Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
7614/12.4TBCSC.L1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: MARIA DOS PRAZERES PIZARRO BELEZA
Descritores: EXEQUATUR
ORDEM PÚBLICA
REVOGAÇÃO
REGULAMENTO (CE) 44/2001
PRINCÍPIOS DE ORDEM PÚBLICA PORTUGUESA
TRADUÇÃO
DEPOIMENTO DE PARTE
DECLARAÇÕES DE PARTE
INTÉRPRETE
PRINCIPIO DO PROCESSO EQUITATIVO
Data do Acordão: 03/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA
Área Temática:

DIREITO EUROPEU - DECISÕES DOS ESTADOS MEMBROS EM MATÉRIA CIVIL E COMERCIAL / RECONHECIMENTO E EXECUÇÃO DAS DECISÕES.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO / ACTOS PROCESSUAIS ( ATOS PROCESSUAIS) / NULIDADES DOS ACTOS ( NULIDADES DOS ATOS).
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC) / 2013: - ARTIGOS 131.º, 195.º, N.º1.
Legislação Comunitária:
REGULAMENTO (CE) Nº 44/2001: - ARTIGO 34.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 31 DE JANEIRO DE 2007 (PROC. Nº 06A4568), EM WWW.DGSI.PT .
-DE 8 DE ABRIL DE 2008 (PROC. Nº 08A568), EM WWW.DGSI.PT , E DE 11 DE MARÇO DE 2010 (PROC. 2580/08.3TVLSB), EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Só tem utilidade determinar a produção de prova sobre factos alegados pela recorrente – e que se resumem à incapacidade da intérprete desempenhar correctamente a sua função – se, a serem provados, houver que concluir no sentido da revogação do exequatur.

II - Não tem fundamento entender que a ordem pública do Estado português exige mais ao juiz do que garantir a possibilidade de intervenção de um intérprete, nos moldes previstos no art. 131.º do NCPC (2013), para assistir a parte que, estando representada por advogado, não compreende a língua do processo e é chamada a aprestar depoimento em audiência.

III - De igual forma, não pode ser relevante, para efeitos de recusa de exequatur, uma eventual dificuldade de compreensão pela mesma parte, representada por advogado, que não foi suscitada em termos de ser proferida uma decisão pelo tribunal perante o qual decorre a audiência.

IV - Não é fundamento de recusa de exequatur a infracção que, a ter ocorrido, poderia ter sido corrigida pelo próprio tribunal ou em via de recurso.

V -Tendo sido respeitada a jurisprudência do TJUE, segundo a qual cabe aos Estados definir o conteúdo da sua ordem pública e ao TJUE apenas controlar os limites dos quadros em que o juiz de um Estado Membro pode recorrer a essa noção para não reconhecer uma decisão proveniente de outro Estado Membro, não ocorre, no caso, qualquer infracção às regras da obrigatoriedade do reenvio prejudicial.

Decisão Texto Integral:

Acordam, no Supremo Tribunal de Justiça: 


1. Notificada do acórdão de fls. 268, AA, Lda. veio arguir a respectiva nulidade, por excesso de pronúncia, por ter afirmado “que a Recorrente não suscitou nos tribunais neerlandeses – no tribunal de 1ª instância ou no tribunal de recurso – “(…) a incapacidade do intérprete e a impossibilidade de prestação de depoimento esclarecido por incompreensão, provocada por essa incapacidade de tradução de modo a permitir uma eventual correcção em de qualquer modo, a obter uma decisão sobre a questão (…)” (páginas 17-18)»  e ter retirado consequências dessa afirmação, no sentido de não se poder considerar ter ocorrido infracção “à ordem pública processual portuguesa”.

No entanto, diz a requerente, a questão da “incapacidade da intérprete” foi suscitada, quer na 1ª instância, quer nas alegações do “recurso que interpôs para o Tribunal de recurso de Amsterdão”, que não constam “como não poderiam constar”, do processo. Mas o Supremo Tribunal de Justiça “deu como assente” que assim não tinha sucedido, sem qualquer prova.

