Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
08A3741
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SILVA SALAZAR
Descritores: GRAVAÇÃO DA PROVA
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
NULIDADE PROCESSUAL
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
PRAZO
ALEGAÇÕES DE RECURSO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Nº do Documento: SJ20090113037411
Data do Acordão: 01/13/2009
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I - A nulidade consistente em omissão ou imperceptibilidade do registo magnético da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, só havendo motivo para ser detectada após o início da instância de recurso para a Relação, em fase de preparação de alegações em que seja impugnada matéria de facto, determina a existência de nulidade da própria sentença, podendo ser arguida nessas mesmas alegações e até ao termo do respectivo prazo de apresentação.
II - Deve a correspondente arguição ser conhecida ainda na 1ª instância, mantendo-se, porém, se indeferida, no âmbito do recurso para a Relação.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Em 13/4/06, AA instaurou contra BB e mulher, CC, e DD, acção com processo ordinário pedindo a condenação dos Réus a pagarem-lhe, solidariamente, a quantia de € 28.431,29, acrescida de juros legais desde a citação até integral pagamento.
Subsidiariamente:
- caso assim não seja entendido, pede a condenação dos Réus a pagarem-lhe, solidariamente, a quantia de € 9.975,96, bem como a quantia correspondente aos juros vencidos até 13 de Abril de 2006 no total de € 2.610,69, calculados à taxa legal, e os vincendos até efectivo e integral pagamento;
- na hipótese de não serem atendidos os anteriores pedidos, pretende a condenação dos Réus a entregarem-lhe a quantia de € 9.975,96 e no pagamento dos juros que se vencerem desde a citação até integral e efectivo pagamento.
Invoca que é irmão da Ré, cunhado do primeiro Réu e tio do terceiro, e que, no âmbito de uma execução fiscal, foi penhorado um prédio pertencente aos dois primeiros.
Como esses dois Réus não tinham dinheiro para liquidar os débitos desse processo, havia outras dívidas e pretendiam que o prédio fosse arrematado pelo terceiro para continuar a pertencer-lhes, no início de Maio de 1986 pediram todos os réus emprestado ao autor o montante de Esc. 2.000.000$00, hoje correspondente àqueles 9.975,96 euros, ao que acedeu, comprometendo-se eles a restituir-lho no prazo de um ano.
Interpelados para pagar, não o fizeram, encontrando-se de relações cortadas.
Conclui que lhe devem aquele montante, acrescido de actualização correspondente à correcção monetária de harmonia com a taxa de inflação, o que ascendia à quantia de 28.431,49 euros.
Os Réus contestaram admitindo que o prédio foi objecto de penhora e arrematado pelo terceiro, mas impugnaram a restante matéria alegada.
O Autor replicou para pedir a condenação dos Réus como litigantes de má fé em multa e procuradoria condigna a seu favor.
Foi proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial para clarificação na vinculação negocial imputada aos primeiros Réus, o que foi aceite pelo Autor com apresentação de novo articulado.
Foi exercido o contraditório.
Dispensada a realização de audiência preliminar, foi proferido despacho saneador que decidiu não haver excepções nem nulidades secundárias, ao que se seguiu, sem enumeração de matéria de facto assente por não a haver com interesse para a decisão, a elaboração de base instrutória, sem reclamações.
Oportunamente teve lugar audiência de discussão e julgamento, tendo sido decidida a matéria de facto sujeita a instrução, ficando em consequência, igualmente sem reclamações, fixados na 1ª instância os seguintes factos:
- Em 8 de Maio de 1986 o segundo Réu liquidou o valor de Esc. 2.667.337$00 correspondente a 2/3 do preço de Esc. 4.000.001$00, respeitante à arrematação que havia feito do prédio urbano inscrito na matriz da freguesia de Arco de Baúlhe sob o artigo 550, pertencente aos primeiros Réus, que fora penhorado no âmbito do processo executivo que correu termos sob o nº 697 de 1984 do ex-5º Juízo Tributário de 1ª instância de Lisboa (resposta ao artigo 2º da base instrutória).
Com base nesses factos foi proferida sentença que, por falta de prova, pelo autor, do invocado empréstimo, julgou a acção improcedente e absolveu os réus do pedido.
Apelou o autor, sem sucesso, uma vez que a Relação negou provimento ao recurso e confirmou a sentença ali recorrida, por acórdão de que vem interposta a presente revista, de novo pelo autor, que, em alegações, formulou conclusões em que suscitou as seguintes questões:
- nulidade da audiência de julgamento e da sentença por força da omissão e imperceptibilidade da gravação daquela audiência;
- prazo para a respectiva arguição;
- nulidade por omissão de pronúncia por falta de apreciação da decisão sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente na apelação.

