Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
034335
Nº Convencional: JSTJ00004090
Relator: BOTELHO DE SOUSA
Descritores: FURTO DE VEICULO
FURTO EM VEICULO
TENTATIVA
FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
Nº do Documento: SJ197602250343353
Data do Acordão: 02/25/1976
Votação: UNANIMIDADE
Referência de Publicação: DR IS DE 76/03/23, PÁG. 587 A 590 - BMJ Nº 254 ANO 1976 PÁG. 109
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PARA O PLENO
Decisão: TIRADO ASSENTO.
Indicações Eventuais: ASSENTO DO STJ.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMONIO / TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: DL 44939 DE 1963/03/27 ARTIGO 1 N1 ARTIGO 3 ARTIGO 4 N1 N2.
CP886 ARTIGO 1 ARTIGO 8 ARTIGO 11 ARTIGO 12 ARTIGO 13 ARTIGO 421 ARTIGO 422 ARTIGO 423 ARTIGO 424 ARTIGO 428 ARTIGO 429 ARTIGO 430.
CJM25 ARTIGO 8.
DL 21730 DE 1932/10/14 ARTIGO 6 PAR1.
L DE 1896/04/03 ARTIGO 3 PARUNICO.
CPP29 ARTIGO 446 N4 ARTIGO 669.
CPC67 ARTIGO 764.
Sumário :
A disposição do n. 2 do artigo 4 do Decreto-Lei n. 44939, de 27 de Março de 1963, abrange a tentativa dos crimes a que se reporta.
Decisão Texto Integral:
Acordam neste Supremo Tribunal de Justiça em Pleno:

Nos termos do artigo 669 do Codigo de Processo Penal, o excelentissimo Procurador da Republica junto da relação de Lisboa, interpos recurso para o Pleno deste Tribunal, do acordão daquela Relação, datado de 24 de Julho de 1974, por estar em oposição com o acordão da mesma Relação, datado de 4 de Julho de 1973, transitado em julgado, no tocante a interpretação do conceito "crime" constante do n. 2 do artigo 4 do Decreto-Lei n. 44939, de 27 de Março de 1963.
Pelo acordão de folhas 21 e 26, da Secção Criminal deste Supremo, decidiu-se verificarem-se as condições para que o presente processo prosseguisse.
Na verdade, segundo o disposto no artigo 669 referido, em materia crime, e artigo 764 do Codigo de Processo Civil em materia não criminal, se qualquer Relação proferir acordão que esteja em oposição com outro, dessa, ou doutra Relação, sobre a mesma materia de direito, e, dele não puder interpor-se recurso ordinario para este Supremo, e admissivel recurso, a fim de se fixar jurisprudencia.
Os processos que originaram os dois acordãos, eram correccionais, e, não foram condenatorios, pelo que, não era admissivel recurso ordinario, segundo o disposto no n. 4 do artigo 446 do Codigo de Processo Penal, tendo alias, o de 4 de Julho de 1973 transitado em julgado.
Ambos foram proferidos no dominio da mesma legislação (artigo 4 do Decreto-Lei n. 44939, de 27 de Março de 1963), então, e ainda, em vigor.
Enquanto o acordão de 1973 decidiu ser a tentativa de furto abrangida por tal decreto, um crime autonomo, "com a sua previsão e estatuição diferenciada do correspondente ao crime consumado" não sendo, assim, compreendido na remissão feita nos ns. 1 e 2 desse artigo 1, o acordão agora recorrido, decidiu o contrario, declarando que o artigo 3 de tal diploma dispos ser tal tentativa sempre punivel, e por isso não lhe ser aplicavel o principio do artigo 43 do Codigo Penal, devido aquele n. 2 do artigo 4.
Bem se decidiu, pois, no acordão da Secção, que existe a legal oposição em materia de direito, no dominio da mesma legislação, e, que, se verificam as demais condições para que se conheça do recurso, fixando-se a jurisprudencia a seguir, tarefa que se segue.
O excelentissimo Ajudante do Procurador-Geral da Republica, apresentou as suas doutas alegações de folhas 30 a 35, propondo a seguinte redacção para o assento a proferir:
"A locução "Aos crimes previstos no numero anterior (...)", do n. 2 do artigo 4 do Decreto-Lei n. 44939, de 27 de Março de 1963, abrange não so os crimes consumados de furto de uso de veiculos e furto de quaisquer veiculos, peças ou acessorios a ele pertencentes e de objectos ou valores neles deixados, mas, tambem, a tentativa desses crimes".
