Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08P2961
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
CRIMES DE PERIGO
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
ILICITUDE CONSIDERAVELMENTE DIMINUÍDA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Nº do Documento: SJ200810290029613
Data do Acordão: 10/29/2008
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Sumário :

I - O art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01, que define o crime de tráfico e outras actividades ilícitas relacionadas com substâncias estupefacientes, descreve de maneira assumidamente compreensiva e de largo espectro a respectiva factualidade típica.
II - Tal preceito contém a descrição fundamental – o tipo essencial – relativa à previsão e ao tratamento penal das actividades de tráfico de estupefacientes, construindo um tipo de crime que assume, na dogmática das qualificações penais, a natureza de crime de perigo: a lei, nas condutas que descreve, basta-se com a aptidão que estas revelam para constituir um perigo para determinados bens e valores (a vida, a saúde, a tranquilidade, a coesão interindividual das unidades de organização fundamental da sociedade), considerando integrado o tipo de crime logo que qualquer das condutas descritas se revele, independentemente das consequências que possa determinar ou determine – a lei faz recuar a protecção para momentos anteriores, ou seja, para o momento em que o perigo se manifesta.
III - Os tipos de crime de perigo abstracto descrevem acções que, segundo a experiência, conduzem à lesão, não dependendo da perigosidade do facto concreto mas sim de um juízo de perigosidade geral.
IV - O crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21.º do DL 15/93, de 22-01, é um crime de perigo comum, visto que a norma protege uma multiplicidade de bens jurídicos, designadamente de carácter pessoal, reconduzidos à saúde pública. E é, também, um crime de perigo abstracto porque não pressupõe nem o dano nem o perigo para um dos concretos bens jurídicos protegidos pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para as espécies de bens jurídicos protegidos, abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para causar um perigo a esses bens.
V - Por outro lado, o preceito em questão é caracterizado por uma estrutura progressiva que pretende abarcar a multiplicidade de condutas em que se pode desdobrar a actividade ilícita relacionada com o tráfico de estupefacientes. Tal estrutura concretiza-se com a integração vertical em três tipos legais fundamentais que revelam a maior ou menor gravidade desta actividade em relação ao tipo fundamental do art. 21.º, a saber, o art. 24.º, no sentido agravativo, e o art. 25.º, no sentido atenuativo.
VI - A opção que a jurisprudência consagrou relativamente a este ilícito tem como paradigma a teoria das condutas alternativas, que radica na consideração de que as diversas condutas não são autónomas em si, mas alternativas, de tal maneira que para a subsistência do delito é indiferente que se realize uma ou outra, permanecendo um só delito ainda que se realizem as diversas acções descritas.
VII - Nestes casos, a razão pela qual se castiga por um único crime não radica na existência de um concurso de normas, mas sim na especial estrutura delitiva, já que se trata de um delito de condutas alternativas que estão entre si numa relação de progressão criminal: do cultivo de droga passa-se à fabricação de produtos estupefacientes que exijam intervenção química, segue-se o transporte e, por último, os actos de tráfico.
VIII - A essência da distinção entre os tipos fundamental (art. 21.º) e privilegiado (art. 25.º) reverte ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), aferida em função de um conjunto de itens de natureza objectiva que se revelem em concreto, e que devem ser globalmente valorados por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei. O critério de proporcionalidade que deve estar pressuposto na definição das penas, constitui, também, um padrão de referência na densificação da noção de considerável diminuição da ilicitude, com alargados espaços de indeterminação.
IX - As referências objectivas contidas no tipo para aferir da menor gravidade situam-se nos meios, na modalidade ou circunstâncias da acção e na qualidade e quantidade das plantas.
X - Com efeito, o legislador sentiu a aporia a que era conduzido pela integração no mesmo tipo legal de crime de condutas de matriz tão diversa como o tráfico internacional, envolvendo estruturas organizativas integradas e produtos de quantidades e qualidades muito significativas, e o negócio do dealer de rua, último estádio de um processo de comercialização, actuando isoladamente, sem estrutura e como mero distribuidor (num segmento intermédio, mas nem por isso despojado, em abstracto, de significativa ilicitude, situa-se o tráfico interno, muitas vezes com uma organização rudimentar e com tendência para uma compartimentação cada vez maior).
XI -Função essencial na interpretação do tipo em questão assume a referência feita pelo legislador no proémio do DL 430/83 – já aí demonstrava a sensibilidade à diversidade de perfis de actuação criminosa – quando afirma que: «Daí a revisão em termos que permitam ao julgador distinguir os casos de tráfico importante e significativo, do tráfico menor que, apesar de tudo, não pode ser aligeirado de modo a esquecer o papel essencial que os dealers de rua representam no grande tráfico. Haverá assim que deixar uma válvula de segurança para que situações efectivas de menor gravidade não sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que ao invés se force ou use indevidamente uma atenuante especial».
XII - A consciência de uma tal distinção de comportamentos também justifica, ao nível da prossecução de finalidades de prevenção geral e especial, as opções legais tendentes à adequada diferenciação do tratamento penal entre os grandes traficantes (arts. 21.°, 22.° e 24.°), os pequenos e médios (art. 25.°), e ainda aqueles que desenvolvem um pequeno tráfico com a finalidade exclusiva de obter para si as substâncias que consomem (art. 26.°).