Não houve contra alegações.

Colhidos os vistos legais, cabe decidir.
O recorrente, aliás como os recorridos, requereu oportunamente a gravação da prova em audiência de julgamento (fls. 59 e 62), o que foi deferido (fls. 64).
E, como da respectiva acta consta (fls. 182 e segs., 249 e segs.), a tal gravação se procedeu.
Nas conclusões das suas alegações da apelação, o autor, entendendo que os depoimentos prestados em audiência se encontravam deficientemente gravados, o que os tornava imperceptíveis, invocou a respectiva nulidade, tendo ainda na 1ª instância sido proferido despacho judicial sobre tal questão sem que nele fosse dada satisfação ao apelante.
A Relação, entendendo que se tratava de uma nulidade processual que como tal devia ter sido arguida no Tribunal em que teria sido cometida a fim de nele ser apreciada e julgada, portanto no Tribunal da 1ª instância, considerou-a sanada, não analisando, por isso, como resulta do acórdão recorrido, as gravações feitas.
Ora, não se afigura correcto o entendimento da Relação.
Com efeito, a deficiência da gravação, a existir, constitui uma nulidade secundária, das previstas no art.º 201º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, uma vez que tal deficiência integra uma omissão de um acto prescrito na lei (art.º 7º, n.º 2, do Dec. – Lei n.º 39/95, de 15/2), que pode nitidamente influir na decisão da causa por obstar, quer à fundada impugnação da matéria de facto pelas partes com base na gravação, quer à reapreciação da matéria de facto pela Relação.
Como tal, deve ser arguida pela parte que nisso tenha interesse nos termos do art.º 205º, n.º 1, do mesmo Código.
Este dispositivo, porém, pressupõe o conhecimento do cometimento da nulidade, ou por esta ser detectável quando cometida, ou por o dever ser quando a parte, posteriormente a tal cometimento, intervenha em algum acto praticado no processo ou seja notificada para qualquer termo dele. Nem sequer faria sentido que a parte fosse obrigada a arguir nulidades que não soubesse ou não tivesse obrigação de saber que haviam sido cometidas, sendo que, na hipótese dos autos, só dela se poderia aperceber precisamente quando, pretendendo impugnar a matéria de facto, analisasse a gravação.
Assim, desconhecida a nulidade durante a audiência, é manifesto que não poderia ser arguida durante esta.
Depois, o autor não interveio em nenhum outro acto praticado no processo posteriormente à audiência.
E só pode ter tomado conhecimento da nulidade porventura existente quando lhe foi entregue o registo magnético da prova produzida em audiência a fim de preparar as alegações da apelação, conforme oportunamente requereu, ou seja, já na fase do recurso.
Sem dúvida que não arguiu a nulidade no prazo de dez dias (art.º 153º do mesmo Código) a contar dessa entrega. Mas, detectada ela apenas após interposição e admissão do recurso, quando já começara o prazo para elaboração das alegações, e como meio necessário para delimitação do objecto do recurso, que abrangia a apreciação da matéria de facto pela Relação, entende-se que nada na lei obsta à respectiva arguição apenas nas próprias alegações da apelação, para cuja apresentação o autor dispunha de 40 dias nos termos do art.º 698º, n.ºs 1 e 6, do Cód. Proc. Civil, e portanto até ao termo desse prazo.
Aliás, esse n.º 6, conjugado com o disposto no art.º 690º-A, n.º 2, do mesmo Código, conduz ao entendimento de que só aquando da elaboração das alegações da apelação em que pretenda impugnar matéria de facto o recorrente tem de analisar a gravação, cuja falta de análise anterior não constitui por isso violação de qualquer dever de diligência, e portanto ao entendimento de que a arguição da eventual nulidade pode ser feita só então, uma vez que os dez dias acrescidos são concedidos precisamente para possibilitar a análise das gravações pelo recorrente apenas na fase da elaboração das mesmas alegações, dado que ele pode não se ter conformado com a decisão sobre a matéria de facto somente por, face a apontamentos que tenha tomado ou a partes de depoimentos de que se recorde, admitir divergência de interpretação que fez da prova produzida em relação ao decidido pelo Juiz, podendo nada o levar a crer, na altura da interposição do recurso, na existência da deficiência da gravação.
