Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
103/11.6.TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: PAULO SÁ
Descritores: RESPONSABILIDADE BANCÁRIA
EXTRAVIO DE CHEQUE
RESCISÃO
Data do Acordão: 01/27/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO BANCÁRIO - ACTOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL ( ATOS BANCÁRIOS EM ESPECIAL ) / CHEQUE.
Doutrina:
- PAULO OLAVO CUNHA, na anotação ao Acórdão Uniformizador n.º4/2008, nos Cadernos de Direito Privado, n.º 25, Janeiro/Março de 2009, pp. 17 a 23.
Legislação Nacional:
DECRETO-LEI Nº 454/91, DE 28 DE DEZEMBRO (LUCH): - ARTIGOS 8.º, N.ºS 2 E 3, 11.º, AL.B), 21.º, 29.º, 32.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 13.07.2010, PROC. N.º 5478/07.9TVLSB.L1.S1; DE 29.4.2011; DE 30.05.2013, PROC. N.º 472/10.5TVPRT.P1.S1.

*
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR N.º 4/2008, DE 28/2/2008.
Sumário :
I - A causa justificativa “extravio de cheque” tem poucas possibilidades de ser provada pelo Banco, não podendo ser exigida prova da queixa-crime e, salvo situações em que a declaração de extravio, por motivos antecedentes ou contemporâneos da apresentação do cheque, suscite dúvidas, o Banco tem de ter por boa a declaração do sacador de que o cheque foi extraviado.

II - Não compete ao Banco indagar da veracidade da afirmação do seu cliente de que o cheque se perdeu, tanto mais que esta, a ser falsa, pode determinar a responsabilização criminal do seu autor.
Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça:

I. – Em 27/01/2011, AA e "BB - SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES, L.DA" intentaram (nas Varas Cíveis de Lisboa, com distribuição à 6.ª Vara) em 17/01/2011) uma acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum ordinário, contra 1) "BANCO BPI, S.A."; 2) "CC – RESTAURAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DE EVENTOS, L.DA"; e 3) DD, pedindo a condenação solidária dos Réus a pagar aos AA. a quantia de 41.800,00 €, acrescida de juros vencidos no valor de 2.849,69 € e vincendos até integral pagamento.

Para tanto, alegaram, em síntese, que:

– No cumprimento de um contrato de empreitada de construção civil, relativo à modificação duma fracção autónoma, destinada a restaurante, que, na altura, era explorada pela ora 2.ª Ré (CC, Lda.), nomeadamente para pagamento do valor da obra realizada pela sociedade ora 2.ª Autora (da qual o ora 1.º Autor é sócio e gerente), o 3.º R. (DD) preencheu, assinou e entregou aos Autores 4 (quatro) cheques, pré-datados, emitidos à ordem do 1.º Autor, sobre a conta n.º 36618320001, do Banco ..., S.A., no valor de € 10.440,00 cada, datados de 22 de Abril de 2010, de 22 de Maio de 2010, de 22 de Junho de 2010 e de 22 de Julho de 2010, tudo no valor global de € 41.760,00;

– Conforme ficou acertado entre os AA. e os 2.º e 3.º RR, tais cheques seriam pagos e tinham vencimento nas datas respectivamente neles apostas, já que a obra tinha terminado e nada mais os AA. tinham nela que efectuar;

– Contudo, no dia 23 de Março de 2010, o R. DD redigiu e entregou ao 1.º R. (..., S.A.) uma declaração, na qual ordenou a este que procedesse ao cancelamento dos aludidos cheques, alegadamente por impedimento e incumprimento contratual, e, no dia 5 de Abril de 2010, redigiu e entregou junto do 1.º R novo documento, no qual declarou que os cheques em causa não deveriam ser pagos, por motivo de extravio;

– Nos dias 26/04/2010, 26/05/2010, 23/06/2010 e 22/07/2010, o 1.º Autor apresentou a pagamento os referidos 4 cheques, tendo o respectivo pagamento sido recusado, pelo 1.º R, com a menção de "Extravio";

– Nunca tendo havido qualquer resolução e/ou incumprimento contratual, tão pouco se tendo extraviado os cheques em causa, os ora AA. ficaram desapossados, ilicitamente, das quantias apostas nos mencionados cheques, devido à actuação ilícita e concertada dos 1.º e 3.º RR, durante o decurso do prazo para a apresentação dos mesmos cheques;

– A revogação dos referidos cheques, por parte do 3.º R, violou o disposto no n.º 1 do art.º. 32.º da LUC [Lei Uniforme sobre Cheques], porquanto, anteriormente a 24 de Março de 2010, o 3.º R não indicou ao 1.º R que os cheques se haviam extraviado mas, tão só, que, os revogava, por um alegado incumprimento contratual, ordenando o cancelamento do seu pagamento, dentro do prazo da respectiva apresentação;

– Tal revogação ordenada pelo 3.º R e aceite e cumprida pelo 1.º R não tem qualquer justificação e tão pouco é válida;

– Acresce, no caso concreto, que o 1.º R indicou, na certificação da devolução dos cheques, motivos diferentes daqueles que lhe foram transmitidos pelo sacador, tendo-os devolvido por motivo de Extravio, vício este que nunca fora referido em primeiro lugar pelo sacador, ora 3.º R, na declaração de revogação que lhe enviou;

– O 3.º R agiu ilicitamente, com manifesto dolo directo, porque desejou revogar e cancelar o pagamento dos supra referidos cheques, bem sabendo que o não poderia fazer;

– Tal conduta dos 1.º e 3.º RR. causou aos A.A. o prejuízo consubstanciado nos valores constantes dos cheques, acrescido de € 10,00 por cada cheque devolvido, num total de € 40,00, em sede de despesas bancárias cujo pagamento os AA. tiveram de suportar.

