Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5979/12.7TBMTS.P1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: HELDER ROQUE
Descritores: LOTEAMENTO
TERRENO
CESSÃO DE TERRENOS
DOMÍNIO PÚBLICO
MUNICÍPIO
USUCAPIÃO
Data do Acordão: 04/10/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / SENTENÇA / ELABORAÇÃO DA SENTENÇA / RECURSOS RECURSO DE REVISTA / JULGAMENTO DO RECURSO.
DIREITO CIVIL –RELAÇÕES JURÍDICAS / COISAS / FACTOS JURÍDICOS / O TEMPO E A SUA REPERCUSSÃO NAS RELAÇÕES JURÍDICAS – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / AQUISIÇÃO DE PROPRIEDADE.
Doutrina:
-José Osvaldo Gomes, Loteamentos Urbanos, Direito do Urbanismo, INA, 1989, p. 396;
-Manual dos Loteamentos Urbanos, 2.ª Edição, revista, atualizada e ampliada, 1983, p. 67 a 97;
-Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, I, 2.ª reimpressão, 1966, p. 278, 281, 289, nota (1), 292 e 293;
-Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, I, 2.ª reimpressão, 1966, p.294 e 295;
-Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4.ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, p. 342;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4.ª Edição, revista e atualizada, com a colaboração de Henrique Mesquita, 1987, p. 192.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 5.º, 608.º, N.º 2, 609.º, 635.º, N.ºS 4 E 5, 639.º E 679.º.
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 202.º, N.ºS 1 E 2, 298.º, N.º 1 E 1316.º.
DL N.º 289/73, DE 6 DE JUNHO, REGULA A INTERVENÇÃO DAS AUTORIDADES ADMINISTRATIVAS RESPONSÁVEIS NAS OPERAÇÕES DE LOTEAMENTO: - ARTIGO 19.º, N.º 1.
DL N.º 400/84, DE 31 DE DEZEMBRO, NOVO REGIME JURÍDICO DAS OPERAÇÕES DE LOTEAMENTO URBANO: - ARTIGO 47.º, N.º 2.
DL N.º 448/91, DE 29 DE NOVEMBRO, APROVA O REGIME JURÍDICO DOS LOTEAMENTOS URBANOS: - ARTIGO 16.º, N.º 1.
Sumário :

    I - O loteamento consiste na realização de uma operação urbanística de divisão de um ou vários prédios, em parcelas autónomas (lotes), de qualquer área, unidades prediais essas destinadas, imediata ou subsequentemente, à construção, sujeita a prévia autorização ou licenciamento dos órgãos administrativos competentes e de que resultam alterações na titularidade, objeto e limites dos direitos reais que incidem sobre o prédio ou prédios em causa.

II - A operação de loteamento não gera, apenas, lotes urbanos, que é o estatuto jurídico que revestem as unidades prediais destinadas a edificação, mas, também, parcelas, em que se traduz o estatuto jurídico que assumem as áreas que, no loteamento, se destinam a zonas verdes, zonas de utilização coletiva, infra-estruturas e equipamentos, quer sejam cedidas ao município, quer permaneçam propriedade privada, embora com o estatuto especial de partes comuns dos lotes e dos edifícios que neles venham a ser erigidos.

III - Estas parcelas apresentam-se como condição imprescindível para que as construções a erigir nos lotes possam ser utilizadas de um modo, urbanisticamente, sustentável, quer do ponto de vista funcional, como é o caso das parcelas destinadas a infra-estruturas e equipamentos de utilização coletiva, quer do ponto de vista ambiental, paisagístico e do ordenamento do território, como sucede com as parcelas destinadas a espaços verdes ou a espaços de utilização coletiva, sendo certo que as aludidas parcelas apenas se justificam em função da edificabilidade prevista para cada um dos lotes.

IV - Em consequência da cedência obrigatória à Câmara Municipal, pelo requerente de um loteamento, de uma parcela de terreno destinada à instalação de um posto de transformação da EDP, identificada na planta, cuja área total afeta deveria integrar o domínio público, segundo as «condições a observar», previstas, expressamente, no alvará de loteamento, passa a pertencer ao domínio público, não só a área de terreno ocupada pelo posto de transformação da EDP, como, também, a parte sobrante da parcela em causa, não obstante, apenas, parte da parcela de terreno destinada a esse fim ter sido ocupada pela edificação do mesmo.

V - Tendo a parcela de terreno sido integrada no domínio público municipal, em consequência do contrato de cedência gratuita, está fora do comércio jurídico privado e, consequentemente, não é suscetível de ser adquirida pelos réus, designadamente, pelo decurso do tempo conducente à usucapião, não se provando, por seu turno, o seu reingresso no comércio jurídico privado, por força de degradação, desafetação ou desuso imemorial.