Arguiu ainda nulidade:

– por não ter sido notificada para “informar se havia apresentado alegações no recurso interposto nos tribunais neerlandeses e, se sim, juntar aos autos cópia das alegações de recurso que apresentara” (195º, nº 1, Código de Processo Civil);

– por o Supremo Tribunal de Justiça não ter “suscitado o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, optando por uma decisão surpresa”, quanto à “interpretação restritiva do artigo 34º/1 do Regulamento nº 44/2201”, que “não é corroborada pela letra do artigo 34º/1 do Regulamento, nem é sustentada em precedente da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia”;

– por o Supremo Tribunal de Justiça não ter “suscitado o reenvio prejudicial para o Tribunal de Justiça da União Europeia, optando por uma decisão surpresa”, quanto à “interpretação pretoriana” do Regulamento nº 44/2001, quando considera exigível que, encontrando-se “pendente o recurso” ou sendo o recurso ainda possível, “a parte tenha suscitado a infracção perante o tribunal que proferiu a decisão”.

Conclui, assim, que as nulidades devem ser supridas, dando-se provimento à revista ou, se assim se não entender, procedendo ao reenvio prejudicial.

2. A recorrente pediu ainda a reforma quanto a custas, caso se mantenha a “improcedência do recurso de revista”.

3. A recorrida BB B.V pronunciou-se no sentido da inexistência das “pretensas nulidades” e da falta de fundamento do pedido de reforma quanto a custas.

A recorrente veio “requerer a junção aos autos da cópia do documento correspondente às alegações apresentadas pela Recorrente no Tribunal de Recurso de Amsterdão apresentado da respectiva tradução”.


4. Cumpre conhecer das nulidades arguidas:

– Por excesso de pronúncia:

Escreveu-se no acórdão recorrido (págs. 17 a 20):

«9. A recorrente afirma que os representantes das partes prestaram “declarações sobre o mérito da causa” e que “o princípio do processo equitativo exige que estivesse presente um intérprete fluente nas línguas portuguesa e neerlandesa para proceder à tradução para português do que fosse dito pelo tribunal e por CC e para neerlandês do que fosse dito por DD – o mesmo se passando, mutatis mutandis, com os depoimentos da Directora de Assuntos Científicos da recorrente, EE”, que o intérprete concretamente presente se revelou incapaz de desempenhar correctamente a sua função e que, assim sendo, a igualdade das partes na produção de prova não foi observada.

A recorrida contrapõe que esta descrição não corresponde ao que ocorreu e que o juiz “colaborou com a Recorrente e assegurou que a mesma compreendesse tudo o que foi dito”.

Como se observou já, só tem utilidade determinar a produção de prova sobre os factos alegados pela recorrente se, a serem provados, houver que concluir no sentido da revogação do exequatur; mas trata-se de uma conclusão a que se não pode chegar.

A lei portuguesa não prevê, nem que as partes possam ser indicadas como testemunhas (artigo 617º do Código de Processo Civil anterior, actual artigo 496º), nem que sejam chamadas a prestar declarações sobre a causa, em geral, com relevância probatória.

Até à entrada em vigor do Código de Processo Civil de 2013, as partes podiam requerer o depoimento da parte contrária ou de uma comparte (com interesses antagónicos) sobre factos determinados, com o objectivo de obter a respectiva confissão (de factos desfavoráveis ao depoente, portanto); esse depoimento podia ainda ser determinado por iniciativa do juiz, com o mesmo objectivo. O juiz tinha ainda o poder de chamar a parte para prestar esclarecimentos, não relevando agora averiguar exactamente com que extensão ou com que objecto.

O Código de Processo Civil de 2013 manteve estas possibilidades e veio acrescentar a prova por declarações de parte, no artigo 466º. Permite-se à própria parte que requeira a prestação (do seu próprio) depoimento sobre os factos que indicar, ficando as declarações prestadas sujeitas à livre apreciação pelo julgador, como meio de prova (salvo se e na medida em que resultarem em confissão). Mas não eliminou o impedimento a que a parte deponha como testemunha (artigo 496º), manteve a função do depoimento de parte como um meio de obtenção da prova por confissão (artigo 452º) e manteve o poder do juiz de pedir esclarecimentos e informações (artigos 7º, nº 2 e 452º, nº 1)

E continuou a não prever que a parte seja chamada a depor sobre os factos do litígio, independentemente de lhe serem favoráveis ou desfavoráveis, conferindo ao juiz o poder de valorar livremente as declarações; como a recorrida observa, a audição das partes que ocorreu e cuja equidade a recorrente contesta não tem paralelo no processo civil português. O mesmo se não pode dizer quanto ao depoimento de EE, naturalmente.

Não está em causa, no entanto, a possibilidade de valoração probatória das declarações dos representantes das partes; mas apenas as condições em que foram prestadas.