– A 2.ª Ré é devedora à 1.ª Autora da aludida importância de € 41.700,00 (correspondente ao valor total dos mencionados 4 cheques), por ser esta a parcela em dívida do preço global pelo qual a 1.ª Autora realizou para ela a referida obra de remodelação duma fracção autónoma destinada a um estabelecimento comercial de restauração então explorado pela 2.ª Ré.

Os RR. contestaram separadamente, em articulados autónomos.

O R. BANCO ..., SA pugnou pela sua absolvição do pedido, alegando, para tanto, que a 2.ª Ré o informou do extravio dos cheques, motivo pelo qual não procedeu ao respectivo pagamento, existindo assim justa causa para o seu não pagamento, de harmonia com o Acórdão Uniformizador de 28/2/2008, não competindo ao Banco aferir da veracidade das declarações dos seus clientes.

A 2.ª Ré ("CC – RESTAURAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DE EVENTOS, LDA") contestou, por excepção e por impugnação, e deduziu reconvenção.

Defendendo-se por excepção, invocou a falta de causa de pedir (no que ao 1.º Autor diz respeito), porquanto não celebrou qualquer contrato com o 1.º Autor, mas sim com a 2.ª Autora.

Mais invocou a nulidade do contrato de empreitada, pelo facto de a A. não possuir alvará de construção, ainda que tenha garantido à Ré que o possuía.

Ainda em sede de defesa por excepção, alegou que a 2.ª Autora, tendo embora celebrado um contrato de empreitada com a 2.ª Ré, não cumpriu o mesmo, já porque não executou a obra dentro do prazo convencionado, já porque a realizou com defeitos que foram oportunamente denunciados, faltando ainda a realização de trabalhos que as partes haviam acordado, pelo que existia uma causa legítima de cancelamento dos cheques.

Concluiu pela nulidade do contrato (nos termos do art.º 29.º, n.º 2, do DL n.º 12/2004, de 9/01), devendo ser restituído à Ré o valor pago à A, ser a acção declarada improcedente, reduzindo-se o valor do contrato a € 50.000 e nada sendo devido à Autora (dado o valor das reparações serem de montante superior).

Em sede reconvencional, sustentou que, não tendo a A. concluído a obra, é devida pela mesma a indemnização correspondente a 1% do valor da obra, até à resolução definitiva do contrato, ocorrida em 9 de Abril de 2010, ou seja, o valor total de 26.500 €. Além disso, a não realização da obra teria impedido a Ré de abriu o restaurante projectado para o local, ainda que tenha suportado as rendas do mesmo, sem contudo retirar lucro, computando tais danos no valor de € 23.258,32, a que acresce o valor de € 10.000 de rendas pagas. Ademais, devido à má realização das obras, teria perdido clientela, computando tal dano no valor de 10.000 €.

Em sede reconvencional, peticionou a condenação da Autora, a título de cláusula penal, no pagamento do valor de € 26.500, e na indemnização pelos prejuízos e lucros cessantes no valor de € 23.258,32 e € 20.000.

O 3.º Réu (DD) também contestou, alegando, em síntese, que apenas actuou como gerente da 2.ª Ré, sendo assim parte ilegítima, impugnando porém a matéria articulada pelos AA. e dizendo que o A. exigiu o pagamento em seu nome, dado a 2.ª A. ter cessado a sua actividade, – o que consubstanciaria um crime fiscal –, concluindo pela improcedência da acção e pela sua absolvição.

Os AA. replicaram, mantendo o alegado na PI e impugnando a matéria do pedido reconvencional.

A 2.ª Ré treplicou e pediu a condenação dos AA, como litigantes de má-fé.

Os AA. foram convidados a aperfeiçoar o alegado na PI quanto aos cheques e o 1.º R. manteve o alegado em sede de contestação.

Findos os articulados, o processo foi saneado, organizou-se a base instrutória, realizou-se a instrução do processo e teve lugar a audiência de discussão e julgamento, finda a qual foi proferida sentença (datada de 6/09/2013) que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, decidiu:

«a) Absolver os réus Banco ... e DD do pedido dos AA;

b) Absolver a A. do pedido reconvencional deduzido pela ré "CC, Lda";

c) Condenar a ré CC, Lda a pagar à A. "BB, Lda" quantia a liquidar e correspondente às obras efectuadas, com exclusão dos valores correspondentes às obras em falta e referidos no ponto 18, e o valor da diferença do material, quanto a preço, denunciado no ponto 19 dos factos provados, acrescido de juros, considerandos e ainda o valor já pago pela ré e referido em 6. dos mesmos factos.

Custas pela A. e 2.ª ré, na proporção do decaimento.»