XIII - A actividade de tráfico de estupefacientes desenvolvida à margem de uma estrutura organizativa e/ou a redução do acto ilícito a um único negócio de rua, sem recurso a qualquer técnica ou meio especial, dá uma matriz de simplicidade.
XIV - Todavia, como elementos coadjuvantes relevantes e decisivos na distinção dos tipo surgem a quantidade e a qualidade da droga.
XV - A apreciação da quantidade detida não dispensa a ponderação de algumas características da qualidade, como sejam o grau de pureza da substância estupefaciente [não é indiferente deter 100 g de heroína com um grau de pureza de 3% ou 100 g da mesma substância com um grau pureza de 80%] ou o perigo da substância [deter 100 g de heroína ou de cocaína é muito diferente de deter 100 g de haxixe].
XVI - Em Portugal, o único texto legal que contém uma referência a quantidades de estupefacientes é a Portaria 94/96, de 24-03, que, embora com uma finalidade totalmente distinta, nos dá, no mapa elaborado com referência ao seu art. 9.º, uma indicação dos limites quantitativos máximos diários de consumo de estupefacientes, apontando-se o valor de 0,1 g quanto à heroína e de 0,2 g no que respeita à cocaína.
XVII - Considerando os termos do apontado mapa de limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária [dos produtos nele referidos], impõe-se concluir, no caso dos autos, que a actividade ilícita da arguida, consistente na detenção de heroína e cocaína em quantidades correspondentes a 7 e 9 doses individuais, respectivamente, por forma alguma se inscreve num mínimo de organização ou estrutura que apresente qualquer tipo de elaboração, que não a inerente ao traficante de rua.
XVIII - Impõe-se, por isso, a condenação da arguida pela prática do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade p. e p. pelo art. 25.º do DL 15/93, de 22-01 (e não pelo tipo fundamental do art. 21.º, como decidiu a 1.ª instância), mostrando-se adequada a fixação da pena em 4 anos de prisão.
XIX - Pressuposto básico da aplicação do instituto da suspensão da execução da pena será a existência de factos que permitam um juízo de prognose favorável, ou seja, que o tribunal se convença de que a censura expressa na condenação e a ameaça da execução da pena de prisão aplicada são suficientes para afastar o arguido de uma opção desvaliosa em termos criminais e para o futuro. Tal conclusão terá de se fundamentar em factos concretos que apontem, de forma clara, para uma forte probabilidade de inflexão em termos de vida, reformulando os critérios de vontade de teor negativo e renegando a prática de actos ilícitos.
XX - Esse juízo de prognose está afastado no caso concreto, pois a arguida, através da sua conduta, demonstrou insensibilidade perante as duas anteriores condenações (também pela prática de crimes de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 25.º do DL 15/93, de 22-01) e persistência em opções desvaliosas em termos de comportamentos ilícitos.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA veio interpor recurso da decisão que, como autora material de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 21º do D.L. 15/93 de 22.1, com referência às tabelas I-A e I-B anexas a este Diploma, a condenou na pena de sete (7) anos de prisão.
As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões da respectiva motivação e recurso onde se refere que:
1. O Tribunal" a quo" deveria ter subsumido a conduta da recorrente ao tipo legal previsto no artigo artigo 25° do DL 15/93, de 22/01, pois que,
2. Face à factualidade dada como provada, e aqui nomeadamente, ao número muito reduzido de vendas de produto estupefaciente - uma ou duas num período de seis meses -, e não se provando que os proventos de tal actividade tivessem significado, de tal transparece que a actividade da arguida será de um pequeno traficante.
3. Sem prejuízo do acima dito, e caso ainda assim se considere que a conduta da arguida é cabível na previsão do artigo 21° do mesmo diploma legal, sempre a pena em concreto aplicada - de sete de anos de prisão - é, como devido respeito, excessiva não apenas face à ilicitude como à medida da culpa,
4. Devendo a mesma situar-se em medida nunca superior a quatro anos.
5. Mais deverá tal pena ser suspensa na sua execução, não militando contra tal suspensão a existência de duas condenações anteriores, considerando a pouca idade da arguida - 24 anos de idade -, crendo-se que a sua situação de prisão preventiva há mais de oito meses terá sido factor dissuador do cometimento, no futuro de ulteriores crimes.
6. No entanto, e por via de tais condenações entende-se que tal suspensão deverá ser acompanhada de regime de prova ou imposição de regras de conduta, como sejam, diligenciar e demonstrar nos autos diligencias no sentido de conseguir trabalho, prestar assistência em instituições de tratamento à toxicodependência e a proibição de não frequentar determinados lugares, como seja o Bairro do Palácio desta cidade de Portimão, conotado com a actividade de tráfico.
Assim, conclui no sentido que deverá a decisão recorrida ser revogada e, em sua substituição, ser proferida outra que condene a arguida como autora de um crime de tráfico, p. e p. pelo artigo 25°, nº1 do DL 15/93, de 22/01, condenando-a em pena não superior a quatro anos de prisão, suspendendo-se a mesma na sua execução, fazendo-se acompanhar tal suspensão de regime de prova ou imposição de regras de conduta. Subsidiariamente e caso assim não se entenda, ser a arguida condenada pela prática do crime previsto no artigo 210 do mesmo diploma legal, aplicando-se pena que se situe no limite mínimo da moldura penal, ou seja, quatro anos de prisão, suspendendo-se a mesma na sua execução, fazendo-se acompanhar tal suspensão de regime de prova ou imposição de regras de conduta.
Respondeu o Ministério público defendendo a manutenção da decisão recorrida.
Nesta instância a ExªMª Srª.Procuradora Geral Adjunta pronuncia-se no sentido da improcedência do recurso.
Os autos tiveram os vistos legais.