Tendo corrido os vistos legais, nada impede que se conheça do objecto do recurso.
Quando começaram a aumentar os furtos de veiculos e coisas neles contidas, surgiu o Decreto-Lei n. 44939, de 27 de Março de 1963.
As penas que dele constam, e os seus principios legais, são todos no sentido do agravamento do regime total penal, relativamente aos demais furtos simples.
Do respectivo relatorio consta, alem do mais: "ha necessidade de rever as sanções previstas na lei, sem quebra do respeito devido aos criterios gerais de punição assentes na legislação penal em vigor".
Em todo, o alias, curto relatorio, não se refere o legislador senão a expressão furto. No entanto, como veremos, o artigo 3 desse Decreto refere-se a tentativa desses furtos, e, estabelece o regime da sua punição.
E pois licito ao interprete, entender, que nesse decreto, se considera tal forma de ilicitude - tentativa - como que, compreendida no conjunto de actos do agente, que precedidos pelo mero pensamento de ofender a lei penal, prossegue, com a pratica de, um ou mais actos de execução, ate, se atingir a lesão da pessoa ou objecto protegidos pela regra juridica - "o intercriminus".
Mas, deixemos este comentario, e passemos a transcrição dos preceitos que interessem para a decisão deste recurso:
Decreto n. 49939 - artigo 1, n. 1 - "O crime de furto de quaisquer veiculos, peças ou acessorios a eles pertencentes e objectos ou valores neles deixados e punido":...
Mesmo decreto - artigo 3 - "A tentativa e sempre punida e, quando ao furto corresponder pena de prisão, e aplicavel a pena que caberia ao crime consumado, com circunstancias atenuantes".
Ainda tal decreto - artigo 4, n. 1 - "No crime de furto de uso de veiculos e no previsto no artigo 1, a pena de prisão não pode ser substituida por multa".
N. 2 - "Aos crimes previstos no numero anterior, não e aplicavel o disposto no artigo 430 do Codigo Penal".
Artigo 430 do Codigo Penal: -"Em todos os casos declarados nesta secção, não excedendo o furto a quantia de 200 escudos, nem sendo habitual, so tera lugar a pena, queixando-se o ofendido".
No acordão de 4 de Julho de 1973 aplicou-se tal artigo 430, a tentativa de furto da gasolina, dum automovel, no valor de 57 escudos, tendo o ofendido declarado não pretender procedimento criminal.
Entendeu-se, que o principio do n. 2 daquele artigo
4, so tinha aplicação aos crimes de furto de veiculos, do seu uso, ou de peças, acessorios ou valores, consumados, por serem os que constam dos ns. 1 dos artigos 1 e 4, e, nestes, não estar incluida a tentativa, que e crime autonomo daquele.
Quer dizer, desse acordão, resultou um principio de interpretação das expressões dos ns. 1 dos artigos 1 e 4, no sentido de não abranger a tentativa de tais crimes ai expressos.
Mas, o aresto, aplicou os principios do artigo 430, a tentativa constante dos respectivos autos. Ao faze-lo, porem, seguiu criterio oposto, ao agora citado como passamos a demonstrar.
Tal artigo 430 refere-se aos "casos declarados nesta secção". São eles: os furtos previstos nos artigos 421, 422, 424 a 428 inclusive; o acto de se achar coisa alheia, sem, fraudulentamente, a entregar ao dono ou realizar as diligencias legais (artigo 423); e, a ordem de aplicação das regras gerais em tais casos, se concorrerem agravantes (artigo 429).
Em nenhum destes artigos se faz referencia a tentativa de tais crimes, nem o artigo 430 a ela se refere, e, no entanto, nesse acordão, usou-se deste preceito, em tal forma desse ilicito penal.
A orientação do acordão, atras descrita, aplicada, tambem, as expressões do artigo 430 e dos artigos antecedentes - (ate ao 421 inclusive) - não permitia o uso dos principios desse artigo 430 a mera tentativa de furto.
Mas, deixemos, por agora, a critica a tal acordão, e, continuemos a nossa tarefa.