 

Inconformados com o assim decidido, os Autores apelaram da referida sentença, tendo a Relação acordado em conceder parcial provimento à Apelação das Autoras, alterando a sentença recorrida, no segmento em que absolveu do pedido o Réu "BANCO ..., S.A.", e condenando este, solidariamente com a Ré "CC – RESTAURAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DE EVENTOS, LDA", a pagar à Autora "BB – SOCIEDADE DE CONSTRUÇÕES, LDA." a quantia que se liquidar em execução de sentença correspondente ao preço global convencionado da empreitada (€ 60.000,00 [sessenta mil euros]), deduzido i) das quantias já pagas pela Ré "CC – RESTAURAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DE EVENTOS, LDA." (€ 7.860,00 [sete mil, oitocentos e sessenta euros]) + € 10.440,00 [dez mil, quatrocentos e quarenta euros]; ii) do valor das obras não realizadas e denunciadas em falta mencionadas na resposta aos Quesitos 23º e 24º; iii) bem como da diferença, em matéria de preço, entre o valor do material aplicado na parede de fundo da entrada principal (aglomerado de madeira pintado com tinta de cor preta) e o valor do material orçamentado no ponto 4 (MDF preto).

No mais, confirmam a sentença recorrida. “

Inconformado, o R. .... interpôs da referida decisão recurso de revista, recurso que foi admitido.

O A. conclui, em sumula, as suas alegações, do seguinte modo:

…”O presente recurso de revista versa sobre duas questões de direito, a apreciar pelo Supremo Tribunal de Justiça.

 

São elas:

a) Da licitude da conduta do Banco, ao não pagar os cheques com indicação de extravio;

b) Da verificação dos pressupostos cumulativos previstos no artigo 483º do Código Civil, geradores da obrigação de indemnizar, em sede de responsabilidade civil extracontratual.

Quanto à primeira questão:

Ficou provado nos autos que não foi pela declaração junta aos autos a fls. 108 a 110, datada de 23.03.2010, que o Banco não procedeu ao pagamento dos cheques.

Tal declaração não foi aceite pelo Banco como motivo atendível para a revogação dos cheques, tal como, aliás, consta do e-mail junto aos autos a fls. 593 a 598.

Como tal pedido foi recusado, a declaração não ficou registada, nem passou a constar do sistema informático do Banco, pelo que não era do conhecimento da funcionária que atendeu o Sr. DD, gerente da Ré "CC, Lda.", em 05.04.2010, quando este veio ao Banco comunicar o extravio de 5 cheques. Conforme essa mesma funcionária – EE – arrolada como testemunha do Banco, deu conhecimento ao Tribunal, aquando da sua inquirição.

O Banco não procedeu ao pagamento daqueles cheques, porque tinha em seu poder uma declaração expressa da sua Cliente, assinada pelo seu gerente em 05.04.2010, a comunicar o extravio dos cheques.

Assim sendo, e face à Jurisprudência citada e à prova produzida nos autos, afigura-se que o comportamento do Banco, ao recusar o pagamento dos 4 cheques por motivo de "Extravio", não constituiu um facto ilícito, não devendo ser condenado, por esse motivo.

Quanto à segunda questão:

Estamos perante uma acção de responsabilidade civil extracontratual, regulada pelo artigo 483.º do Código Civil, no que à actuação do Banco BPI diz respeito.

Os requisitos necessários e cumulativos para a verificação da existência deste tipo de responsabilidade são:

– O facto ilícito;

– A culpa;

– O nexo de causalidade;

– O prejuízo.

O ónus da prova compete exclusivamente aos Autores.

No caso dos autos essa prova não foi feita.

Com efeito, os cheques foram emitidos à ordem de BB.

O contrato de empreitada foi celebrado entre a sociedade BB – Sociedade de Construções, Lda. e a Ré sociedade "CC, Lda".

A obra foi feita pela sociedade BB – Sociedade de Construções, Lda. e não por AA.

Não estão verificados os requisitos necessários para a obrigação de indemnizar, por parte do Banco relativamente ao beneficiário dos cheques, AA, nomeadamente, o prejuízo por ele sofrido, como pessoa singular.

E, apesar de constar na Alínea E) dos factos assentes, que foi com base no acordo – contrato de empreitada celebrado entre a BB, Lda. e a CC, Lda. – que foram emitidos e entregues os cheques, nunca tal afirmação poderá responsabilizar o Banco ora Réu perante a Autora sociedade.

O qual apenas responde perante o beneficiário dos cheques.

A existir obrigação de indemnizar, por parte do Banco, teria de ser relativamente ao beneficiário dos cheques e não relativamente à sociedade Autora.

 

Não há qualquer culpa do Banco, e muito menos em relação à sociedade BB, Lda.

O Autor AA, única entidade perante quem o Banco Réu poderia responder, pelo não pagamento dos cheques, uma vez verificados todos os requisitos previstos no artigo 483º do CC, não logrou provar o seu prejuízo, nem a culpa do Banco, nem o nexo de causalidade entre ambos.

Pelo que, quanto a este Réu terá o Banco de ser absolvido do pedido.

Quanto à sociedade, BB, Lda., não tendo a mesma tido qualquer intervenção nos cheques, nunca o Banco poderá responder, perante ela, por responsabilidade civil extracontratual, por facto ilícito.

Pelo que, também quanto a ela, terá o Banco de ser absolvido do pedido.

Não estão preenchidos todos os requisitos do artigo 483.º do Código Civil, que são cumulativos, para que o Banco seja condenado a indemnizar a Autora "BB, Lda.", em sede de responsabilidade civil extracontratual.

Pelo que terá sempre, de ser absolvido do pedido contra si deduzido pelos Autores.”

Os AA. contralegaram, sustentando a bondade da decisão recorrida.