         

Decisão Texto Integral:

ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA[1]:

           AA, residente na ..., propôs a presente ação popular contra BB e CC, residentes na Rua ..., pedindo que, na sua procedência, seja ordenado aos réus que procedam à imediata desobstrução e desocupação da parcela de domínio público que, atualmente, ocupam, permitindo a utilização pública da referida parcela e limitando a sua atuação, enquanto proprietários ou possuidores, à parcela de terreno adquirida, por compra, aos pais da ré.

A autora alega, para o efeito, que é dona e legítima possuidora do prédio urbano, sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º 2493, encontrando-se no pleno uso dos seus direitos civis.

Por sua vez, os réus são donos e legítimos possuidores de um prédio rústico, em que se encontra implantada uma edificação não licenciada, descrito na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos, sob o n.º 2075.

Os limites da propriedade da autora ficaram definidos, através do loteamento n.º 358, efetuado em 28 de fevereiro de 1985, nos termos aprovados pela Câmara Municipal de Matosinhos.

A propriedade atual dos réus resulta de um destaque efetuado, no prédio urbano descrito sob o n.º 55485, Livro 162, atual n.º 2074, sendo que a propriedade destes foi adquirida, por contrato de compra e venda, celebrado entre a ré Maria Helena e os pais desta.

Conforme consta do loteamento aprovado pelos serviços competentes, existe uma parcela, perfeitamente, definida, destinada a domínio público, que confronta com a propriedade dos réus, com a propriedade de DD e com a propriedade da autora, sendo que parte dessa parcela foi ocupada com a instalação de um posto de transformação da EDP, tendo permanecido por ocupar uma área sobrante da mesma com, aproximadamente, 6 m2.

Essa parte sobrante, durante alguns anos, foi utilizada para acesso da autora à parte exterior da parede da sua casa, que confronta com ela, o que permitia a realização de qualquer empreitada de manutenção ou reparação que se impusesse, dos pais da ré e do proprietário DD à parte exterior do muro de delimitação da propriedade, e ainda a qualquer pessoa que aí pretendesse aceder.

Sucede que, ainda antes da aquisição da referida propriedade da ré a seus pais, foi aberto um acesso no muro de delimitação da propriedade, na parte confrontante com o terreno que, após o loteamento, foi destinado a domínio público, no local em que, anteriormente, se encontrava erigido um alpendre construído pelos pais da ré, o que passou a permitir o acesso destes à sua propriedade, pelo referido terreno.

Também, ainda antes da aquisição da parcela destacada pela ré, durante o ano de 1992, os réus iniciaram uma edificação, no local, em que, anteriormente, se situava o alpendre, tendo, por essa altura, passado a impedir o acesso de terceiros ao terreno destinado a domínio público. Depois da venda da parcela destacada à ré, ocorrida em 31 de outubro de 1996, na sequência de destaque autorizado, em 18 de janeiro de 1996, os réus prosseguiram a edificação da sua residência atual, passando a utilizar como acesso à mesma o referido acesso pelo terreno destinado a domínio público.

Embora tenha existido um processo de licenciamento da construção supra-referida na propriedade dos réus, a verdade é que, nem mesmo esse projeto incluía ou podia incluir a referida área sobrante destinada a domínio público, antes limitava a ocupação dos réus ao limite da sua propriedade.

Concretamente, durante o ano de 1992, os réus resolveram construir um muro, na área sobrante da parcela destinada a domínio público, de modo a impedir o acesso do proprietário DD, à parte exterior do muro de sua propriedade, ou de qualquer outra pessoa a tal área. Além disso, na mesma altura, fazendo uso do muro propriedade da autora, instalaram um portão, do qual, apenas, os réus detêm a chave, na confrontação da área destinada a domínio público com a Rua ....

 A instalação deste portão impediu qualquer utilização por terceiros da área destinada a domínio público, tendo os réus passado a utilizar a referida parcela como pátio de acesso à edificação, interiorizando e criando a ilusão de que a área destinada a domínio público faz parte integrante da sua propriedade.

 De modo a alicerçar tal ilusão de domínio, os réus construíram, na referida área de domínio público, uma escada de acesso à sua propriedade, uma vez que existia um desnível entre esta e a área destinada a domínio público, e cimentaram todo o pavimento da referida área, pintando, inclusivamente, de forma homogénea, a sua propriedade, a área destinada a domínio público e a parte exterior da parede da autora, além de terem instalado uma campainha, na parede da autora e portão supra-referido.

Procedeu-se à citação dos réus e foi cumprido o disposto no artigo 15º, da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto.

