Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
955/22.4T8VIS-A.C1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: LUIS ESPÍRITO SANTO
Descritores: DISTRIBUIÇÃO
CITIUS
ERRO DA SECRETARIA JUDICIAL
CONHECIMENTO OFICIOSO
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
JUÍZO CÍVEL
FORMULÁRIO
PETIÇÃO INICIAL
COMPETÊNCIA MATERIAL
INDEFERIMENTO LIMINAR
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
TRIBUNAL COMPETENTE
PRINCÍPIO PRO ACTIONE
DIREITO DE AÇÃO
TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA
Data do Acordão: 03/15/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA PROCEDENTE.
Sumário :

I - Não pode a parte ser prejudicada por erros exclusivamente imputáveis ao funcionamento da secretaria dos tribunais (designadamente por via do sistema Citius), nos termos gerais do artigo 157º, nº 6, do Código de Processo Civil.

II – O erro na distribuição automática de processos é de conhecimento oficioso e deve ser rectificado logo que seja constatado, em conformidade com o disposto no artigo 210º do Código de Processo Civil.

III – Tendo o A. identificado no formulário da sua petição inicial o objecto da acção como “Comércio”, e havendo a acção, por efeito automático dos serviços do tribunal (funcionamento do sistema Citius), sido distribuída aos juízos locais e não de comércio, não se trata aqui, materialmente, de uma verdadeira e própria excepção de incompetência material na medida em que a parte identificou, de forma sucinta mas bastante, naquela parte da sua petição os elementos que permitiam referenciar o tribunal competente (“Comércio”).

IV – Reconhecendo o juiz de 1ª instância o lapso existente – e ainda que a A. era absolutamente alheio ao mesmo – mas havendo decidido, não obstante, julgar verificada a excepção da incompetência em razão da matéria deste Juízo Local Cível e, em consequência e indeferir liminarmente a presente acção, ordenando ainda a remessa dos autos ao Juízo do Comércio por ser o competente em razão da matéria para a sua ulterior tramitação, ao abrigo do disposto no artigo 99º, nº 2, do Código de Processo Civil - inaplicável à situação sub judice - o A., confrontado com a inteira satisfação prática daquilo que processualmente pretendia – a remessa dos autos aos Juízos de Comércio competentes – nunca poderia interpor recurso daquela decisão, por notória ausência de legitimidade, nos termos do artigo 631º, nº 1, do Código de Processo Civil (nem nas custas fora condenado, por se entender, segundo as palavras do decisor, que “a distribuição dos autos a este Juízo não era da responsabilidade da A.”).

V - Qualquer outra solução jurídica que não a da remessa, sem mais, dos autos ao juízo competente, com a correcção do lapso automático cometido pelos serviços (funcionamento do sistema Citius) e a eles exclusivamente imputável, sempre seria violadora dos princípios pro actione, do direito de acção e do direito à tutela jurisdicional efectiva consagrados no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.

Decisão Texto Integral:


Processo nº 955/22.4T8VIS-A.C1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção).

I - RELATÓRIO.

Jatavamarela, Lda., instaurou, ao abrigo do disposto nos artigos 1.003º, alínea d) e 1.005º, n.º 1 do Código Civil e dos Artigos 242º, n.º 1 e 246º, alínea c) do Código das Sociedades Comerciais, acção contra AA.

Do respectivo formulário de submissão da petição inicial consta: “Objecto de Acção: Outro ou não especificado (Comércio)”.

Foi proferido pelo juiz de 1ª instância o seguinte despacho inicial:

“Tendo em vista fazer operar o princípio do contraditório e ao abrigo do disposto nos arts. 3º n.º 3 e 6º n.º 1 ambos do Código de Processo Civil notifique a autora para, em 10 dias, se pronunciar sobre a eventual incompetência em razão da matéria deste Juízo Local Cível de ..., relevando para tanto a causa de pedir e pedido formulado e bem assim a previsão do art. 128º da LOSJ, informando e requerendo o que neste ponto tiver por pertinente”.

A Autora, notificada que foi de tal despacho, informou:

“(…) a (certa) incompetência em razão da matéria deste Juízo Local Cível de ... resulta, única e exclusivamente, de erro na distribuição do processo pela secretaria do Tribunal, jamais podendo a A. ser responsabilizada por tal facto, conforme facilmente se comprova pelo formulário de submissão da sua p.i”:

“Como resulta do documento gerado pela plataforma citius aquando da submissão e apresentação da petição inicial em juízo, a A. caracterizou a presente acção, em razão da matéria, como acção a correr no Juízo de Comércio desta Comarca, deixando expressamente consignado o seguinte:

CARACTERIZAÇÃO

Finalidade: Iniciar Novo Processo

Tribunal Competente: ... - Tribunal Judicial da Comarca de Viseu

Forma de Processo / Classificação: Outra Forma de Processo / Outro Procedimento Espécie: A Determinar Objecto de Acção: _Outro ou não especificado ...