Cabe apreciar e decidir.

II. Fundamentação

De Facto

II.A. São os seguintes os factos dados como provados, na 1.ª instância que não foram alterados pela Relação:

1. A ré "CC, L.da" representada pelo 3º R. DD preencheu, assinou e à ordem do autor AA, quatro cheques, da conta nº ..., do Banco ..., SA, no valor de €: 10.440,00, cada, com os seguintes elementos: – nº ..., datado de 22 de Abril de 2010; – nº ..., datado de 22 de Maio de 2010; – nº ..., datado de 22 de Junho de 2010; – nº ..., datado de 22 de Julho de 2010, tudo num total de € 41.760,00 – cf. Cópias dos cheques juntos a fls. 22 a 25 cujo teor se dá por reproduzido;

2. Todos os referidos cheques foram apresentados a pagamento, mensalmente e a partir de Abril a Julho de 2010 e foram devolvidos sem pagamento com a indicação de "extravio", com datas de 26/4/2010, 26/05/2010, 23/06/2010 e 22/07/2010, respectivamente;

3. A ré "CC, L.da", representada pelo 3.º R., enviou ao Banco ..., SA. uma comunicação datada de 05/04/2010, dizendo "solicito que não proceda ao pagamento do(s) cheque(s) abaixo indicados por motivo de extravio. Cheque(s) nºs ..., ..., ..., ... e ... (cf. Doc. de fls. 61 cujo teor se reproduz);

PRIMEIRA 1– A A. e a 2ª R., por documento particular, datado de 2 de Fevereiro de 2010, denominado "Contrato de Empreitada" e anexo o orçamento 66/09, juntos a fls. 26 a 29 e cujo teor se reproduz, acordaram entre si, nos seguintes termos: "PRIMEIRA 1- A Segunda Outorgante dedica-se à actividade de restauração e é locatária da Loja B, sita na Rua ..., em Lisboa, pretendendo nela instalar um estabelecimento comercial de restauração e bebidas. 2– A Primeira Outorgante é uma sociedade que se dedica à realização de obras e trabalhos de construção civil. SEGUNDA 1– A Segunda Outorgante encomendou e adjudicou à Primeira Outorgante, todos os trabalhos constantes do orçamento nº 66/99, que esta lhe apresentou e ofereceu, e que aqui se dá como integralmente reproduzido, constituindo um anexo ao presente contrato. 2– A Primeira Outorgante obriga-se a realizar, de forma diligente, e de acordo com as regras da arte aplicáveis ao sector, para a Segunda Outorgante, todos os trabalhos constantes do respectivo orçamento, no supra referido locado, com excepção dos trabalhos relativos à aquisição e instalação dos aparelhos de ar condicionado, cozinha, mesas, cadeiras e sofás. TERCEIRA 1– O preço global dos trabalhos a realizar pela Primeira Outorgante, e que a Segunda outorgante se obriga a pagar àquela, é de €:50.000,00 (cinquenta mil Euros), acrescido de IVA à taxa em vigor, ou seja, no valor total de € 60.000,00. (sessenta mil Euros). 2– O pagamento da quantia referida no nº anterior é feito da seguinte forma: a) €:7.800,00 (sete mil e oitocentos Euros) até ao dia 27 de Janeiro de 2010; b) A restante parte do preço será paga pelo Segundo Outorgante, em cinco prestações, iguais, mensais e sucessivas, no valor de € 10.440,00 (dez mil quatrocentos e quarenta Euros), vencendo-se a primeira no próximo dia 22 de Março de 2010, e, as seguintes, em igual dia dos meses imediatamente subsequentes. c) As quantias referidas na alínea anterior, serão tituladas por cinco cheques, devidamente preenchidos, e assinados, pela Segunda Outorgante, e pré-datados, a favor da Primeira Outorgante, que lhe serão entregues nesta mesma data, comprometendo-se esta, apenas em descontá-los nas suas respectivas datas de vencimento, que coincidem com as datas referidas em b). QUARTA 1– A Primeira Outorgante compromete-se a concluir a obra em causa, até ao próximo dia 15 de Fevereiro de 2010, excepto se o não puder efectuar, devido ao atraso no fornecimento de materiais e, em especial, no que se refere às demais aparelhagens de ar condicionado. 2– A não conclusão da obra por motivo imputável à Primeira Outorgante, constitui-a na responsabilidade de indemnizar a Segunda Outorgante, a titulo de única cláusula penal, no valor correspondente a um por cento do valor global da presente empreitada, por cada dia de atraso. QUINTA Quaisquer trabalhos a mais deverão constar de documento escrito, assinado por ambas as partes, no qual deverá constar, de forma especificada, os trabalhos em causa, o seu preço e prazo de execução. SEXTA 1– Logo que a obra se encontre concluída a, e por solicitação da Primeira Outorgante, proceder-se-á à necessária vistoria destinada à entrega da obra. 2– Caso a vistoria em causa não se realize na data proposta pela Primeira Outorgante, por motivo que lhe não seja imputável, considera-se a obra finalizada na data proposta. SÉTIMA O prazo e os limites de garantia legal da obra, seguem o disposto no artigo 1225º do Código Civil.";