Na contestação, os réus defendem-se, por exceção, alegando que a ré adquiriu o direito de propriedade, no estado civil de solteira, e, sendo os réus casados, sob o regime da separação de bens, o prédio é um seu bem próprio, pelo que o réu marido é parte ilegítima, devendo, como tal, ser absolvido da instância.

Defendem ainda que os factos que a autora carreia para os autos são insuficientes para, admitindo que se venham a provar, se concluir pela usurpação de um bem pertencente ao domínio público, pois que ressumam a interesse particular e privado, razão pela qual inexiste causa de pedir que suporte uma verdadeira ação popular, sendo patente a ineptidão da petição inicial, com a consequente anulação do processo e a absolvição da ré da instância.

Os réus defendem-se, também, e, por impugnação, referindo que, no ano de 2002, a autora instaurou contra eles a ação ordinária, com o n.º 1117/2002, que correu termos, pelo 5.º Juízo Cível desta comarca, na qual discutia o facto de os réus, ou anteriores proprietários, terem cravado, no seu muro, os chumbadouros que suportam um portão, que foi ali colocado, no ano de 1986, e que fecha do lado oposto, junto do posto de transformação da EDP, implantado no local.

Na sentença proferida naquele processo declarou-se constituída, a favor do prédio da ré, uma servidão inominada sobre o prédio da autora, que consiste em que o muro do prédio da autora sirva de apoio ao portão dos réus que veda o acesso, a partir da via pública (Rua ...), ao prédio dos réus, sendo esse portão que a autora sustenta, na presente ação, que subtrai uma parcela ao domínio público.

Porém, continuam os réus, nunca no loteamento, a que alude a autora, se considerou a referida parcela como do domínio público, nunca a autora usou aquela parcela para qualquer dos fins por si referidos, nomeadamente, para permitir o acesso à parte exterior do muro de delimitação da sua propriedade, sendo falso o alegado pela autora, no que respeita à construção pelos réus de um muro que impeça o acesso de quem quer que seja à sua propriedade, quanto à colocação do portão que delimita a propriedade da ré mulher e, também, que os réus tenham ocupado qualquer parcela do domínio público.

No despacho saneador, decidiu-se que a petição inicial não enferma de ineptidão e que o réu marido é parte legítima.

A sentença julgou a ação, totalmente, improcedente e, em consequência, absolveu os réus do pedido.

Desta sentença, a autora interpôs recurso, tendo o Tribunal da Relação julgado a apelação, “dando provimento ao recurso e, em consequência, revogando a decisão recorrida e determinando que os réus procedam à imediata desobstrução e desocupação da parcela em questão, permitindo a utilização pública da referida parcela e limitando a sua actuação à parcela de terreno adquirida aos pais da ré”.

Do acórdão da Relação do Porto, os réus interpuseram agora recurso de revista, para este Supremo Tribunal de Justiça, pedindo que o mesmo seja revogado, confirmando-se a decisão proferida em 1ª instância, concluindo as alegações com a formulação das seguintes conclusões que, integralmente, se transcrevem:

1ª – O acórdão de que com este se recorre revogou a sentença proferida em primeira instância, e condenou os réus no pedido;

2ª – Para tanto, a decisão recorrida sustentou-se e fundamentou-se na norma do artigo 44º do DL nº 555/99, de 16 de dezembro;

3ª – Aquela norma, e aquele diploma, não se aplicam ao loteamento que nos presentes autos se discute; Efetivamente,

4ª – O referido loteamento foi aprovado por deliberação municipal de 22 de junho de 1983 e o alvará emitido em 28 de fevereiro de 1985;

5ª – Nestas datas estava em vigor, e regulava a matéria de constituição de loteamentos urbanos o DL nº 289/73 de 6 de junho, que continuou a aplicar-se aos loteamentos autorizados na sua vigência e, mesmo, aos requeridos no período da sua vigência, como resulta do artigo 88º do DL 400/84 de 31 de dezembro, que o revogou;

6ª – Aquele diploma não previa a integração no domínio público para além das necessárias à implantação dos equipamentos coletivos do loteamento, como é o caso do posto de transmissor;

7ª – O próprio alvará emitido não impõe a integração no domínio público de quaisquer parcelas de terreno para além das ditas áreas de implantação.

8ª – Ao aplicar à decisão da questão noma que não existia à data da deliberação de autorização e emissão do alvará, o acórdão agora recorrido violou a norma do artigo 12º do Código Civil; e

9ª – Porque não considerou para a decisão da causa o regime jurídico consagrado pelo DL nº 289/73 de 6 de junho, e nomeadamente o disposto no seu artigo 19º, a decisão recorrida violou esta norma.

Nas suas contra-alegações, a autora conclui no sentido de que deve ser mantida a decisão proferida pelo Tribunal da Relação.