Assim, entende-se que a arguição de nulidade em causa foi feita dentro do prazo legal, tanto mais que se mostraria atentatório dos princípios da celeridade e da economia processual o retorno dos autos à fase anterior à do recurso, que nada justifica, para arguição autónoma da nulidade, tendo então de se interromper a instância do recurso já iniciada e o prazo para apresentação das alegações por só com base em gravação correcta da prova produzida estas, contendo impugnação de matéria de facto, poderem ser fundadamente elaboradas.
Por outro lado, ao contrário do entendido na Relação, a arguição de nulidade foi efectivamente feita no Tribunal da 1ª instância, uma vez que consta das alegações da apelação, que ali foram apresentadas como a lei o exige conforme resulta do disposto nos art.ºs 698º e 699º do Cód. Proc. Civil, nelas requerendo o apelante a apreciação dessa questão ainda na 1ª instância, como aliás foi feito, embora sem lhe ter sido então reconhecida razão.
Acresce que, embora esteja em causa uma nulidade processual que, à partida, não integrava nulidade da sentença, certo é que, a existir aquela nulidade, dela deriva nulidade da própria sentença, e do acórdão recorrido, nos termos do n.º 2 do art.º 201º, citado, visto que a sentença, e o acórdão, dependem em absoluto dos factos que forem considerados provados, não só pela 1ª instância, mas também, de forma definitiva, pela Relação, portanto com base em elementos de prova que esta esteja em condições de analisar quando seja caso disso.
Daí que, embora não se esteja aqui directamente perante uma nulidade da sentença das previstas no art.º 668º, n.º 1, do mesmo Código, se considere aplicável à hipótese dos autos, se não directamente pelo menos por analogia, por se tratar em qualquer caso de uma nulidade da sentença, o disposto no n.º 4 do mesmo art.º 668º, cabendo assim ao Juiz da 1ª instância o suprimento dessa nulidade, se, como é óbvio, entendesse que esta existia.
E, resultando do mesmo n.º 4 que ao despacho proferido pelo Juiz da 1ª instância sobre tal questão é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto no art.º 744º, tem de se concluir que o despacho proferido na 1ª instância sobre a arguição de nulidade, ao não dar satisfação ao recorrente, corresponde a um despacho de sustentação, pelo que, face ao estatuído no n.º 2 deste último artigo, essa questão se mantinha integrada no âmbito da apelação, cabendo à Relação a decisão sobre se a nulidade em causa se verifica ou não, obviamente mediante audição das gravações, - coisa que do acórdão recorrido resulta que não fez -, uma vez que tal nulidade, a existir, não se encontra sanada.
Fica, em consequência, prejudicado o conhecimento neste momento da restante matéria da revista, uma vez que o disposto no art.º 690º-A, n.º 2, citado, pressupõe claramente que as provas tenham sido gravadas de forma perceptível e completa, o que só mediante aquela audição pela Relação se poderá determinar a fim de ser observado, sendo caso disso, o disposto no art.º 9º do mencionado Dec. – Lei n.º 39/95, ou seja, mediante anulação e repetição do julgamento, a decretar pela Relação, com a correcta gravação da prova a produzir na medida do necessário para desaparecer a imperceptibilidade eventualmente existente, neste sentido apontando a acórdão deste Supremo de 29/5/07, publicado na internet sob o n.º 07A191.

Pelo exposto, acorda-se em conceder a revista, revogando-se o acórdão recorrido, declarando-se não sanada a nulidade porventura existente relacionada com a eventual falta ou imperceptibilidade da gravação da prova produzida em audiência, e determinando-se a audição, pela Relação, - pelos mesmos Juízes sendo possível -, do registo magnético da prova produzida em audiência, a fim de determinar se ocorre essa nulidade por omissão ou imperceptibilidade da gravação invocada pelo recorrente, elaborando desde logo novo acórdão na hipótese negativa ou ordenando o cumprimento do disposto naquele art.º 9º na hipótese contrária, nos termos acima indicados.
Custas a final.

Lisboa, 19 de Janeiro de 2009

Silva Salazar (relator)
Nuno Cameira
Sousa Leite