Legislação Nacional: CP82 ARTIGO 313 N1 ARTIGO 314 A.
CP95 ARTIGO 217 N1 ARTIGO 218 N2.
Sumário : I - O crime de burla previsto nos artigos 217, n. 1 e 218, n. 2, alínea a) do CP de 1995 e nos artigos 313, n. 1 e 314, alínea a) do CP de 1982 exige, para que possa ter-se por consumado, que o dolo por parte do executor do crime esteja presente, no espírito deste, no momento em que se determina o lesado à prática do acto que é prejudicial para o seu património donde que o que justifica a sanção penal é a pré-determinação do agente em prejudicar o aludido lesado usando de erro ou engano para lograr da parte deste a prática daquele acto.
II - Se a entrega da coisa ou a prática de um acto pelo lesado foi feita em consequência de acordo com o agente, estando este de boa fé, isto é, tendo ele o propósito de cumprir o acordado entre ambos, o não cumprimento posterior do acordado conduz tão somente a configurar um contrato não cumprido.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça os juízes que a constituem:
I
No Tribunal da Relação de Lisboa foi negado provimento aos recursos que os arguidos A e B tinham interposto do acórdão da 5. Vara Criminal de Lisboa.
Nesta Vara Criminal foram os arguidos condenados da seguinte forma:
O A em 3 (três) anos de prisão por co-autoria de um crime de burla dos artigos 313 e 314 alíneas b) e c) do Código Penal de 1982 e o B como co-autor deste crime na pena de 4 (quatro) anos de prisão para além da indemnização a liquidar em execução de sentença.
Do acórdão da Relação recorreram os arguidos para este Supremo Tribunal.
II
O A conclui nas suas alegações:
1) Em 17 de Janeiro de 1997 o ora recorrente deu entrada na Secção Central das 5. e 6. Varas Criminais de uma exposição que, pela sua sincera veracidade, teria influenciado a resposta aos quesitos de folhas
492 a 496 dos autos o que, por sua vez levaria o Tribunal da Relação a uma decisão diferente da tomada num sentido mais favorável ao recorrente.
2) De tal documento não consta nos autos qualquer referência, ordenando a sua integração nos autos ou o seu desentranhamento pelo que requer agora a sua junção e declaração de nulidade de todo o processado posteriormente à data da sua entrada na Secretaria do Tribunal, com as legais consequências para o recurso interposto pelo ora requerente no Tribunal da Relação de Lisboa - artigos 98, n. 1. e 99, do Código de
Processo Penal de 1929.
Se assim não se entender:
3) Dado que o ora recorrente só entrou em contacto com o arguido B quando este se lhe dirigiu no sentido de o ora recorrente lhe adquirir a moradia (vd. Acórdão da Relação) este não tem qualquer participação na obtenção das procurações com poderes especiais, astuciosamente obtidas ou não, que permitiram ao arguido C vender a moradia ao ora Recorrente,
4) Tendo mesmo contactado com os assistentes antes da escritura de compra e venda informando-os de que estava comprador da moradia, facto este que, por estranho que pareça não levou a qualquer actuação dos assistentes antes da realização da escritura de compra e venda no sentido de obterem, digo de obstarem à outorga da mesma, pelo que a conclusão do Tribunal Colectivo e da Relação de Lisboa no sentido de que o ora recorrente estava conluiado com o arguido B para enganar os assistentes constitui uma clara violação do princípio da presunção de inocência,
5) sendo ainda uma clara justificação o declarado no acórdão "sub judice" quando refere que "o erro ou engano astuciosamente provocado e engendrado pelo arguido B, foi comparticipado posteriormente pelo arguido A dado que estava em potencia "ab initio", a que lhe permite concluir que tal "noção aristotélica do real", invocada no acórdão da Relação, aplicável ao Direito Penal viola salvo melhor entendimento que a necessidade de um nexo de causalidade entre o facto (astucioso) e o agente (ora recorrente) quer o mais simples princípio da culpa, pelo que não é possível imputar ao ora recorrente a prática de qualquer crime, nomeadamente o de burla, sem violar gravemente os mais básicos princípios e normas do Direito Penal.
