Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
49/16.1T8FND.C1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
PRIVAÇÃO DO USO
DANO
EQUIDADE
Data do Acordão: 10/25/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA DA A. E CONCEDIDA A REVISTA SUBORDINADA DA RÉ
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / CONTESTAÇÃO / RECURSO / RECURSO DE REVISTA / JULGAMENTO DO RECURSO.
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / ABUSO DO DIREITO – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / MODALIDADES DAS OBRIGAÇÕES / OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO.
Doutrina:
- Almeida Costa, Concurso da responsabilidade civil contratual e da extracontratual, Ab Uno ad Omnes, 75 Anos da Coimbra Editora, 1920-1975, Coimbra Editora, 1988, p. 559 a 565;
- Maria da Graça Trigo, Responsabilidade civil. Temas especiais, UCEditora, 2015, p. 59 e ss. e 62;
- Vaz Serra, RLJ, Ano 105, p. 231 a 233.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 573.º, 635.º, N.º 4, 639.º, N.ºS 1 E 2 E 682.º, N.º 2.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º E 562.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 07-02-2017, PROCESSO N.º 4444/03.8TBVIS.C1.S1.


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

- DE 06-07-2010, PROCESSO N.º 356/08.7TBCNF.P1;
- DE 19-10-2010, PROCESSO N.º 1773/09.0TJPRT.P1.
Sumário :

I - Tendo a ré, na sequência da compra de uma máquina (bulldozer), solicitado a intervenção da autora para efeito de esta proceder à reparação do hidráulico, reparação que esta acedeu fazer, mandando deslocar às instalações daquela o seu gerente e dois mecânicos, com vista a diligenciarem no sentido da reparação, estabeleceu-se entre as partes, por esta via, uma nova relação de natureza contratual.
II - A autora, ao aceitar realizar a reparação referida em I, celebrou um contrato de prestação de serviços com a ré, totalmente distinto do compromisso assumido com a compra e venda.
III - Não se esgota numa mera relação contratual, a circunstância da autora, não tendo obtido o acordo da ré para tal efeito, ter retirado o hidráulico da máquina, levando-o para a sua oficina.
IV - A factualidade in casu envolve simultaneamente a subsunção no regime da responsabilidade civil contratual e extracontratual, prevalecendo, contudo, a aplicação das regras da responsabilidade contratual por oferecerem uma maior tutela da posição do lesado.
V - A privação de uso de um bem constitui em si próprio um dano, susceptível de ser indemnizado, que terá de ser ressarcido em termos de equidade, tomando por base a prova realizada (danos concretos).
VI - Existindo no processo elementos suficientes para se concluir que existiu dano, há que revogar, nessa parte, a decisão da Relação, determinando que os autos baixem ao tribunal recorrido para, em conformidade, se proceda ao cálculo do quantum indemnizatório devido.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. AA, LDA” instaurou em 20/01/2016, contra “BB, LDA acção declarativa, pedindo a condenação da Ré a pagar-lhe:

a) A quantia de € 12.300,00 (doze mil e trezentos euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal supletiva aplicável às obrigações de natureza comercial, desde 27.12.2012 até integral pagamento, cifrando-se os vencidos à data da instauração da presente acção em € 2.744,00 (dois mil setecentos e quarenta e quatro euros);

b) A quantia de € 6.762,00 (seis mil setecentos sessenta e dois euros), acrescida de juros de mora à taxa legal supletiva, desde a citação até integral pagamento.

2. Alegou, em síntese, o seguinte:

- No decurso do mês de Novembro de 2012, a A. vendeu à Ré uma máquina Bulldozer, usada, de marca Komatsu, modelo D65EX12, com o n.º de série ..., pelo preço de € 55.000,00;

- A Ré não pagou a totalidade do preço acordado, estando por pagar a quantia de € 10.000,00, acrescido do valor do IVA, não obstante as insistências da A. para o fazer desde 27.12.2012.

- Acontece, ainda, que correu termos no Tribunal Judicial de Vila Flôr, sob o n.º 17/13.5TAVFL, processo comum singular, emergente de participação criminal apresentada pelo representante legal da Ré contra o representante legal da A. por, alegadamente, este ter retirado da dita máquina que lhe vendeu o distribuidor hidráulico;

- O representante legal da A. veio a ser absolvido pelo crime de furto de que havia sido acusado, bem assim, do pedido cível deduzido;

- Com a referida acção crime a A. teve prejuízos, pois teve que pagar honorários ao Advogado para defender o seu representante legal, bem assim, taxa de justiça devida pela contestação do pedido cível.

3. Devidamente citada, contestou a R., suscitando, desde logo, a excepção da recusa legítima em fazer a sua prestação à A., alegando, para tanto, que a A. não eliminou os defeitos de que a máquina padecia, não tendo, dessa forma, cumprido o contrato, para além de que a máquina vendida sem o distribuidor hidráulico não funcionava. Deduziu reconvenção, onde pede a condenação da A. a pagar-lhe a quantia de € 35.169,16 pelos danos causados com a sua actuação e com o incumprimento do contrato. Termina pugnando pela improcedência da acção e procedência da reconvenção.

A A. apresentou réplica, onde, desde logo, suscita a excepção do caso julgado, pois a Ré havia deduzido pedido cível no âmbito do citado processo-crime e volta a deduzir agora igual pretensão, verificando-se os requisitos previstos no art.º 581.º do CPC. No mais, impugna a factualidade vertida na reconvenção, alegando não ter incumprido o contrato de compra e venda, pois procedeu à reparação do distribuidor hidráulico, não tendo a Ré querido receber tal peça por não querer pagar o resto do preço acordado. E, ainda que a Ré tivesse direito à indemnização que pede, sempre a acção estaria caducada nos termos do art.º 921.º/4 do CC.

4. Foi proferido despacho saneador, onde, admitido o pedido reconvencional, foi fixado o valor da acção, após o que se conheceu da excepção do caso julgado, julgando-a improcedente. Por fim, foram fixados o objecto do litígio e enunciados os temas da prova.

5. Realizada a audiência final (efectuada pela Instância Central – Secção Cível – J2, da Comarca de Castelo Branco), veio a ser proferida sentença (em 19/06/2017), na parte dispositiva da qual se consignou o seguinte:

«[…] decide-se:

1. Julgar parcialmente procedente a presente acção, e, consequentemente, decide-se:

a) Condenar a Ré, BB, LDA, a pagar à A., AA, LDA, a quantia de € 10.000,00, (dez mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa supletiva para as relações comerciais, desde 27.12.2012 até integral pagamento, a que acresce a quantia devida a título de IVA e respectivos juros, à referida taxa, desde a data da emissão da respectiva factura – 02.12.2015 até integral pagamento;

b) Absolve-se a Ré do demais peticionado.

2. Julgar totalmente improcedente a reconvenção, e, consequentemente, absolve-se a A/reconvinda da totalidade dos pedidos formulados. […]».

