Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2992/18.4T8AVR.P1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: PINTO DE ALMEIDA
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
ACIDENTE DE VIAÇÃO
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
VELOCÍPEDE
Data do Acordão: 06/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :

I- A jurisprudência do STJ vem-se firmando actualmente no sentido da admissibilidade da concorrência entre a responsabilidade pelos riscos próprios do veículo e a culpa do lesado (ou imputação do acidente ao lesado), devendo interpretar-se o art. 505º do CC no sentido de que a responsabilidade pelo risco só deve ser afastada quando o acidente for imputável exclusivamente ao próprio lesado ou a terceiro ou resultar exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

II- Ocorrendo um acidente que consistiu num embate entre um veículo pesado de mercadorias e um velocípede sem motor – em que este se atravessou à frente daquele, não permitindo evitar a colisão; que tal ocorreu depois de o velocípede ter entrado na faixa de rodagem, de forma desgovernada, em ziguezague, em direcção ao eixo da via, em consequência de desequilíbrio anterior da tripulante, provocado por razões não apuradas; que não houve culpa do condutor do veículo pesado – deve considerar-se que, nessas circunstâncias, apesar da acentuada relevância causal da conduta da tripulante do velocípede, a gravidade da sua culpa é reduzida, concorrendo com os riscos próprios da circulação do veículo pesado para a eclosão do acidente.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça[1]:

I.

AA instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra FIDELIDADE - COMPANHIA DE SEGUROS, SA.

Pediu a condenação da ré a pagar-lhe a quantia de € 125.000,00, acrescida de juros moratórios, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Como fundamento, alegou que é o único filho e herdeiro de BB, falecida em 16.09.15, em consequência de acidente de viação em que foi interveniente, quando conduzia um velocípede sem motor, sendo também interveniente CC, quando conduzia o veículo pesado de mercadorias, com semi-reboque, de matrícula …-…-QO, pertencente a Transportes Sardão, SA.

Esse acidente ocorreu por culpa exclusiva do condutor deste veículo pesado, cuja proprietária havia transferido para a ré a responsabilidade civil por danos decorrentes da sua circulação, tendo a sinistrada falecido, em consequência das lesões nele sofridas, e sentido a angústia pela antevisão da sua morte, assim como o autor desgosto e tristeza pela morte da sua mãe.

A ré contestou, impugnando os factos alegados pelo autor, quer no que respeita à dinâmica do acidente, quer à extensão e montante dos danos.

Concluiu pela improcedência da acção.

Percorrida a tramitação subsequente, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e, em consequência, absolveu a ré do pedido formulado.

Discordando, o autor interpôs recurso de apelação, que a Relação julgou improcedente, tendo confirmado a sentença recorrida.

Ainda inconformado, o autor pediu revista, excepcional, que foi admitida nos termos do art. 672º, nº 1, al. a), do CPC, tendo formulado as seguintes conclusões:

(…)

B) A doutrina e jurisprudência tradicionais têm entendido que em matéria de acidentes de viação, a verificação de qualquer das circunstâncias referidas no artigo 505.º do Código Civil, maxime, ser o acidente imputável a facto, culposo ou não, do lesado, exclui a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, não se admitindo o concurso do perigo especial do veículo com o facto da vítima, de modo a conduzir a uma repartição de responsabilidade: a responsabilidade pelo risco é afastada pelo facto do lesado.

C) Ora, esta corrente doutrinal e jurisprudencial engloba as situações mais díspares e não distingue as condutas culposas das não culposas e dentro daquelas as de culpa mais grave das de culpa mais leve, conduzindo muitas vezes a resultados chocantes e injustos e mostra-se ainda insensível ao alargamento crescente, por influência do direito comunitário, do âmbito da responsabilidade pelo risco e da expressa consagração da hipótese da concorrência entre o risco da actividade do agente e um facto culposo do lesado, que tem tido tradução em recentes diplomas legais.

D) No entanto, nestes últimos anos, tem vindo a surgir jurisprudência que privilegia uma interpretação progressista e actualista do artigo 505.º do Código Civil, no sentido de nele se acolher a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo.

E) In casu, quer a 1.ª instância, quer o Colendo Tribunal da Relação ….. consideraram culposa a actuação da lesada, e que a culpa na produção do acidente coube na totalidade àquela, pelo que com base nesta conclusão a decisão de que ora se recorre arredou a possibilidade de aplicação da tese actualista ­ i.é. a concorrência entre o risco e o facto do lesado.

F) A decisão recorrida, partindo da conclusão de que a lesada teve culpa na produção do acidente, afastou logo a responsabilidade do condutor do veículo pesado de mercadorias sem sequer ter apreciado a hipótese de este poder ser responsabilizado pelo risco.

G) Ademais, o douto acórdão recorrido, ao não ter equacionado nem apreciado a responsabilidade do condutor do veículo pesado de mercadorias com base no risco, mesmo havendo culpa da lesada, encontra-se em contradição com outro acórdão do STJ já transitado em julgado no domínio da mesma legislação - artigos 503.º, 505.º e 570.º do CC - e sobre a mesma questão fundamental de direito - concorrência de culpa e risco em acção emergente de acidente de viação, designadamente o acórdão proferido em 28-03-2019 no Processo n.º 954/13.7TBPMS.C1.S1 (cuja cópia se junta).

H) Sendo certo que não foi proferido acórdão de uniformização de jurisprudência sobre a matéria em questão.

I) Apesar da diversidade da matéria de fado, pois que, como é natural, não existem acidentes iguais, o acórdão-fundamento, numa situação de facto equiparável à dos autos, decidiu atribuir indemnização ao lesado com base na concorrência entre a culpa do lesado e o risco inerente à circulação do veículo automóvel, quando os tribunais a quo a tinham afastado, por concluírem ser o acidente imputável a título de culpa ao sinistrado, sem se ter demonstrado qualquer parcela de culpa do condutor do veículo envolvido.

J) In casu, o Tribunal a quo concluiu pela culpa da condutora do velocípede – que “por circunstâncias não apuradas, ao iniciar a marcha, se desequilibrou e entrou de repente na faixa, a ziguezaguear, circulando em direcção ao eixo da via (cfr. ponto 16 da matéria de facto provada) – deixando de apreciar a possibilidade de responsabilidade objectiva do outro interveniente, o condutor do pesado de mercadorias.