Em sede de decisão recorrida encontra-se provada a seguinte factualidade:
a) pelo menos desde Junho de 2007 que a arguida vinha vendendo heroína e cocaína, no Bairro do Palácio, em Portimão, a quem a procurasse;
b) por essa altura, em data não concretamente apurada, a arguida vendeu heroína, uma ou duas vezes, pelo preço de 10 € por cada "mucha" a BB;
c) no dia 12 de Dezembro de 2007, por volta das 10 h, junto à barraca nº 5 do Bairro do Palácio, em Portimão, agentes da PSP em vigilância ao local, após terem visto a arguida a receber dinheiro de um indivíduo, munida de uma bolsa de nylon, de cor preta e marca Eastpak, aproximaram-se da mesma, momento em que esta encetou a fuga, ao mesmo tempo em que atirava a referida bolsa para cima do telhado da barraca nº 4, tendo, de seguida, sido interceptada pelos agentes policiais;
d) nessas circunstâncias de tempo e lugar, a arguida tinha na sua posse as seguintes substâncias e objectos:
- um fio em ouro, avaliado em 112 €, com uma libra em ouro, avaliada em 132 €;
- uma pulseira em ouro de malha entrelaçada, avaliada em 67 €;
- um anel de senhora em ouro com sete pedras, avaliado em 29 €;
- um par de brincos de metal, sem valor comercial;
- um telemóvel de marca Nokia, modelo 1112, avaliado em 10€; e
- 81,86 € em notas e moedas do Banco Central Europeu, compostas por notas com o valor facial de 10 € e 5 €, e 31,86 € em moedas, adquiridos com os proveitos advindos da sua actividade de narcotráfico;
e) dentro da bolsa referida na alínea c) encontravam-se as seguintes substâncias que a arguida pretendia vender a terceiros:
- 25 saquetas de plástico de cor branca, lacradas, contendo no seu interior cocaína com o peso líquido de 5,985 g, com 32,7% de grau de pureza, o que corresponde a 9 doses médias individuais diárias; e
- 24 saquetas de plástico de cores azul, amarelo e vermelho, lacradas, contendo no seu interior heroína com o peso líquido de 4,573 g, com 16,1% de grau de pureza, o que corresponde a 7 doses médias individuais diárias (cfr. o relatório do LPC de fls. 203 que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais);
f) a arguida conhecia a natureza estupefaciente das referidas substâncias que detinha para ceder e que cedeu a terceiros, e sabia que a detenção, venda e cedência de tais substâncias estupefacientes era proibida e punida por lei, o que quis fazer e conseguiu;
g) a arguida agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
h) à data dos factos, a arguida não desenvolvia com regularidade qualquer actividade profissional remunerada;
i) a arguida não consome produtos estupefacientes;
j) a arguida foi condenada por acórdão proferido em 20.06.2002, transitado em julgado em 5.07.2002, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 25º a) do D.L. 15/93 de 22.01, relativamente a factos cometidos em 4.06.2001, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por um período de 4 anos; e foi condenada por acórdão proferido em 23.02.2007, transitado em julgado em 12.04.2007, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art. 25º a) do D.L. 15/93 de 22.01, relativamente a factos cometidos entre Junho de 2002 e final de Maio de 2005, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por um período de 3 anos;
l) a arguida estudou até aos 14 anos de idade tendo concluído o 5º ano de escolaridade e desistiu durante a frequência do 6º devido ao absentismo e desinteresse pelas matérias escolares; a sua adolescência e juventude caracterizam-se por problemas de comportamento, tendo fugido da casa dos pais e sido internada em Centro Educativo de onde também fugiu; tem uma filha, actualmente com 6 anos de idade e que está entregue aos cuidados do pai e tem um outro filho, de uma relação ocasional, actualmente com 4 anos de idade; desempenhou alguns trabalhos de curta duração e sem qualquer vínculo, como ajudante de cabeleireira e em limpezas; à data da prática dos factos a arguida vivia com o filho em casa que lhe foi atribuída, com 4 assoalhadas e pela qual pagava 6,70 € de renda mensal, embora as suas despesas e as necessidades básicas do filho fossem asseguradas pela mãe, que vive no mesmo bairro; no E.P. mantém um comportamento adequado às normas da instituição e trabalha em etiquetagem de embalagens.