6. Inconformada com tal decisão, dela recorreu a Ré.

O Tribunal da Relação de Coimbra julgou o recurso, proferindo acórdão onde decidiu conceder “(na) parcial procedência do recurso, mantendo a sentença recorrida quanto ao mais, designadamente, quanto à condenação da Ré aí proferida (excepcionada a condenação das custas da reconvenção, e a do momento a partir do qual são devidos juros de mora sobre o montante do IVA), revogar essa sentença; No que concerne à condenação da Ré quanto ao pagamento de juros de mora sobre o montante do IVA, sendo tais juros devidos, não desde 02/12/2015, como foi decidido, mas sim, desde a data da citação (27/01/2016) e até integral pagamento, como ora se decide; No que concerne à reconvenção, pois que a julgam parcialmente procedente, condenando a Autora/Reconvinda a pagar à Ré Reconvinte, a indemnização de 17.219,18 € (dezassete mil duzentos e dezanove euros e dezoito cêntimos) a que acrescem os respectivos juros mora, vencidos desde a notificação da contestação à Reconvinda (artºs 804.º, n.º 1, 805.º, n.º 1, 806.º, n.ºs 1 e 2, art.º 559.º, n.º 1, todos do Código Civil), e à taxa supletiva de 4%, ao ano, nos termos do art.º 559.º, n.º 1 do CC e da Portaria n.º 291/03, de 08/04. Custas da acção, da reconvenção e do recurso, por Reconvinte/Apelante e Reconvinda/Apelada, na proporção dos respectivos decaimentos.”

7. Inconformada com o acórdão dele apresentou revista principal a A. e subordinada a R.
Nas conclusões do recurso independente diz a A. (transcrição):

“1ª- A aqui Recorrida funda o pedido reconvencional que formula nos presentes autos em incumprimento contratual da Recorrente, pedindo, por isso, a sua condenação no pagamento de uma indemnização por danos emergentes e lucros cessantes, por alegada responsabilidade contratual.

2ª - O acórdão recorrido considera a actuação do legal representante da Autora consubstanciadora de responsabilidade extra-contratual ou por factos ilícitos, afectando esta a Autora no âmbito da responsabilidade objectiva.

3ª - O facto ilícito de que, na perspectiva vertida no acórdão recorrido, emerge a responsabilidade do legal representante da Autora e desta ocorreu em 15 de Fevereiro de 2013.

4ª - O pedido reconvencional foi deduzido em 2 de Março de 2016, presumindo-se a Autora, ora Recorrente, notificada do mesmo em 5 de Março de 2016.

5ª - Quer quando a Recorrente foi notificada da Reconvenção, quer quando a mesma foi deduzida, já havia decorrido mais de três anos após a prática do acto que, no douto acórdão recorrido, se considera ilícito e no qual radica a responsabilidade extra-contratual ou por factos ilícitos do legal representante da Recorrente e a consequente responsabilidade civil objectiva desta sociedade.

6ª - O direito de indemnização por danos emergentes de responsabilidade extra-contratual prescreve no prazo de três anos a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete (artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil).

7ª - Tendo expirado tal prazo à data em que o pedido reconvencional foi formulado, o direito que a Ré eventualmente tivesse a esse título prescreveu - prescrição que expressamente se invoca, para todos os legais efeitos.

8ª - Constituindo a questão da responsabilidade civil por factos ilícitos uma
questão superveniente, surgida apenas no acórdão recorrido, assiste à
Recorrente o direito de invocar a prescrição em sede de recurso, à luz do disposto no n.º 2 do artigo 573.º do CC.

9ª - Ainda que assim não se entenda - no que não se concede -, da factualidade dada como provada não resulta que o legal representante da Autora tenha praticado qualquer facto ilícito, gerador de responsabilidade civil perante a Ré.

10ª - Da factualidade provada resulta que o legal representante da Autora retirou e transportou para as suas oficinas o distribuidor da máquina que vendeu à Ré, com o objectivo de proceder à reparação do mesmo, o que fez na sequência dum telefonema do legal desta, no qual lhe deu conhecimento que a máquina "vertia água e óleo".

1lª - Resulta também da tábua de factos provados que, por cartas de 8/3/2013 e 14/3/2013, quando ainda não havia decorrido sequer um mês após a remoção do distribuidor, o legal representante da Recorrente comunicou à Recorrida que pretendia entregar-lho, reparado, ao que esta não deu qualquer resposta.

12ª - Emerge, de igual modo, da matéria de facto provada que a Recorrida não pagou à Recorrente parte do preço estabelecido para a venda da máquina, mais precisamente a quantia de € 10.000,00, não obstante o prazo para o efeito contratado se mostrasse ultrapassado à data em que o distribuidor da máquina foi removido, para reparação, não tendo regularizado tal pagamento até à presente data.

13ª - A indemnização que a Autora foi condenada a pagar à Ré corresponde ao preço de aquisição dum distribuidor novo e à sua instalação

14ª - O eventual prejuízo (dano emergente) susceptível de resultar da conduta do legal representante da Autora reconduzir-se-ia, no máximo, ao valor do distribuidor usado que a máquina tinha e à sua reinstalação - o que não foi sequer alegado ou pedido nos presentes autos.

15ª - Não existe, assim, nexo de causalidade entre o acto ilícito que no acórdão recorrido se imputa ao legal representante da Autora e o dano que esta foi condenada a indemnizar. Finalmente:

16ª - A actuação do legal representante da Ré, traduzida na compra e montagem dum distribuidor novo, sem antes interpelar a Autora para lhe restituir o que retirou da máquina, quando sabia que esta pretendia restituí-lo, reparado, e quando ainda lhe devia a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), correspondente a parte do preço da máquina, sempre consubstanciaria manifesto abuso de direito, que expressamente se invoca.

17ª - O acórdão recorrido viola, designadamente, o disposto nos artigos 483.°, 498.º, 500.º, 562.°, 564.° e 566.°, todos do Código Civil, pelo que deve ser revogado, proferindo-se decisão que julgue procedente a excepção de prescrição ou, quando assim não se entenda, que absolva a Autora do pedido reconvencional, por não se verificarem os pressupostos da responsabilidade extracontratual, ou, quando também assim não se entenda, por manifesto abuso de direito da Ré - o que tudo é da mais elementar JUSTIÇA!”


A Ré apresentou contra-alegações.

8. Nas conclusões do recurso subordinado diz a Ré (transcrição):

1. A privação de uso da máquina bulldozer da Reconvinte constitui por SI autonomamente, um dano indemnizável sem necessidade de comprovação de prejuízos concretos, configurando em si mesmo um dano patrimonial por violação do correspondente direito de propriedade, que deverá ser objecto de reparação adequada;

2. A privação da disponibilidade das utilidades que é possível extrair da máquina tem naturalmente uma expressão pecuniária, que deverá ser objecto de reparação através do recurso à equidade, tomando, para tanto, em consideração todas as circunstâncias provadas nos autos, nomeadamente que essa máquina esteve imobilizada, que devido a essa imobilização deixou a R. Reconvinte de poder usá-la e que pelo uso da dita máquina, aufere a reconvinte a importância de 65, 00 € por hora;

3. Nesta perspectiva. afigura-se ajustado o valor peticionado, ou seja, os 17.550,00 euros, acrescido de juros de mora;

4. Foram violadas as disposições dos artigos 1305.°, 483.°, n.º 1, 562.° e segs. e 566.0, n.º 3 do Cód. Civil.

Termos em que, na procedência da alegação da Reconvinte, deverá ser concedida a revista, condenando-se a Reconvinda a pagar os danos decorrentes da paralisação da máquina bulldozer.”

II. Fundamentação

9. Resultaram provados os seguintes factos (já com a alteração efectuada pelo Tribunal da Relação):

1. A Autora dedica-se, com carácter habitual e fins lucrativos, à compra e venda de máquinas e equipamentos industriais.

2. No desenvolvimento da sua actividade, no decurso do mês de Novembro de 2012, a Autora vendeu à Ré uma máquina Bulldozer, usada, marca Komatsu, modelo D65EX12, com o número de série 60469, pelo preço de € 55.000,00 (cinquenta e cinco mil euros).