Valor da Causa: 30 000,01 € (Trinta Mil Euros e Um Cêntimo)

Não obstante, por razões que desconhece, em vez da acção ter sido distribuída ao Juízo de Comércio, acabou por ser distribuída ao Juízo Local Cível.

Certo é que, conforme doutamente decidido no despacho em apreço de 22/03/2022, a distribuição dos autos ao Juízo Local Cível não foi da responsabilidade da autora”.

O juiz de 1ª instância, tendo em vista o cabal esclarecimento da suscitada questão, mandou oficiar ao Departamento de Informática “solicitando se digne informar se a distribuição da presente acção foi efectuada pela Secretaria do Tribunal, como refere a requerente, ou se o foi directamente por esta, via Citius”.

Após o que proferiu a seguinte decisão:

“No seguimento dos considerados fácticos e jurídicos exarados no nosso anterior despacho, que aqui se consideram reproduzidos, concluímos que o Tribunal competente em razão da matéria para a ulterior tramitação dos autos é o Juízo do Comércio (art. 128º n.º 1 al. h) da LOSJ).

Assim, e ao abrigo das disposições conjugadas dos arts. 128º n.º 1 al. h) da LOSJ, 96º al. a), 97º n.º 1 e 99º n.º 1 do Código de Processo Civil, julgo verificada a excepção da incompetência em razão da matéria deste Juízo Local Cível e, em consequência, indefere-se liminarmente a presente acção.

Atendendo à posição já assumida pela autora no seu requerimento datado de 17/03/2022 determina-se desde já, e com fundamento no n.º 2 do art. 99º do Código de Processo Civil, a remessa dos autos ao Juízo do Comércio deste Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, por ser o competente em razão da matéria para a sua ulterior tramitação.

Sem custas, por a distribuição dos autos a este Juízo não ser da responsabilidade da autora. Notifique, dê baixa e remeta ao Juízo identificado”.

Apresentou o A. pedido de reforma deste despacho, nos termos dos artigos 613º, nº 2 e 3 e 616º, nº 2, do Código de Processo Civil, referindo essencialmente:

Por razões que desconhece, em vez da acção ter sido distribuída ao Juízo de Comércio, acabou por ser distribuída ao Juízo Local Cível, o que não foi da responsabilidade da A.

Sendo que a acção está bem caracterizada, tendo sido definido o seu objecto como “outro não especificado em material de Comércio”, existindo um manifesto erro na distribuição do processo na secretaria.

Não se verifica, assim, a infracção das regras de competência em razão da matéria, não havendo lugar à aplicação da norma do artigo 99º do Código de Processo Civil, e nomeadamente o indeferimento liminar da petição.

Deve antes aplicar-se a regra prevista no artigo 210º do Código de Processo Civil.

Tal pedido de reforma foi indeferido com despacho proferido em 5 de Maio de 2022, onde se afirmou:

“(…) compulsados os autos verifica-se que já antes da sentença de incompetência material o Autor havia alegado que se trataria de um erro de distribuição, alegando as mesmas normas que agora, em sede de pedido de reforma, pretende que sejam aplicadas.

Assim, não se pode afirmar que a sua não aplicação se tenha devido a qualquer erro ou lapso, mas sim a uma escolha consciente do subscritor da sentença em causa”.

Interpôs o Réu recurso de apelação, o qual veio a ser julgado procedente por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 10 de Janeiro de 2023, nos seguintes termos:

“Na Procedência do recurso, revogamos a decisão proferida pelo Juízo Cível de ... – Juiz ..., no segmento em que decretou a remessa dos autos ao abrigo do art. 99.º, n.º 2 do CPC para o Juízo do Comércio do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, por ser o competente em razão da matéria, mantendo-se unicamente o indeferimento liminar ao abrigo dos artigos 99.º, n. º 1, 577º, a) e 278º, n.º 1, a), todos do CPC extinguindo-se a instância”.

Veio o A interpor recurso de revista, apresentando as seguintes conclusões:

1. O douto acórdão da Relação desconsiderou por completo as contra-alegações apresentadas pela recorrida/apelada nos presentes autos em oposição às alegações do recorrente/apelante, pelo que, é o mesmo NULO, por omissão de pronúncia, prevista na al. d) do n.º 1 do art. 615º do CPC.