O ilicito penal e o acto, facto ou omissão cometido pelo agente e que contenha em si todos os elementos tipicos fixados por aquela lei que os pune (artigos 1 e 8 do Codigo Penal).
A acção do delinquente que pensou e quis desobedecer a lei penal, atingindo e lesando certo interesse que aquela lei quis especialmente proteger, pode ser completa ou incompleta.
Naquele caso, temos o crime consumado.
Na incompleta, podemos ter uma tentativa ou frustração, desde que se pratiquem factos tipicos de tais formas de delinquencia.
E, embora qualquer destas formas, tenha os seus elementos tipicos e a respectiva pena, sendo assim igual aquele crime consumado, em relação a este, tem de ser considerado como uma forma imperfeita ou incompleta de criminalidade.
Na verdade, nestes casos, não se verificaram todos os actos do percurso tendentes a atingir e lesionar o interesse que o agente teve em vista, e, dai a qualificação de crime incompleto ou imperfeito.
Daqui, estar a tentativa ligada sempre ao crime consumado.
Como diz Bettiol (Direito Penal, tomo III, pagina 186),
"qualquer norma sobre a tentativa não tem caracter autonomo, dado que so pode funcionar conjugado com a norma incriminadora principal". "Ela e uma norma secundaria, que serve para alargar a esfera da incriminabilidade da norma principal a factos que, so por si, não poderiam incluir-se no seu ambito e deveriam, portanto, ficar impunes, por serem atipicos".
Nesse sentido, Professor Battaglini (Teoria de Infracção Criminal, pagina 417), "A tentativa pressupõe, na verdade, o inacabamento do facto tipico", e "bem pode denominar-se imperfeita em referencia a consumação, sendo para ela suficiente uma parte da materialidade criminosa".
Na mesma orientação, Professor Cavaleiro Ferreira (Lições de Direito Penal, de Carmindo Rodrigues e Vaz Lacerda, paginas 518 e 519): "Num e noutro caso" - tentativa e crime frustado - "na sua materialidade objectiva, o agente não realiza todos os elementos essenciais do facto incriminado". Em ambas essas formas incompletas de ilicitude penal, "ha a intenção de praticar um crime consumado; a realização e que não corresponde a intenção do agente".
Tambem o Professor Eduardo Correia, a paginas 232 do Direito Criminal, 1971, II volume, depois de produzir considerações identicas e dizer não faltarem "doutrinas e sistemas que autonomizam as duas figuras" - tentativa e frustração - aponta tal autonomia dizendo: - "por existirem codigos e autores que admitem como circunstancia que exclui a punibilidade da propria frustração o afastamento voluntario e activo do resultado, e em que, por outro lado, a generalidade das doutrinas e legislações modernas defendem a punibilidade da tentativa na moldura penal corresponde ao crime consumado, a legitimidade da autonomização do conceito de frustação torna-se mais do que problematica".
E de notar que, tais passagens vem a seguir a um conceito dado anteriormente da tentativa que ja abrange, em si, a frustração.
Somente se podera dizer que, em certos factos intencionais, tendentes a um resultado não obtido e incompletamente praticados, representam um crime autonomo do que se pretendia consumar, quando contenham em si uma tipicidade especial diferente do ilicito que se desejava praticar.
Na verdade "Ainda que a tentativa não seja punivel, os actos, que entram na sua constituição, são puniveis, se forem classificados como crimes pela lei, ou como contravenções por lei ou regulamento" (artigo 12 do Codigo Penal).

Tambem "Nos casos especiais, em que a lei qualifica como crime consumado a tentativa de um crime, a suspensão da execução deste crime pela vontade do criminoso não e causa justificativa" (artigo 13 do mesmo Codigo).
Nestes casos, a materialidade cometida, tem autonomia em relação ao crime que o agente pretendia cometer, deixando de ser tentativa como tal considerada.
Nos outros casos, como o dos autos, mantem-se a dependencia da situação, relativamente a consumação querida.
Na verdade, nos termos do artigo 11 do Codigo referido, são requisitos da tentativa, a intenção do agente; a execução começada e incompleta dos actos que deviam produzir o crime consumado; suspensão dessa execução por circunstancias independentes da vontade do agente, excepto nos casos previstos no artigo 13; punição do crime consumado com pena maior excepto os casos especiais em que a lei a declarar punivel nos crimes castigados com penas diversas daquela.