5. Foi com base nesse acordo que foram emitidos e entregues os cheques referidos em 1.;

6. A 2ª ré pagou à A. relativamente à obra em causa pagou o valor de € 7.860,00, bem como o valor de € 10.440,00;

7. Com data de 23 de Março de 2010, a ré "CC", representada pelo 3º R., comunicou à ré Banco ..., que os cheques n.ºs ..., ..., ..., ... e ..., "dado que o empreiteiro abandonara a obra sem concluir a mesma iremos no decurso desta resolver o contrato de empreitada. Em face do exposto entendemos ter sido vítimas de uma situação em que fomos induzidos em erro no momento da celebração do contrato já que não existia intenção do empreiteiro em concluir o mesmo tendo a sua actuação apenas visado a obtenção dos cinco cheques pré-datados. Em face do exposto somos obrigados a resolver o pagamento dos cheques já identificados”;

8. Em Setembro de 2009, o R. DD em representação da ré "CC" contactou o A em representação da A "BB, L.da" para que esta, no exercício da sua actividade, lhe fizesse obras de remodelação de um estabelecimento comercial a ser explorado pela ré, do ramo da restauração sito no Largo ..., em Lisboa;

9. A A "BB, L.da" na sequência do referido contacto apresentou um orçamento, datado de 9 de Setembro de 2009, com a seguinte orçamentação dos trabalhos: –execução de canalizações de águas e esgotos; – execução de instalações eléctricas conforme projectos e memórias descritivas; – partir paredes; – executar paredes; – instalar alarmes e detectores de incêndio; – executar tecto falso em pladur com isolamento; – executar sancas iluminadas; – assentar azulejo nas paredes; – pintar paredes; – isolar paredes; – executar algumas casas de banho que faltem; – executar circuito de iluminação de emergência, tudo nos termos constantes do documento junto a fls. 28 e 29 cujo teor se reproduz;

10. Mais referiu a A nesse documento, que todas as licenças são por conta do proprietário;

11. A obra iniciou-se em Outubro de 2009, mas o projecto de arquitectura da mesma apenas data de 2010 e o mesmo foi aprovado em 17/03/2010 pela Câmara Municipal de Lisboa;

12. Todas as obras foram realizadas pela A com excepção das aludidas em 18° e 19º;

13. A A, em Janeiro de 2010, emitiu as facturas nºs 15; 16; 17; 18 e 19, juntas a fls. 187 a 189 dos autos, no valor total de 36.000€;

14. A A. emitiu e enviou à R. CC, L.da, a factura n.º 21, no valor da obra, de € 60.500,00 junta a fls. 189, datada de 2/12/2010;

15. A 2ª R. começou a funcionar com o respectivo estabelecimento comercial de restauração, abrindo a porta aos clientes e fornecendo-lhes refeições, em Março de 2010;

16. A Autora após o dia 15 de Fevereiro de 2010 deslocou-se ocasionalmente à obra deixando de comparecer em obra após a 2.a semana de Março;

17. A 2.ª Ré enviou à Autora a carta datada de 6 de Abril de 2010, dizendo que ficaria a aguardar, pelo prazo máximo de 5 dias, a marcação da vistoria com vista á verificação da obra, e caso nada fosse dito, agendou a vistoria para o dia 19 de Abril de 2010 pelas 9 horas;

18. Por carta datada de 19/05/2010, junta a fls. 102 a 105 e cujo teor se reproduz, a ré sociedade denunciou à A. os defeitos que enunciou na carta em causa, verificando-se em obra os seguintes: na entrada o quadro de luz não tem trinco e não se encontra concluída a pintura da esquadria ou moldura do quadro de luz; não existe quadro eléctrico nessa zona, o cabo da iluminação exterior encontra-se solto, na sala as juntas de ligação entre o piso de madeira e o piso em pedra estão partidas, a sanca de luz não foi acabada, não existe qualquer placa de vidro a fazer de "prateleira", o acabamento/revestimento da escada e corrimão não se encontra executado, não forma colocadas as portas superiores do armário existindo as calhas, a iluminação da sala tem tons de luzes diferentes, no balcão este tem folgas na junção das placas ou paneis, não foi colocada a iluminação no fundo do balcão conforme o projecto de Março de 2010, na cozinha a porta da cozinha tem falta de acabamento, existe folga na união entre o aro superior da porta e a ombreira resultante do deficiente apoio ou vigamento da prumada; o esgoto não possui qualquer protecção de modo a evitar entupimentos, na caleira deveria existir um ralo de campainha o qual não foi colocado, não existem bocas de limpeza necessárias para uma eventual limpeza em caso de entupimento; os negativos abertos no tecto da garagem do edifício não foram acabados, não foram colocadas as caixas de retenção de gorduras; no Wc Senhoras falta colocar um azulejo e no Wc Homens o urinol encontra-se mal montado e não foi efectuada a limpeza do silicone existente na parede, o vidro de protecção do urinol não se encontra fixo, a torneira não foi colocada correctamente, encontrando-se torta, não há água quente nos sanitários mas existe um termoacumulador e previsão de canalização ou tubagem respectiva nos termos do projecto de esgotos quer nesta quer no Wc de Serviço;

19. Além do referido a Autora BB – Sociedade de Construções, L.da relativamente à parede de fundo da entrada principal não foi a mesma realizada em MDF preto, conforme orçamentado no ponto 4, mas sim em aglomerado de madeira pintado com tinta de cor preta;

20. A sociedade ré "CC" celebrou com a proprietária das instalações referidas um contrato de arrendamento, celebrado em Outubro de 2009, pelo prazo de dez anos, pela renda mensal de 7.500€, mas com pagamentos iniciais inferiores até aos 3 anos de vigência do contrato nos termos constantes do documento junto a fls. 112 a 117, tendo pago correspondente ao mês de Fevereiro de 2010, o valor de 4.500 € líquidos de renda;

21. A ré CC apresentou declarações de IVA no valor tributável de 10.379,27, em Março de 2010, 25.582,37€, em Junho de 2010 e de 2.802,23€ em Setembro de 2010.