3. E acordaram que a máquina seria facturada pelo valor de € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), acrescido do respectivo IVA, no montante total de € 55.350,00 (cinquenta e cinco mil e trezentos e cinquenta euros).

4. E acordaram, ainda, que parte do preço mencionado em 2., no montante de € 10.000, seria pago em dinheiro, não incidindo IVA sobre esse valor.

5. A Ré pagou à Autora o valor facturado, ou seja, a quantia de € 55.350,00 (cinquenta e cinco mil e trezentos e cinquenta euros), através de dois cheques, um no valor de € 27.500,00 (vinte e sete mil e quinhentos euros), com vencimento em 2012.11.30, e outro no valor de € 27.850,00 (vinte e sete mil e oitocentos e cinquenta euros), com vencimento em 2012.12.20.

6. A Ré entregou ainda à Autora o cheque nº ..., sacado sobre a conta nº ..., aberta na Caixa Geral de Depósitos, no valor de € 10.000,00 (dez mil euros), para garantir o pagamento do remanescente do preço acordado (€ 10.000,00), quantia que o legal representante da Ré se obrigou a entregar ao legal representante da Autora, em numerário, em 27.12.2012.

7. A Autora não apresentou tal cheque a pagamento atento o acordado com o legal representante da Ré.

8. A Ré não entregou à Autora a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros) em 27.12.2012, nem ulteriormente, não obstante as insistências desta.

9. A Autora emitiu e remeteu à Ré a factura nº ..., datada de 02.12.2015, com vencimento em 03.12.2015, no valor de € 10.000,00 (dez mil euros), acrescido do respectivo IVA.

10. A Ré não pagou à Autora o valor da mencionada factura ou sequer parte do mesmo.

11. Correu termos pelo Tribunal Judicial de Vila Flôr, sob o nº 17/13.5TAVFL, processo comum singular, emergente de participação criminal apresentada pelo legal representante da Ré contra o legal representante da Autora.

12. Na referida participação criminal a Ré, através do seu legal representante, afirma que comprou à Autora, representada por CC, a máquina Bulldozer aludida em 2, pelo preço de € 55.350,00 (cinquenta e cinco mil e trezentos e cinquenta euros), que pagou integralmente através dos cheques nºs ... e ....

13. A Ré mandou cancelar o cheque de € 10.000,00 (dez mil euros), sem data, que entregou à Autora.

14. Encerrado o inquérito foi proferida acusação contra o legal representante da Autora, CC, imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, nº 1, e 204º, nº 1, al. a), do Código Penal.

15. Por seu turno, a Ré deduziu nesse processo pedido cível contra o Arguido, no qual pede a sua condenação no pagamento de indemnização no montante de € 35.169,18 (trinta e cinco mil e cento sessenta nove euros e dezoito cêntimos), acrescido de juros à taxa legal.

16. Foi proferida sentença em 1ª instância que considerou não provada a acusação pública e, em consequência, absolveu o Arguido, CC, da prática do crime pelo que foi acusado.

17. Pela mesma sentença foi o Arguido CC absolvido do pedido cível de indemnização contra si formulado pela Ré.

18. A Ré interpôs recurso da sentença proferida em 1ª instância, apenas no que concerne ao pedido cível, tendo sido proferido acórdão julgando-o improcedente.

19. A decisão proferida no processo, quer quanto à questão criminal, quer quanto à questão civil, transitou em julgado.

20. Na referida sentença resultaram provados, para além do mais, os seguintes factos:

“a) – O arguido, na qualidade de representante da sociedade “AA, Lda” vendeu à sociedade “BB, Lda” representada pelo queixoso EE, a máquina Bulldozer, marca Komatsu, modelo D65EX12, com o número de série ..., pelo preço de € 55.000,00.

b) – O arguido e o queixoso acordaram que a máquina seria facturada pelo valor de € 45.000,00, acrescido de IVA, perfazendo, por isso, a factura, o montante global de € 55.350,00.

c) – Acordaram ainda que parte do preço, mais precisamente a quantia de € 10.000,00, seria paga em dinheiro, no dia 15 de Dezembro de 2012, não incidindo IVA sobre este valor.

d) – O queixoso entregou ao arguido a quantia de € 27.500,00, através de cheque, a título de sinal, a quando de celebração do negócio.

e) – Entregou-lhe ainda um cheque no montante de € 10.000,00, para assegurar o pagamento desse mesmo valor, em dinheiro, que se obrigou a pagar-lhe em 15 de Dezembro de 2012.

f) – O arguido não apresentou tal cheque a pagamento atento-o acordado com o queixoso.

g) – Quando a máquina foi entregue ao queixoso este não entregou ao arguido os € 10.000,00 em dinheiro, em notas, correspondente ao valor titulado pelo referido cheque, nem o fez ulteriormente, não obstante as insistências deste.

h) – O arguido prontificou-se a resolver os alegados problemas da máquina na expectativa de que o queixoso honrasse o seu compromisso, entregando-lhe os € 10.000,00 em dinheiro, ainda em dívida.

i) – O arguido desmontou e transportou o distribuidor para as suas oficinas, a fim de aí proceder à sua limpeza e afinação, uma vez que no local onde o mesmo se encontrava não dispunha de meios técnicos para o efeito necessários.

j) – Não o fez com o intuito de se apropriar da tal peça.

l) – Concluída a reparação, o arguido comunicou o facto ao queixoso, através de carta que lhe remeteu em 8/3/2013, junta aos autos.

m) – Nessa carta manifestou-lhe ainda que pretendia entregar-lhe o referido distribuidor, mas que não prescindia do pagamento de € 10.000,00 em dívida, informando-o que para evitar a repetição de atitudes incorrectas, o pagamento e entrega deveriam ser feitos através dos advogados das empresas vendedora e compradora, em simultâneo.

n) – O arguido não obteve resposta a tal comunicação.

o) – Por carta registada com aviso de recepção, datada de 14/3/2013, o arguido reiterou ao queixoso a mesma intenção.

p) – O queixoso não recebeu esta última carta, pelo que a mesma foi devolvida ao arguido.

q) – O arguido não quis, nem quer fazer seu o distribuidor em causa nos autos (…).

r) – O arguido pretendia - e pretende – apenas que a “BB” lhe pague a parte do preço da máquina ainda em dívida, ou seja, a quantia de € 10.000,00”.

21. Para se defender da acusação e do pedido cível contra si formulados no aludido processo comum singular, o legal representante da Autora constituiu advogado, cujos honorários ascenderam à quantia de € 5.000,00 (cinco mil euros), acrescida do respectivo IVA, e, ainda, suportou o custo da taxa de justiça devida pela contestação do pedido cível de indemnização, no montante de € 612,00.

22. No dia 15 de Fevereiro de 2013, na sequência do telefonema em que se prontificou, perante a Ré, a proceder à reparação da “máquina Bulldozer”, o legal representante da Autora, CC, acompanhado de outros indivíduos, designadamente, do mecânico DD, dirigiu-se às instalações da Ré, em Santa Comba da Vilariça, desmontou e retirou da Bulldozer, atrás aludida, um componente designado por distribuidor hidráulico e transportou-o para as suas oficinas, vindo a informar a Ré, depois, que só o devolveria se lhe fosse paga a importância de 10.000,00 euros.

23. O legal representante da Autora comunicou que o distribuidor estava reparado ao legal representante da Ré, através de carta que lhe remeteu em 08.03.2013, onde lhe manifestou ainda que pretendia entregar-lhe o referido distribuidor, mas que não prescindia do pagamento dos € 10.000,00 em dívida, informando-o que, para evitar a repetição de atitudes incorrectas, o pagamento e entrega deveriam ser feitos através dos advogados das empresas vendedora e compradora, em simultâneo.