K) Ademais, o douto acórdão recorrido, ao afastar a culpa do condutor do pesado de mercadorias, por este circular dentro do limite máximo legal estabelecido para o local do acidente (45km/hora), concluindo, sem mais, que a velocidade a que circulava o pesado de mercadorias era “adequada” e não excessiva para as condições in casu entra em contradição com outro acórdão do STJ já transitado em julgado, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-12-2018, no processo 1685/15.9T8CBR.C1.S1 (cuja cópia se junta).

L) Apesar de não estarmos também perante situações comparáveis (o que sempre será virtualmente impossível quando se trata de acidentes de viação) certo é que o Acórdão de que ora se recorre não teve em consideração que apesar do veículo pesado circular a uma velocidade legal (e não em excesso de velocidade) não circulava a uma velocidade adequada ao local da ocorrência, pelo que circulava em velocidade excessiva, violando as normas ínsitas no Código da Estrada, mormente os artigos 24.º e 25.º.

M) Entende o recorrente que do quadro fáctico dos autos resulta que a culpa da lesada não é exclusiva e que o condutor do veículo pesado deve ser responsabilizado pelo risco, ou mesmo até a título de culpa.

N) Deve entender-se que para o acidente concorreu também o risco do próprio veículo automóvel uma vez que em causa está um acidente com intervenção de um veículo de mercadorias com um peso bruto de 39 toneladas, cuja perigosidade, em abstracto, decorre da sua própria natureza, isto é da maior capacidade lesiva (de tal modo que até tem sido um instrumento utilizado em actos de terrorismo).

O) Acresce ainda o facto de a condutora do velocípede (um utilizador vulnerável) se ter desequilibrado, por motivos que as instâncias não apuraram, o que não pode ser entendido como facto culposo.

P) Deste modo, a condução do veículo pesado está indiscutivelmente ligada à ocorrência do acidente, enquanto máquina de funcionamento complexo. Dentro dos riscos próprios do veículo, a que se refere o artigo 503.º do Código Civil cabem “além dos acidentes provenientes de máquinas de transporte, os ligados ao outro termo do binómio que assegura a circulação desse veículo (o condutor)” - A. Varela "Das Obrigações em Geral", vol. I, 7.ª edição, pág. 664.

Q) Dos factos provados resulta que o condutor do veículo pesado podia e devia ter atuado de forma diferente, reduzindo a velocidade para os 30km/hora, o que seria uma velocidade mais adequada às circunstâncias do local, com intensa circulação de outros veículos, ciclistas e peões. O que aliás era do conhecimento do motorista (cfr. ponto 25 da matéria de facto provada).

R O que, de acordo com a interpretação actualista do preceituado no artigo 505.º do Código Civil reclama a subsunção desta situação concursal de causas de dano à norma da repartição do dano que é o artigo 570.º do Código Civil, repartição que deve ser efectuada em igual proporção de 50% para a lesada e 50% para o risco do veículo.

S) Salvo o devido respeito, o recorrente entende que o acórdão recorrido violou por errada interpretação e aplicação o disposto nos artigos 503.º, 505.º e 570.º do Código Civil, bem ainda o disposto nos artigos 24 e 25.º do Código da Estrada.

T) Pelo que deve proceder-se a repartição de responsabilidades de forma proporcional nos termos ora enunciados, ou noutra proporção que se entenda melhor adequada ao caso concreto,

U) E deve ser atribuída ao Autor (único filho da lesada, vítima mortal), a quantia € 62.500,00 (sessenta e dois mil e quinhentos euros) para indemnização dos danos não patrimoniais sofridos por este.

Termos em que, deve o presente Recurso ser considerado provido nos termos enunciados nas conclusões.

A ré contra-alegou, tendo concluído pela improcedência do recurso.

Cumpre decidir.

II.

Questões a resolver:

Discute-se a responsabilidade pela produção do acidente descrito nos autos e, concretamente, se pode haver concorrência entre a responsabilidade pelos riscos próprios do veículo e a culpa do lesado.

III.

Vêm provados os seguintes factos:

1. No dia 16.09.15, cerca das 11h30m, ao Km 77,500 da Estrada Nacional ….., na freguesia ….., concelho ….., ocorreu um acidente de viação.

2. Desse acidente e em consequência do mesmo resultou a morte de BB, mãe do autor.

3. O autor, AA, é o único filho de BB, tendo esta falecido no estado civil de viúva.

4. No local referido em 1., a via apresenta uma configuração em recta com boa visibilidade, dispondo de duas hemi-faixas de rodagem, destinadas à circulação de veículos no sentido …-… e em sentido inverso, ….-… e tem a largura total de 7 metros, com traço contínuo a partir da habitação com o n.º …, local em que se encontra também um sinal de proibição de ultrapassagem.

5. O piso é em asfalto betuminoso, apresentando um desnível para a berma da estrada, atento o sentido …-…., que é mais baixa, em medida não concretamente apurada.

6. No local, a berma da Estrada Nacional …, atento o sentido ….-…, tem uma largura de 4,40 metros e no dia encontrava-se ocupada por vários veículos estacionados, nomeadamente, em frente à habitação com n.º ….., visível no croqui de fls. 42, e a um terreno contíguo a esta.

7. À data não existiam quaisquer obstáculos na via que impedissem a normal circulação rodoviária, sendo que era de dia, havia boa luminosidade e o piso encontrava-se seco.

8. O veículo pesado de mercadorias, conduzido por CC, atrelava ao tractor um semi-reboque porta contentores de matrícula L-….. 7, de marca …...

9. O conjunto (tractor e semi-reboque) circulava com um peso bruto de cerca de 39.000 quilos.

10. O pesado de mercadorias seguia à velocidade de 45 km/hora, de acordo com o registo do disco de tacógrafo, apreendido na altura pelas autoridades policiais.

11. O pesado circulava pela metade direita da faixa de rodagem, sentido ….-…...

12. Em sentido contrário circulada um veículo ligeiro, a uma velocidade não concretamente apurada.

13. No local a velocidade máxima permitida era e é, de 50 km/h.

14. Nas circunstâncias de tempo e lugar mencionados, BB seguia, pela berma direita da faixa de rodagem, no mesmo sentido de marcha do pesado de mercadorias – ….-…. – trazendo consigo uma bicicleta pela mão, do seu lado direito.

15. Ao chegar à zona da casa com o n.º …, BB decidiu iniciar a sua marcha em bicicleta, pelo que se prestou a montar o velocípede e a obliquá-lo para a esquerda, em direcção à faixa de rodagem, sem assinalar previamente a sua manobra.