6) A isto acresce a inexistência de qualquer juízo, digo qualquer prejuízo patrimonial, elemento essencial para a verificação de um crime de burla, uma vez que os assistentes nunca se viram espoliados da moradia, tendo sempre permanecido na mesma,
7) obtendo uma sentença transitada em julgado onde se declara nula e de nenhum efeito a referida escritura ordenando-se o cancelamento de todos os registos efectuados após tal escritura, mas sendo o da recorrente alheio a tal facto - propositura de nova acção cível para cancelamento do último registo a favor de D - a sua imputação ao mesmo mais uma violação do princípio da culpa.
8) Também não existe qualquer enriquecimento ilegítimo do ora recorrente, verificando-se antes o dos assistentes pelo que com aquelas acções ficarão os assistentes com o bónus deste processo de 20.000 escudos, quantia em que o ora recorrente foi condenado a título de indemnização cível.
Deve assim o acórdão da Relação ser revogado.
II
A matéria que a Relação julgou provada é a seguinte:
1) O arguido B em 28 de Fevereiro de 1985 tomou conhecimento de um anúncio publicado num jornal onde se referia "Preciso urgente 150 contos, sobre a moradia, juros a combinar".
2) O mesmo arguido contactou então o E que mandara publicar o anúncio.
3) Concretizaram então, o seguinte negócio:
O B emprestaria ao E e mulher 120 contos em 13 de Março de 1985 e estes, até 15 de Junho do mesmo ano, pagar-lhe-iam 200 contos, dos quais 120 contos correspondia ao capital e 80 contos a título de juros remuneratórios.
4) O B exigiu ainda como garantia de pagamento que o E e a mulher elaborassem duas procurações irrevogáveis, a seu favor, com poderes para vender a moradia onde estes residiam.
5) O B entrou em contacto com o arguido A e, mutuamente combinados, de modo a auferir proventos a que sabiam não ter direitos, decidiram aproveitar-se da situação de dificuldades económicas de E e mulher.
6) Para tanto, utilizando as procurações referidas, efectuaram no dia 24 de Maio de 1985 as escrituras de compra e venda da moradia económica em Lisboa na qual escritura interveio o B na qualidade de procurador do E e mulher e pelo preço de 3.500 contos vendeu ao A a moradia citada.
7) Porém o A que figurava como procurador e o arguido B que figurava como representante do E e mulher sabiam que tal figuração era feita completamente à revelia e contra a vontade dos ofendidos já que estes como os arguidos bem sabiam, não pretendiam vender tal moradia, tendo outorgado as procurações referidas apenas como garantia do pagamento do referido empréstimo.
8) Os arguidos tinham intenção de enganar o E e a mulher a fim de auferirem vantagens patrimoniais que sabiam ser indevidas.
9) Os arguidos agiram conscientes e voluntariamente.
10) Em 16 de Março de 1986 o E e a mulher intentaram contra os arguidos e ainda contra a mulher do A uma acção no 2. Juízo Cível de Lisboa pedindo que fosse julgado nulo e de nenhum efeito a escritura celebrada em 24 de Maio de 1985 e que se ordenasse o cancelamento tanto do registo como da simulada compra e venda.
11) Por sentença de 20 de Setembro de 1990 daquele juízo foi julgado procedente o pedido.
12) Em 2 de Março de 1989 o arguido A e mulher venderam a D e mulher a moradia referida, nos termos da escritura de folha 292 dos autos na qual o D interveio como comprador em nome pessoal e como vendedor com procuração do arguido A .
13) Em 13 de Fevereiro de 1991 o D efectuou na Conservatória do Registo Predial o registo da sua aquisição.
14) Ao realizar a escritura e o registo o D tinha conhecimento de todos os factos referidos.
15) O D e o A agiram para impedirem que o E e mulher futuramente reavessem o direito de propriedade da casa.
