Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7859/15.5T8STB.E1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: DIREITO DE PROPRIEDADE
USUCAPIÃO
TERRENO
UNIDADE DE CULTURA
Data do Acordão: 05/03/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Decisão:
REVOGADO O ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA E REPRISTINADA A DECISÃO DA 1ª INSTÂNCIA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / PROPRIEDADE DE MÓVEIS / FRACCIONAMENTO E EMPARCELAMENTO DE PRÉDIOS RÚSTICOS / SANÇÕES.
Doutrina:
-Armando Triunfante, A usucapião e os seus efeitos, AA.VV., Edição Comemorativa do Cinquentenário do Código Civil, Lisboa, UC Editora, 2017;
-Castro Mendes, Teoria Geral, 1979, Volume II, p. 235;
http://revistas.lis.ulusiada.pt/index.php/ldl/article/viewFile/742/823
-José González, Usucapião e Augi's, áreas urbanas de génese ilegal, Lusíada. Direito, Lisboa, n.º 3 (2005), nota 66, p. 387;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume III, 2.ª Edição, p. 269; -Menezes Cordeiro, A Posse: perspectivas dogmáticas actuais, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2000, p. 130 e 131;
-Rui Pinto Duarte, Curso de Direitos Reais, 3.ª Edição, revista e aumentada, Princípia, 2013, p. 339 e p. 343.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1379.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:



-DE 19-10-2004, PROCESSO N.º 04A2988;
-DE 27-06-2006, PROCESSO N.º 1471/06;
-DE 03-03-2009, PROCESSO N.º 09A0020;
-DE 12-01-2012, PROCESSO N.º 136/05.1TBFUN.L1.S1;
-DE 04-02-2014, PROCESSO N.º 314/2000.P1.S1;
-DE 06-04-2017, PROCESSO N.º 1578/11.9TBVNG.P1.S1;
-DE 01-03-2018, PROCESSO N.º 1011/16.0T8STB.E1.S1.


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ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


-DE 25-05-2017, PROCESSO N.º 1214/16.7T8STB.E1.
Sumário :

A usucapião, como forma originária de adquirir, pode incidir sobre parcela de terreno inferior à unidade de cultura, contrariando o regime previsto no art. 1379.º, n.º 1, do CC, na versão anterior à alteração legal introduzida pela Lei n.º111/2015, de 27-08.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. O Ministério Público intentou acção declarativa comum contra os Réus AA e BB (este falecido a 6 de Julho de 2014, tendo sido julgadas habilitadas a sua mulher, CC, e as suas filhas DD e EE) pedindo que fosse declarada a nulidade da escritura de justificação celebrada a 1 de Outubro de 2012. Alegou, em síntese, que as declarações constantes da escritura não eram verdadeiras e que tinha havido fraccionamento de prédio rústico com violação do art.º 1376.º, n.º1 do CC e da Portaria 202/70 (área de cultura mínima). Os RR contestaram.

2. O processo seguiu os seus trâmites e foi proferida sentença a 2 de Março de 2017, que julgou improcedente o pedido de declaração de nulidade da escritura de justificação celebrada a 1 de Outubro de 2012.

3. Inconformado recorreu o Ministério Público para o Tribunal da Relação de Évora, que julgou procedente o recurso, revogando a sentença.

4. Inconformados os RRs apresentaram revista, na qual formularam as seguintes conclusões (transcrição):

“a) A usucapião é um modo de aquisição originária do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo que depende apenas da verificação de dois elementos: a posse e o decurso de certo lapso de tempo e de acordo com os caracteres da posse (artigo 1287.° e 1316.° do C. Civil).

b) Quando invocada, os seus efeitos retrotraem-se à data do início da posse adquirindo-se o direito de propriedade no momento do início da mesma posse (artigo 1288.° e 1317.°, alínea c) do Código Civil)

c) A usucapião serve, em regra e além do mais, para consolidar legalmente situações de factos de génese ilegal, mantidas durante longos períodos de tempo.

d) Pode inclusivamente permitir a aquisição de direitos sobre bens ilegítimos ao ilicitamente apropriados.