Não se provou:
1- que desde Junho de 2005, a arguida se dedicasse à compra de heroína e cocaína, na zona da grande Lisboa, que trazia até Portimão;
2- que a arguida tivesse cedido e vendido cocaína e heroína, nomeadamente aos seguintes indivíduos: CC, DD, EE e FF;
3- que quer o telemóvel quer os objectos de adorno que se encontravam na posse da arguida tenham sido adquiridos com os proveitos advindos da sua actividade de narcotráfico;
4- que na data da ocorrência dos factos a arguida estivesse a trabalhar num salão de cabeleireira, na zona da Amadora, pertença de GG, onde desempenhava a função de ajudante de cabeleireira, auferindo a retribuição mensal de 420,00 €.

I
Adquirido que os poderes de cognição deste Supremo Tribunal de Justiça se circunscrevem á matéria de direito, sendo vedada a sindicância da matéria de facto-artigo 434 do Código de Processo Penal- importa salientar que a matéria do presente recurso se centra, em primeira linha, na decantada questão da destrinça entre a integração dos elementos constitutivos dos crimes dos artigos 21 e 25 do Decreto Lei 15/93.
Uma primeira nota que não pode deixar de ser chamada á colação reside na circunstância de, assumida a existência de uma orientação jurisprudencial consolidada, a ruptura com a mesma necessariamente que terá de assentar numa argumentação consistente que permita concluir pela necessidade de rever a orientação seguida. O que está em causa é também a certeza e segurança do Direito e, nomeadamente, da interpretação da norma o que por alguma forma toca o próprio cerne do Estado de Direito.
Dito isto, permitimo-nos trazer á colação a posição assumida em Acórdão desta Secção do Supremo Tribunal de Justiça, e subscrita parcialmente pelos mesmos subscritores, no sentido de que o artigo 21º nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, que define o crime de tráfico e outras actividades ilícitas sobre substâncias estupefacientes, descreve de maneira assumidamente compreensiva e de largo espectro a respectiva factualidade típica: «Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, «puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver [...], plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas Tabelas I a IV, é punido com a pena de prisão de 4 a 12 anos».
O mesmo preceito contém a descrição fundamental - o tipo essencial - relativa à previsão e ao tratamento penal das actividades de tráfico de estupefacientes, construindo um tipo de crime que assume, na dogmática das qualificações penais, a natureza de crime de perigo. A lei, nas condutas que descreve, basta-se com a aptidão que revelam para constituir um perigo para determinados bens e valores (a vida, a saúde, a tranquilidade, a coesão inter-individual das unidades de organização fundamental da sociedade), considerando integrado o tipo de crime logo que qualquer das condutas descritas se revele, independentemente das consequências que possa determinar ou efectivamente determine: a lei faz recuar a protecção para momentos anteriores, ou seja, para o momento em que o perigo se manifesta.
Crime de perigo abstracto é o crime que não pressupõe nem o dano nem o perigo de um concreto bem jurídico protegido pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para uma ou mais espécies de bens jurídicos protegidos abstraindo de algumas das outras circunstâncias necessárias para casuar um perigo para um desses bens jurídicos. Os tipos de perigo abstracto descrevem acções que, segundo a experiência conduzem á lesão não dependendo a perigosidade do facto concreto mas si de um juízo de perigosidade geral
É, assim, de um crime de perigo que tratamos, e de perigo comum, visto que a norma protege uma multiplicidade de bens jurídicos designadamente de carácter pessoal- reconduzidos á saúde pública. Finamente é, também, um crime de perigo abstracto porque não pressupõe nem o dano nem o perigo de um dos concretos bens jurídicos protegidos pela incriminação, mas apenas a perigosidade da acção para as espécies de bens jurídicos protegidos abstraindo de algumas das outras circunstancias necessárias para causar um perigo desses bens jurídicos.
Igualmente de enunciar é a estrutura progressiva que caracteriza o artigo 21 do Decreto-Lei 15/93 pretendendo abarcar a multiplicidade de condutas em que se pode desdobrar a actividade ilícita relacionada com o tráfico de droga. Tal preocupação, de perfil transversal, concretiza-se, com a integração vertical vertida em três tipos legais fundamentais que revelam a maior ou menor gravidade desta actividade em relação ao tipo fundamental daquele artigo 21, ou seja, o artigo 24 no sentido agravativo e o artigo 25 do mesmo diploma no sentido atenuativo.
Ainda em relação á progressividade de condutas abarcadas no tipo legal fundamental importa considerar que, para a teoria da unidade do delito, as diversas condutas são somente parte ou estados de um processo tendente a causar dano na saúde de pessoas indeterminadas e aqui radica a razão para que exista um só delito, ainda que se realizem duas ou mais acções distintas. Ao punir pretende-se impedir a produção de um só dano sendo este único dano unido ao único bem jurídico que se protege integrado pela saúde pública os factores que dão unidade ao delito. Tal posicionamento omite o acto de nos encontrarmos perante um delito de perigo, e não de lesão, pelo que a lesão do bem jurídico dificilmente pode assumir uma função clarificadora.
Para a teoria do concurso de normas a técnica empregue pelo legislador é a de utilizar uma disposição com várias normas, entendendo por disposição em sentido técnico a forma exterior da fonte que introduz no ordenamento a norma jurídica. Entre norma, e disposição, pode existir uma correspondência quantitativa porque a disposição contem uma única norma mas também tal coordenação pode faltar porque a disposição contem várias normas. O facto de uma disposição conter uma pluralidade de normas provoca um concurso aparente ente as mesmas que deve ser resolvido de acordo com os principio gerais que regulam esta matéria ou seja as condutas em lugar de se acumular excluem-se em virtude dos principio da consumpção da especialidade ou subsidiariedade.
Para esta teoria a razão para que se sancione o agente por um único delito ainda que se verifiquem todas as condutas deve-se á aplicação dos principio gerais que regulam o concurso de normas para o qual é indiferente que a pluralidade de normas esteja contida numa única disposição ou em várias disposições diferentes.
Todavia a opção que a jurisprudência consagrou tem como paradigma a teoria das condutas alternativas que radica na consideração de que as diversas condutas não autónomas em si, mas alternativas, de tal maneira que para a subsistência do delito é indiferente que se realize uma ou outra permanecendo um só delito ainda que se realizem as diversas acções descritas.
Efectivamente nesta caso a razão pela qual se castiga por um único delito não radica na existência de um concurso de normas, mas sim da especial estrutura delitiva já que se trata de um delito de condutas alternativas que estão entre si numa relação de progressão criminal de maneira a que do cultivo de droga se passa á fabricação de produtos estupefacientes que exijam intervenção química; o transporte e, por último os actos de tráfico