24. O legal representante da Autora não obteve resposta a tal carta.

25. Por carta registada com aviso de recepção, datada de 14.03.2013, o legal representante de Autora reiterou ao legal representante da Ré a mesma intenção.

26. Na compra e venda mencionada em 2. estipularam as partes que a máquina era vendida sem garantia.

27. Após ter começado a usar a máquina supra identificada, verificou a R. que a mesma perdia óleo e água.

28. Então o seu legal representante telefonou ao legal representante da A. dizendo que a máquina vendida “vertia óleo e água”.

29. O legal representante da Ré não queria que o legal representante da A. levasse a referida peça.

29-A. A Autora nunca mais recolocou na bulldozer o dito distribuidor hidráulico.

29-B. Sem o dito distribuidor hidráulico a máquina não trabalha.

30. A ré comprou outro distribuidor hidráulico, com o que despendeu a quantia de €14.619,18.

30-A. E despendeu na instalação do distribuidor hidráulico, com mão-de-obra e acessórios, pelo menos, a quantia de 2.600,00€.

31. A máquina bulldozer esteve imobilizada.

32. Devido a essa imobilização deixou a R. reconvinte de poder usá-la.

33. Pelo uso da dita máquina, aufere a reconvinte a importância de 65,00€ por hora.

10. Foram considerados não provados os seguintes factos:

a) A A. pretendia emitir a factura relativa à venda de tal máquina pela totalidade do preço acordado mas a pedido e insistência do legal representante da Ré acabou por emiti-la apenas por € 45.000,00 (quarenta e cinco mil euros), acrescido do respectivo IVA.

b) A. e R. acordaram que incidiria IVA sobre a quantia que seria paga em numerário, no montante de € 10.000,00.

c) Ao preço acordado da máquina vendida pela A. à R. acresceriam 10.000,00 euros caso a máquina tivesse as qualidades asseguradas pela vendedora e não padecesse de defeitos, a pagar após algumas semanas de utilização.

d) A Ré cortou ou arrancou alguns dos tubos e ligações quando retirou o distribuidor hidráulico à máquina.

e) Este facto danificou irremediavelmente a peça em questão devido ao risco de terem passado para o seu interior limalhas e pó.

g) O turbo da máquina vendida não funcionava bem.

h) A máquina bulldozer esteve imobilizada durante 3 meses.

i) Devido a essa imobilização deixou a R. reconvinte de poder usá-la durante 540 horas, à razão de 180 horas por mês.

j) Os factos aludidos em 27. ocorreram passados alguns dias após a Ré ter começado a usar a máquina.

k) No telefonema mencionado em 28., o legal representante da A. assumiu a responsabilidade pela reparação necessária da máquina.».

11. O recurso de revista para o STJ delimita-se pelas conclusões das alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigos 635º, nº 4, e 639º, nºs 1 e 2, ambos do Código de Processo Civil).

Havendo dois recursos, um principal e um subordinado, deve começar-se por analisar o recurso principal, só depois se procedendo à análise do segundo.

No acórdão recorrido veio adoptado o seguinte entendimento:
a) A defesa da R. perante a acção da A. centrou-se no incumprimento dos deveres emergentes do contrato de compra e venda da máquina – bulldozer – que, alegadamente, teria sido vendida com defeitos. Tendo o R. propugnado que a solicitação de reparação do hidráulico se inseria no âmbito da eliminação dos defeitos da coisa comprada, porque não logrou provar que o bem foi vendido com defeito, nem existiu acordo de garantia, não obteve reconhecimento da sua pretensão;
b) O Tribunal qualificou a discussão relativa à matéria indicada em a) como sendo de natureza contratual e porque não encontrou fundamento para responsabilizar a A. pelo mau funcionamento do hidráulico não deu razão à R. na sua pretensão de ser indemnizada pelo dano sofrido em virtude dessa (não provada) responsabilidade contratual da A.;
c) Considerando o Tribunal que o gerente da Autora retirou das instalações da Ré, um dos componentes da máquina Bulldozer, que a retirada do componente foi contra a vontade Ré, tendo a peça (o hidráulico) sido levado pela A. (através da actuação do seu gerente), veio a afirmar (ainda em conformidade com os factos provados) que a A. reteve o hidráulico “só anuindo que a Ré o fosse buscar quando fossem pagos os 10.000,00 respeitantes ao resto do preço”, o que permitiu ao Tribunal recorrido concluir que: a) houve retirada do hidráulico do bulldozer; b)“a máquina bulldozer, sem o dito distribuidor hidráulico não trabalha”; c) o bulldozer ficou imobilizada; d) a Ré comprou outro distribuidor, despendendo recursos na aquisição, montagem e acessórios; e) a não ser que adquirisse um outro distribuidor, com os custos a isso inerentes, a Ré não poderia utilizar a máquina Bulldozer de que era proprietária; f) a responsabilidade que decorre desta atitude é de natureza não contratual, envolvendo a prática de um acto ilícito[1].

É contra esta responsabilidade – e mormente a sua qualificação como extracontratual – que a A., ora recorrente, se debate. Argumenta que a Ré, na sua contestação e no pedido reconvencional, havia apresentado a sua posição sempre com base no instituto da responsabilidade civil por violação de acordo: o contrato de compra e venda da Bulldozer. Considera que, por assim ter sido apresentada a questão, a A. defendeu-se sempre esgrimindo argumentos que deitassem por terra a posição da Ré em matéria de incumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda. Diz que, não tendo sido apresentada reconvenção fundada em responsabilidade extracontratual, não foi a A. defender-se com invocação do regime de prescrição da referida responsabilidade extracontratual. Com esta invocação, pretende a A. que lhe seja permitido, agora, socorrer-se do regime do art.º 573.º do CPC para efeito de poder ainda invocar a prescrição (questão A).

A recorrente pretende ainda que o Tribunal analise em que medida houve prática de um facto ilícito pelo gerente da A., pressuposto essencial da condenação indemnizatória da A.. Na sua opinião a retirada do hidráulico do bulldozer, na sequência de se ter prontificado a reparar a máquina, dirigindo-se às instalações da Ré onde a máquina se encontrava, desmontando-o, retirando-o e transportando-o para ser reparado, não configura facto ilícito. Aduz ainda, para justificar que esta posição que, estando o hidráulico reparado, comunicou à Ré que o pretendia entregar, o que fez através de duas comunicações escritas (questão B).

Mas ainda que o Tribunal não aceite como válido o argumento no sentido de não ter sido praticado nenhum acto ilícito, a A. também contesta que os danos sofridos pela R. com a suposta conduta ilícita tenham ascendido ao valor em que foi condenada: o dano eventualmente resultante da sua conduta não poderia consistir em pagar o valor de compra de um hidráulico alternativo e ainda suportar os custos da sua montagem (serviço e peças necessárias), pelo que não estaria devidamente justificada a existência de nexo de causalidade entre o dano e a conduta supostamente ilícita da A. (questão C).

Invoca finalmente o abuso de direito da Ré, ao comprar novo hidráulico e pedir que a A. suporte o seu custo quando a A. tinha o hidráulico (antigo) da Ré para lhe entregar e só não o fez porque esta lhe devia 10.000 euros, que assim pensava poder deixar de pagar. (questão D).

São estas as questões que cumpre analisar do recurso principal, o que será realizado pela ordem das letras indicadas.