e) A sentença proferida no Tribunal de 1ª Instância não merece qualquer censura pelo que deverá manter-se.

f) O instituto jurídico da usucapião prevalece às limitações impostas pelo artigo 1376.° do Código Civil. Situação que resulta da sua natureza de aquisição originária de direitos e portanto auto-suficiente.

g) A usucapião não é um negócio jurídico passível de invalidade jurídica uma vez que constitui uma forma de adquirir um direito real mercê de determinada actuação fáctica sobre a coisa.

h) As únicas limitações à aquisição originária por usucapião são as constantes do artigo 1293.° do Código Civil e nenhuma norma legal exclui da aquisição por usucapião os terrenos inferiores à unidade de cultura legalmente prevista.

Termos em que deverá decidir-se pela procedência do recurso, revogando o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Évora e mantendo a decisão proferida no Tribunal de Primeira Instância.”

O Ministério Público apresentou contra-alegações.


II. Fundamentação

5. Vêm provados os seguintes factos:

1) Os Réus outorgaram escritura de justificação no Cartório Notarial de Palmela perante FF, notária em substituição, no dia 01 de Outubro de 2012, exarada de fls. 80 a fls. 84 do Livro de escrituras diversas n.º 4-C, sendo na qualidade de justificantes.

2) Na escritura identificada em 1) BB declarou, entre o mais:

2.1 Que, com exclusão de outrem, é dono e legítimo possuidor de prédio rústico, composto por cultura arvense, com a área de três mil e trinta e dois virgula doze metros quadrados, a confrontar a Norte com GG, a Nascente com GG e caminho de serventia, a Sul com HH e a Poente com II, sito em Olhos de Água, freguesia do Pinhal Novo, concelho de Palmela, à qual atribuem o valor de € 70,00.

3) Na escritura identificada supra em 1) a 1.ª Ré declarou, entre o mais:

3.1 Que, com exclusão de outrem, é dona e legítima possuidora de prédio rústico, composto por cultura arvense, com a área de dois mil quatrocentos e oitenta virgula cinquenta metros quadrados a confrontar a Norte com BB, a Sul com JJ, a Nascente com caminho de serventia e a Poente com LL e II, sito em Olhos de Água freguesia do Pinhal Novo, concelho de Palmela, à qual atribuem o valor de € 100,00.

4) Na escritura identificada em 1) mais declararam BB e a 1.ª Ré:

4.1 Que ambos os prédios rústicos supra identificados são a destacar da parte rústica do prédio misto, com a área total de seis mil quinhentos e setenta e nove metros quadrados, sito em Olhos de Água, freguesia do Pinhal Novo, concelho de Palmela, compondo-se a parte rústica de terreno hortícola de regadio, pomar e poço, inscrita (…) e a parte urbana composta de rés-do-chão para habitação com a área coberta de sessenta seis metros quadrados, inscrito (…).

4.2 Que o pai MM adquiriu a totalidade do terreno por volta do ano de mil novecentos e sessenta e cinco, tendo nessa mesma data dividido o mesmo em três parcelas por ser este o seu número de filhos. Em mil novecentos e setenta e um, doou verbalmente aos respectivos filhos, BB e AA as parcelas supra identificadas, tendo ele, MM ficado possuidor da terceira parcela, onde residiu até ao seu falecimento. O título de aquisição foi formalizado anos mais tarde tendo dado origem ao registo existente, sem ter vertido a realidade factual da divisão operada.

4.3 Que a partir da data mencionada, e portanto há mais de vinte anos, que BB e AA têm possuído os supra identificados prédios em nome próprio, sem interrupção desde o seu início, respeitando as suas extremas e divisórias, com exclusividade e independência, sempre praticando sobre os ditos prédios todos os actos de posse de que estes eram susceptíveis, tudo na convicção de exercer um direito próprio, sem qualquer interrupção, à vista de toda a gente e sem oposição de quem quer que fosse, sendo por isso uma posse pública, pacífica, contínua e de boa-fé, não logrando deter qualquer título que justifique a transmissão sequencial ocorrida, por não titulada e não conduzida a registo.

