Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1545/19.4T8LRA.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DA GRAÇA TRIGO
Descritores: CASO JULGADO MATERIAL
EXCEÇÃO DE CASO JULGADO
CAUSA DE PEDIR
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
Data do Acordão: 04/21/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
Não existe identidade de causa de pedir quando, na presente acção, os pedidos se fundam a responsabilidade do requerente de providência cautelar injustificada prevista no art. 374.º, n.º 1 do CPC, enquanto na acção reconvencional enxertada em processo anterior a aqui autora imputava à aqui ré responsabilidade contratual decorrente da ilícita resolução do contrato celebrado entre as partes (arts. 798.º e segs. do CC).
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



1. VIEIRAGÁS – Sociedade Distribuidora de Gás, S.A. instaurou a presente acção declarativa sob a forma de comum contra Petróleos de Portugal – PETROGAL, S.A., alegando, em síntese, o seguinte:

- Em 21.12.2000, a R. celebrou com a A. um contrato de distribuição, nos termos do qual autorizou a A. a “instalar na ... um estabelecimento destinado a vender gás de petróleo liquefeito engarrafado”;

- Por carta datada de 22.07.2008, a R. comunicou à A. a resolução de tal contrato, com base num alegado incumprimento, instando-a a pagar uma indemnização calculada nos termos da clausula 7ª do contrato, no montante de € 777.163,03;

- Entretanto, em 05.08.2008, a R. requereu contra a A. um arresto, decretado sem a prévia audição da requerida, para garantia do pagamento da quantia de € 777.163,03, correspondente à referida indemnização devida por alegada violação do contrato por parte da A. e de € 299.598,26, correspondente ao valor do vasilhame que se encontraria na posse da A., depois de deduzido o valor caucionado pela mesma;

- Decretado o arresto sem prévia audição da requerida, foram apreendidos todos os bens móveis existentes no estabelecimento comercial da A., todos os bens móveis que utilizava no exercício do comércio, todas as mercadorias que a A. tinha em stock e destinadas a ser vendidas no exercício da sua actividade, e ainda todas as receitas geradas pelo estabelecimento, bem como os restantes créditos que constituíam o seu activo;

- Até 06.01.2009, data em que as partes celebraram uma transacção nos termos da qual foi reduzido o número de bens arrestados, a A. viu-se completamente impedida de prosseguir a sua actividade, o que lhe causou inúmeros prejuízos;

- Na pendência de tal arresto, veio a R. a instaurar a correspondente acção declarativa principal, na qual peticionava as quantias reclamadas no arresto, onde veio a ser proferida sentença, concluindo-se que “… não ficou provado que a Ré faltou culposamente ao cumprimento do contrato nem existe justa causa para a autora poder resolver validamente o contrato de concessão comercial que estabeleceu a com a 1ª Ré, o qual se extinguiu por inexecução mútua – por isso a resolução do contrato operada pela autora é inválida por carecer de fundamento legal”, julgando improcedente o pedido indemnizatório formulado, condenando a Vieiragás a pagar-lhe unicamente a quantia correspondente à quantidade de vasilhame que detinha em seu poder, da marca Esso, “depois de descontado o valor das cauções de 22.492,09 €, que vier a ser apurada em sede de liquidação de sentença”, considerando ilegal a resolução operada pela R., sentença que foi confirmada por acórdão da Relação;

- Tendo a R. ficado de liquidar este último crédito, nunca o veio fazer, tendo vindo a ser declarada a caducidade do arresto por despacho de 23.08.2017;

- O arresto revelou-se perfeitamente injustificado, sendo que, ao intentá-lo, a R. não agiu com a prudência normal a que alude o art. 374.º do CPC, vindo a causar a ruína do negócio da A.;

- Os três meses durante os quais se encontrou impedida de comercializar gás, acarretaram a perda de toda a clientela, privando-a das inerentes receitas resultantes das vendas de gás;

- Mercê do arresto injustificado a A. viu-se privada, até 2017, da quantia de € 404.762,90, relativa a lucros cessantes, que se encontrou impedida de gerar com a sua actividade, por causa do decretado arresto;

- Das 529 garrafas arrestadas, 319 estavam cheias de gás, em cuja aquisição a A. havia despendido a quantia de € 6.120,00, tendo direito a reaver o respectivo valor;