16. Por circunstâncias não apuradas, ao iniciar a marcha, BB desequilibrou-se e entrou de repente na faixa, a ziguezaguear, circulando em direcção ao eixo da via.

17. No momento em que o pesado ali circulava, atrás de si, no mesmo sentido de marcha, a uma distância não concretamente apurada, mas próxima do velocípede.

18. O condutor do pesado tentou desviar-se para a esquerda, atento o seu sentido de marcha, em direcção ao eixo da via, para tentar evitar o acidente, mas não o conseguiu.

19. O embate ocorre sensivelmente a cerca de 1,40m de distância em relação ao limite direito da faixa de rodagem (croqui de fls. 42), atento o sentido de marcha dos dois veículos.

20. O veículo pesado de mercadorias com semi-reboque embateu, com o lado direito da grelha da frente, no pedal esquerdo do velocípede sem motor.

21. O que fez com que tal velocípede virasse a sua lateral esquerda para a frente do pesado de mercadorias e, acto contínuo, fosse projectado, juntamente com a vítima, para a via afecta ao trânsito oposto, vindo a tombar (primeiro a bicicleta e depois o corpo) a cerca de 12 metros do local do embate.

22. Ao accionar o sistema de travagem, o veículo pesado de mercadorias e o semi-reboque só conseguiram imobilizar-se vários metros à frente, após desvio à esquerda, parcialmente em cima do eixo da via e da faixa de trânsito contrária, sentido …../…...

23. Como consequência directa e necessária do embate, BB sofreu as lesões melhor identificadas no relatório de autópsia médico-legal, constante de fls. 53-59, cujo conteúdo aqui se dá por reproduzido, designadamente lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas e torácicas, tendo aquelas resultado na sua morte, ocorrida no dia 16.09.15, pelas 11h56, no local do acidente de viação.

24. O titular do seguro do veículo pesado de mercadorias (com semi-reboque), de marca ….., modelo …., matrícula …-…-QO, conduzido por CC, pertencente à empresa Transportes Sardão, SA, havia transferido para a ré a garantia da responsabilidade civil emergente da circulação do mesmo, através de contrato de seguro automóvel titulado pela apólice com o n.º …….78

25. O condutor do veículo segurado da Ré, conhecia o local do acidente, nomeadamente as características da via, os espaços envolventes e a elevada afluência de viaturas e peões, quer na via, quer nas bermas, sabendo que tal local é bastante movimentado, porque se trata de uma localidade relativamente grande, mas também pela existência de espaços comerciais envolventes.

26. Como consequência directa e necessária do acidente de viação, BB sofreu as lesões traumáticas melhor descritas no relatório pericial da autópsia realizada e constante de fls. 53 a 59, as quais foram causa adequada da sua morte, cujo conteúdo se dá por reproduzido e do qual consta, para além do mais, o seguinte:

1.ª A morte de BB foi devida às lesões traumáticas crâniomeningo- escefálicas e torácicas descritas;

2.ª Tais lesões traumáticas constituem causa adequada de morte;

3.ª Estas e as restantes lesões traumáticas descritas denotam haver sido produzidas por instrumentos de natureza contundente ou atuando como tal, podendo ter sido devidas a acidente de viação, como consta da informação;

4.ª A análise toxicológica efectuada ao sangue não revelou a presença de álcool etílico (etanol);

5.ª As restantes análises toxicológicas efectuadas foram negativas para as substâncias pesquisadas.

27. À data do acidente, a vítima tinha cinquenta e quatro anos de idade, datando o seu nascimento do dia 22.10.60.

28. Era uma mulher cheia de energia, que gostava de estar sempre activa, quer em casa, quer fora, executando trabalhos domésticos e agrícolas para outras pessoas.

29. Era estimada na freguesia, sendo habitual vê-la, para cima e para baixo a caminho do trabalho, pedalando na sua bicicleta, com um cesto plástico preso atrás do selim.

30. BB ficou viúva muito nova, quando estava grávida do seu único filho, o aqui autor, também por causa de um acidente de viação que ceifou a vida ao marido.

31. Foi com grande esforço e muita dedicação que criou o filho, que o viu crescer e tornar-se um homem, também ele pai de um filho de 8 anos, que era a alegria da sua avó BB.

32. O autor sofreu profundamente a perda da malograda BB, não só por ter sido sempre uma mãe batalhadora, dedicada e amorosa, mas também por não ter conseguido conviver com ela no último ano da sua vida, pois encontrava-se emigrado no …….

O Tribunal recorrido considerou não provados os seguintes factos:

“Petição:

7.º a 12º: não se provou a versão do autor, mas apenas o que consta dos artigos 12º, 14º, 15º, 16º, 17º e 18º dos factos provados 19º e 20º (este último artigo até “embate”), 32º, 71º, 72º, 73”.

Considerou ainda que não existem outros factos a considerar como provados ou não provados, com interesse para a decisão da causa.

IV.

Da factualidade provada resulta que o embate descrito nos autos ocorreu na EN …., num local em que a mesma se desenvolve em recta, com boa visibilidade, tendo a faixa de rodagem a largura total de 7 m, com duas hemi-faixas, uma para cada sentido de circulação, sendo o limite máximo de velocidade de 50 km/hora; o piso estava seco, era de dia e havia boa luminosidade.

O veículo pesado de mercadorias, pertencente à segurada da ré, circulava naquele lugar, pela metade direita da faixa de rodagem, atento o seu sentido de marcha, à velocidade de 45 km/hora.

BB, mãe do autor, seguia pela berma do lado direito da referida EN, considerando o mesmo sentido de marcha, transportando pela mão um velocípede sem motor.

No referido local, BB montou o velocípede e, sem assinalar previamente a sua manobra, obliquou-o para a esquerda, em direcção à faixa de rodagem; ao fazê-lo, desequilibrou-se e entrou de repente na faixa de rodagem, a ziguezaguear, em direcção ao eixo da via.

Essa entrada de BB na faixa de rodagem ocorreu no momento em que o veículo pesado ali circulava, no mesmo sentido de marcha, a uma distância próxima.

O condutor do veículo pesado desviou-se para a esquerda, em direcção ao eixo da via, para tentar evitar o embate, que acabou por ocorrer a 1,40 m do limite da faixa de rodagem, sempre considerando o aludido sentido, entre o lado direito da grelha da frente do veículo pesado e o pedal esquerdo do velocípede.