II.B. De Direito

II.B.1. A grande divergência entre o acórdão recorrido e a decisão da primeira instância radica fundamentalmente no diverso entendimento sobre dever ou não Banco estar vinculado a um especial dever de diligência, não devendo recusar o respectivo pagamento com o fundamento em extravio, sem exigir a prova desse extravio ou averiguar da credibilidade de tal alegação.

Dispensar-nos-emos de repetir a argumentação da primeira instância que o acórdão recorrido transcreve nem a parte substancial deste, uma vez que no essencial se repete a argumentação do acórdão uniformizador n.º 4/2008, de 2872/2008 de que fomos relator.

Acrescentou-se no acórdão recorrido que PAULO OLAVO CUNHA, na anotação que publicou a este aresto nos Cadernos de Direito Privado, n.º 25, Janeiro/Março de 2009, pp. 17 a 23, dá apoio a essa tese, embora não acompanhando toda a sua argumentação (posição igualmente defendida por este Autor na sua dissertação de doutoramento, intitulada "Cheque e convenção de cheque", apresentada antes do referido Acórdão mas só objecto de arguição em data posterior).

Sustentou-se, porém, que, no caso, não se teria de aplicar directamente a doutrina do acórdão uniformizador, porquanto não ocorreu qualquer revogação dos cheques.

Certo é – volta a dizer-se no acórdão recorrido – que, no dito acórdão uniformizador –, «os casos de extravio, furto e outros, de emissão ou apropriação fraudulentas do cheque, embora muitas vezes referenciados como justificando a respectiva revogação, exorbitam do âmbito da previsão do art. 32.º da LUCH, não decorrendo desta norma qualquer obstáculo à recusa do pagamento de tais cheques pelo sacado»,

«Não pode, em casos tais, pretender-se aplicável o artigo 32.º apenas porque o titular da conta criou, com a comunicação ao banco, uma aparência de revogação. Ninguém, decerto, sustentará que um cheque furtado e depois subscrito a título de saque com assinatura falsa possa ser pago dentro do prazo de apresentação, só porque o aparente sacador advertiu imediatamente o banco interditando-lhe o pagamento.

Nem se estará aí perante uma revogação, nem se integraria, consequentemente, a previsão do art. 32.º»

Prossegue o acórdão recorrido na transcrição de argumentos aduzidos no acórdão uniformizador, como os que a seguir se referem:

«compaginada a redacção do art. 32.º da LUCH, com a do art. 17.º das Resoluções da Haia de 1912, verifica-se que do âmbito da previsão daquele normativo estão excluídos os casos de extravio, furto e outros, de emissão ou apropriação fraudulentas do cheque.

Apenas o art. 21.º da LUCH incidentalmente se ocupa da matéria, por razões de necessidade do comércio, a propósito da aquisição, a non domino e de boa fé, do cheque»;

«No direito extracambiário interno, esta matéria estava regulada, expressis verbis, no § único do art. 14.º do Dec. n.º 13.004 [«Se porém o sacador, ou o portador, tiver avisado o sacado de que o cheque se perdeu, ou se encontra na posse de terceiro em consequência de um facto fraudulento, o sacado só pode pagar o cheque ao seu detentor se este provar que o adquiriu por meios legítimos»], cuja vigência (…) terá cessado com a adopção da LUCH.

Através do DL n.º 316/97, ao aditar o n.º 3 ao art. 8.º do DL n.º 454/91) situações de «falsificação, furto, abuso de confiança ou apropriação ilegítima do cheque», constituindo causas de recusa justificada de pagamento por parte do Banco sacado (n.º 2 do artigo, igualmente na redacção daquele decreto-lei).

«Tais situações não cabem no conceito de revogação (...) nem estão compreendidas na proibição à instituição sacada do pagamento do cheque, por parte do sacador, constante da alínea b) do art. 11.º do mesmo diploma [alínea c), na redacção anterior ao DL n.º 316/97]».

Diz-se ainda no acórdão recorrido que também PAULO OLAVO CUNHA (na já referida anotação que publicou ao acórdão uniformizador de jurisprudência nº 4/2008 “acentua que as situações de justa causa de não pagamento do cheque previstas no § único do art. 14.º do Dec. n.º 13.004 (disposição que este Autor considera estar ainda em vigor) – a saber: o extravio do cheque ou o facto de ele se encontrar na posse de terceiro em consequência de um facto fraudulento - «não se enquadram no conceito de revogação, mas constituem motivos que, a ocorrerem, a legitimam»”.

Até aqui nada há no acórdão que mereça detalhe ou discordância pelas razões já apontadas.

O acórdão refere, de seguida, que o motivo aduzido para a devolução dos 4 cheques apresentados a pagamento pelos ora Autores/Apelantes, dentro do prazo de 8 dias marcado no art. 29.º da LUCH, foi o "extravio", puro e simples, dos mesmos cheques.