- Deve ainda a R. ser condenada a restituir à A. a quantia de € 22.402,09, relativa ao valor que recebeu em depósito pelas garrafas de gás que, ao longo da execução do contrato, lhe confiou para comercializar o gás, garrafas estas que entraram na posse da R.;

- O decretado arresto causou à A. dano reputacional, pelo qual reclama uma indemnização de valor não inferior a € 25.000,00;

- Na sequência do arresto, a R. accionou a garantia bancária em busca do recebimento da indemnização reclamada, junto do BPI, em 22.10.2008, tendo a A. sido posteriormente obrigada a pagar ao BPI todo o capital garantido, no valor de € 24.939,89.

Conclui, pedindo a condenação da R. a pagar à A.:

a) A quantia de € 404.762,90, relativa a lucros cessantes, de que se viu privada em consequência directa do injustificado arresto realizado a pedido da R..

b) Acrescida de juros de mora à taxa máxima legal das operações comerciais, a contar desde a citação;

c) A quantia de € 24.939,89, relativa à garantia bancária paga pela A. ao banco BPI.

d) A que acrescem juros moratórios, à taxa máxima legal relativa a operações comerciais, os quais, contabilizados até hoje, desde a data de realização do pagamento da garantia, ascendem a € 19.260,77.

e) A quantia de € 22.402,09, relativa à caução constituída pela A. junto da R., como garantia do valor das garrafas de gás que a mesma R. lhe confiava em depósito, para comercialização do gás encerrado no seu interior.

f) A que acrescem juros de mora até hoje vencidos, a calcular à taxa máxima legal, aplicável às operações comerciais, no valor de € 17.921,22, conforme alegado em 184. da p. i..

g) A quantia de € 6.120,00, relativa ao valor de aquisição do gás encerrado no interior das garrafas de gás arrestadas.

h) A que acrescem juros de mora até hoje vencidos, a calcular à taxa máxima legal, aplicável às operações comerciais, no valor de € 4.895,88.

i) A quantia de € 25.000,00, relativa à indemnização devida pelos danos não patrimoniais infligidos pela R., através do injustificado arresto.

j) A que acrescem juros de mora, à taxa máxima legal, para as operações comerciais, a contar da citação e até efectivo e integral pagamento.

A R. contestou, defendendo-se mediante a invocação, entre outros meios de defesa, da excepção de caso julgado, alegando que:

- Na referida acção em que a R. pedia a condenação da aqui A. no pagamento da quantia de € 1.073.761,32, sendo que € 777.163,00 eram devidos a título de indemnização por incumprimento e o restante a título de compensação pela não entrega de vasilhame propriedade da R., a aqui A. deduziu reconvenção pedindo a condenação da aqui R. no pagamento da quantia global de € 744.000,00 a título de indemnização por conta de prejuízos causados pela resolução ilícita do contrato, reconvenção esta que foi julgada totalmente improcedente;

- Com a presente, vem a aqui A. propor uma acção de forma a obter o resultado que lhe fora negado em sede de pedido reconvencional no referido processo;

- Embora elegendo como causa de pedir a falta de justificação e/ou caducidade da providência de arresto, os pedidos indemnizatórios são sustentados na resolução ilícita do contrato.

Pugna a final pela procedência da excepção com a consequente absolvição da instância.

A A. respondeu no sentido da improcedência da excepção de caso julgado, alegando, em síntese, o seguinte:

- A causa de pedir é distinta: a ilegalidade do arresto que, se prolongou durante quase três meses e, dada a dimensão com que foi decretado, impediu completamente a A. de continuar a exercer a sua actividade, o que deu causa à perda de toda a sua clientela, vendo cair de forma abrupta as respectivas receitas;

- Quanto ao pedido de condenação da R. na quantia de que esta se apropriou indevidamente, ao accionar, sem fundamento, a garantia bancária, tal diferença resulta de, o que temos é o incumprimento do próprio contrato de garantia, sendo que no primeiro processo não foi reconhecido à R. o direito garantido;

- Para além de assentar em distinta causa de pedir, este pedido indemnizatório não foi por si formulado no âmbito da reconvenção por si deduzida na 1ª acção;

- O mesmo se diga relativamente ao pedido de condenação da R. a pagar à A. o valor do gás encerrado nas garrafas arrestadas, danos que nada têm a ver com a acção anterior;

- O mesmo se diga quanto aos danos não patrimoniais causados pelo injustificado decretamento do arresto.