Perante esta factualidade, concluiu-se no acórdão recorrido que o condutor do veículo pesado não infringiu qualquer norma do direito estradal e não actuou com culpa.

Assim não entende o recorrente, afirmando que não pode ser afastada a responsabilidade do condutor do veículo pesado também a título de culpa, uma vez que o mesmo deveria ter reduzido a velocidade, adequando-a às circunstâncias do local, com intensa circulação de veículos, ciclistas e peões, tendo violado as normas dos arts. 24º e 25º do Código da Estrada (CE).

Sem razão, porém.

Com efeito, o referido condutor seguia à velocidade de 45km/h, inferior ao limite legal no local (50 km/h), velocidade que era adequada às condições da via – recta com boa visibilidade e piso seco – e ao movimento de veículos e pessoas que nela se processava, que aquele condutor conhecia, não existindo assim razões que impusessem a circulação a velocidade inferior.

Nem dos factos provados decorre que esse condutor tenha agido com inconsideração, negligência ou falta de destreza.

Não merece, pois, censura a conclusão a que se chegou no acórdão recorrido, de que o referido condutor não infringiu qualquer norma estradal, designadamente as invocadas pelo recorrente, e que não actuou com culpa.

Mesmo assim, defende o recorrente que o detentor do veículo pesado deve ser responsabilizado objectivamente, com base na contribuição dos riscos próprios desse veículo para a produção do acidente.

Afirmou-se no acórdão recorrido que a lesada, ao entrar na faixa de rodagem da EN …., tripulando o seu velocípede sem motor, sem assinalar previamente essa manobra, infringiu o disposto no art. 12º, nº 1, do CE e, bem assim, o dever geral de diligência na condução que resulta do disposto nos artigos 3.º, n.º 2 e 11.º, n.º 2 do mesmo diploma, tendo essa conduta sido causal do embate entre o velocípede e o veículo pesado, uma vez que o condutor do pesado, que circulava em observância das normas estradais exigíveis para o local e para o tempo do acidente, viu a sua linha de marcha ser cortada pelo velocípede que entrou na faixa de rodagem de forma inopinada e sem qualquer sinalização prévia.

Concluiu-se, assim, reiterando-se o que se afirmou na sentença da 1ª instância, que o acidente foi provocado por culpa exclusiva da lesada, o que "exclui a obrigação de indemnizar da proprietária do veículo seguro, com fundamento na responsabilidade pelo risco, atento o disposto nos artigos 505.º, 506.º e 570.º do CC".

Este entendimento, mais claro na sentença, de que não pode haver concorrência entre os riscos do veículo e a culpa do lesado, seguido tradicionalmente, tem vindo a ser posto em causa por parte da doutrina e também pela mais recente jurisprudência do Supremo, assumindo relevo, pelo seu carácter inovador, o Acórdão de 04.10.2007[2], destacando-se do seu sumário:

2. De acordo com a jurisprudência e a doutrina tradicionais, inspiradas no ensinamento de Antunes Varela, em matéria de acidentes de viação, a verificação de qualquer das circunstâncias referidas no art. 505º do CC – maxime, ser o acidente imputável a facto, culposo ou não, do lesado – exclui a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, não se admitindo o concurso do perigo especial do veículo com o facto da vítima, de modo a conduzir a uma repartição da responsabilidade: a responsabilidade pelo risco é afastada pelo facto do lesado.

3. Esta corrente doutrinal e jurisprudencial, conglobando na dimensão exoneratória do art. 505º, e tratando da mesma forma, situações as mais díspares – nas quais se englobam comportamentos mecânicos dos lesados, ditados por medo ou reacção instintiva, factos das crianças e dos inimputáveis, comportamentos de precipitação ou distracção momentânea, etc. – e uniformizando as ausências de conduta, as condutas não culposas, as pouco culposas e as muito culposas dos lesados, conduz, muitas vezes, a resultados chocantes.

4. Mostra-se também insensível ao alargamento crescente, por influência do direito comunitário, do âmbito da responsabilidade pelo risco, e da expressa consagração da hipótese da concorrência entre o risco da actividade do agente e um facto culposo do lesado, que tem tido tradução em recentes diplomas legais, que exigem, como circunstância exoneratória, a culpa exclusiva do lesado, bem como à filosofia que dimana do regime estabelecido no Cód. do Trabalho para a infortunística laboral.

5. O texto do art. 505º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

6. Ao concurso é aplicável o disposto no art. 570º do CC.

7. A este resultado conduz uma interpretação progressista ou actualista do art. 505º, que tenha em conta a unidade do sistema jurídico e as condições do tempo em que tal norma é aplicada, em que a responsabilidade pelo risco é enfocada a uma nova luz, iluminada por novas concepções, de solidariedade e justiça.

8. Ademais, na interpretação do direito nacional, devem ser tidas em conta as soluções decorrentes das directivas comunitárias no domínio do seguro obrigatório automóvel e no direito da responsabilidade civil, já que as jurisdições nacionais estão sujeitas à chamada obrigação de interpretação conforme, devendo interpretar o respectivo direito nacional à luz das directivas comunitárias no caso aplicáveis, mesmo que não transpostas ou incorrectamente transpostas.

9. Não pode, no caso concreto, concluir-se que o acidente é unicamente ou exclusivamente imputável à menor, condutora do velocípede, e que o veículo automóvel foi para ele indiferente, isto é, que a sua típica aptidão para a criação de riscos não contribuiu para a eclosão do acidente.

10. Na verdade, não obstante a actuação contravencional da menor, que manifestamente contribuiu para o acidente, a matéria de facto apurada permite também concluir que a estrutura física (as dimensões, a largura) do veículo automóvel (…) está inelutavelmente ligada à ocorrência do acidente.

A questão referida foi analisada no Acórdão do STJ de 17.05.2012 (P. 1272/04), que apreciou a situação aí discutida segundo as várias perspectivas que têm sido admitidas e que, por isso, se passa a reproduzir:

4. Segundo a tese que podemos qualificar de “clássica”, assumida pela doutrina e jurisprudência maioritárias, o art. 505º do CC coloca um mero problema de causalidade.