12. A R. apresentou contra-alegações em que defende: i) quanto à questão A, ter sido muito clara na sua posição processual, invocando factos que permitem enquadrar a actuação da A. quer em responsabilidade contratual, quer em extracontratual e de a A. pretender suscitar agora uma questão nova, que não pode ser apreciada em recurso; ii) quanto à questão B, estar provada a ilicitude da actuação pela prova produzida nos autos (não explicitando, compreende-se que alude a presunção judicial, quanto à referência de que o hidráulico não foi reparado e a intenção da sua retirada não fora a sua reparação); quanto à questão C, de estar novamente a ser suscitada questão nova; quanto à questão D, de não haver abuso de direito, até porque quem propôs esta acção foi a A. e não a Ré.

Atentemos com mais detalhe nas questões suscitadas pelo recorrente principal.

13. Questão A do recurso principal

Terá a A./recorrente razão?

Não cremos que assim se possa concluir.

Em primeiro lugar, apesar de não nos surgiram dúvidas no sentido de que a “defesa e ataque” da Ré, este por via da reconvenção, foram centradas nos deveres da A. decorrentes do contrato de compra e venda do Bulldozer, o que significa estarmos perante uma questão de responsabilidade contratual, não tendo a Ré conseguido demonstrar a sua razão a esse nível, não se pode afirmar que a defesa da Ré estava escudada apenas no não cumprimento ou cumprimento defeituoso do contrato, porquanto ela deixou, inequívoco, que a retirada do hidráulico das suas instalações (pela A.), através das pessoas físicas que aí se deslocaram e seu encaminhamento para a oficina da A., não mereceu a sua concordância. Não mereceu nem acordo expresso, nem acordo tácito, tendo conduzido a Ré a efectuar queixa-crime contra o “arguido” por prática de ilícito penal.

Também se pode facilmente concluir que foram carreados para os autos factos que permitiam antecipar que poderia estar implícita a eventual responsabilidade extracontratual da A.: o pedido formulado na reconvenção não parece afastar esta conclusão – cf. art.º44.º e formulação do pedido reconvencional a fls 125/6 dos autos[2]; a resposta à réplica confirma este entendimento (fls. 165).

Em segundo lugar, é importante esclarecer que a qualificação jurídica apresentada pelas partes não é vinculativa para o Tribunal. Este apenas se encontra limitado pelo pedido e pela causa de pedir.

É este o entendimento que se tem seguido neste STJ sobre a questão quando a mesma tem sido colocada. Neste sentido, cf., nomeadamente, o Acórdão deste STJ de 7 de Fevereiro de 2017, proc. n.º 4444/03.8TBVIS.C1.S1 (Helder Roque), com expressa menção à obra de VAZ SERRA, in RLJ, Ano 105, 231 a 233, reforçando o entendimento da jurisprudência com a posição da doutrina.

No acórdão indicado lê-se o seguinte: “…A determinação do modelo normativo da responsabilidade é uma questão de qualificação jurídica e, portanto, matéria de direito, de conhecimento oficioso, a cuja indagação, interpretação e aplicação o juiz não está sujeito às respectivas alegações das partes, por força do preceituado pelo artigo 5.º, n.º 3, do CPC. O instituto da responsabilidade civil, sendo uma das fontes da obrigação de indemnização, traduz-se na necessidade, imposta por lei, a quem causa danos a outrem, de colocar o ofendido na situação em que se encontraria se não fosse a lesão, isto é, tem por fim essencial tornar sem dano o lesado. A responsabilidade contratual resulta da falta de cumprimento das obrigações emergentes dos contratos, de negócios unilaterais ou da lei, e a responsabilidade extracontratual da violação de direitos absolutos ou da prática de certos actos que, embora lícitos, causam prejuízo a outrem. Contudo, ao contrário do que acontece com a responsabilidade extracontratual, que é fonte autónoma da obrigação de indemnizar, a responsabilidade contratual é, verdadeiramente, apenas, condição modificativa da obrigação de prestar em obrigação de indemnizar, mas a obrigação é a mesma” (…); “o mesmo facto humano pode provocar um dano simultaneamente contratual e extracontratual”.

Em decorrência do exposto, se os factos utilizados pelo Tribunal foram alegados pelas partes, se a causa de pedir e o pedido são claros, não há motivo para que o demandado não apresente todos os motivos em que pode juridicamente fundar a sua defesa, à luz da possível relevância jurídica que da situação se poderia deduzir, até porque, como acontece na presente acção, a A. está devidamente representada por profissional do foro, qualificado para operar a identificação do que pode ou não ser relevante na posição que apresenta em juízo. Se não invoca a prescrição porque não achou que os factos alegados, na sua relação com a causa de pedir e com o pedido pudesse conduzir a responsabilidade extracontratual, é situação alheia ao Tribunal, que existe para aplicar o direito ao caso concreto, procurando a melhor solução no quadro do ordenamento jurídico. À parte impunha-se a concentração da defesa da réplica, excepto quanto a factos supervenientes: a prescrição não é um facto superveniente. Não há lugar à aplicação do regime do art.º 573.º nesta fase.

13.1. Relativamente ao acórdão citado, é importante dizer que a jurisprudência aí consignada nos oferece resposta a dois problemas essenciais: um) aceitando que a qualificação jurídica pode ser efectuada pelo Tribunal, a partir dos factos e do pedido formulado pelos interessados; dois) aceitando que o mesmo facto pode gerar responsabilidade contratual e extracontratual.

Eis outro ponto que importa esclarecer, o que fazemos para melhor enquadrar a resposta às questões colocadas no recurso[3], mas dentro do quadro legal que limita os poderes deste STJ quando decide em recurso.

Olhando para a situação dos autos pudemos concluir que: i) veio decidido que houve uma relação contratual de compra e venda, com um não cumprimento integral das obrigações principais daquela decorrente, a saber, o dever de pagar o preço; ii) veio decidido que não houve cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda; iii) veio decidido que o contrato de compra e venda não foi celebrado com garantia.

Também se sabe que, na sequência de uma primeira relação contratual (a de compra e venda), veio a desenvolveu-se uma nova relação entre R. e A.. Esta situação não vem indicada, nem pelas partes, nem pelo tribunal, como tendo natureza contratual, o que em nada afecta a qualificação da dita relação como sendo de natureza contratual.

Senão vejamos: a) na sequência da compra da máquina bulldozer, a R. solicitou a intervenção da A. para efeito de esta proceder à reparação do hidráulico; b) a A. acedeu a fazer a reparação; c) a A. mandou deslocar às instalações da Ré o seu gerente e dois mecânicos para diligenciarem no sentido da reparação[4].

Como é evidente, a relação que acabámos de descrever, e que foi estabelecida entre A. e R., tem natureza contratual: é que a A., não estando obrigada por virtude do contrato de venda da Bulldozer a assegurar que a mesma continuaria a funcionar na sua plenitude após a entrega (não havia obrigação de reparar porque não havia defeito e não havia sido convencionada obrigação de garantia), acedeu a realizar a reparação de uma avaria, assumindo assim um novo dever de prestar para com a R.: o de reparar a avaria (cf. facto provado 22: No dia 15 de Fevereiro de 2013, na sequência do telefonema em que se prontificou, perante a Ré, a proceder à reparação da “máquina Bulldozer”….). Ao aceitar realizar a reparação, a A. celebrou com a R. um contrato de prestação de serviço. Este compromisso é totalmente distinto do assumido com a compra e venda, embora as partes não pareçam estar cientes do relevo contratual do acordo firmado.