Em 29 de Novembro de 2019 foi proferido saneador-sentença no qual foi reconhecida a verificação da excepção de caso julgado, absolvendo-se a R. da instância.


Inconformada, interpôs a A. recurso para o Tribunal da Relação pedindo a reapreciação da decisão de direito. Por acórdão de 9 de Novembro de 2021 foi proferida a seguinte decisão:

«Pelo exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar a apelação parcialmente procedente, revogando-se a decisão recorrida, reconhecendo-se a verificação da exceção de caso julgado unicamente quanto ao pedido formulado sob a al. e) – quantia de 22.402,09€, relativa à caução que garantia o valor das garrafas confiadas em depósito à autora –, do qual a Ré vai absolvida da instância, determinando-se o prosseguimento da ação para conhecimento dos demais pedidos.». [negrito nosso]


2. Vem a R. interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:

«A. Existe plena identidade de sujeitos entre a presente ação e a ação que correu os seus termos sob o proc. n.º 2811/08.... (1.ª ação).

B. Os pedidos formulados na presente ação são substancialmente idênticos aos pedidos formulados na ação 2811/08…, tendo por isso sido objeto de apreciação naquela ação.

C. Em ambas as ações a ora Autora formula pedidos de condenação da ora Ré no pagamento de uma indemnização devida por incumprimento contratual.

D. Todos os danos alegados na presente ação estão de alguma forma compreendidos nos danos invocados na 1.ª ação.

E. A causa de pedir da presente ação e da 1.ª ação é idêntica – a resolução contratual.

F. Ainda que travestida a causa de pedir na presente ação é a resolução contratual, cujas consequências já foram alvo de apreciação na 1.ª ação.

G. O não reconhecimento da verificação da exceção de caso julgado coloca o Tribunal em risco de contradizer uma decisão jurisdicional já transitada.

H. O Acórdão recorrido violou, com efeito, o disposto nos arts. 577.º, 580.º, n.º 1, 2ª parte, e 581.º, n.ºs 1 a 4, todos do CPC.»

Termina pedindo a revogação do acórdão recorrido.


A Recorrida contra-alegou, pugnando pela inadmissibilidade do recurso e, subsidiariamente, pela sua improcedência.


3. Invoca a Recorrida a inadmissibilidade do recurso, à luz do disposto no n.º 1 do art. 671.º do Código de Processo Civil, afirmando que a decisão recorrida não conheceu do mérito da causa nem colocou fim ao processo, absolvendo o réu da instância.

Se não se presta a particular discussão que o acórdão recorrido não conheceu do mérito da causa nem colocou fim ao processo, absolvendo a R. da instância – tendo, ao invés, e para o que releva para o objecto do presente recurso, julgado improcedente uma excepção de natureza dilatória obstativa do conhecimento do mérito da causa (arts. 576.º, n.ºs 1 e 2 e 577.º, alínea i) do CPC), determinando o prosseguimento da acção –, a verdade é que a Recorrente alega ocorrer ofensa de caso julgado material, o que lhe permite interpor recurso nos termos do art. 629.º, n.º 2, alínea a), do CPC.

Tendo sido imputada ao acórdão recorrido ofensa de caso julgado material, o recurso é, pois, admissível ao abrigo do estatuído no art. 629.º, n.º 2, alínea a), do CPC.


4. O recurso tem por objecto unicamente a questão da verificação da excepção de caso julgado material.

5. Para a apreciação da excepção de caso julgado formado pela acção reconvencional enxertada pela aqui A. na 1ª acção que correu entre as partes, a 1.ª instância considerou resultarem dos autos essencialmente os seguintes factos (admitidos por acordo e por documento):

1. No âmbito do processo n.º 2811/08…, a ora Autora apresentou reconvenção contra a ora Ré onde pediu a sua condenação a pagar-lhe a quantia global de €744.000,00, tendo posteriormente reduzido o pedido para a quantia de €100.000,00.