4.4 Que atendendo a que a duração da sua posse, há mais de vinte anos, se tem mantido continuadamente e de forma ininterrupta, já adquiriram os referidos prédios, por usucapião, invocando, por isso, esta forma originária de aquisição, para todos os efeitos legais.

5) O prédio identificado supra em 4.1 está descrito no registo predial sob a ficha n.º 6304/20100706, tendo como sujeito activo, por compra, MM e NN.

6) Correspondem à realidade as declarações reproduzidas supra em 2.1, 3.1, 4.1, 4.2, 4.3 e 4.4.

7) Os prédios justificados, referidos em 2.1 e 3.1, são compostos de terras hortícolas de regadio.

6. A questão central a decidir consiste em saber se a usucapião, como forma originária de adquirir, pode incidir sobre parcela de terreno inferior a unidade de cultura, contrariando o regime previsto no art.º 1376.º/1 do CC.

7. Esta questão foi recentemente abordada por ARMANDO TRIUNFANTE, no escrito intitulado “A usucapião e os seus efeitos”, in AA.VV., Edição Comemorativa do Cinquentenário do Código Civil, Lisboa, UC Editora, 2017, que aqui se reproduz parcialmente, dado o carácter de síntese que apresenta sobre o estado da arte que se tem firmado em Portugal – doutrina e jurisprudência.

Diz o referido autor, a p. 496-499:

“Uma outra hipótese concreta tem também sido tratada na jurisprudência portuguesa: a de saber se será viável a aquisição de direitos sobre uma parcela de terreno, por usucapião, quando daí resulte uma dimensão inferior à unidade de cultura. Como é sabido o art. 1376.º, n.º 1, proíbe o fracionamento de terrenos aptos para cultura, se alguma das parcelas resultante de tal operação ficar abaixo da referida unidade de cultura. Esta operação será, por conseguinte, contrária a lei, mostrando-se vedada ainda que realizada por negócio jurídico. Tal impedimento é justificado pelo interesse económico relacionado com a exploração da terra.  Pretende-se a criação das melhores condições para rentabilizar os referidos terrenos aptos para cultura. Parece-nos que ainda está em causa o referido interesse público de fortalecer a economia no que respeita aos sectores enunciados. De certo modo, é ainda uma necessidade de ordenamento do território que justifica a previsão de tal regime legal. Não é por acaso que tais interesses não podem ceder perante interesses particulares. impedindo-se que o fracionamento ocorra mesmo por negócio jurídico O consenso entre as partes não pode comprometer o interesse público associado. Mas poderá a usucapião permitir a aquisição do direito de propriedade sobre uma parcela de um terreno apto para cultura, quando não seja respeitada a dimensão mínima fixada para a unidade de cultura? Este problema (falta de respeito pela dimensão mínima) coloca-se não apenas quanto à própria parcela a adquirir por usucapião, mas também quanto à parcela que permanece junto do proprietário usucapido (com o destacamento por usucapião poderá ficar com uma dimensão inferior à unidade de cultura). A jurisprudência nacional tem apresentado posições distintas, mas parece haver um entendimento predominante em permitir a aquisição destes direitos por usucapião. O fundamento é normalmente o mesmo e conhecido. Transcreve-se aqui uma passagem do Ac. do STJ de 27/7/2006: «Porque a usucapião se funda direta e imediatamente na posse, cujo conteúdo define o do direito adquirido, com absoluta independência relativamente aos direitos que antes dessa aquisição tenham incidido sobre a coisa, a invalidade formal, que afastou quaisquer efeitos da aquisição derivada, e a ilegalidade do fracionamento (falta de escritura pública e área inferior à da unidade de cultura), carecem de potencial idade ou idoneidade para interferir na operância daquela forma de aquisição da parcela.» Face ao elenco legal existente a propósito desta questão somos obrigados, embora contrariados, a concordar com a solução exposta nas referidas decisões. Parece-nos, no entanto, que o fundamento deve ser outro que não o descrito. Fomos expondo ao longo deste texto aquele que nos parece o critério adequado à resolução destas questões. A usucapião permite resolver conflitos de interesse ocasionados entre dois interessados, não pode permitir o sacrifício de normas de interesse público. Deverá ser o art.º l376.º qualificado como tal? A primeira análise parece indiciar uma resposta afirmativa. No entanto, é necessário também verificar se essa é a posição/intenção do legislador. A violação de normas de interesse público, designadamente por negócio jurídico, deve conduzir à nulidade. Esta modalidade de invalidade costuma estar associada a ausência de prazo para a respetiva invocação, e à atribuição absoluta (e não relativa) de legitimidade. Em face dos interesses envolvidos no fracionamento por negócio jurídico (que resulte em parcela inferior à unidade de cultura), pensar-se-ia na escolha na modalidade de invalidade mais gravosa. Aliás, o legislador ao atribuir ao Ministério Público legitimidade para invocar a invalidade resultante daquele negócio jurídico visa precisamente a tutela do «interesse superior do Estado» (1379.º, n.º 2). No entanto, tal não foi suficiente para impor a nulidade, preferindo o legislador a solução da anulabilidade. Mais importante ainda, a ação de anulação caduca ao fim de três anos a contar da celebração do ato (1379.º, n.º 3). Certamente obedecendo ao imperativo (também ele de ordem pública) de regulamentar a situação jurídica e afastar a incerteza com a maior brevidade, entendeu por prudente prever este prazo de caducidade. Tendo esse mesmo prazo decorrido, a «violação da lei deixa de relevar seja para que efeito for». Tudo se passa como se nenhuma violação tivesse tido parte. O legislador demonstra assim que os interesses envolvidos, ainda que de ordem pública (continua a ser essa a nossa convicção), não são suficientes para impor a nulidade, permitindo a consolidação da situação ao fim de três anos sem reação.