Contudo, a situação dos autos  ̶  agora em análise  ̶  não se esgota numa mera relação contratual. É que a A., na sua deslocação às instalações da R. com vista à reparação do bulldozer, praticou ainda um outro acto: retirou o hidráulico da máquina e levou-o para a sua oficina, não tendo obtido o acordo da Ré para essa retirada. Ao assim proceder, a A. violou o acordo que tinha com a Ré, pois só poderia retirar a peça com o consentimento desta, o que não sucedeu. Esta violação do acordo é simultaneamente um acto que desrespeita o direito de propriedade da Ré sobre a referida peça. Mais: ao levar a peça, tendo posteriormente condicionado a sua devolução ao pagamento do remanescente do preço da venda do bulldozer, não actuou a A. em conformidade com a lei  ̶  o dever de pagar o preço reportava-se à relação contratual de compra e venda e o dever de reparar a peça surgira no âmbito de uma distinta relação contratual, não podendo operar a excepção de não cumprimento, nem o direito de retenção. Assim, a retirada e retenção da peça representam, simultaneamente, uma violação de um direito de propriedade da Ré e uma violação do acordado.

A situação em análise in casu é distinta daquela que se suscitaria se a A. tivesse, por sua iniciativa, mandado alguém à propriedade da Ré para daí subtrair a peça da Bulldozer, com vista a fazer valer o seu direito contratual (do contrato de venda) ao recebimento do remanescente do preço. É que, numa tal situação (meramente hipotética), a deslocação da A. não teria sido solicitada pela Ré, nem haveria um acordo entre A. e R. no sentido de se proceder à reparação do bulldozer. Numa situação como a hipoteticamente descrita suscitar-se-ia, a nosso ver, uma situação clara de exclusiva responsabilidade extracontratual fundada na culpa (violação do direito de propriedade da R.).

Na situação dos autos, ainda que a retirada da peça e sua condução para a oficina da A. não tenha sido consentida pela Ré, a entrada na propriedade da Ré foi autorizada e estava legitimada pelo acordo de prestação de serviço. Excedendo o âmbito da autorização recebida, para o estrito efeito de reparação da peça, a A. retirou-a e levou-a consigo, condicionando a sua devolução à R. ao recebimento do preço da compra e venda ainda em falta (10.000 euros).

Atento o exposto, que parte dos factos provados, não há dúvidas de que a qualificação jurídica do comportamento da A. envolve simultaneamente uma subsunção no regime da responsabilidade contratual e da extracontratual. Estamos perante uma situação em que um mesmo facto é gerador de responsabilidade contratual e extracontratual[5].

Está assim justificada a decisão do tribunal recorrido.

14. Questão B do recurso principal

A recorrente pretende que o Tribunal verifique em que medida houve a prática de facto ilícito (supõe-se pelo gerente da A.), pressuposto essencial da condenação indemnizatória. Na sua opinião a retirada do hidráulico (do bulldozer), na sequência de se ter prontificado a reparar a máquina, dirigindo-se às instalações da Ré (onde a máquina se encontrava), desmontando-o, retirando-o e transportando-o para ser reparado, não configura um facto ilícito. Aduz ainda que estando o hidráulico reparado comunicou à Ré que o pretendia entregar, o que fez através de duas comunicações escritas.

Vejamos.

A questão aqui levantada relaciona-se, em alguma medida, com a do caso julgado penal absolutório, que já havia sido suscitada no processo, e decidida com trânsito em julgado[6], e a prova produzida nestes autos. Nessa decisão indicou-se que não houve violação de caso julgado não obstante, antes da presente acção, ser existido outra – que correu em tribunal penal – onde se discutiam os mesmos factos, e sobretudo o carácter ilícito da actuação do gerente da A.. Em síntese, o que se conclui é que, não obstante na acção penal e no respectivo pedido de indemnização cível se ter dado como provado que a retirada do hidráulico não fora feita com intuito de se apropriar da peça, não tendo sido praticado o crime de furto qualificado, nem havendo lugar a indemnização civil pelo arguido José Nogueira Faísca, no processo agora em recurso os factos provados – e que serviram de base à prolação do acórdão – são no sentido de que a retirada do hidráulico constituiu acto ilícito (de natureza civil).

Para concluir que o acto foi ilícito e o dar como provado no ponto 23.º da matéria de facto – e estamos a pensar na retirada do hidráulico – o tribunal disse:

“… que a prova que nos convence nos autos, é no sentido de que, na realidade, o “distribuidor hidráulico” não foi reparado, e, em face desta conclusão e daquilo que adiante acrescentaremos, entendemos que a reparação desse componente da máquina não foi o escopo visado pelo legal representante da autora ao retirá-lo e ao levá-lo consigo, embora haja dado esse pretexto para assim agir.

Quanto à não reparação da máquina, temos o resultado da peritagem, datado de 20/12/2017 (fls. 203 e ss.), em que, por maioria, dois dos três peritos nomeados, o Perito José Rafael (engenheiro mecânico) e o Perito FF (mecânico especializado), questionados sobre se fora levada a cabo alguma reparação no distribuidor hidráulico e se este fora alguma vez aberto, responderam entenderem que não.

Ora, não vemos razão para não perfilhar este laudo maioritário, em detrimento do laudo do outro Sr. Perito, que, aliás, apenas admitiu a possibilidade de o distribuidor ter sido reparado, pois que deixou expresso que não podia garantir que nele tivesse sido levada a cabo alguma reparação.

Em consonância com isto está o depoimento da testemunha GG que declarou ter-lhe dito o legal representante da Autora, já depois de ter o distribuidor hidráulico, que para o voltarem a ter, teriam que o ir buscar e pagar os 10.000.00 € que dizia serem devidos, isto sem justificar a posse do componente com a necessidade de o ter de reparar nas instalações da Autora.

Por tudo isto não convence a versão, transmitida, designadamente, pelo legal representante da Autora e pela testemunha DD, que acompanhou este na ida às instalações da Ré e a trazer o distribuidor para a oficina do Fundão, referindo que assim foi feito por ser nessa oficina que tinham todo o equipamento para arranjarem esse componente.

Por outro lado, é evidente, que o distribuidor não voltou a ser colocado na máquina pela Autora, o que decorre dos autos, quer da própria posição assumida pelo legal representante da Autora, quer devido à circunstância de tal componente ter sido apreendido à ordem do referido processo-crime (cfr. Acórdão da Relação do Porto, de 12/11/2014, que refere, quanto ao destino do distribuidor apreendido, poder a aqui Ré requerer a respectiva restituição ao abrigo do artº 186 do C.P.P.), vindo a ser examinado pelos Srs. Peritos em Novembro de 2016, num armazém pertença do legal representante da ora Apelante.

Ora, se não houve, como entendemos que resulta dos autos, qualquer reparação efectuada pela Autora no distribuidor hidráulico, a acção leva a efeito pelo legal representante da Autora, com o auxilio de quem foi com ele às instalações da Ré, ao retirar da máquina Bulldozer esse distribuidor e ao trazer este componente consigo, teve como escopo único provado fazer depender a devolução do mesmo do pagamento, pela Ré, dos 10.000.00 € devidos por esta a título do resto do preço pelo qual fora vendida a máquina Bulldozer.”

Para o efeito, o Tribunal recorrido fundamentou a decisão na prova produzida (sujeita a livre apreciação, o que impede a reanálise por este STJ, por virtude do art.º 682.º, n.º2 do CPC) e nas conclusões que dela retirou, recorrendo igualmente a presunções judiciais.