2. A apelada não podia recorrer da decisão da Meritíssima Juiz do Juízo Local Cível de ... por falta de interesse em agir, já que a mesma lhe era favorável.

3. O interesse processual ou interesse em agir, embora não autonomizado em geral, constitui um pressuposto processual relativo às partes, e a sua falta integra exceção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, a conduzir à absolvição da instância (al. e), do n.º 1, do art. 278º, n.º 2, do art. 576º, art. 577º e art. 578º, todos do CPC).

4. O douto acórdão de que se recorre determina mal o objecto do recurso de apelação quando dá como adquirido que a Meritíssima Juiz do Juízo Local Cível de Viseu quis conhecer verdadeiramente de uma execepão processual (em razão de matéria) e indeferir liminarmente a petição inicial.

5. No despacho da Meritíssima Juiz do Juízo Local Cível de ... deve relevar-se o erro formal de escrita e prevalecer a remessa dos autos para o Juízo do Comércio do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu.

6. Deve prevalecer o princípio geral de prevalência da substância sobre a forma.

7. A douta decisão de que se recorre mostra-se violadora, nomeadamente, dos princípios da igualdade bem como da tutela jurisdicional efetiva, sendo que ambos têm assento constitucional, desde logo nos art. 13º e 20º da Lei Fundamental.

8. O direito de ação consiste na possibilidade de intentar uma ação perante um tribunal, isto é, de um particular se dirigir a um órgão judicial para que este conheça a sua pretensão.

9. O princípio da tutela jurisdicional efectiva encontra-se consagrado a nível constitucional nos art. 20º da CRP.

10. O artº 99º, n.º 1, do Código do Processo Civil, na forma em que foi enquadrado pelos Venerandos Desembargadores é inconstitucional, por vedar o acesso ao direito e à justiça de forma desproporcional e desadequada.

Apresentou o Réu contra-alegações com as seguintes conclusões:

I - Sempre haverá de concluir-se que o objecto do recurso interposto é inadmissível, por não se verificar o preenchimento dos requisitos gerais de admissibilidade do recurso de revista, pois é manifesto que a questão suscitada - a remessa dos autos para o Juízo do Comércio - não respeita à decisão de mérito nem a qualquer outra decisão que ponha fim ao processo, não se enquadrando, por isso, na previsão do artigo 671.º, n.º 1, do CPC.;

II. E quanto à violação, pela decisão recorrida, dos princípios da igualdade bem como da tutela jurisdicional efectiva consagrados nos artigos 13.º e 20.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), a jurisprudência do Tribunal Constitucional está pacificamente firmada no sentido de que o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efectiva, em cujo âmbito normativo se incorpora também o direito ao recurso, que visa assegurar aos particulares a possibilidade de impugnarem atos jurisdicionais e ainda tornar mais provável, em relação às matérias com maior dignidade, a emissão da decisão justa, dada a existência de mais do que uma instância.

III. Daí que, afastada qualquer violação aos princípios constitucionais programáticos plasmados nos artigos 13.º e 20.º da CRP, nada mais resta do que concluir para inadmissibilidade do recurso.

IV. Caso assim se não entenda, sempre haverá o recurso de ser julgado improcedente;

V.Desde logo, importa dar por assente que o requerimento apresentado pela Autora / agora Recorrente em 29,09.2022 sob a ref.ª 43414879 inserido num formulário epigrafado como «Resposta», se estabilizou nos autos como tal, e não como «Alegações» de resposta ao recurso então apresentado pelo Réu / agora Recorrido.

VI. Relativamente ao citado requerimento foi proferido despacho, em 5.10.2022, com a ref.ª 91450048, com o seguinte teor: «Contrariamente ao alegado pela autora, não está em causa recurso do despacho que determinou a citação, mas sim do despacho que decretou a remessa dos autos a este Juízo de Comércio.»

VII. Despacho este que, não mereceu reclamação nem recurso, tendo por isso transitado em julgado.

VIII. Em relação à questão da incompetência do tribunal em razão da matéria, o Autor / agora Recorrente havia já apresentado em 24.03.2022, com a ref.ª 41750958, um requerimento de reforma da sentença proferida na parte em que julgou verificada uma excepção da incompetência em razão da material e declarou liminarmente indeferida a presente acção, requerendo a aplicação da norma previstas nos artigo 210.º do CPC.

IX - Relativamente a este requerimento, foi proferido despacho, em 5.05.2022, com a ref.ª 90536399, que, embora reconhecendo que à Autora / agora Recorrente, não pode ser imputável o erro na distribuição, não acatou a sugestão inserta no requerimento de reforma da sentença apresentado tendo, em consequência, mantido inalterado o indeferimento liminar da petição.