Ora, assim sendo, carece de justificação uma eventual negação da usucapião no caso concreto. Tendo sido exercida posse de uma parcela inferior à unidade de cultura pelo período de tempo legalmente necessário (tratando-se de coisa imóvel, esse período seria sempre bastante superior a três anos), será possível adquirir a titularidade do direito real por usucapião. E assim será por maioria de razão. O contrato anulável permite a produção do efeito pretendido ao fim de três anos. A usucapião apresenta a «vantagem» de exigir um período temporal superior e o benefício de permitir fazer corresponder o direito à situação material exercida (posse).”

Na doutrina têm defendido esta solução – relativamente ao art.º 1379.º, n.º3 do CC na versão anterior a 2015 – os seguintes autores: Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. III, 2.ª edição, p. 269; MENEZES CORDEIRO, A Posse: perspectivas dogmáticas actuais, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2000, p. 130-131; Castro Mendes, Teoria Geral, 1979, Vol. II, pág. 235. No sentido de poder haver usucapião com violação das regras do fraccionamento dos prédios rústicos, pronunciou-se ainda José González, “Usucapião e Augi's (áreas urbanas de génese ilegal)”, in Lusíada. Direito, Lisboa, n.º 3 (2005), nota 66, p. 387 (disponível em http://revistas.lis.ulusiada.pt/index.php/ldl/article/viewFile/742/823) que, depois de definir a posse e indicar quais os direitos reais susceptíveis de serem adquiridos por usucapião, afirma ainda:

“Tão-pouco podem usucapir-se direitos sobre coisas submetidas a regime de domínio publico ou, em geral, sobre coisas fora do comercio (artigos 1267.º/n.º2, al. b) e 202.º /n.º 2)  ̶  res fisci usucapi non potest (Inst., 2.6.9.). E igualmente inadmissível usucapião relativa aos chamados bens culturais, (artigo 34.º, Lei 107/2001 de 08/09 - Lei de bases do património cultural). E, apesar de numerosa jurisprudência em sentido contrario, julga-se que igualmente inadmissível a usucapião, (ou a acessão, acrescente-se), contrária a regras urbanísticas, designadamente, a regras sobre loteamentos urbanos - está aqui em causa, como no que aos bens de domínio público respeita, o interesse publico. Crê-se que a partir do que antecede se pode formular a regra segundo a qual a usucapião não pode ocorrer sempre que da sua invocação resulte a infracção de normas de interesse ou de ordem pública. Daí que, ao invés, já seja admissível! a usucapião em infracção das regras sobre fracionamento de prédios rústicos agrícolas, (por causa, designadamente, do disposto no art.º 1379.º).”