Ora, segundo estabelece o n.º 2 do artigo 8.º do DL. n.º 454/91, na redacção aplicável «O disposto neste artigo [no seu n.º 1: “A instituição de crédito sacada é obrigada a pagar, não obstante a falta ou insuficiência de provisão, qualquer cheque emitido através de módulo por ela fornecido, de montante não superior a (euro) 150”] não se aplica quando a instituição sacada recusar justificadamente o pagamento do cheque por motivo diferente da falta ou insuficiência de provisão».

Ainda à cautela, diz-se no acórdão que há quem entenda que «a declaração ou simples informação de extravio de um cheque por parte do seu sacador toma lícita a sua recusa de pagamento pelo Banco sacado, constituindo uma justa causa para essa recusa, não configurando qualquer acto ilícito que gere a obrigação de indemnizar». Donde que «a informação de "extravio" prestada pelo sacador ao banco constitui motivo explícito bastante e sério para que este recuse o pagamento, sem que lhe possa ser oposto que, em face da eventual falta de provisão, deveria exigir daquele maior Informação, por haver uma forte probabilidade de se não haver verificado essa anomalia» e cita como exemplos deste entendimento um acórdão da Relação de Coimbra e outro deste Supremo Tribunal.

Acontece que, seguidamente, refere-se haver outro entendimento, citando como exemplo dele o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/4/201011, onde se afirma que «o banco sacado não está eximido de agir com a máxima diligência, só aceitando os motivos justificantes para o não pagamento no período legal de apresentação, quando disponha de indícios sérios de que a situação comunicada pelo sacador se verificou ou, pelo menos, dadas as circunstâncias concretas de cada caso, tinha grande probabilidade de se ter verificado».

«Assim, alegando o sacador furto ou roubo do título, por exemplo, deverá o sacado exigir a competente participação crime (se não acompanhar a ordem de não pagamento) ou, tratando-se de incapacidade, a eventual prova dela (que muitas vezes será documental).»

Salvo o devido respeito, que é muito pela opinião expressa no citado acórdão, cremos que se fez uma leitura útil do mesmo, mas não a que seria absolutamente a adoptada, neste caso, pelos respectivos subscritores.

Na verdade, como se disse supra na primeira afirmação extraída do referido acórdão, o banco só deve aceitar «os motivos justificantes para o não pagamento no período legal de apresentação, quando disponha de indícios sérios de que a situação comunicada pelo sacador se verificou ou, pelo menos, dadas as circunstâncias concretas de cada caso, tinha grande probabilidade de se ter verificado.»

Com efeito essa conclusão vai fundada na lição do Autor que aí se cita:

«Como observa Evaristo Mendes (cof. O Actual sistema de tutela da fé pública do cheque – Direito e Justiça separata)”... seja como for, para que o sistema de protecção assim concebido ter verdadeira efectividade prática – e foi essa a intenção do legislador – o requisito dos “indícios sérios” deve ser interpretado de modo exigente, considerando, portanto, como ilícita a recusa de pagamento sempre que o banco não demonstre estar na posse de elementos dos quais resulte uma forte probabilidade de se haver verificado uma das mencionadas anomalias”.

Mas acrescenta-se, de seguida, “embora, segundo pensamos, não deva ir-se ao ponto de exigir do banco a prova efectiva da causa justificativa invocada pelo sacador.

Não é essa a sua vocação.”

Passou, então a explicitar-se o que deveria ser exigido, em caso de furto ou roubo ou em caso de incapacidade, nos termos supra transcritos.

Não entendeu o relator do acórdão em questão ser necessário prosseguir com mais divagações sobre outras causas justificantes, salvo as que interessavam directamente ao caso que eram “vício na formação da vontade” e “Falta ou vício na formação da vontade.”

E entendeu depois que não havia sido o banco diligente no caso concreto, porquanto a causa não estava minimamente concretizada.

«Aliás, mais apropriadamente se dirá que não há causa, visto que não se referem os factos que a constituem e são esses factos (no caso completamente omitidos) que posteriormente hão-de ser ou não qualificados juridicamente como falta ou vício na formação da vontade.»

Sem pôr de parte que o Banco deve procurar que o seu cliente forneça elementos para tornar credível a causa justificativa apresentada, há que reconhecer que o extravio é uma causa justificativa que tem poucas possibilidades de ser demonstrada. Não pode exigir-se prova da queixa crime e, salvo situações em que a declaração de extravio por motivos antecedentes ou contemporâneos da apresentação do cheque suscite dúvidas, o banco tem de ter por boa a declaração do sacador de que o cheque foi extraviado, isto é, que não sabe o que lhe aconteceu ou onde se encontra e, por isso se está em boas mãos.

É uma afirmação que se caracteriza por uma grande imprecisão, pois o sacador, ao fazê-la, se limita a dizer que não sabe o destino que foi dado ao cheque, isto é, reconhece não lhe ter dado voluntária e conscientemente um destino, pelo que não sabe se o mesmo foi furtado, destruído, involuntariamente entregue ou, pura e simplesmente, perdido.

Temos por correcto o entendimento de que ao banco não compete indagar da veracidade da afirmação do seu cliente de que o cheque se perdeu, tanto mais que esta, a ser falsa, pode determinar a responsabilização criminal do seu autor.

É, por isso, inaceitável, na nossa perspectiva, o entendimento sufragado no acórdão recorrido de que, nas circunstâncias descritas havia motivos mais do que suficientes para duvidar da veracidade da comunicação de extravio, tudo levando a crer que ela não correspondia à verdade.