10. Ora a verdade é que ambas as partes estavam representadas por advogado, na audiência correspondente. Nada consta, na sentença, sobre uma eventual reacção da parte – insista-se, representada por advogado – quanto a uma hipotética inadequação da tradução, prejudicial à recorrente; e, portanto, nada consta sobre qualquer decisão do juiz no sentido de não ter em conta essa hipotética inadequação.

Não tem nenhum fundamento entender que é da ordem pública processual do Estado português exigir que seja o juiz a assegurar-se que, num processo civil em que as partes estão representadas por advogado, e em que os representantes de uma das partes não entendem a língua do processo mas são assistidos por um intérprete devidamente credenciado para o efeito, quando são chamados a depor em audiência, incumba ao juiz garantir mais do que essa possibilidade de intervenção do intérprete.

É tão somente essa intervenção que o Código de Processo Civil garante no respectivo artigo 133º, quando hajam de ser ouvidos “estrangeiros”, para “estabelecer a comunicação” e só quanto “ao que for estritamente indispensável”; este regime vale para as partes, se for o caso.

Para a lei portuguesa, aliás, uma eventual dificuldade de compreensão haveria de ser invocada na própria audiência, sob pena de se sanar.

Não se discorda do entendimento de que a igualdade da produção de prova implica que os depoentes disponham das condições adequadas à cabal compreensão do que lhes é perguntado, ou de declarações prestadas por outros depoentes, com os quais sejam confrontados (acareação). É condição de igualdade na produção de prova que, se as declarações das partes relevam como meio de prova, ambas as partes compreendam as perguntas que lhe são feitas e os depoimentos com os quais são confrontados. O que não equivale a ser feita uma tradução integral das perguntas ou dos depoimentos; com efeito, um regime como o do artigo 133º do Código de Processo Civil preenche as exigências do processo equitativo.

Apenas se entende que: se a parte está representada por advogado; se é assistida por um intérprete formalmente credenciado; se não suscita perante o tribunal (ou em via de recurso) a incapacidade concreta do intérprete e a impossibilidade de prestação de depoimento esclarecido por incompreensão provocada por essa incapacidade de tradução, de modo a permitir uma eventual correcção e, de qualquer modo, a obter uma decisão sobre a questão, então não pode vir posteriormente invocar a violação do princípio da igualdade na produção de prova, ou desta vertente do processo equitativo, para impedir a exequibilidade da sentença que tenha valorado o depoimento, no contexto global de apreciação da prova.

O mesmo se diga do depoimento de EE, prestado também na presença dos advogados.

11. A recorrente invoca em apoio da posição que defende os acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 27 de Outubro de 1993 (proc. nº 14448/88, caso Dombo Beheer vs. Países Baixos).e de 24 de Setembro de 2002 (proc. nº 32771, caso Cuscani vs. Reino Unido), que se debruçaram sobre a necessidade de garantir a igualdade das partes, quanto à admissibilidade de prova testemunhal e quanto à efectividade das traduções.

É certo que o acórdão de 27 de Outubro de 1993 afirmou que “a igualdade de armas implica que deve ser concedida a ambas as partes uma oportunidade razoável de apresentar o seu caso – incluindo a sua prova – em circunstâncias que não o coloquem em situação de desvantagem” (ponto 33); e que considerou violação do nº 1 do artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem uma “desvantagem substancial” das partes perante a prova.

Mas o que então estava em causa era ter sido impedido de depor como testemunha um anterior representante de uma das partes, que como tal interviera em determinado acordo oral que cabia à parte provar, sendo certo que tinha sido admitido a depor a outra única pessoa que nele participara, no interesse da parte contrária.

No acórdão de 24 de Setembro de 2002 afirmou-se que competia ao juiz velar pela fiabilidade das traduções; mas teve-se então em vista a desvantagem perante a prova em que se encontrava um arguido em processo crime, que não entendia a língua do processo, e que se declarou culpado de acusações de elevada gravidade, arriscando uma pesada pena de prisão, e que tinha grandes dificuldades em comunicar com o seu próprio advogado.

Trata-se portanto de situações substancialmente diferentes da presente.

12. Disse-se atrás que não é fundamento de recusa de exequatur a infracção que, a ter ocorrido, poderia ter sido corrigida pelo próprio tribunal ou em via de recurso, se a parte que sustenta essa recusa não reagiu por alguma dessas vias.

Esta afirmação tem que ser devidamente entendida, pelo menos quanto à referência ao recurso, uma vez que o trânsito em julgado não é condição de concessão da executoriedade: basta que a decisão tenha força executiva no país de origem. No caso, como se sabe, a sentença está pendente de recurso nos tribunais holandeses.