2. Nos presentes autos, a Autora pede a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia global de €525.302,75.

3. No âmbito do processo n.º 2811/08...., para fundamentar o seu pedido reconvencional contra a ora Ré, a ora Autora alegou, que, para além dos factos referidos a propósito da contestação propriamente dita e que reproduz para efeitos da reconvenção (onde se destaca que a ora Autora aí alegou nos seus artigos 192.º, 193.º e 196.º que a ora Ré pretende destruir a ora Autora Vieiragás, asfixiando-a comercial e financeiramente através do arresto), para além da ora Ré ter procedido à resolução injustificada do contrato, fê-lo numa altura em que deveria vigorar pelo menos até 21/12/2010, sendo ainda expectável que tal contrato vigorasse até 21/12/2020, por isso a reconvinte poderia ainda beneficiar do ganho líquido da revenda do gás até pelo menos 21/12/2020, em valor não inferir a €600.000,00 e juros de 2008 a 2020 no montante de €144.000,00.

4. No âmbito dos presentes autos, para fundamentar o seu pedido contra a Ré, a Autora alegou, muito sinteticamente, que a Ré resolveu injustificadamente o contrato em causa no outro processo e intentou o procedimento cautelar de arresto, o qual foi decretado e concretizado contra bens da ora Autora; que mais tarde, em 06.01.2009, depois de deduzida oposição ao decretado arresto, pela Autora, esta e a Ré, então nas qualidades respectivas de arrestada e arrestante, celebraram uma transacção, nos termos da qual foi parcialmente reduzido o número de coisas arrestadas, como dela se vê, pese embora se tenham mantido arrestados o estabelecimento comercial de venda de gás, e todos os bens do seu activo imobilizado, bem como 529 garrafas de gás, das quais 319 estavam cheias de gás, encerrando todas elas 5.345 Kgs de gás, ficando sem efeito o arresto das receitas passadas e futuras da autora, bem como ficou sem efeito o arresto de todas as mercadorias que se encontravam na altura na posse da arrestada e que se destinavam a ser vendidas ou comercializadas no âmbito da sua actividade, tudo por forma a que a ora Autora pudesse, a partir de então, retomar a sua actividade; que assim a Autora ficou impedida de realizar a sua actividade de venda de gás durante 3 meses, invoca o decréscimo de vendas de gás de 2009 a 2017; que o arresto entretanto caducou e não tinha fundamento em virtude da ilícita resolução do contrato, que causou danos à ora Autora, tais como lucros cessantes até 2017, valor de garrafas de gás, garantia bancária accionada e dano reputacional.

Cumpre apreciar e decidir.

6. Da leitura conjugada dos arts. 580.º, n.º 1, 581.º e 619.º, n.º 1 e 621.º, n.º 1 do CPC, extrai-se a conclusão de que existe caso julgado quando há repetição de uma causa depois de a primeira ter sido decidida por decisão que não admite recurso ordinário.

Nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997, pág. 567):

«O caso julgado traduz-se na inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão por qualquer tribunal (incluindo aquele que a proferiu) em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso hierárquico.».

Quanto ao âmbito da sua eficácia, o caso julgado material apresenta uma eficácia simultaneamente intra e extraprocessual, incidindo, em regra, sobre questões de mérito cfr. Miguel Teixeira de Sousa, ob. cit., págs. 569 e seg.).

Como este Supremo Tribunal tem reiteradamente afirmado, a excepção dilatória de caso julgado pressupõe a identidade de sujeitos, de causas de pedir e de pedidos entre uma acção a correr termos e outra já decidida por decisão transitada em julgado. Cfr., a título exemplificativo, os acórdãos de 22.02.2018 (proc. n.º 18091/15.8T8LSB.L1.S1), não publicado, de 18.02.2021 (proc. n.º 3159/18.7T8STR.E1.S1), disponível em www.dgsi.pt, e de 23.02.2021 (proc. n.º 2445/12.4TBPDL.L1.S1), consultável em www.dgsi.pt.

Tal excepção dilatória tem associado um efeito negativo que, em homenagem aos princípios da economia processual e da segurança jurídica, impede que as mesmas partes proponham uma segunda acção com objecto coincidente com o de uma primeira, já apreciada com decisão transitada em julgado. Cfr., neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 07.03.2017 (proc. n.º 2772/10.5TBGMR-Q.G1.S1), in www.dgsi.pt, de 14.03.2017 (proc. n.º 3154/15.8T8PRT.S1), não publicado, de 21.02.2019 (proc. n.º 8009/15.3T8GMR.G1.S1), não publicado, de 26.02.2019 (proc. n.º 4043/10.8TBVLG.P1.S1), in www.dgsi.pt, e de 06.06.2019 (proc. n.º 276/13.3T2VGS.P1.S2), in www.dgsi.pt.