Rui Pinto Duarte, in Curso de Direitos Reais, 3ª ed., revista e aumentada, Princípia, 2013, p. 339 e p. 343 advoga uma solução semelhante.

8. Na jurisprudência do S. T. J. defendeu-se este entendimento nos seguintes Acórdãos[1]:
a) de 19/10/2004, Proc. n.º 04A2988 (Azevedo Ramos);
b) de 04/02/2014, proc. n.º 314/2000. P1. S1 (Fernandes do Vale);
c) de 27.06.2006, proc. n.º 1471/06 (Alves Velho);
d) de 03-03-2009, proc. 09A0020 (Alves Velho);
e) de 12.01.2012, proc. n.º 136/05.1TBFUN.L1.S1 (Granja da Fonseca);
f) de 04-02-2014, 314/2000.P1.S1 (FERNANDES DO VALE);
g) de 6/4/2017, proc. 1578/11.9TBVNG.P1.S1 (NUNES RIBEIRO)[2];
h) de 1/3/2018, proc. 1011/16.0T8STB.E1.S1 (Rosa Oliveira Tching)

9. Também na jurisprudência podemos encontrar sínteses da questão, nomeadamente comparando a solução legal prevista no CC antes e depois da revisão operada em 2015.

 Neste sentido vd. a decisão de 1/3/2018, Proc. n.º 1011/16.0T8STB.E1.S1 (Rosa Maria Tching), em que se defende dever a usucapião prevalecer sobre o regime impeditivo do fraccionamento imposto pela versão do CC anterior a 2015.

De modo semelhante, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 25/5/2017, processo n.º 1214/16.7T8STB.E1 (TOMÉ RAMIÃO) sintetizam-se as questões surgidas com a Lei n.º111/2015, de 27 de Agosto.

Diz-se aí:
“Entretanto, a Lei n.º 111/2015, de 27 de agosto, veio estabelecer o atual Regime Jurídico da Estruturação Fundiária e revogou os Decretos-Leis n.ºs 384/88, de 25 de outubro, e 103/90, de 22 de março, prescrevendo no seu art.º 49.º, n.º1 que “A unidade de cultura é fixada por portaria do membro do Governo responsável pela área do desenvolvimento rural e deve ser atualizada com um intervalo máximo de 10 anos”.
Este diploma legal alterou também o art.º 1379.º do C. Civil, dando-lhe a redação atual, que se reproduz:
«1 — São nulos os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º
2 — São anuláveis os atos de fracionamento efetuado ao abrigo da alínea c) do artigo 1377.º se a construção não for iniciada no prazo de três anos.
3 — Tem legitimidade para a ação de anulação o Ministério Público ou qualquer proprietário que goze do direito de preferência nos termos do artigo seguinte.
4 — A ação de anulação caduca no fim de três anos, a contar do termo do prazo referido no n.º 2.»
Sendo que esse preceito legal antes desta alteração tinha a seguinte redação:
“1. São anuláveis os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376º e 1378º, bem como o fracionamento efetuado ao abrigo da alínea c) do artigo 1377º, se a construção não for iniciada dentro do prazo de três anos.