Com estas justificações, o que o Tribunal recorrido concluiu foi que lhe era permitido aferir da ilicitude do comportamento do gerente da Ré no âmbito deste processo, mesmo que o resultado a que chegasse – em virtude da análise das provas – não fosse igual ao obtido no tribunal penal. Mais reafirmou que a retirada do hidráulico, sob pretexto de ser necessário efectuar a sua reparação fora da máquina e das instalações da Ré, não passou de um mera afirmação desprovida de sentido, pois a A., através da actuação do seu gerente, teria pretendido retirar o hidráulico e só o devolver contra pagamento do remanescente do preço do bulldozer, não tendo sequer procedido à sua reparação (ainda que informasse a Ré que a peça estava reparada). Não havendo justificação para o acto de retirar o hidráulico e sendo este acto uma violação do direito de propriedade da Ré, concluiu no sentido de existir um acto ilícito.

Quanto ao entendimento deste STJ sobre os factos provados, não há dúvida de que a retirada do hidráulico, e a sua indevida retenção, não constituem um exercício legítimo de um direito que assistisse à A. e que, portanto, com esse comportamento ela violou, sem justificação legal, o direito de propriedade da Ré, estando plenamente demonstrada a sua ilicitude: a retirada da peça foi efectuada contra a vontade do seu proprietário e sem ser no exercício de um direito; a retirada (e retenção) da peça, ainda que invocando a necessidade de ser regularizada uma relação de dívida anterior, não é tutelada pelo sistema jurídico; não se aplica à situação nem o instituto do direito de retenção, nem a excepção de não cumprimento, e não se encontra justificação para o comportamento provado que se possa fundar em outro modo legítimo de actuar, pelo que improcede o argumento da recorrente.

15. Questão C do recurso principal

A recorrente contesta que esteja demonstrada a existência de um nexo de causalidade entre o dano e a conduta (supostamente) ilícita da A.

A esta questão respondeu a recorrida em termos que nos parecem adequados: sob a interrogação em relação à verificação dos pressupostos da obrigação de indemnizar (nexo de causalidade), a A./recorrente pretende que o tribunal analise uma questão nova: a de saber se a Ré devia ter comprado um hidráulico substituto do retido por um valor mais baixo, ou diferente (são estas as frases da A. nas suas alegações de recurso: “não pode olvidar-se que o legal representante da Ré optou por comprar um distribuidor novo, quando tinha conhecimento que a Autora pretendia entregar-lhe o distribuidor da máquina reparado; o dano não se traduz no valor de aquisição e montagem dum distribuidor novo”).

Porque o tribunal ao decidir em recurso não pode tomar conhecimento de questões novas, apenas se pronunciando sobre questões objecto de anterior decisão judicial, improcede o argumento do recorrente, sendo devido o valor da peça tal como vem indicada nos autos: €14.619,18.

Sem prejuízo do afirmado, quanto ao valor da peça, o problema da causalidade adequada entre o facto ilícito e o dano – e consequente valor da indemnização devida –  deve ainda ser ponderado numa outra perspectiva: saber se se encontra justificação para a condenação da A. em pagar o custo da montagem da nova peça. Na verdade, sempre seria de concluir que, caso a peça antiga (o hidráulico retido) tivesse sido reparada e devolvida pela A., sempre teria a Ré de suportar o custo da sua montagem – incluindo-se aqui a mão de obra e as peças acessórias necessárias. Não se esqueça que o hidráulico retirado estava avariado, não existindo elementos que permitam concluir que o custo da montagem devesse correr por outrem que não o seu proprietário. É que o custo de montagem (mão de obra e peças) não foi suportado pela R. em virtude do comportamento ilícito da A., mas em consequência de ser proprietária de uma máquina com uma peça que se avariou, carecida de reparação e sem a qual não poderia funcionar. Nesta medida, quanto a estes custos de montagem não se identifica uma causalidade adequada entre o acto ilícito e os danos sofridos, pelo que, neste ponto apenas se confirma a condenação da A. a indemnizar a Ré pelo montante de de €14.619,18, acrescidos dos juros de mora vencidos, conforme decisão do Tribunal da Relação. Não procedendo o argumento da recorrente quanto à falta de nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano, procede o argumento de que o valor dado por provado, quanto a esse nexo, não inclui o custo da montagem (mão-de-obra e peças).

16. Questão D do recurso principal

Como última questão a recorrente pretende ter existido abuso de direito por parte da Ré: adquiriu um hidráulico novo, cujo custo pretende seja suportado pela A.; esse hidráulico destina-se a substituir a peça antiga, usada, que fora adquirida como peça de uma máquina usada e sem garantia.

A Ré, por sua vez, contrapõe que o processo cível surgiu por iniciativa da A. e não sua, tendo apenas apresentado a sua defensa nos autos.

Ponderada a situação, e tal como ela vem apresentada, sobretudo invocando-se o custo da peça nova – questão sobre a qual já nos pronunciámos no ponto anterior – não se identifica aqui nenhum abuso de direito, tal como o instituto vem previsto no art.º334.º do CC.

Improcede, assim, o argumento da recorrente.

17. Tendo a Ré interposto recurso subordinado em que suscita a questão do direito a ser indemnizada pela privação de uso de um bem, importa analisar.

Sobre o ponto disse o tribunal recorrido:

“… sendo certo que a Ré também peticionou - pelo que deixou de receber, em consequência da paralisação da máquina Bulldozer -, a importância de 35.100,00€, que referiu representar um dano efectivo de 17.550,00€, “correspondente a metade, já que a outra metade seria gasta em despesas relativas ao funcionamento da máquina”, apenas se provou, porém, que a máquina esteve imobilizada, sem poder ser usada e que, pelo uso dela, a reconvinte aufere a importância de 65,00€ por hora, sem que se haja provado, que, efectivamente, a Ré tivesse tido ofertas de trabalhos que deixasse de poder aceitar em virtude de não os poder executar com a dita máquina. Ou seja; não se provou que, em virtude da imobilização em causa, a ré tenha sofrido lucros cessantes, o que não tem a ver com a falta de prova do montante do dano, mas antes com a falta de prova da existência do próprio dano, situação esta em que é despropositado trazer à colação a relegação do “quantum” indemnizatório para ulterior liquidação.

Efectivamente, a possibilidade de se relegar para momento posterior ao da prolação da sentença a liquidação do “quantum” indemnizatório pressupõe que na acção se tenha provado a concreta existência de danos cujo montante não foi possível apurar.

O que nos conduz à questão de saber, se, não provado – como é o caso, que da imobilização do veículo resultou um efectivo prejuízo -, ainda assim o respectivo proprietário deve ser indemnizado.

Quanto a esta matéria – da indemnização pelo dano resultante da privação do uso do veículo -, muito embora o ora relator já tenha, em tempos, perfilhado solução diversa, consideramos, agora, que o melhor entendimento está expresso no voto de vencido da ora 2ª Adjunta, proferido nos Acórdãos da Relação do Porto, de 6 de Julho de 2010 (Apelação nº 356/08.7TBCNF.P1) e de 19 de Outubro de 2010 (Apelação nº 1773/09.0TJPRT.P1), e que ora se passa a transcrever:

«[…] Relativamente a esta indemnização, entendo que, visando o ressarcimento dos danos a reconstituição da situação que existiria caso não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação — art.º 562.°, do C. Civil —, apenas são indemnizáveis os danos efectivamente verificados e não os meramente putativos, hipotéticos ou possíveis, exigindo-se que ocorra uma alteração negativa no património, na pessoa ou no modo de vida do lesado. Estes danos podem ser patrimoniais ou não patrimoniais, mas têm de ser reais.