Tendo como pano de fundo situações de responsabilidade objectiva inerente à direcção efectiva de veículos automóveis, nos termos do nº 1 do art. 503º do CC, resulta da letra daquele normativo que essa responsabilidade é afastada sempre que o acidente seja “imputável” (no sentido de “devido”) ao próprio lesado ou a terceiro ou a caso de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

Conforme aquela tese, basta que seja quebrado o nexo de causalidade entre o sinistro e os riscos próprios do veículo por qualquer comportamento (ainda que não culposo) do lesado ou de terceiro, ou devido a caso de força maior, para que fique liminarmente afastada a responsabilidade objectiva do proprietário do veículo eventualmente transferida para a Seguradora.

Trata-se da solução que obtém uma impressiva adesão na jurisprudência deste Supremo, bastando referir, a título meramente exemplificativo e com prevalência de arestos mais recentes, os Acs. do STJ, de 21-1-06 (Revista nº 3941/05 - AFONSO CORREIA), de 31-1-06 (www.dgsi.pt - AZEVEDO RAMOS), de 18-4-06 (www.dgsi.pt - SEBASTIÃO PÓVOAS), de 6-11-08 (www.dgsi.pt - SALVADOR da COSTA) ou de 25-11-10 (Revista nº 12175/09 - GONÇALO SILVANO).

A leitura destes e de outros arestos, assim como a análise da doutrina maioritária, revela a multiplicidade de argumentos que têm sido empregues na defesa desta solução.

Para além do relevo atribuído ao elemento literal, assume particular significado a ponderação da necessidade de não agravar excessivamente a posição do proprietário ou do detentor do veículo em situações em que este não foi mais do que um elemento acidental, mas sem efectiva contribuição para a ocorrência do sinistro causado por factores estranhos ao seu funcionamento.

5. Esta solução tem sido posta em crise por uma parte da doutrina mais recente.

Com argumentação diversa, passou a defender-se uma solução alternativa que se traduz na admissibilidade daquela concorrência, desde que o sinistro ainda tenha uma conexão relevante com os riscos próprios do veículo, isto é, desde que o acidente não seja de imputar exclusivamente a factores externos integrados na órbita do lesado, de terceiro ou de casos de força maior estranhos ao veículo.

Entre os defensores desta tese destacam-se BRANDÃO PROENÇA, em A Conduta do Lesado como Pressuposto e Critério de Imputação do Dano Extracontratual, págs. 814 e segs., e CALVÃO da SILVA, RLJ 134º, págs. 115 e segs.

Para o efeito, defendem a extracção do art. 505º do CC de um sentido que o torne compatível com o art. 570º, com o argumento de que só assim fará sentido a alusão que naquele preceito é feita ao disposto no nº 1 do art. 503º, norma que regula inequivocamente uma situação de responsabilidade objectiva do proprietário do veículo.

É também feito apelo à necessidade de ajustamento das soluções legais às circunstâncias actuais, designadamente ao risco rodoviário, bem diverso daquele que era perceptível aquando da aprovação do Código Civil, de modo a implicar a concessão de maior protecção aos lesados que se encontrem em situação de maior vulnerabilidade, como ocorre com os peões ou com os ciclistas.

Ajustamento que também decorreria do facto de se ter generalizado o sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel que vem assumindo cada vez mais uma função ressarcitiva de danos, com subvalorização de outros aspectos em que inclui a contribuição do lesado ou de terceiros para a sua ocorrência.

Pressupõe-se ainda que o direito interno deve ser interpretado por forma a não colocar em causa o regime que dimana das Directivas Europeias sobre Seguro Automóvel, considerando que estas implicam uma efectiva tutela dos interessados em situação mais desprotegida, o que colidiria com uma interpretação do regime da responsabilidade civil que desconsidere os riscos próprios do veículo que também tenham interferido na ocorrência do sinistro.

Atalhando caminho, CALVÃO da SILVA conclui, a este respeito, que “a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro …” (RLJ 134º/115). E ainda que em comentário posterior ao Ac. do STJ, de 4-10-07, tenha tecido considerações que o levam a admitir a responsabilização do detentor do veículo noutras situações, “na base de uma apreciação individual no caso específico pelo julgador” (RLJ 137º/60), assevera que “só havendo prova certa e segura do facto da vítima ou de terceiro (ou de força maior) como causa única e exclusiva do acidente é que não haverá lugar a concurso do risco próprio do veículo como facto do lesado” (pág. 62).

Ao nível jurisprudencial, esta foi a solução admitida no Ac. do STJ, de 4-10-07 (www.dgsi.pt - SANTOS BERNARDINO), publicado e comentado na RLJ 137º, págs. 35 e segs., no qual se assumiu, de forma precursora em termos jurisprudenciais, que “o texto do art. 505º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro …”.

Entendimento também expresso, ainda que de modo condicionado, nos Acs. do STJ, de 3-12-09 (www.dgsi.pt - BETTENCOURT FARIA) ou de 12-11-09 (Revista nº 3660/04 - CARDOSO ALBUQUERQUE).

Porém, mesmo em face desta tese, não se modificaria o resultado da presente acção.

Na verdade, constituindo pressuposto da mesma a existência de uma contribuição do risco do veículo para a ocorrência do sinistro, verifica-se que esta não existiu no caso concreto, uma vez que o veículo circulava a uma reduzidíssima velocidade, sem que o seu condutor de modo algum pudesse ou devesse contar com a presença do menor que, de modo totalmente imprevisto e imprevisível, se atravessou à sua frente.

Foi este acto irreflectido, ainda que vindo de um sujeito inimputável em função da idade, a causa única das lesões que sofreu, sem qualquer contribuição relevante dos riscos próprios do veículo.

O mero facto naturalístico de o acidente ter envolvido um veículo automóvel, como corpo em movimento, com determinado peso e dimensões, dotado de inércia, não pode ser considerado determinante de um risco causalmente adequado ao acidente, perdendo todo o relevo, quer em termos absolutos, quer em termos relativos.

6. Mas para além das referidas teses, ainda se encontra espaço para a discussão de uma terceira via no sentido da responsabilização da seguradora independentemente da exclusividade da imputação do acidente ao lesado.

Sendo colocada de lege ferenda por BRANDÃO PROENÇA, o maior relevo da sua discussão advém do facto de ter servido de mote à apresentação ao Tribunal de Justiça de processos de reenvio prejudicial cujo resultado poderia interferir na resposta.

Aquela solução pressupunha a verificação de uma situação de desconformidade entre o direito nacional regulador da responsabilidade civil automóvel e o regime que dimana das Directivas Europeias sobre Seguro Automóvel.