Não há, in casu, qualquer justificação para que se entenda que o Banco deveria e tinha possibilidade de confrontar a anterior revogação dos cheques com a nova declaração de extravio.

A comunicação da revogação dos cheques não foi aceite pelo Banco, pelo que, não tendo os cheques sido ainda apresentados, não se justificaria manter em arquivo uma declaração que o Banco já havia dito não poder produzir efeitos, o que implica dever considerar-se manifestamente excessivas as afirmações de que “a declaração de extravio foi desacompanhada de qualquer prova documental da competente participação criminal”, “que havia motivos mais do que suficientes para duvidar da veracidade da comunicação de extravio, tudo levando a crer que ela não correspondia à verdade” e que “a comunicação feita pela sacadora ao sacado de extravio dos cheques era falsa”.

Uma possibilidade de suscitar perante o Banco o alerta sobre a possível falsidade das declarações do sacador seria a de o tomador ter reagido ao não pagamento dos primeiros cheques, pondo em questão o alegado “extravio”.

Como isso não aconteceu, o Banco, justificadamente, consolidou o crédito na declaração do sacador de que os cheques teriam sido extraviados.

Repare-se que os AA. fundam a acção contra o Banco na aceitação por este de uma revogação dos cheques que não se provou.

Fazer equivaler a aceitação por boa da declaração de extravio a uma revogação encapotada afigura-nos nos excessiva e exigir do banco, neste caso, uma confirmação por parte do seu cliente de que está a falar verdade implica a admissão de que é a má-fé e não a boa-fé, como deve ser, a reger as relações contratuais, o que não deixará de afectar a relação banco-cliente.

Outra decisão citada no acórdão em apoio do entendimento sufragado (Acórdão de 30.05.13, proc. 472/10.5TVPRT.P1.S1) apresenta-se ainda mais frágil, em termos de fundamentação. Com efeito, deu-se nele como provado que o Banco sacado, em 30/08/2002, recebeu do titular “uma ordem de cancelamento do cheque (livro de 150)” referentes à conta n.º 000000 do Banco réu, titulada em nome daquela, “pela qual solicitava o extravio por roubo de todos os cheques activos”. Sendo que entre os cheques activos à data se incluíam os cheques referidos nos pontos 1º e 2º”

Os cheques em causa foram apresentados a pagamento em 2006, isto é, 4 anos depois.

A razão pela qual se entendeu que a referida declaração não é verdadeira é que “ficou provado que os referidos cheques foram entregues aos autores pelo sócio gerente da sociedade “DD –, L.da”, em finais de Dezembro de 2006 e que “os autores haviam emprestado à referida sociedade diversas quantias que totalizaram os valores constantes desses cheques, em virtude de esta atravessar dificuldades financeiras (…), tendo os aludidos cheques sido entregues aos aqui autores em pagamento de tais valores”.

Ou seja, em 2002, o banco recebe uma comunicação de que um livro de 150 cheques (parte dos quais ainda activos, ou seja, susceptíveis de produzir efeitos como títulos) se teriam extraviado por roubo.

Independentemente da imperfeição da declaração certo é que provavelmente o Banco anotou essa declaração.

Não se sabe quantos desses cheques foram apresentados a pagamento e qual a atitude do banco relativamente a eles.

Mas, mesmo que não tenham existido outros casos, o simples facto de os cheques serem apresentados a pagamento 4 anos depois, torna altamente verosímil a sua utilização indevida, apesar de não haver sinais de falsificação de assinaturas.

O facto de se ter provado que os cheques foram regularmente emitidos e entregues e titulavam empréstimos não tem qualquer interesse para avaliar a posição do banco, quando recusou o pagamento, muito antes de se ter provado o que quer que seja.

Por isso, limitamo-nos a acompanhar inteiramente o voto de vencido constante do referido acórdão, onde com mais desenvolvimento se explicita o erro de raciocínio em que assenta a tese que fez vencimento.

E também concordamos com o acórdão deste Tribunal de 13.07.10, proc. 5478/07.9TVLSB.L1.S1, onde se afirma:

“É que o aviso de extravio, a acompanhar a declaração de cancelamento, feito pelo sacador ao sacado, constitui precisamente uma forma de proibição de pagamento, como se disse distinta da revogação, a que o Banco sacado se encontra sujeito face ao disposto no art.º 1161º, al. a), do Cód. Civil, uma vez que, como acima se referiu, o contrato de cheque constitui uma forma de contrato de mandato. Ou seja, a comunicação do sacador ao sacado de cancelamento do cheque por motivo de extravio constitui causa justificativa de recusa do pagamento do cheque pelo Banco, que consequentemente, não se encontrando obrigado ao pagamento, não viola, pela sua recusa, qualquer obrigação.”

Consequentemente, entendemos que o banco sacado não cometeu qualquer ilícito, antes tendo cumprido com a diligência exigível ao caso concreto.

Este entendimento prejudica o conhecimento da segunda questão suscitada.

III. – Pelo exposto, acordam em conceder a revista, revogando o acórdão recorrido na parte em que condenou o Banco recorrente, mantendo no mais o decidido.

Custas aqui e nas instâncias pelos AA. e RR, na proporção do decaimento.


Lisboa, 27 de Janeiro de 2015



Paulo Sá ( Relator)
Garcia Calejo
Hélder Roque