Respondendo directamente áquela que constitui a principal discordância da recorrente, importa renovar a aquisição normativa de que o artigo 25º do Decreto-Lei nº 15/93, denominado de "tráfico de menor gravidade", dispõe, com efeito, que «se, nos casos dos artigos 21º e 22º a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade e as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações», a pena é de prisão de 1 a 5 anos (alínea a)), ou de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias (alínea b)), conforme a natureza dos produtos (plantas, substancias ou preparações) que estejam em causa.
Trata-se, como é entendido na jurisprudência e na doutrina de um tipo privilegiado em razão do grau de ilicitude em relação do tipo fundamental de artigo 21º. Pressupõe, por referência ao tipo fundamental, que a ilicitude do facto se mostre «consideravelmente diminuída» em razão de circunstâncias específicas, mas objectivas e factuais, verificadas na acção concreta, nomeadamente os meios utilizados pelo agente, a modalidade ou as circunstâncias da acção, e a qualidade ou a quantidade dos produtos.
A essência da distinção entre os tipos fundamental e privilegiado reverte, assim, ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), aferida em função de um conjunto de itens de natureza objectiva que se revelem em concreto, e que devam ser globalmente valorados por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei, e significativas para a conclusão quanto à existência da considerável diminuição da ilicitude pressuposta no tipo fundamental. Os critérios de proporcionalidade que devem estar pressupostos na definição das penas, constituem, também, um padrão de referência na densificação da noção, com alargados espaços de indeterminação, de «considerável diminuição de ilicitude».
As referências objectivas contidas no tipo para aferir da menor gravidade situam-se nos meios; na modalidade ou circunstâncias da acção e na qualidade e quantidade das plantas. Na sua essência o que pretende é estabelecer-se a destrinça entre realidades criminológicas distintas que, entre si, apenas têm de comum o facto de constituírem segmentos distintos de um mesmo processo envolvido no perigo de lesão. Na verdade, o legislador sentiu a aporia a que era conduzido pela integração no mesmo tipo leal de crime de condutas de matriz tão diverso como o tráfico internacional envolvendo estruturas organizativas integradas e produto de quantidades e qualidades muito significativas e negócio do dealer de rua, último estádio de um processo de comercialização actuando isoladamente, sem estrutura, e como mero distribuidor. Num segmento intermédio, mas nem por isso despojado, em abstracto, de significativa ilicitude situa-se o tráfico interno, muitas vezes com uma organização rudimentar (e com tendência a uma compartimentação cada vez maior dificultando a investigação).
Função essencial na interpretação do tipo em questão assume a referência feita pelo legislador no proémio do D.L. 430/83 quando já aí demonstrava a sensibilidade á diversidade de perfis de actuação criminosa dizendo que “Daí a revisão em termos que permitam ao julgador distinguir os casos de tráfico importante e significativo, do tráfico menor que, apesar de tudo, não pode ser aligeirado de modo a esquecer o papel essencial que os dealers de rua representam no grande tráfico. Haverá assim que deixar uma válvula de segurança para que situações efectivas de menor gravidade não sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que ao invés se force ou use indevidamente uma atenuante especial”
A relevância de tal pressuposto também é adequada para a prossecução de relevantes finalidades de prevenção geral e especial, justifica as opções legais tendentes à adequada diferenciação do tratamento penal entre os grandes traficantes (artigos 21º, 22º e 24º) e os pequenos e médios (artigo 25º), e ainda daqueles que desenvolvem um pequeno tráfico com a finalidade exclusiva de obter para si as substâncias que consomem (artigo 26º).