Para apreciar da verificação da excepção de caso julgado material, afastada pelo acórdão recorrido quanto a todos os pedidos formulados pela A., com excepção do pedido indicado na alínea e) da p.i., há que estabelecer o confronto entre o objecto da presente acção e o objecto da acção que correu termos sob o n.º 2811/08...., a fim verificar se ocorre identidade entre os respectivos pedidos e causas de pedir, e uma vez que a verificação do pressuposto da identidade subjectiva não oferece dúvidas.

A A., ora Recorrida, peticiona na presente acção – para além do valor indicado na alínea e), e conexo pedido indicado na alínea f) respeitante a juros moratórios, os quais não se encontram agora em discussão – a condenação da R., ora Recorrente: no pagamento da quantia de € 404.762,90, relativa a lucros cessantes, de que se viu privada em consequência directa do injustificado arresto realizado a pedido da R. (pedido da alínea a)); a condenação da R. no pagamento da quantia de € 24.939,89, relativa à garantia bancária paga pela ora A. ao banco BPI (pedido da alínea c)); a condenação da R. no pagamento da quantia de €6.120,00, relativa ao valor de aquisição do gás encerrado no interior das garrafas de gás arrestadas (pedido da alínea g)); a condenação da R. no pagamento da quantia de € 25.000,00, relativa à indemnização devida pelos danos não patrimoniais infligidos à A. pela R., através do injustificado arresto (pedido da alínea i)). Cumula cada um desses pedidos com o pedido de condenação da R. no pagamento dos respectivos juros de mora (pedidos alíneas b), d), h) e j)).

Alega a A., ora Recorrida, para fundamentar a sua pretensão, que celebrou com uma sociedade comercial denominada Esso (em cujos direitos e obrigações a aqui R., ora Recorrente, sucedeu) um contrato de distribuição, o qual veio a ser resolvido por parte da mesma R., ora Recorrente, a 22.07.2008, por alegado incumprimento contratual da A., ora Recorrida. Invocou, além disso, que, concomitantemente, em 05.08.2008, a ora Recorrente instaurou um procedimento cautelar de arresto contra a A. para garantia do pagamento da quantia de € 1.073.761,30, dos quais € 777.163,03 correspondiam à indemnização reclamada aquando da resolução do contrato, e € 296.598,26, ao valor de vasilhame (garrafas de gás) que, segundo a então requerente, estariam na posse da então requerida, depois de deduzido o valor caucionado por esta junto daquela, no montante de € 22.402,09. Acrescenta a ora A. Vieiragás que o arresto veio a ser decretado no âmbito do procedimento cautelar n.º 2277/08…, tendo sido apreendidos todos os bens móveis existentes no interior do seu estabelecimento comercial, todas as mercadorias que tinha em stock (destinadas a serem vendidas no exercício da sua actividade), assim como as receitas que fossem geradas pelo estabelecimento e todos os restantes créditos que constituíssem o seu activo.

Na petição inicial apresentada no presente processo, a ora Recorrida invocou, igualmente, que depois de deduzida oposição ao decretado arresto, as partes celebraram uma transacção, nos termos da qual foi parcialmente reduzido o número de bens arrestados, pese embora se tenham mantido arrestados o estabelecimento comercial de venda de gás, assim como todos os bens do seu activo imobilizado, bem como 529 garrafas de gás, das quais 319 estavam cheias de gás.

Alegou, por fim, a A., ora Recorrida, que o arresto decretado, e cuja caducidade veio a ser declarada pelo tribunal a 23.08.2017, se revelou infundado, tendo a acção do qual o mesmo se encontrava dependente, que correu termos sob o n.º 2811/08…, considerado ilícita a resolução do contrato operada pela aqui R., ora Recorrente, decidindo que não lhe assistia o direito de reclamar da ora Recorrida qualquer indemnização por incumprimento contratual. Concluiu a A. que tal arresto lhe causou avultados prejuízos (com destaque para a substancial perda de clientela) cuja reparação vem peticionar.