16) Por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24 de Outubro de 1991 foi confirmada a decisão proferida no 2. Juízo Cível de Lisboa e julgada nula por simulação em que o B como procurador do E e mulher vendia ao R. A a moradia em causa.
17) Foi ordenado pelo Tribunal da Relação de Lisboa que procedesse ao cancelamento do registo de aquisição efectuada pelo B e pelo A.
18) Em 16 de Agosto de 1994 o E requereu o cancelamento dos registos efectuados sobre a referida moradia.
19) Tal cancelamento foi recusado pela Conservatória do Registo Predial de Lisboa porque a decisão que fundamentou o pedido de cancelamento foi proferida apenas quanto às pessoas que intervieram no acto simulado, não sendo oponível ao adquirente D.
20) Em consequência disto - escritura de 2 de Março de 1989 e recusa do cancelamento do registo quanto ao D o E e a mulher ficaram até esta data, impedidos de recuperar a titularidade do direito de propriedade sobre a moradia, o que lhes causou um prejuízo no montante entre 15 e 20 mil contos.
21) O A e o referido D eram sócios na aquisição de algumas propriedades. Efectuaram um acordo de divisão de algumas propriedades em que estavam associados.
22) O A antes da prática dos factos tinha bom comportamento, mantendo-o depois dos mesmos e agiu com a finalidade de obtenção de proventos económicos.
23) É proprietário e tem boa situação económica.
24) Não tem condenações anteriores.
25) O B com o descrito comportamento tem impedido que o E e a mulher recuperassem a titularidade sobre a moradia.
26) E em conjunto com o A causou com aquela actuação o prejuízo referido em 20).
27) O B não tem condenações anteriores, é gerente comercial e tem remediada condição económica,
28) Agindo para obtenção de dinheiro a fim de o despender depois em proveito próprio.
III
O arguido B por sua vez e perante a matéria dada como provada e uso que dela fez o Tribunal da Relação conclui nas suas alegações pela seguinte forma em síntese:
1) Não praticou o crime de que vem acusado.
2) Ainda que tivesse praticado os factos constantes de acusação, o que não é verdade, aqueles não integram um crime de burla pois não basta qualquer engano, sendo necessário que ele tenha sido provocado, pelo que não se verifica o crime dos artigos 313 e 314 do Código Penal, actual artigo 217, além de que não houve causalidade entre a actividade astuciosa e o erro como seria mister que existisse.
3) As normas dos artigos 443, 664 e 665 do Código de Processo Penal de 1929 são inconstitucionais porque o artigo 665 desse diploma ao limitar os poderes de cognição das Relações viola o princípio do duplo grau de jurisdição em matéria de facto: artigos 29 e 32 da Constituição, além de que, com a sobreposição interpretativa do assento deste tribunal de 29 de Junho de 1934 limita o poder das Relações na alteração das decisões do Tribunal Colectivo - Acórdão do Tribunal Constitucional n. 401/91 e Acórdão do mesmo Tribunal ns. 190/94 e 430/94.
4) É inconstitucional o artigo 443 do Código de Processo Penal de 1929, interpretado nos termos de consentir a utilização num determinado processo crime, como prova contra o arguido de decisões judiciais, sobre matéria de facto que o culpem, proferidas num outro processo em que ele, arguido interveio com esse estatuto - Acórdão do Tribunal Constitucional n. 172/92.
5) Foi violada a norma do artigo 217 do Código Penal bem como as dos artigos 668, alíneas b), c) e d) e 712 do Código de Processo Civil, devendo revogar-se o acórdão e ainda a nulidade da sentença recorrida nos termos das alíneas b), c) e d) n. 1 dos artigos 668 e 712, ambos do Código de Processo Civil.
IV
O crime de burla previsto nos artigos 217, n. 1 e 218, n. 2, alínea a) do Código Penal de 1985 e nos artigos 313 n. 1 e 314 alínea a) do Código Penal de 1982 exige para que possa julgar-se consumado que o dolo, por parte do executor do crime esteja presente no espírito deste no momento em que se determina o lesado à prática do acto que é prejudicial para o seu património.