A afirmação genericamente feita acima significa que, se de uma decisão transitada se tratar, não integra o fundamento de oposição à concessão de executoriedade de violação da ordem pública processual um vício, alegadamente ocorrido no processo, que poderia ter sido corrigido em recurso; veja-se, aliás, o lugar paralelo no nº 2 do artigo 34º do Regulamento (CE) nº 44/2001.

O mesmo se não poderá dizer no caso de se encontrar pendente o recurso, ou de este ainda ser possível, quando se aprecia um pedido de concessão de exequatur. Nessa eventualidade, deve exigir-se que a parte tenha suscitado a infracção perante o tribunal que proferiu a decisão.

Não se trata, diga-se já, de nenhum ónus, nem injustificado, nem excessivo. A sua justificação encontra-se no princípio da confiança nas decisões dos outros Estados Membros, já realçado; e a proporcionalidade está garantida, em primeiro lugar, por se tratar de processos civis em que as partes estão representadas por advogado; e, em segundo lugar, por estarem em causa princípios fundamentais da ordem processual, aliás consabidamente comuns aos países membros da União Europeia, exigindo-se como requisito de relevância a sua manifesta inobservância.

É o que resulta da necessidade de confiar no “sistema de meios processuais existente” no Estado de origem “fornece aos particulares uma garantia suficiente” – acórdão do TJUE de 28 de Abril de 2009, citado, como se observou já e, devidamente entendida esta afirmação, da impossibilidade de controlo do mérito da decisão de cuja exequibilidade se trata.

E é o que resulta, ainda, de caber a cada Estado a determinação do conteúdo da sua própria ordem pública. Como se afirmou, por exemplo, no já citado acórdão do TJUE de 6 de Setembro de 2012, a jurisprudência é contante no sentido de reconhecer que cabe aos Estados definir o conteúdo e “as exigências da sua ordem pública”, competindo ao TJUE “controlar os limites dos quadros em que o juiz de um Estado Membro pode recorrer a essa noção para não reconhecer uma decisão proveniente de outro Estado Membro”.

Com efeito, para a lei portuguesa, e como se referiu já, uma dificuldade de entendimento semelhante à que a recorrente alega haveria de ter sido suscitada na própria audiência, sob pena de se considerar sanada, nos termos do regime geral definido para as nulidades secundárias (artigos 195º e 199º do actual Código de Processo Civil, correspondentes aos anteriores artigos 201º e 105º, respectivamente).

Assim sendo, não pode entender-se contrária à ordem pública processual portuguesa a execução de uma sentença precedida de uma audiência na qual a parte que sentiu dificuldades de compreensão nos termos alegados, quando foi chamada a depor ou foi acareada com outro depoimento, estando presente o seu advogado, não invocou essa dificuldade para requerer as medidas adequadas a garantir tal compreensão, ainda que os depoimentos tenham sido valorados para efeitos de prova. O mesmo se diga quanto ao depoimento de EE.»


5. A leitura completa das partes do acórdão onde se refere a questão de ser ou não suscitada perante os tribunais neerlandeses «a incapacidade concreta do intérprete “(…) a incapacidade do intérprete e a impossibilidade de prestação de depoimento esclarecido por incompreensão, provocada por essa incapacidade de tradução de modo a permitir uma eventual correcção em de qualquer modo, a obter uma decisão sobre a questão (…)” (páginas 17-18)» é importante para a compreensão e para a análise da crítica feita pela recorrente, qualificada de nulidade (por excesso de pronúncia).

Antes de mais, cumpre observar que o vício ou erro apontado pela recorrente em caso algum constituiria excesso de pronúncia, por não se traduzir no conhecimento de questão que excedesse o âmbito do objecto do recurso de revista, tal como vem delimitado pelas conclusões das alegações apresentadas pela recorrente. Em verdade, tratar-se-ia apenas de um argumento utilizado para o conhecimento das questões enumeradas no ponto 5. do acórdão de fls. 268.

No entanto, a leitura completa do trecho acima transcrito desse mesmo acórdão revela que o Supremo Tribunal de Justiça não afirmou “que a Recorrente não suscitou a questão no recurso que interpôs para o Tribunal de Recurso de Amsterdão”, como a recorrente alega no requerimento de arguição de nulidade.

Como é evidente, o Supremo Tribunal de Justiça não fez e nem poderia ter feito semelhante afirmação, pela muito simples razão de que desconhecia o teor de hipotética alegação ou motivação apresentada em tal recurso.