A correspondente interrogação foi formulada ao Tribunal de Justiça por alguns Tribunais nacionais, dando origem aos processos de reenvio prejudicial “C-409/09”, “C-229/10” (J.O. de 17-7-10) e “C-13/11” (J.O. de 26-3-11), nos quais se inquiria se a necessidade de tutelar as vítimas de acidentes de viação prosseguida pelas referidas Directivas Europeias deveria levar à desconsideração da sua contribuição para os danos, à semelhança do que, relativamente a passageiros transportados em veículos, já fora declarado nos acórdãos “Candolin” e “Farrell”.

A resposta que foi dada resolve liminarmente a questão.

O Tribunal de Justiça, no âmbito do “Proc. C-409/09”, proferiu o Acórdão datado de 9-6-11, no qual concluiu que as Directivas respeitantes ao seguro de responsabilidade civil automóvel “devem ser interpretadas no sentido de que não se opõem a disposições nacionais do domínio do direito da responsabilidade civil que permitem excluir ou limitar o direito da vítima de um acidente de exigir uma indemnização a título do seguro de responsabilidade civil do veículo automóvel envolvido no acidente, com base numa apreciação individual da contribuição exclusiva ou parcial dessa vítima para a produção do seu próprio dano” (http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ).

Para chegar a uma tal conclusão asseverou que “a legislação nacional (portuguesa) aplicável no âmbito do litígio no processo principal só afasta a responsabilidade pelo risco do condutor do veículo envolvido no acidente, num contexto como o do presente processo (morte de um menor de tenra idade que tripulava uma bicicleta e que circulava em contramão, tendo embatido num veículo automóvel sem qualquer culpa do respectivo condutor), quando a responsabilidade pelo acidente for exclusivamente imputável à vítima”.

Ou seja, partindo do pressuposto de que o direito nacional contém uma solução que admite a concorrência entre a culpa do lesado e o risco do condutor (solução que, como se disse, apenas é sustentada ao abrigo da segunda tese anteriormente enunciada), o Tribunal de Justiça afirmou ser compatível com o Direito Comunitário uma solução em que a responsabilidade da seguradora seja excluída quando o sinistro seja exclusivamente imputável à vítima, o que, como já dissemos, se verifica no caso presente.

Na verdade, embora o art. 1º-A da 4ª Directiva sobre seguro de responsabilidade civil automóvel imponha a adopção de legislação que, no âmbito do seguro obrigatório, assegure “a cobertura dos danos pessoais e materiais sofridos por peões, ciclistas e outros utilizadores não motorizados das estradas que, em consequência de um acidente em que esteja envolvido um veículo a motor”, acrescenta que a regulação do direito de indemnização é feita “de acordo com o direito civil nacional”.

Por outro lado, não foi reflectida na redacção final da Directiva Europeia uma proposta mais arrojada que existia no sentido da defesa dos indivíduos mais vulneráveis, como os peões e ciclistas, que implicava a cobertura do seguro obrigatório dos respectivos danos não patrimoniais suportados por esses lesados independentemente da responsabilidade do condutor do veículo.

A propósito do desfecho do referido reenvio prejudicial, ALESSANDRA SILVEIRA e SOPHIE PEREZ FERNANDES, nos Cadernos de Direito Privado, nº 34, págs. 3 e segs., em artigo intitulado “O seguro automóvel. Considerações sobre a posição do TJUE em sede de reenvio prejudicial”, referem que “estávamos à espera de uma resposta mais contundente do Tribunal de Justiça da União Europeia que censurasse, sem recuos e nitidamente, a hipótese de exclusão de indemnização em casos semelhantes ao do processo principal, a fim de esclarecer as dúvidas do juiz nacional que lhe pediu ajuda e proteger peões e ciclistas vítimas de acidentes, sobretudo menores de tenra idade, sem discernimento suficiente para a percepção do risco” (pág. 17).

Esta terceira via pressupunha, pois, a existência de normas da União Europeia que directamente se sobrepusessem ao direito interno (emergente de Regulamento ou impostas por efeito directo de Directivas) ou que determinassem uma interpretação conforme com solução ditada pelo direito comunitário, o que não ocorre com a questão sub judice.

Por conseguinte, posto que de lege ferenda se possa justificar uma solução que amplie a protecção conferida aos lesados em situação de maior vulnerabilidade (à semelhança do que já se operou noutros ordenamentos jurídicos), o certo é que, no plano do direito constituído, não se mostra viável uma solução que admita a concorrência entre a responsabilidade objectiva do proprietário do veículo (e respectiva seguradora) e a contribuição exclusiva do lesado para a ocorrência do dano.

7. Independentemente da perspectiva com que seja encarada a questão da concorrência entre a responsabilidade objectiva do art. 503º, nº 1, do CC, e a culpa ou imputação do acidente ao lesado, nos termos do art. 570º, a resposta desemboca sempre na improcedência da acção.

Como se disse anteriormente, tal resultado decorre directamente da adopção da tese “clássica”, tendo em conta a total ausência de culpa do condutor do veículo, em contraposição com a clara violação objectiva das regras estradais por parte do menor, conclusão que não se modifica pelo facto de se tratar de um menor de 4 anos, inimputável, confiado à sua tia na ocasião em que ocorreu o acidente.

Também não passaria o filtro colocado pela segunda tese, na medida em que o embate é de imputar exclusivamente ao comportamento imprevisto e imprevisível do menor, sem qualquer interferência para o mesmo dos riscos próprios do veículo. Resultado que não poderia ser contrariada com o argumento invocado na sentença de 1ª instância de atribuição automática de um nexo de causalidade entre o acidente e a perigosidade de qualquer veículo, tendo em conta as suas dimensões, peso e velocidade. Com efeito, por mais que se pretendesse avançar por esta via alternativa, as circunstâncias do caso sempre levariam a contrariar o resultado procurado pelos AA., tendo em consideração que o acidente ficou a dever-se exclusivamente ao facto de o menor, com 4 anos, de baixa estatura, ter surgido de modo repentino de entre dois veículos estacionados e que ocultavam a sua visibilidade, não permitindo que o condutor do veículo efectuasse qualquer manobra de recurso, apesar de circular a uma reduzida velocidade.

Finalmente, uma terceira via que ainda pudesse ser projectada dependia de uma resposta afirmativa do Tribunal de Justiça à questão que integrou o reenvio prejudicial que impusesse uma interpretação do direito nacional determinante da responsabilidade da seguradora, ainda que em proporção a avaliar casuisticamente, mesmo em casos de ausência de culpa do condutor do veículo e da imputação do acidente exclusivamente ao comportamento do lesado, resultado gorado pelo teor do acórdão que foi proferido por essa instância jurisdicional.