Daqui resulta com total nitidez, o caracter dependente da tentativa, quando ela e punivel como tal.
Com efeito, a intenção foi a de praticar uma ofensa contra o bem juridico protegido pela lei penal. Na hipotese, a defesa do direito de propriedade do veiculo e da gasolina nele contida.
Os actos praticados iniciaram execução idonea tendente a subtracção projectada e querida.
Essa execução ficou incompleta, por ter surgido um agente de autoridade que impediu o delinquente, contra sua vontade, de praticar os demais actos, ate, a apropriação fraudulenta da gasolina que se pretendia subtrair.
Tambem, pelo disposto no artigo 3 do atras citado decreto, nestes casos, a tentativa e sempre punida, com a pena do crime consumado, com circunstancias atenuantes.
A hipotese concreta, dos autos, contem em si, toda essa tipicidade.
Quando a circunstancia do n. 2 do artigo 4 desse decreto, remeter para os "crimes previstos no numero anterior", isso, não impede que tal preceito abranja tambem a tentativa de tais crimes.
Como ja se demonstrou, esta e uma forma incompleta da pratica de tais furtos ou crimes referidos nesse n. 1 do dito artigo 4.
Assim, não se justificariam regimes diversos relativamente a tentativa em relação ao mesmo crime consumado.
Tais formas criminais são identicas, existindo, apenas a diferença, de que nunca existiu somente perigo de lesão material, e, na outra, o interesse protegido foi lesionado, ou, atingido na totalidade.
Alem disso, o proprio decreto alterando o sistema do n. 4 do artigo 11 do Codigo Penal, declarou sempre punivel a tentativa.
Sempre se tem interpretado o artigo 430 do Codigo Penal, embora so fale em "furto" não se referindo a tentativa e frustração expressamente, como, abrangendo estas formas incompletas de tal crime, e, como ja se disse, nesse sentido, embora com falta de harmonia com os argumentos expostos para a resolução da outra questão, assim decidiu o acordão de 4 de Julho de 1973.
O nosso sistema legislativo penal, não preve, especialmente para cada moldura penal ou facto tipico, como faz para os crimes consumados - (factis specie) -, a tentativa de cada crime. Ao contrario, prescreve a tipicidade, de um modo geral, para todos os crimes consumados.
Consta isso dos artigos 11, 12 e 13 do Codigo Penal.
O mesmo sucede nos demais diplomas que se seguem:- artigo 8 do Codigo de Justiça Militar: ("A tentativa do crime essencialmente militar e sempre punivel, qualquer que seja a pena aplicavel ao crime consumado"); o paragrafo 1 do artigo 6 do Decreto-Lei n. 21730, de 14 de Outubro de 1932, declara punivel a tentativa do crime por ele criado; a tentativa do furto e sempre punida, mesmo que a pena do crime consumado não seja maior (Lei de 3 de Abril de 1896, paragrafo unico do artigo 3, e assento de 29 de Maio de 1934), alem de outros casos.
Do exposto resulta que bem se decidiu no acordão recorrido, não ser de aplicar o principio do artigo 430 do Codigo Penal, a tentativa verificada, mas, sim, o n. 2 do artigo 4 do Decreto n. 44 939, pelo que se verifica a legitimidade para o Ministerio Publico exercer livremente a correspondente acção penal.
Termos em que se nega provimento ao recurso mantendo-se o decidido e se tira o seguinte assento:
A disposição do n. 2 do artigo 4 do Decreto-Lei n. 44 939, de 27 de Março de 1963, abrange a tentativa dos crimes a que se reporta.
Sem imposto de justiça.

Lisboa, 28 de Abril de 1976

Eduardo Botelho de Sousa (Relator) - Miguel Caeiro - Avelino da Costa Ferreira Junior - Oliveira Carvalho -
- Adriano Vera Jardim - Eduardo Correia Guedes - Jose Antonio Fernandes - João Moura - Eduardo Arala Chaves -
- Francisco Bruto da Costa - Rodrigues Bastos - Daniel Ferreira - Jose Garcia da Fonseca - Jose Amadeu de Carvalho.