Justificada, em temos dogmáticos, a existência do tipo legal em apreço importa agora, numa tentativa de aproximação concreta, densificar os critérios eleitos como consubstanciadores daquela menor gravidade.
Sem qualquer margem para a dúvida que a inexistência de uma estrutura organizativa e/ou a redução do acto ilícito a um único negócio de rua, sem recurso a qualquer a qualquer técnica ou meio especial, dão uma matriz de simplicidade que, por alguma forma conflui com a gravidade do ilícito. Como elementos coadjuvantes relevantes e decisivos surgem, então, a quantidade e a qualidade da droga.
Como refere Huidobro a quantidade de droga possuída constitui aqui um elemento da importância vital na altura de realizar a verificação revelando-se como um instrumento técnico (às vezes único) para demonstrar o destino para terceiros do estupefaciente possuído. É preciso que nos fundamentemos na quantidade da substância, quando outros dados não existem, se não quisermos violar o objectivo que o legislador tenta prosseguir com o crime de tráfico
A apreciação da quantidade detida deve apoiar-se em módulos do carácter qualitativo, entre os quais é possível enfatizar:
a) O grau de pureza da substância estupefaciente, porque não são o mesmo cem gramas do heroína com um pureza de 3% que cem gramas da mesma substância com um pureza de 80%.
b) O perigo da substância é também fundamento, porque não é o mesmo ter cem gramas de heroína ou de cocaína do que ter cem gramas do hashish.
Poderá oferecer relevância a consideração de que a droga, quando chega nas mãos do consumidor, é frequentemente muito misturada e adulterada (com glucose e outros produtos), o que provoca que, para obter os efeitos pretendidos, aquele compra quantidades superiores ás que adquiriria se o produto chegasse até ele no estado puro.

A utilização do critério da quantidade, por forma a conceder-lhe efeitos ou consequências a nível penal, é uma questão transversal dos ordenamentos jurídicos europeus e, em 2003, notava-se que a quantidade é um dos principais critérios na distinção entre posse para consumo pessoal e tráfico e, dentro deste para a determinação da gravidade da infracção. A definição da quantidade, e a forma pela qual é tomada em atenção na classificação das infracções, varia de país para país e mais de um critério é utilizado no mesmo país para distinguir as quantidades. Podem-se salientar os seguintes critérios:
-Treze países determinam a quantidade com base em considerações mais genéricas como “ampla” ou “diminuta”
-Três tomam em atenção o valor monetário como base, enquanto que três utilizam o critério da dose diária
-Seis definem as quantidades pelo número máximo de gramas por substância ou por limite (v.g até 5 gramas)
-Cinco baseiam os seus cálculos sob o peso da substância química implicada.
Importa, porem, salientar que a determinante decisiva na gravidade de uma infracção é a intenção mais do que a quantidade possuída. Uma vasta maioria de países optou pela menção de pequenas quantidades nas suas leis, ou directivas, deixando á descrição do tribunal a determinação do tipo de infracção (uso pessoal ou tráfico).
No nosso país o único texto legal que comporta uma referência a quantidades é a Portaria 94/96 que, embora com uma outra finalidade totalmente distinta, nos dá, no mapa elaborado com referência ao respectivo artigo 9, uma indicação dos limites quantitativos diários de consumo no que concerne a estupefacientes apontando-se o valor de 0,1 gramas no que concerne á heroína e 0,2 gramas no que respeita á cocaína. (Limites quantitativos máximos para cada dose média individual diária das plantas, substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, de consumo mais frequente). Esta referência ás quantidades necessárias ao consumo constitui um poderoso elemento de coadjuvação no que respeita á questão interpretativa suscitada nos presentes autos e, nomeadamente, para ajudar a determinar com uma maior precisão o limite entre os artigos 21 e 25 do Decreto Lei 15/93.

Considerando a materialidade considerada provada em que se afirma que a arguida detinha heroína correspondente a sete doses individuais e cocaína equivalente a nove doses médias individuais, igualmente é exacto que a actividade da arguida, por forma alguma, se inscreve que num mínimo de organização ou estrutura que apresenta qualquer elaboração que não a inerente ao traficante de rua.
Ultimo grau do tráfico e droga é este mesmo perfil anómico e, paralelamente, rudimentar na forma de actuação que informa o preceito do artigo 21 citado. Não vislumbramos nas quantidades ou na forma de actuação da arguida uma outra linha de distinção que não o de um forma linear de actuação em que o tráfico é um meio de tentar assegurar a sobrevivência económica.
Não ignoramos que, sem tal tipo de actuação o flagelo da droga assumiria características muito diversas, com muito menor possibilidade de difusão. Porém, não podem ser razões de politica criminal a comandar a operação de qualificação jurídica, mas unicamente o facto ilícito praticado e a sua inserção no tipo legal.
Argumentando pela inscrição da actuação da arguida no tipo legal do artigo 21 do Decreto lei 15/93 afirma a decisão recorrida :
Repare-se ainda que em face do apurado, a actividade da arguida não reveste um menor grau de ilicitude (revelada, por exemplo, nos meios utilizados, na modalidade ou nas circunstâncias da acção, na qualidade ou na quantidade das substâncias), em ordem a poder dizer-se que a sua conduta integra a previsão do art. 25º do D.L. 15/93 de 22.1. Com efeito, a arguida não é consumidora de estupefacientes, não trabalha regularmente, vive do lucro auferido com a actividade de narcotráfico e detém para vendas duas qualidades de estupefacientes, em ordem a poder satisfazer todas as necessidades do mercado, envolvendo quantidades razoáveis e cuja venda, a ser concretizada, lhe daria um lucro também razoável (49 pacotes a serem vendidos ao preço de 10,00 € cada um são 490,00 € e não podemos esquecer que também já tinha 80,00 € provenientes de vendas), pelo que não pode concluir-se por uma diminuição da ilicitude.