X – Despacho este que transitou em julgado, tornando definitiva a decisão proferida em 5.05.2022 (que indeferiu o pedido de reforma da sentença que pugna pela aplicação do artigo 210.º do CPC).

XI – É, portanto, por esta via, inatacável o acórdão recorrido, o qual deixa intocada a decisão do tribunal de primeira instância que, não acatando a sugestão processual de aplicação do artigo 210.º do CPC que emana do requerimento de reforma da sentença proferida.

XII - Do segmento da sentença, que determina a remessa dos autos para o Juízo do Comércio, foi interposto recurso pelo Réu / Recorrido, o qual foi julgado procedente e do qual o Autor / agora Recorrente recorre agora para o Supremo Tribunal de Justiça.

XIII - Recurso este condenado ao insucesso, dado o acerto do acórdão recorrido que conclui que o tribunal de primeira instância «por falta de audição/anuência da parta contrária, não poderá determinar oficiosamente a remessa do articulado / petição para o tribunal
competente» porquanto: o Réu / agora Recorrido não foi chamado para se pronunciar sobre a pretensão do tribunal de primeira instância de remessa do processo para o tribunal materialmente competente; o âmbito de aplicação do artigo 99.º, n.º 2 do CPC é claro e determinado, pelo que, não se verificando os pressupostos exigíveis, a sua aplicação ao presente caso encontrava-se expressamente vedada ao tribunal de primeira instância;

XIV - Subjacente ao preceito aludido, encontram-se, conforme é amplamente entendido pela jurisprudência e a doutrina, razões de economia processual, cujo objetivo assenta no aproveitamento do tempo já despendido e de parte do processado já produzido, designadamente os articulados; pelo que, nem sequer a teleologia do preceito poderia ser aplicável ao presente caso.

II – FACTOS PROVADOS.

Os indicados no RELATÓRIO supra.

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS DE QUE CUMPRE CONHECER.

Remessa dos autos ao tribunal materialmente competente, na sequência do funcionamento automático dos serviços do tribunal (sistema Citius). Inexistência neste caso de excepção de incompetência absoluta do tribunal. Aplicação dos princípios pro actione, do direito de acção e do direito à tutela jurisdicional efectiva consagrados no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.

Passemos à sua análise:

A arguição de nulidade da sentença com fundamento na alínea d) do nº 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil não tem o menor cabimento na medida em que a recorrente apenas discute, nesse tocante, o mérito do acórdão recorrido, concretamente a apreciação pelo Tribunal da Relação de Coimbra do teor das alegações e contra-alegações, não se tratando, nesse sentido, da invocação de qualquer verdadeiro vício de natureza formal da decisão.

A questão jurídica pode equacionar-se nos seguintes termos essenciais:

A A. instaurou a presente acção contra o Réu identificando, no formulário da petição inicial, a competência em razão da matéria para o seu conhecimento como “Comércio” (Objecto da acção).

Apenas devido ao funcionamento automático dos serviços (Citius), a que a A. é absolutamente alheia, a presente acção foi distribuído aos Juízos Locais, de competência genérica e residual.

O juiz de 1ª instância reconhecendo embora o lapso existente – e ainda que a A. era absolutamente alheio ao mesmo – decidiu, não obstante, julgar verificada a excepção da incompetência em razão da matéria deste Juízo Local Cível e, em consequência e indeferir liminarmente a presente acção.

Porém, e em frontal contradição lógica com o decidido, ordenou a remessa dos autos ao Juízo do Comércio deste Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, por ser o competente em razão da matéria para a sua ulterior tramitação.

Fê-lo com a invocação do disposto no artigo 99º, nº 2, do Código de Processo Civil, que aqui não tinha cabimento algum, uma vez que tal preceito supõe que os autos tenham nessa altura ultrapassado a fase dos articulados (o que, como se viu, não sucedeu) e que tenha sido exercido o indispensável contraditório.

É óbvio que nestas circunstâncias a decisão judicial correcta, e que se impunha à evidência, seria apenas a de ordenar a remessa ao tribunal de comércio competente, corrigindo oficiosamente o funcionamento automático da distribuição (Citius), tratando-se, portanto, de um lapso que fora cometido pelos serviços e que aos mesmos era exclusivamente imputável.

Acontece que o Réu recorreu desta decisão, procurando impedir a remessa dos autos ao tribunal materialmente competente (Juízos de Comércio) e manter dessa forma o indeferimento liminar da petição face à decretada incompetência absoluta do Juízo Local Cível.