2. Têm legitimidade para a ação de anulação o Ministério Público ou qualquer proprietário que goze do direito de preferência nos termos do artigo seguinte.
3. A ação de anulação caduca no fim de três anos, a contar da celebração do ato ou do termo do prazo referido no nº 1.” Cotejando os dois textos legais, constata-se que a alteração introduzida consistiu na autonomização e inovação das consequências jurídicas previstas para os atos de fracionamento ou troca contrários ao disposto nos artigos 1376º e 1378º, relativamente aos atos de fracionamento efetuado ao abrigo da alínea c) do artigo 1377º, passando a violação das primeiras a padecer do vício de nulidade e mantendo a segunda a regra anterior da anulabilidade. Dito de outro modo, o Legislador, em 2015, consagrou expressamente a nulidade para os atos de fracionamento ou troca que sejam contrários ao disposto nos artigos 1376.º e 1378.º, ou seja, que consistam no fracionamento do prédio rústico parcelas inferiores à unidade de cultura, quando anteriormente a consequência jurídica prevista para esses atos estava limitada à mera anulabilidade, a arguir no prazo de 3 anos, sob pena de sanação.
E a Portaria n.º 219/2016, de 9 de agosto, publicada ao abrigo do disposto no art.º 4.º/3 e art.º 49.º da mencionada Lei n.º 111/2015, veio fixar a superfície máxima resultante do redimensionamento de explorações agrícolas com vista à melhoria da estruturação fundiária da exploração e a unidade de cultura a que se refere o art.º 1376.º do Código Civil, estabelecendo (para a mesma zona do País) para os terrenos de regadio 2,5 (hectares) e para o terreno de sequeiro 48 (hectares).”

10. Equacionada a questão jurídica e indicados os seus contornos, impõe-se analisar os factos provados, para lhes aplicar o Direito.

No caso dos autos, na data da celebração da escritura de justificação notarial – 01.10.2012 – o art.º 1379.º, n.º 1 do CC, na redacção então vigente, fazia culminar com anulabilidade os actos de fraccionamento contrários ao disposto no art.º 1376º; na data da propositura da acção – 22/09/2015 – ainda não se encontrava em vigor a nova redacção dada ao citado art.º 1379.º do CC, introduzida pela Lei n.º 111/2015, de 27 de Agosto, que comina a violação dos mesmos actos com a nulidade, e que só entrou em vigor 30 dias depois da sua publicação (Artigo 65.º), não se suscitando dúvidas de que a situação dos autos deve ser regulada pela lei até à data vigente – pelo menos a lei que vigorava da data da celebração da escritura, pois a lei nova só se aplica a factos novos, uma vez que dispõe sobre as condições de validade dos actos – cf. art.º12.º do CC.

Sabendo ainda que a escritura de justificação – em que se invoca a usucapião – é um meio de prova e que a usucapião invocada retroage os seus efeitos à data do início da posse, não sendo ela própria um negócio jurídico do qual resulte o fraccionamento em violação do então vigente art.º 1379.º, n.º 1 do CC, por se aderir à posição jurisprudencial indicada nos arestos citados e à doutrina supra identificada, ter-se-á de considerar que a usucapião invocada prevalece sobre as regras proibitivas do fraccionamento, pelo que mesmo que, a posse tenha sido em termos de propriedade sobre uma parcela inferior à unidade de cultura vigente, ter-se-á de admitir que foi uma posse boa para usucapião do direito de propriedade da (s) parcela (s), não podendo a mesma ser impedida por acção de anulação ou declaração de nulidade fundada na violação de preceito legal que não impunha, em qualquer circunstância, a nulidade dos actos e negócios praticados em sua violação.

Não obstante o Acórdão recorrido ter entendido em sentido diverso, e estar acompanhado de outras posições jurisprudenciais que sufragam entendimento contrário ao aqui vertido, tendo ocorrido uma alteração legal em 2015, que modifica a invalidades dos actos e negócios de fraccionamento – de anuláveis passam a nulos – essa alteração só pode ajudar a esclarecer o intuito legal de, para os actos e negócios anteriores, ser imposta a anulação – a obter em prazo curto e nos termos legais – tudo concorrendo no sentido de afirmar que, até à referida alteração, a matéria em causa não era de puro interesse público, sempre susceptível de se sobrepor aos interesses privados.


III. DECISÃO

Pelos fundamentos invocados, revoga-se o acórdão do Tribunal da Relação de Évora e, em sua substituição, repristina-se a decisão da 1ª instância (julgando-se a acção improcedente e absolvendo-se os RR. do pedido).

As custas são da responsabilidade do recorrido, se for devido o seu pagamento.

Lisboa, 3 de Maio de 2018


Fátima Gomes (Relatora)

Acácio Neves

Garcia Calejo

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[1] Disponíveis em www.dgsi.pt.
[2] Em matéria de normas urbanísticas.