Apesar da tese que acabou por ser afirmada no Acórdão que se reproduziu, pode dizer-se que que a jurisprudência do STJ se vem firmando actualmente no sentido da admissibilidade da concorrência entre a responsabilidade pelos riscos próprios do veículo e a culpa do lesado (ou imputação do acidente ao lesado), devendo interpretar-se o art. 505º no sentido de que a responsabilidade pelo risco só deve ser afastada quando o acidente for imputável exclusivamente ao próprio lesado ou a terceiro ou resultar exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo[3].

É relevante o que se afirma, a este propósito, no Acórdão de 01.06.2017:

No nosso entendimento, o regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505º e 570º do CC deve ser interpretado, em termos actualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a eventual imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura – o que nos afasta do resultado que decorreria de uma estrita aplicação da denominada tese tradicional: ou seja, não pode, neste entendimento, excluir-se à partida que qualquer grau de culpa do lesado (nomeadamente do utente das vias públicas mais vulnerável) no despoletar do acidente, independentemente da gravidade do facto culposo e do grau da sua efectiva contribuição para o sinistro, deva, sem mais, excluir automaticamente a responsabilidade decorrente, no plano objectivo, dos riscos próprios da circulação do veículo, independentemente da intensidade destes e do grau em que contribuíram causalmente, na peculiaridade do caso concreto, para o resultado danoso.

Esta conclusão é, em última análise, imposta pelo princípio fundamental da adequação e da proporcionalidade – que naturalmente tenderá a inviabilizar a total e sistemática desresponsabilização do detentor do veículo causador do acidente, nos casos em que foi muito intensa a contribuição para o resultado danoso de riscos agravados da circulação do veículo e diminuta a relevância da falta imputável ao lesado, cometida com culpa leve ou com escassa relevância causal para a produção ou agravamento das lesões por ele próprio sofridas.

E, por outro lado, afigura-se que esta posição é a que melhor se adequa à jurisprudência definida pelo TJUE, na sequência dos pedidos de reenvio atrás referidos, ao permitir que o regime de Direito interno em vigor suportasse o confronto com as normas e princípios de Direito Comunitário, por entender que a legislação em vigor não tem por efeito, no caso de a vítima ter contribuído para o seu próprio dano, excluir automaticamente ou limitar de modo desproporcionado o seu direito.

É, pois, este juízo de adequação e proporcionalidade que os Tribunais devem formular, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável a comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um relevante risco da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente

Voltando ao caso dos autos, importa referir, como se observou no Acórdão da Formação, que o quadro fáctico provado, no que respeita à dinâmica do acidente, se apresenta "algo problemático", importando aferir, perante a peculiaridade do caso, da questão que vem colocada sobre a concorrência entre os riscos próprios do veículo pesado e a culpa da lesada.

Como se referiu, no enquadramento factual acima descrito, BB montou o velocípede e, sem assinalar previamente a sua manobra, obliquou-o para a esquerda na direcção da faixa de rodagem; ao fazê-lo, desequilibrou-se e entrou na faixa de rodagem, a ziguezaguear, em direcção ao eixo da via; esta entrada ocorreu no momento em que o veículo pesado circulava a uma distância próxima, não tendo o respectivo condutor conseguido evitar o embate, apesar do desvio efectuado para a esquerda.

Perante estes elementos, pode afirmar-se que, num momento inicial, a lesada pretendeu prosseguir a sua marcha, passando a tripular o velocípede, obliquando-o para a esquerda para penetrar e passar a circular na faixa de rodagem (como consta do facto nº 6 e se observou na sentença, a berma encontrava-se ocupada com veículos estacionados).

Depois, porém, "por circunstâncias não apuradas" (por se ter apercebido da e impressionado com a aproximação do veículo pesado? Pelo desnível entre a faixa de rodagem e a berma (facto nº 5)? Por imperícia? Por outra causa?), a lesada desequilibrou-se, o que, em consequência, determinou que ela tenha prosseguido a marcha, entrando repentinamente na faixa de rodagem, de forma desgovernada, em ziguezague, em direcção ao eixo da via, atravessando-se, desse modo, à frente do veículo pesado e sendo embatida por este.

Verifica-se, assim, que a lesada actuou de forma ilícita, violando, designadamente o art. 12º, nº 1, do CE, pois é manifesto que não poderia iniciar a manobra e, para este efeito, penetrar na faixa de rodagem nas circunstâncias referidas.

Por outro lado, a culpa, como é sabido, exige que haja um nexo psicológico entre o facto praticado e a vontade do agente, exprimindo um juízo de reprovabilidade pessoal da conduta deste: perante as circunstâncias específicas do caso, o agente devia e podia ter agido de outro modo[4].

Ora, perante a factualidade descrita, não sofre dúvidas que a actuação da lesada foi voluntária e culposa: ela quis entrar na faixa de rodagem e acabou por fazê-lo em circunstâncias em que lhe era exigível que não o fizesse, se tivesse adoptado todas as precauções necessárias.

É certo que, ao concretizar e executar o seu referido propósito, a lesada se desequilibrou e foi, na sequência deste facto, que ela penetrou na faixa de rodagem, de forma desgovernada, em direcção ao eixo da via.

Não se provaram as causas que provocaram o desequilíbrio da lesada, ocorrido, sublinhe-se, antes de esta penetrar na faixa de rodagem. O que se passou depois não pode considerar-se inteiramente dependente da vontade dela: a entrada e travessia da faixa de rodagem, em ziguezague, foram já consequência daquele desequilíbrio, que não pode ter-se por querido pela lesada (seria absolutamente anormal que o fosse).

Repare-se que, não fora esse desequilíbrio, a lesada poderia até ter entrado (ilicitamente) na faixa de rodagem e passado a circular por ela, podendo colocar-se, então, a dúvida sobre se, considerando a dinâmica provada do acidente, teria ocorrido algum embate.

Com efeito, com o desvio para a esquerda do veículo pesado, o velocípede conduzido pela lesada acabou por ser embatido a cerca de 1,40m da berma direita (considerando o sentido em que seguiam), sendo, pois, bem possível, que, apesar da conduta ilícita da lesada, nas referidas circunstâncias, o embate acabasse por não se verificar (ou, mesmo a verificar-se, acabasse por ocorrer em termos e com gravidade diferentes).