Nesta sequência, foi proferido o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 10 de Janeiro de 2023, que revogou a decisão proferida pelo Juízo Cível de ... – Juiz ..., no segmento em que decretou a remessa dos autos ao abrigo do art. 99.º, n.º 2 do CPC para o Juízo do Comércio do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, por ser o competente em razão da matéria, mantendo-se unicamente o indeferimento liminar ao abrigo dos artigos 99.º, n. º 1, 577º, a) e 278º, n.º 1, a), todos do CPC, extinguindo-se assim a instância.

Embora se possa compreender, de certo modo, a decisão tomada no acórdão recorrido, fruto da incongruência e conflito lógico de que enferma a decisão recorrida, a mesma não pode merecer a nossa concordância.

A correcção do lapso cometido – que se impunha - passaria pela apreciação de toda esta situação numa perspectiva global e substantiva e não puramente formalista, devendo ordenar-se unicamente a remessa dos autos ao tribunal materialmente competente (no caso os juízos de comércio do Tribunal da Comarca de Viseu), não havendo lugar à confirmação da decisão que julgou verificada a excepção de incompetência material e determinou o consequente indeferimento liminar da petição.

Esta solução justifica-se com base no seguinte argumentário:

1º - Não pode a parte, em circunstância alguma, ser prejudicada por lapsos exclusivamente imputáveis ao funcionamento automático dos serviços da secretaria do tribunal (designadamente por via do sistema Citius), nos termos gerais do artigo 157º, nº 6, do Código de Processo Civil, quando a mesma indicou, de forma sucinta mas suficiente, o tribunal materialmente competente (“Comércio”).

2º - O erro na distribuição automática de processos é do conhecimento oficioso e deve ser rectificado logo que seja constatado, em conformidade com o disposto no artigo 210º do Código de Processo Civil.

3º - Não se trata aqui, materialmente, de uma verdadeira e própria excepção de incompetência material, na medida em que a parte identificou, em termos abreviados mas bastantes, no formulário da sua petição, a competência do tribunal, designando o objecto da acção como de “Comércio”, nada tendo a ver com os erros sistémicos que fizeram com que a mesma fosse parar a um Juízo incompetente.

4º - Não colhe o argumento de que a A. teria deixado transitar a decisão que julgou verificada a excepção de incompetência absoluta, o indeferimento da sua petição e a absolvição da instância, pelo que sibi imputet.

Nada disso aconteceu verdadeiramente.

A decisão processual assumida pelo juiz a quo foi a de ordenar a remessa dos autos ao tribunal materialmente competente, com o normal prosseguimento da instância, sem nenhum efectivo prejuízo para o demandante.

O que, bem vistas as coisas, corresponde, embora de forma enviesada, aos efeitos próprios de uma correcção da distribuição automática (como no caso se exigia).

Pelo que o A., confrontado com a inteira satisfação prática daquilo que processualmente pretendia – a remessa dos autos aos Juízos de Comércio competentes – nunca poderia interpor recurso daquela decisão, por notória ausência de legitimidade, nos termos do artigo 631º, nº 1, do Código de Processo Civil (nem nas custas fora condenado, por se entender, segundo as palavras do decisor, que “a distribuição dos autos a este Juízo não era da responsabilidade da A.”).

5º - Qualquer outra solução jurídica adversa ao sentido enunciado, tributária de exagerado formalismo e marcada por exacerbado artificialismo, sempre seria violadora dos princípios pro actioneo qual visa garantir que serão rigorosamente observadas todas as condições para que a lide processual fique subordinada à salvaguarda da real e substantiva possibilidade de afirmação material das respectivas pretensões, sem a colocação de entraves iníquos, obstáculos de índole processual desproporcionados ou excessivamente formalistas que, as impeçam, diminuam ou dificultem injustificadamente, com primado da substância (verdade material) sobre a forma (verdade estritamente processual) –, do direito de acção e do direito à tutela jurisdicional efectiva consagrados no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa.

Pelo que a presente revista é julgada procedente.

IV – DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção) conceder a revista, revogando o acórdão recorrido e mantendo a decisão de 1ª instância apenas na parte em que ordena a remessa dos autos ao tribunal materialmente competente, corrigindo-se assim o erro unicamente imputável aos serviços do tribunal.

Custas pelo recorrido, atenta a sua oposição.

Lisboa, 15 de Março de 2023.

Luís Espírito Santo (Relator)

Ana Resende

Maria José Mouro

V – Sumário elaborado pelo relator nos termos do artigo 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.