Basta ler com atenção o que se escreveu no ponto 12. do acórdão.

Improcede, assim a arguição de nulidade por excesso de pronúncia.

6. Antes de prosseguir na análise das demais nulidades arguidas, cumpre recordar o contexto completo da afirmação paralela, relativa à audiência onde foi realizada prova, no caso concreto.

Nas alegações de revista, a recorrente transcreveu parte das que apresentara na apelação, relativa à alegação da “seguinte matéria de facto” (ponto 15 das alegações de revista, fls. 162 e segs.), na qual relata as dificuldades linguísticas sentidas na audiência (cfr., em especial, als,. H) a GG).) e a actuação do tribunal neerlandês para as ultrapassar.

Ora o que resulta do acórdão recorrido é o seguinte: “Nada consta, na sentença, sobre uma eventual reacção da parte – insista-se, representada por advogado – quanto a uma hipotética inadequação da tradução, prejudicial à recorrente; e, portanto, nada consta sobre qualquer decisão do juiz no sentido se não ter em conta essa hipotética inadequação”. As afirmações escolhidas pela requerente têm de ser entendidas neste contexto; o excerto escolhido no requerimento de arguição de nulidade para sustentar que o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça alterou o sucedido no processo decorrido no Tribunal de Amsterdão não traduz a fundamentação do acórdão.

7. A recorrente arguiu ainda a nulidade do acórdão por não ter sido notificada a recorrente para “informar se havia apresentado alegações no recurso interposto nos tribunais neerlandeses e, se sim, juntar aos autos cópia das alegações de recurso que apresentara” (195º, nº 1, Código de Processo Civil);

Também não procede esta arguição. Independentemente de qualquer outra razão, porque não foi relevante, no acórdão – nem podia ter sido –, a apresentação de tais alegações. Note-se que em parte alguma do acórdão se diz que o nº1 do artigo 34º do Regulamento nº. 44/2001 “condiciona a invocação da violação da ordem pública processual à interposição de recurso no Estado de origem” (ponto 14. do requerimento).

O despacho de 25 de Junho de 2014 teve como objectivo saber “se já foi decidido o recurso” interposto pela autora, como resulta do respectivo texto, convidando-se “em caso afirmativo, (…) a juntar cópia traduzida da decisão proferida, esclarecendo se é definitiva”, sendo manifesta a relevância de uma eventual alterações da sentença de cuja execução se trata neste processo.

8. Finalmente, a recorrente argui ainda a nulidade do acórdão por não ter sido precedido de reenvio prejudicial e por ter optado por uma decisão surpresa (pontos 14 a 23 do requerimento).

Para a apreciar, cumpre recordar o seguinte:

– Em parte alguma do acórdão se afirma que o nº 1 do artigo 34º do Regulamento nº 44/2001 “condiciona a invocação da violação da ordem pública processual à interposição de recurso no Estado de origem” (ponto 14), como se disse já, ou se aplica analogicamente o “limite previsto no artigo 34º/2”, previsto para os casos de revelia (ponto 15); é outro o significado da alusão a este nº 2, como se pode verificar da transcrição acima feita do ponto 12. do acórdão;

– Não relevam, para o caso concreto, as considerações que se fazem no acórdão relativamente à invocação de qualquer infracção em via de recurso; devidamente interpretadas, destinam-se manifestamente a enquadrar a solução encontrada, num âmbito mais geral. Isto mesmo se esclarece no acórdão, como se vê da transcrição acima efectuada. Num contexto de arguição de nulidade, não podem ser tidas em conta as referências feitas a tais considerações, seja para acusar o Supremo Tribunal de Justiça de ter proferido uma decisão surpresa, seja para sustentar a não formulação de um pedido obrigatório de reenvio prejudicial. O que se vai dizer a seguir refere-se portanto, apenas, à invocação da infracção ao processo equitativo no tribunal de 1ª Instância e com o significado preciso com que a consideração foi feita. Recorde-se, mais uma vez:

«10. Ora a verdade é que ambas as partes estavam representadas por advogado, na audiência correspondente. Nada consta, na sentença, sobre uma eventual reacção da parte – insista-se, representada por advogado – quanto a uma hipotética inadequação da tradução, prejudicial à recorrente; e, portanto, nada consta sobre qualquer decisão do juiz no sentido de não ter em conta essa hipotética inadequação.