Por outro lado, no âmbito da reconvenção apresentada na acção n.º 2811/08...., a ora Recorrida pretendia ser ressarcida pelo prejuízo (na vertente dos lucros cessantes) causado pela resolução ilícita do contrato pela ora Recorrente, prejuízo esse que fez equivaler ao valor do lucro líquido anual de que deixou de beneficiar durante o período que iria até 21 de dezembro de 2020 (data até à qual seria expectável que vigorasse o contrato respeitante à venda de gás Esso) e que computou em € 600.000,00. A acrescer a este valor, peticionou a A., ora Recorrida, o pagamento de € 144.000,00, quantia equivalente aos juros que os capitais cuja obtenção resultou frustrada lhe proporcionariam, a uma taxa anual não inferior a 7%.

Os pedidos - que consubstanciam o efeito jurídico pretendido pelas partes - formulados nos dois pleitos são distintos: esta asserção afigura-se clara no que respeita aos pedidos elencados nas alíneas c), g) e i) da petição inicial apresentada no âmbito da presente acção (e conexos pedidos de juros moratórios elencados nas alíneas d), h) e j)), considerando que os mesmos não haviam sido formulados no âmbito da acção n.º 2811/08….

A afirmação de que as acções são distintas vale também quanto ao pedido formulado na alínea a) da presente acção, respeitante ao pagamento de lucros cessantes, uma vez que este pedido se reporta aos resultados líquidos que, de acordo com o alegado, teriam sido realizados, não apenas pela venda de gás Esso, mas também pela venda de gás Repsol (cfr. arts. 32.º e 33.º da petição inicial) no período temporal de cerca de dez anos (de 17.10.2008 a 2017), no decurso do qual a ora Recorrida viu a sua actividade prejudicada em decorrência do arresto decretado (cfr. arts. 72.º e 145.º da petição inicial), ao passo que, na acção n.º 2811/08…, o pedido reconvencional se reportava ao ressarcimento dos lucros que a ora Recorrida deixou de auferir com a venda de gás Esso (único a que se reportava o contrato) no período de cerca de 12 anos e meio que intercedeu entre a data da resolução do contrato (ocorrida a 22.07.2008) e a data de 21.12.2020.

Ainda que se conceda, como afirmado pela 1.ª instância, que os lucros cessantes a que se reportam os pedidos formulados nas duas acções sejam parcialmente sobreponíveis, tal circunstância não determina a identidade entre os objectos de ambas as acções.

Isto porque, como se observou no acórdão deste Supremo Tribunal, de 02-06-2020 (proc. n.º 2774/17.0T8STR.E1.S1), disponível em www.dgsi.pt:

«Sabendo-se que o objecto da acção reside na pretensão que o autor pretende ver tutelada e identificando-se esta através do direito a ser protegido por esse meio, a individualização do mesmo consubstancia-se não só através do seu próprio conteúdo e objecto (o pedido) como por meio do acto ou facto jurídico que se considere que lhe deu origem (causa de pedir) [3: Processo número 737/14.7TBRG.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt]. Consequentemente, a sentença a proferir nesses termos declarando determinado direito apenas tomará em conta o acto ou facto jurídico donde provenha. Está em causa a denominada teoria da substanciação que assume assento no nosso ordenamento jurídico e que, ao invés da teoria da individualização, exige sempre a indicação do título em que se fundamenta o direito afirmado pelo autor.». [negrito nosso]

Pode também ler-se no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-06-2017 (proc. n.º 737/14.7TBRG.G1.S1), consultável em www.dgsi.pt:

«II. Sendo a causa de pedir constituída pelo fundamento que sustenta a pretensão, existe diversidade desse elemento objectivo da instância quando na primeira acção o pedido de condenação no pagamento de uma quantia era baseado na celebração de um contrato de compra e venda em que o réu interveio como comprador e na segunda acção o mesmo pedido, formulado ao abrigo do art. 200º do CC, é fundada no facto de o réu ter integrado uma “comissão especial” em representação da qual foi celebrado o contrato de compra e venda.».

Assim como no sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-10-2019, (proc. n.º 998/17.0TBVRL.G1.S1), in www.dgsi.pt:

«I - O caso julgado negativo (improcedência) não preclude – contrariamente ao caso julgado positivo (procedência) – a propositura de ação subsequente fundada em diferente causa de pedir.