É necessário que a prática do acto seja causada pelo erro ou engano engendrado pelo executor (com o fim de obter um enriquecimento ilegítimo).
Se a entrega da coisa ou a prática de um acto pelo lesado foi feita em consequência de acordo com o agente estando este de boa fé isto é, tendo ele o propósito de cumprir o acordado entre ambos, então, se depois disso o agente não cumpre o acordado estaremos antes perante um contrato não cumprido, podendo esse não cumprimento revestir diversas formas.
O que merece sanção penal para o legislador é a predeterminação do agente em prejudicar o lesado usando de erro ou engano para obter a prática do acto prejudicial por parte do lesado.
E já não merece sanção penal a conduta daquele que, acordando determinado comportamento com outro parceiro, procedendo de boa fé e com disposição de cumprir o que prometeu, mais tarde, na data de cumprimento, não fez aquilo a que se comprometera, culposamente (V. Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Fevereiro de
1996, B.M.J. 454, página 554 e o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, no domínio do Código Penal de 1886 mas nem por isso com menos interesse, de 14 de Dezembro de 1973, B.M.J. 232, 177 e o acórdão deste Supremo
Tribunal de 27 de Novembro de 1997, B.M.J. 471, 279).
No caso dos autos e mantendo o tipo legal de burla do Código Penal de 1995 o conteúdo do artigo 313 do Código Penal de 1982, havendo só diferença da pena aplicável, os factos provados não referem que o arguido B, ao negociar com o ofendido nos termos descritos nos pontos
1) a 4) da matéria descrita em II deste acórdão, já estivesse com o propósito de enganar ou induzir em erro o mesmo pedido.
Ora, para que a conduta daquele fosse penalmente ilícita teria de ter ficado expressamente provado que ao obter as procurações e ao acordar com o lesado as condições fixadas em 3), o arguido B já estava disposto a não cumprir, sendo o erro ou engano um mero estratagema para enriquecer ilicitamente.
E isto não está lá.
A expressão "concretizaram então" do n. 3) é mais compatível com a interpretação que agora fazemos do que com uma que visse ali logo o propósito do arguido.
E a sequência de factos, em 5), mais coadjuva a interpretação que fazemos pois daí resulta que a combinação ilícita só aparece quando entra em cena o arguido A e não "ab-initio", o facto descrito em
8) não refere expressamente que se reporta ao início do comportamento do arguido B e é compatível com o entendimento que a má fé, isto é, o dolo, só surge mais tarde quando é feita a venda podendo constituir outro comportamento ilícito e não o crime de burla.
Por outro lado também o Excelentíssimo Procurador-Geral Adjunto frisa no seu douto parecer a páginas 721 e seguintes, já nesta instância, que verdadeiramente não chega a existir o crime de burla porque não há qualquer engano forjado pelos arguidos que tivesse levado o assistente a adoptar o comportamento descrito tendo este acordado livremente no empréstimo nos termos combinados.
Dado o exposto os factos provados são insuficientes para caracterizar o crime de burla pelo qual os arguidos foram condenados.
Assim julga-se a acusação não provada e improcedente, absolvendo-se os arguidos daquele crime e revogando-se o douto acórdão do Tribunal da Relação recorrido.
O que fica expendido torna inútil a apreciação das demais questões suscitadas nos recursos.
Damos assim inteiro provimento aos recusados arguidos revogando-se, como se disse, o douto acórdão recorrido e absolvendo-se os arguidos. Sem custas.
Lisboa, 7 de Abril de 1999.
Brito Câmara,
Martins Ramires,
Pires Salpico.
5. Vara Criminal de Lisboa - Processo n. 59/94 - 2.
Secção.
Tribunal da Relação de Lisboa - Processo n. 2940/97 -
Acórdão de 7 de Outubro de 1997.