As razões apontadas, com respeito pela opinião em contrário, encontram-se parcialmente em rota de colisão com o próprio princípio da legalidade, consubstanciado na tipicidade. O trabalho regular da arguida; o facto de não ser consumidora ( o que só teria relevância para aferição da figura de traficante consumidor) e o facto de viver da actividade do narcotráfico não são de forma alguma elementos que permitam informar sobre a maior ou menor ilicitude do tráfico praticado.
Por igual forma se afigura desadaptada a conclusão contida na decisão recorrida no sentido de que as quantidades em causa são “razoáveis” quando é manifesto a sua reduzida dimensão quantitativa.

Conclui-se, assim, que a actuação da arguida integra o tipo legal previsto e punido no artigo 25 do Decreto Lei 15/93

No que concerne á medida da pena há que considerar os factores elencado na decisão recorrida.
A culpa da arguida expressa-se pela voluntariedade directamente dirigida na opção pela conduta desconforme ao direito e no perfeito conhecimento do desvalor social que representa o tráfico de estupefacientes. A ilicitude revela-se em sede da quantidade de droga apreendida.
A anterior condenação da recorrente terá de ser valorada não só em sede de medida concreta como, essencialmente, na avaliação da pena de substituição.
Termos em que, pela prática de um crime previsto e punido nos termos do artigo 25 do Decreto Lei 15/93, se condena a arguida AA na pena de quatro anos de prisão.

Face á redacção do artigo 50º do Código Penal importa considerar a aplicabilidade do regime de suspensão da execução da pena.
Tal questão, uma das questões mais importantes no âmbito das penas substituição, e com que se debate a decisão, centra-se no critério, ou critérios, que devem presidir à escolha entre prisão e uma pena de substituição. O que se afirma é então que, na lei penal vigente, a culpa só pode (e deve) ser considerada no momento que precede o da escolha da pena - o da medida concreta da pena de prisão -, não podendo ser ponderada para justificar a não aplicação de uma pena de substituição: tal atitude é tomada tendo em conta unicamente critérios de prevenção. Significa o exposto que não oferece qualquer dúvida interpretar o estipulado pelo legislador (artigo 71º do Código Penal) a partir da ideia de que um orientamento de prevenção-e esse é o da prevenção especial- deve estar na base da escolha da penal pelo tribunal; sendo igualmente um orientamento de agora de prevenção geral, no seu grau mínimo - o único que (e deve) fazer afastar a conclusão a que se chegou em termos prevenção especial.
Assim, reafirma-se o princípio de que as considerações de culpa não devem ser levadas em conta no da escolha da pena. Na verdade, o juízo de culpa já foi feito: antes de se colocar a questão da escolha da pena importou já decidir sobre a aplicação da pena de prisão e sobre a sua medida concreta, para o que foi decisivo um juízo (concreto) sobre a culpa do agente. Conforme refere Figueiredo Dias “afastada a relevância da culpa no problema da escolha da pena de neste âmbito, comportam mutuamente, substituição, resta determinar como se as exigências de prevenção geral e de prevenção especial"
É inteiramente distinta a função que umas e outras exercem neste contexto. Prevalência decidida, considera o mesmo Mestre, não pode deixar de ser atribuída a considerações de prevenção especial de socialização, por serem sobretudo todo o movimento de luta elas que justificam, em perspectiva político-criminal, contra a pena de prisão. E prevalência, anote-se, a dois níveis diferentes:
-o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa ou de uma pena de substituição quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas; coisa que só raramente acontecerá se não se perder de vista o já tantas vezes referido carácter criminógeno da prisão, em especial da de curta duração. Em segundo lugar, sempre que, uma vez recusada pelo tribunal a aplicação efectiva da prisão, reste ao seu dispor mais do que uma espécie de pena de substituição (v,g. multa, prestação de trabalho a favor da comunidade, suspensão da execução da prisão), são ainda considerações de prevenção especial de socialização que devem decidir qual das espécies de penas de substituição abstractamente aplicáveis deve ser a eleita.
Por seu turno a prevenção geral surge aqui sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização.
Quer dizer desde que impostas, ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas se a execução da pena de prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias.
Impõe-se que a comunidade jurídica suporte a substituição da pena, pois só assim se dá satisfação ás exigências de defesa do ordenamento jurídico e, consequentemente, se realiza uma certa ideia de prevenção geral. A sociedade tolera uma certa perda de efeito preventivo geral-isto é conforma-se com a aplicação de uma pena de substituição, mas nenhum ordenamento jurídico se pode permitir pôr-se a si mesmo em causa, sob pena de deixar de existir enquanto tal. Em caso de absoluta incompatibilidade, as exigências (mínimas) de prevenção geral hão-de funcionar como limite ao que, de uma perspectiva de prevenção especial, podia ser aconselhável
A aplicação de uma pena de substituição é suficiente, não só para evitar que o agente reincida, como também para realizar o limiar mínimo de prevenção geral de defesa da ordem jurídica. Na verdade, a utilização de reacções não institucionais foi muitas vezes apontada um enfraquecimento da ideia de repressão que se alia á pena: dir-se-ia que a realização das finalidades de prevenção geral e a expressão do castigo pelo crime cometido que se pretendeu realizar através da pena entrariam, com elas, em crise. Ora, é hoje unanimemente conhecido que qualquer das formas de substituição de da pena clássica de prisão não deixa de envolver a inflição de um mal que comporta um efeito mais ou menos penoso para quem o sofre, constituindo, nesse sentido, uma verdadeira pena. O que se quer assim significar é que as exigências de exteriorização física da reprovação pelo crime cometido impõem, em certos casos, ao menos por agora, se lance mão da pena de prisão.
O que assim se acentua é que o castigo e a reprovação públicas que se exprimem através das penas de substituição satisfazem, nesses sentido, as exigências de justiça que o sentimento geral da comunidade requer assegurando-se, assim, a manutenção da fidelidade do público ao direito e a sua confiança na validade daquele. Só quando a realização desta finalidade seja posta em perigo, no caso, concreto, por esta forma de exprimir a reprovação do crime- o que nenhum ordenamento jurídico se pode permitir sob pena de ver a sua própria sobrevivência ameaçada - se pode aceitar que se afaste a aplicação de uma pena de substituição.