II - Em consequência, o julgamento improcedente de uma acção, onde a autora invocava a sua qualidade de locatária financeira para obter a condenação da seguradora no pagamento dos danos produzidos na máquina locada, não impede o julgamento de uma segunda acção, onde a autora invoca a sua qualidade de proprietária (por ter pago a totalidade das rendas e valor residual) e formula pedido idêntico ao anterior.».

Ora, retornando ao caso dos autos, e como se entendeu no acórdão recorrido, os factos alegados, constitutivos da obrigação de indemnizar, são distintos numa e noutra acção:

- Na presente acção integram a responsabilidade do requerente de providência cautelar injustificada prevista no art. 374.º, n.º 1 do Código de Processo Civil;

- Enquanto na acção reconvencional enxertada no processo n.º 2811/08…, a ora Recorrida imputava à ora Recorrente responsabilidade contratual, decorrente da ilícita resolução do contrato celebrado entre as partes (arts. 798.º e segs. do Código Civil).

Assim, e independente da posição assumida acerca da questão da natureza da responsabilidade civil prevista no art. 374.º do CPC, os factos alegados em cada uma das acções integram distintas causas de pedir.

A este propósito mostra-se oportuna a referência – que não passou despercebida ao tribunal a quo – ao conceito de causa de pedir operativo para efeitos de caso julgado, legalmente delineado no art. 581.º, n.º 4 do CPC, segundo uma acepção restrita que reconduz a tal conceito apenas os factos principais da causa (cfr. Rui Pinto, «Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias», in Julgar online, Novembro de 2018, pág. 8).

Mariana França Gouveia (A Causa de Pedir na Ação Declarativa, Almedina, Coimbra, 2019, pág. 497) afirma que, para efeitos de excepção de caso julgado, a causa de pedir se define:

«[A]través do conjunto de todos os factos constitutivos de todas as normas em concurso aparente que possam ser aplicadas ao conjunto de factos reconhecidos como provados na sentença transitada.».

É certo que, em ambas as causas, a ora Recorrida alega factos concernentes à resolução do contrato pela ora Recorrente, resolução essa que, no processo n.º 2811/08…, veio a ser considerada desprovida de fundamento legal. Tais factos, no entanto, assumem a veste de factos essenciais no âmbito daquela causa (integrando o respectivo núcleo essencial), enquanto, no presente pleito, os ditos factos não caracterizam o núcleo essencial da causa de pedir porque insusceptíveis de integrar a previsão normativa contida no n.º 1 do art. 374.º do Código de Processo Civil.

Como faz notar Teixeira de Sousa, (Preclusão e caso julgado[1], pág. 20):

«O autor não tem, no processo civil português, o ónus de alegar todas as possíveis causas de pedir do pedido que formula. Quer isto dizer que o ónus de concentração que vale para o réu quanto à matéria de defesa (cf. art. 573.º, n.º 1) não vale para o autor quanto às várias causas de pedir. É isso que justifica que, não tendo obtido a procedência da acção com base numa causa de pedir, o autor possa propor uma nova acção na qual venha a invocar uma diferente causa de pedir. Deste regime não se pode retirar, contudo, que sobre o autor não recai nenhum ónus de concentração. É verdade que esse ónus não se verifica quanto às várias possíveis causas de pedir que podem fundamentar o pedido, mas também não deixa de ser verdade que o autor tem um ónus de alegação de todos os factos que se referem à causa de pedir invocada na acção.».

Deste modo, ainda que se concluísse pela identidade parcial dos pedidos relativos à indemnização por lucros cessantes em ambas as causas, a ora Recorrida não se encontrava impedida de, por esta via, vir invocar uma nova causa de pedir assente na instauração injustificada do procedimento cautelar de arresto, na medida em que os factos que a integram não coincidem com a causa de pedir subjacente à reconvenção apresentada na acção n.º 2811/08…;

Sendo distintos os objectos das duas acções, conclui-se pela não verificação da excepção de caso julgado.

7. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 21 de Abril de 2021

Maria da Graça Trigo (relatora)

Maria Rosa Tching

Catarina Serra

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[1] In https://www.academia.edu/22453901/TEIXEIRA_DE_SOUSA_M._Preclus%C3%A3o_e_caso_julgado_02.2016