(…)

Apenas se entende que: se a parte está representada por advogado; se é assistida por um intérprete formalmente credenciado; se não suscita perante o tribunal (ou em via de recurso) a incapacidade concreta do intérprete e a impossibilidade de prestação de depoimento esclarecido por incompreensão provocada por essa incapacidade de tradução, de modo a permitir uma eventual correcção e, de qualquer modo, a obter uma decisão sobre a questão, então não pode vir posteriormente invocar a violação do princípio da igualdade na produção de prova, ou desta vertente do processo equitativo, para impedir a exequibilidade da sentença que tenha valorado o depoimento, no contexto global de apreciação da prova.»;

– De qualquer modo, recorda-se o seguinte trecho do acórdão da Relação, suficiente, por si mesmo, para afastar qualquer hipotética decisão surpresa:

“Acresce ainda também que não foi alegado que, no âmbito do processo donde promana a sentença estrangeira, não pudesse ter sido corrigida a alegada violação do princípio do processo equitativo, tanto mais que a Apelante dispunha do direito ao recurso, e que, como declarou, exerceu, impugnando a sentença cuja executoriedade foi requerida ao tribunal português”;

– Não se compreende o alcance do que se afirma no ponto 21, quando refere uma “outra interpretação do Regulamento nº 44/2001”. Remete-se para o ponto 12. do acórdão, acima transcrito, para se considerar justificada a sua ligação à interpretação referida  imediatamente antes (pontos 18 a 20) e para se ter como infundado o que a requerente afirma quanto à necessidade de reenvio prejudicial. A transcrição repete-se, para não restar qualquer dúvida de que foi respeitada a jurisprudência do TJUE, no sentido de não serem infringidos os limites traçados para a determinação do conteúdo da sua própria ordem pública, como aqui sucedeu:

«E é o que resulta, ainda, de caber a cada Estado a determinação do conteúdo da sua própria ordem pública. Como se afirmou, por exemplo, no já citado acórdão do TJUE de 6 de Setembro de 2012, a jurisprudência é contante no sentido de reconhecer que cabe aos Estados definir o conteúdo e “as exigências da sua ordem pública”, competindo ao TJUE “controlar os limites dos quadros em que o juiz de um Estado Membro pode recorrer a essa noção para não reconhecer uma decisão proveniente de outro Estado Membro”.

Com efeito, para a lei portuguesa, e como se referiu já, uma dificuldade de entendimento semelhante à que a recorrente alega haveria de ter sido suscitada na própria audiência, sob pena de se considerar sanada, nos termos do regime geral definido para as nulidades secundárias (artigos 195º e 199º do actual Código de Processo Civil, correspondentes aos anteriores artigos 201º e 105º, respectivamente).

Assim sendo, não pode entender-se contrária à ordem pública processual portuguesa a execução de uma sentença precedida de uma audiência na qual a parte que sentiu dificuldades de compreensão nos termos alegados, quando foi chamada a depor ou foi acareada com outro depoimento, estando presente o seu advogado, não invocou essa dificuldade para requerer as medidas adequadas a garantir tal compreensão, ainda que os depoimentos tenham sido valorados para efeitos de prova. O mesmo se diga quanto ao depoimento de EE.»


9. Rejeita-se assim qualquer acusação de infracção às regras da obrigatoriedade do reenvio prejudicial ou de desrespeito pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia.


10. A terminar, apenas se diz que não se comentam as afirmações feitas nos pontos 26 a 28 do requerimento, que nada influem na apreciação do caso presente.


11. A requerente vem ainda solicitar a reforma da decisão quanto à condenação no pagamento das custas da revista, citando o acórdão deste Supremo Tribunal de 31 de Janeiro de 2007 (www.dgsi.pt, proc. nº 06A4568).

Com efeito, no acórdão de 31 de Janeiro de 2007 entendeu-se não proceder a condenação em custas, citando o artigo 52º do Regulamento nº 44/2001; tal decisão foi devidamente ponderada, quando se optou por um caminho diferente. No mesmo sentido, cfr., por exemplo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 8 de Abril de 2008 (www.dgsi.pt, proc. nº 08A568) ou de 11 de Março de 2010 (www.dgsi.pt, proc. 2580/08.3TVLSB), que condenam em custas.

Indefere-se o pedido de reforma, por se entender que a isenção ali prevista não vale para efeitos de recurso.


12. Nestes termos, indeferem-se a arguição de nulidade e o pedido de reforma quanto a custas.

Custas pela requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3 ucs.


            Lisboa, 26 de Março de 2015


            Maria dos Prazeres Beleza (Relatora)

            Salazar Casanova

            Lopes do Rego