Pode, pois, concluir-se que a conduta da lesada – o modo como entrou e atravessou a faixa de rodagem – contribuiu, de forma determinante, para a ocorrência do acidente. Essa conduta é ainda resultado do seu propósito e determinação iniciais, ou seja, da sua vontade e decisão de iniciar a travessia nas referidas circunstâncias.

Tripulava um velocípede sem motor, veículo que está na dependência do condutor e sobre o qual este exerce um completo domínio.

O seu desequilíbrio constituiu factor determinante do modo desgovernado como o velocípede passou a circular e da direcção que tomou. Não se tendo provado que tenha sido provocado por razões estranhas à condutora, aquele desequilíbrio não afasta inteiramente a culpa desta, mas é adequado a reduzi-la substancialmente.

Assim, apesar da manifesta relevância da contribuição causal da conduta da lesada, a culpa desta mostra-se substancialmente atenuada, tendo em consideração o desequilíbrio que sofreu, ainda antes de entrar na faixa de rodagem.

Nestas circunstâncias, pode colocar-se a questão de saber se é adequado, tendo em atenção o seu reduzido grau de culpa, responsabilizar exclusivamente a lesada pela ocorrência do embate.

Já acima se considerou que não é possível imputar ao condutor do veículo pesado qualquer culpa na produção do acidente, por razões que permitem igualmente ilidir a presunção de culpa (art. 503º, nº 3, do CC) que sobre ele se considerou impender (sentença).

Mas poderá afirmar-se que o veículo pesado, pela sua aptidão para a criação de riscos, foi totalmente indiferente para a eclosão do acidente?

Entende-se que não.

Trata-se de um veículo pesado de mercadorias, com um peso bruto de 30 toneladas e com acentuada perigosidade em abstracto (maior capacidade lesiva), decorrente da sua natureza e estrutura física: dimensão e peso a dificultar a capacidade de manobra.

Acresce que o local era bastante movimentado, com elevada afluência de viaturas e peões; a velocidade do pesado, de 45 km/h (sem se projectar no domínio da culpa), potenciava o risco desse veículo, tornando mais difícil a sua manobra e controlo.

Repare-se que se desconhece a distância a que se encontrava o pesado quando o velocípede penetrou na via e se o condutor ainda travou o veículo, como deveria, para além de o ter desviado para a esquerda.

Perante estes elementos, não parece que deva ser excluída a contribuição dos riscos próprios do veículo pesado para o deflagrar do acidente, concorrendo com a culpa da lesada, à luz da interpretação mais actual do art. 505º do CC, que acima se expôs.

Há que aferir e ponderar, em termos de adequação e proporcionalidade, a responsabilidade do detentor pelos riscos próprios do veículo e a sua concreta relevância causal, sendo certo que essa responsabilidade não pode ter-se por excluída só pelo facto de existir culpa da lesada (utilizadora vulnerável da via pública), havendo que ajuizar também da gravidade dessa culpa e, bem assim, a sua concreta contribuição causal.

Assim, ponderando a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo pesado e a gravidade culposa (reduzida) da conduta da lesada, com acentuada relevância causal, afigura-se-nos adequado e razoável graduar a responsabilidade em 30% para o detentor do veículo pesado e 70% para a lesada.

Resta acrescentar o seguinte:

No acórdão recorrido, a acção foi julgada improcedente por se ter entendido que o acidente foi causado por culpa exclusiva da lesada.

Tendo-se concluído pela repartição da responsabilidade, nos termos acima referidos, a revista deve proceder, com a revogação do acórdão recorrido.

Considerando, porém, o disposto no art. 679º do CPC, que exclui expressamente a aplicação ao recurso de revista do art. 665º do mesmo diploma, o Supremo não pode substituir-se à Relação na fixação da indemnização (questão que ficou prejudicada naturalmente pela solução acolhida no acórdão recorrido), devendo o processo ser remetido à Relação para esse efeito (cfr., neste sentido, o AUJ do STJ nº 11/2015).

Em conclusão:

1. A jurisprudência do STJ vem-se firmando actualmente no sentido da admissibilidade da concorrência entre a responsabilidade pelos riscos próprios do veículo e a culpa do lesado (ou imputação do acidente ao lesado), devendo interpretar-se o art. 505º do CC no sentido de que a responsabilidade pelo risco só deve ser afastada quando o acidente for imputável exclusivamente ao próprio lesado ou a terceiro ou resultar exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

2. Ocorrendo um acidente que consistiu num embate entre um veículo pesado de mercadorias e um velocípede sem motor – em que este se atravessou à frente daquele, não permitindo evitar a colisão; que tal ocorreu depois de o velocípede ter entrado na faixa de rodagem, de forma desgovernada, em ziguezague, em direcção ao eixo da via, em consequência de desequilíbrio anterior da tripulante, provocado por razões não apuradas; que não houve culpa do condutor do veículo pesado – deve considerar-se que, nessas circunstâncias, apesar da acentuada relevância causal da conduta da tripulante do velocípede, a gravidade da sua culpa é reduzida, concorrendo com os riscos próprios da circulação do veículo pesado para a eclosão do acidente.

V.

Em face do exposto, concede-se, em parte, a revista, revogando-se o acórdão recorrido, determinando-se a remessa dos autos à Relação, para que seja fixada a indemnização em função da responsabilidade que acima ficou definida do detentor do veículo pesado e da lesada.

Custas pelo recorrente e recorrida, na proporção a fixar a final.

Lisboa, 22 de Junho de 2021

F. Pinto de Almeida

José Rainho

Graça Amaral

Tem voto de conformidade dos Exmos Adjuntos (art. 15ºA aditado ao DL 10-A/2020, de 13/3, pelo DL 20/2020, de 1/5).

Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC).

_______________________________________________________


[1] Proc. nº 2992/18.4T8AVR.P1.S1
F. Pinto de Almeida (R. 392)
Cons. José Rainho; Cons.ª Graça Amaral
[2] Acessível em www.dgsi.pt. como os demais Acórdãos adiante citados.
[3] Cfr. os Acórdãos de 01.06.2017 (P. 1112/15), de 14.12.2017 (P. 511/14), de 11.01.2018 (P 5705/12), de 28.03.2019 (P. 954/13), de 27.06.2019 (P. 589/14), de 17.10.2019 (P. 15385/16), de 17.12.2019 (P. 6610/16) e de 13.04.2021 (P. 4883/17).
[4] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10ª ed., 566 e 573.