É exactamente esse delicado equilíbrio entre os limites propostos pelos fins das penas que terá de ser resolvida a questão proposta. E, desde logo, deve-se prevenir para uma difícil conjugação entre a aplicação de uma pena de prisão com o juízo positivo sobre a suficiência da advertência contida na suspensão da execução e as exigências contidas na prevenção a nível geral.
Efectivamente, não podemos esquecer o poderoso contributo que a suspensão da execução da pena, na pluralidade de modalidades que comporta, representou, contra a aplicação de penas curtas de prisão. Em consequência da humanização do ideário penal, paralelamente ao aumento do nível económico dos países desenvolvidos, a privação de liberdade começou a ser equacionada como uma pena excessiva em muito casos. Assim, entendeu-se que a admissibilidade da suspensão de execução da pena conseguia evitar penas curtas que em lugar de ressocializarem antes favorecem a dessocialização pois que permitem o contágio do pequeno delinquente ao entrar no universo concentracionário e, simultaneamente, não possibilitam o tempo necessário para um tratamento eficaz
Igualmente se argumentava com o facto de as penas curtas de prisão serem cominadas para os delitos menos graves para os quais bastariam penas menos traumáticas (1).

Na verdade, pressuposto básico da aplicação de pena de substituição á arguida recorrente seria a existência de factos que permitam aquele juízo de prognose. Por outras palavras será necessário que o tribunal esteja convicto de que a censura expressa na condenação e a ameaça de execução da pena de prisão aplicada são suficientes para afastar o arguido de uma opção desvaliosa em termos criminais e para o futuro. Tal conclusão teria de se fundamentar em factos concretos que apontassem de forma clara na forte probabilidade de uma inflexão em termos de vida reformulando os critérios de vontade de teor negativo e renegando a prática de actos ilícitos.
No caso concreto tal juízo de prognose está seguramente afastado pois que a mesma, através da conduta concreta imputada nos presentes autos, demonstrou a sua insensibilidade perante as condenações anteriores e sua persistência em opções desvaliosas em termos de comportamentos ilícitos.
Por outro lado igualmente é certo que corresponde o direito ao silêncio a uma inscrição fundamental no capítulo dos direitos que assiste ao arguido e cujo exercício nunca o poderá desfavorecer. Sem embargo, tal não obsta a que a assunção vertical e responsável de responsabilidade pelos actos praticados seja considerada uma mais valia a ser valorada em termos de mediada da pena.

Nestes termos decidem os juízes que integram a 3ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça em julgar parcialmente procedente o recurso da arguida e, pela prática de um crime de tráfico previsto e punido nos termos do artigo 25 do Decreto Lei 15/93, condenar a mesma na pena de quatro anos de prisão.
Custas pela arguida
Taxa de justiça 6UC

Lisboa, 29 de Outubro de 2008

Santos Cabral (relator)
Oliveira Mendes
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(1)- Sem embargo, e conforme refere Mir Puig-Derecho Penal pag 708-cabe advertir a tendência verificada nos últimos anos em países tradicionalmente abertos á Politica Criminal como a Suécia;Holanda; Inglaterra e Suíça no sentido de fazer uso de novo das penas curtas de prisão procurando evitar-se os inconvenientes através da configuração da execução (regime de fins de semana; de semi liberdade etc)