No caso em análise, verifica-se, em consequência de um acidente de viação, uma privação do poder de uso de um bem.

Em resultado dessa privação não foram apuradas consequências concretas negativas para a pessoa do lesado, uma vez que não resultou provado que a imobilização do veículo tenha provocado qualquer prejuízo à Autora.

Assim, não estando provada a ocorrência de um dano concreto para a Autora, resultante da imobilização do veículo, julgaria a acção parcialmente improcedente e, consequentemente absolveria a Ré do respectivo pedido indemnizatório. […]».

Deste modo entendemos que nenhuma indemnização cabe à Reconvinte, Apelada, decorrente da imobilização da máquina Bulldozer.

Da fundamentação do Tribunal decorre a conclusão de que houve “falta de prova da existência do próprio dano”. É precisamente aqui que, no recurso subordinado, se pede a intervenção deste STJ, pois se entende que o dano de privação de uso é em si próprio um dano, conferindo direito a indemnização mesmo que não se provem prejuízos concretos em resultado da privação.

O STJ já teve oportunidade de se pronunciar várias vezes sobre o dano de privação de uso, tomando posição sobre a questão em discussão, o que nos permite chamar aqui à colação algumas das decisões mais recentes sobre o tema. Sob a mesma designação, mas dela se distinguindo (nem que seja ao nível de grau), tem aparecido também decisões judiciais que são favoráveis ao ressarcimento do dano que afecte a possibilidade de uso, mas aqui o consenso é menor.

Das decisões relativas ao dano de privação de uso se deduz que é aceite o princípio segundo o qual a privação de uso de um bem constitui em si próprio um dano, susceptível de ser indemnizado, mas sem que se deixe de tomar em consideração a situação concreta sujeita a avaliação e os danos que nela se comprovam. Mais delicada é a questão do valor da indemnização, uma vez que se considera aqui que a sua fixação será feita com recurso à equidade e tomando por base a prova realizada (danos concretos). O tema tem sido desenvolvido sobretudo a propósito dos acidentes de viação, com privação de uso do automóvel: tem-se admitido que ocorre dano por privação de uso do bem quando exista prova de que o lesado fazia uso do bem – utilização habitual na sua vida (pessoal e/ou profissional) – com invocação de projectos concretos relativos à sua utilização[7].

Que dizer da situação concreta relativa ao Bulldozer da Ré?

Vem provado que a A. retirou o hidráulico do Bulldozer da Ré (15 de Fevereiro de 2013), sem o seu acordo, com alegação de que o ia reparar; indicando que o mesmo estava reparado – comunicações de 8/3/2013 e 14/3/2013 – recusou a sua entrega à Ré. Esta, por seu turno, porque a máquina não funciona sem hidráulico, comprou uma peça em substituição (facturada em 7/3/2013) e mandou-a instalar.

Disse o tribunal que não está provado o dano.

Não cremos que tenha razão: existem no processo elementos suficientes para concluir que o dano existiu, ainda que não se identifiquem montantes concretos que permitam aferir do seu valor. Se o R. não fizesse uso da máquina não se compreenderia que tivesse comprado uma peça para substituir o hidráulico retirado, o que fez logo em 7/3/2013. Deve, assim, aceitar-se que existiu dano, sendo o mesmo de quantificar em função da equidade, com especial atenção aos limites do mesmo dano: o dano é aquele que resulta de o A. ter levado a peça avariada e a ter retido ilicitamente pois não a devolveu, não obstante ter comunicado ao Ré que a peça estava pronta para ser instalada (1ª comunicação); e cessa na data em que a máquina passou a estar apta a funcionar com a peça de substituição comprada pela Ré (facturada em 7/3/2013, conforme doc. junto aos autos); o período necessário à instalação não deve entrar aqui em conta, porque sempre seria necessário instalar a peça fosse ela nova ou a levada pela A., sendo esse período da responsabilidade da Ré. O valor da indemnização deve ser actualizado por referência à data do seu apuramento, vencendo juros de mora civis a partir desse momento e até integral pagamento.

Estas são, em consequência, as balizas pelas quais se deve orientar o tribunal recorrido, na fixação do quantum indemnizatório, função que compete ao tribunal recorrido, uma vez que o STJ não se pode substituir na tomada de uma posição sobre questão que não foi decidida, mas apenas revogar o acórdão recorrido, nesta parte, determinando a baixa dos autos para fixação do valor, nos preditos parâmetros de direito.

III. Decisão

 Pelas razões acima expostas, é concedida parcialmente a revista da A., revendo-se o montante em que a A. veio condenada a indemnizar a Ré, no que se reporta ao valor da aquisição da nova peça (no montante de €14.619,18), acrescido dos juros tal como consta da decisão recorrida, não sendo devido o valor dos custos de montagem (2.600,00€.).

É concedida a revista subordinada da Ré, revogando-se a decisão do Tribunal da Relação na parte em que nega o direito à indemnização por privação de uso. Determina-se que os autos baixem ao tribunal recorrido para, em conformidade com a solução de Direito aqui fixada, se proceda ao cálculo do valor indemnizatório devido, segundo a equidade, até ao limite do valor do pedido formulado a este título (art.º 665.º e 679.º do CPC)

 Mantém-se, no demais, a decisão recorrida.

Custas do recurso principal pela recorrente em 84% e pela recorrida em 16%.

Não são devidas custas pelo recurso subordinado.

Lisboa, 25 de Outubro de 2018

Fátima Gomes (Relatora)

Acácio Neves

Maria João Vaz Tomé

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[1] Também acrescenta que é responsabilidade objectiva, mas esta decisão não vem impugnada – não se invoca erro de direito na decisão – o que impede a análise da correcção da decisão à luz do ordenamento jurídico, ainda que este STJ entendesse que seriam de aplicar à situação diferentes normas jurídicas.
[2] A reconvenção aparece formulada com um pedido de condenação da A. a pagar à Ré a quantia de € 35.169,16 pelos danos causados com a sua actuação e com o incumprimento do contrato, o que por si só envolve uma alusão genérica capaz de incluir a responsabilidade contratual e a extracontratual.
[3] Isto é, não se pretende daqui extrair conclusão que possa sustentar a intervenção do Tribunal para além do que lhe é pedido, sob pena de excesso de pronúncia, não se tratando de questão de conhecimento oficioso.

[4] Por diversas vezes no processo indica que não tinha dever de reparar o hidráulico, mas que o aceitou efectuar.

[5] Quando um mesmo facto pode ser gerador de responsabilidade contratual e extracontratual tem a jurisprudência entendido que não são de aplicar ambos os regimes, mas antes o de dar prevalência à aplicação das regras relativas à responsabilidade contratual, por oferecerem uma maior tutela da posição do lesado (cf. o aresto citado e ainda Almeida Costa, “Concurso da responsabilidade civil contratual e da extracontratual”, Ab Uno ad Omnes, 75 Anos da Coimbra Editora, 1920-1975, Coimbra Editora, 1988, 559 a 565.

Para que o STJ pudesse avançar por este caminho, a questão teria de vir suscitada nas alegações e conclusões do recurso, o que não acontece. Fica apenas a nota, sem possibilidade de se modificar, ex officio, a decisão do tribunal, já que apenas poderá ter ocorrido um erro de julgamento.
[6] Não pode voltar a ser suscitada.
[7] Cf. MARIA DA GRAÇA TRIGO, Responsabilidade civil. Temas especiais, UCEditora, 2015, p. 59 e ss (especial p. 62 – “o factor determinante para a atribuição da indemnização passou a situar-se ao nível da prova das desvantagens que o lesado teve com a privação”.