O Tribunal da Relação entendeu que se devem considerar demonstrados os seguintes factos, que este Supremo Tribunal de Justiça aceita, nos termos das disposições combinadas dos artigos 674º, nº 3 e 682º, nº 2, do Código de Processo Civil (CPC), mas reproduz:

1. Encontra-se descrito, na CRP de Matosinhos, sob o n.º ..., da freguesia da Senhora da Hora, o prédio urbano, sito na Rua ..., inscrito na matriz predial urbana, sob o n.º 5284.

2. Encontra-se descrito, na CRP de Matosinhos, sob o n.º ..., da freguesia da Senhora da Hora, o prédio rústico, sito na Rua Egas Moniz, com a área de 217 m2, aí inscrito, a favor da ré mulher, por "compra".

3. O prédio, a que se alude em 2., resultou da desanexação do ....

4. Mediante escritura pública, outorgada no dia 24 de julho de 1996, EE e mulher, FF, outorgando o marido, por si e na qualidade de procurador de GG e mulher, HH, declararam vender à aqui ré mulher, sua filha, a qual declarou aceitar a venda, "uma parcela de terreno destinada a construção, com a área de duzentos e dezassete metros quadrados, sito na Rua ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de Matosinhos sob o número dois mil e setenta e cinco, omissa à respectiva matriz, mas já feita a participação para a sua inscrição em dezoito de Março último ( ... )".

5. No prédio, a que se alude em 2., encontra-se implantada uma edificação, sem licença de utilização.

6. O prédio, a que se alude em 2. e 3., encontra-se inscrito, na matriz predial urbana, sob o artigo 4809.

7. Os limites do prédio, a que se alude em 1., ficaram definidos, através do loteamento n.º 358, efetuado em 28 de fevereiro de 1985, nos termos aprovados pela Câmara Municipal de Matosinhos.

8. Em 1986, os réus, fazendo uso do muro do prédio, a que se alude em 1., instalaram um portão do qual, apenas, eles detêm a chave, com, aproximadamente, 2 metros de altura por 1 metro de largura.

9. Os réus instalaram uma campainha, na parede do prédio, a que se alude em 1., junto ao portão, referido em 8.

10. Teor do documento, denominado "Certidão", com data de 26 de junho de 1996, junto aos autos, por cópia a fls. 47, do qual consta, designadamente: "Mais se certifica que nenhuma decisão foi tomada sobre a matéria em apreço, porque a referida parcela de terreno não pertence ao domínio municipal não competindo, deste modo, à Câmara Municipal provocar qualquer acção judicial.".

11. Consta do aditamento ao alvará de loteamento, referido em 7., junto a fls. 52, a existência de uma parcela de terreno destinada à instalação de um posto de transformação, a qual confronta com o prédio, a que se alude em 2., com a propriedade de DD, e com o prédio, a que se alude em 1., sendo que do alvará de loteamento, nas "Condições a observar", consta que "! ... ) Serão integrados no domínio público todas as áreas de ( ... ) posto de transformação ( . . .]".

12. Parte da parcela de terreno, identificada em 11., foi ocupada pela edificação de um posto de transformação da EDP.

13. Permaneceu por ocupar uma área sobrante da parcela de terreno, identificada em 11., com, aproximadamente, 4,65 m2.

14. A parte sobrante da área da parcela de terreno, identificada em 11., permitia a realização, na parte exterior da parede da casa, a que se alude em 1., confrontante com a mencionada área, de qualquer empreitada de manutenção ou reparação que se impusesse.

15. Permitia aos pais da ré e ao proprietário DD o acesso à parte exterior do muro de delimitação das respetivas propriedades, na parte confrontante com a mencionada área.

16. Permitia o acesso a qualquer pessoa que aí pretendesse aceder.

17. Em data anterior à da realização da escritura pública, a que se alude em 4., foi efetuada uma abertura no muro de delimitação do prédio, referido em 2., na parte confrontante com a parcela de terreno, identificada em 11.

18. A abertura foi efetuada, no local em que, anteriormente, se encontrava erigido um alpendre construído pelos pais da ré.

19. A abertura permitia o acesso dos pais da ré ao prédio, a que se alude em 2., pela parcela de terreno, identificada em 11.

20. Antes da realização da escritura pública, a que se alude em 4., em data não, concretamente, apurada, mas não posterior a julho de 1993, foi iniciada, no prédio do qual foi desanexado o prédio identificado em 2., no local onde, anteriormente, se situava o alpendre, referido em 18., uma edificação.

21. Com a colocação do portão, referido em 8., resultou impedido o acesso de terceiros à parcela de terreno, identificada em 11.

22. Depois da realização da escritura pública, a que se alude em 4., na sequência de destaque autorizado, em 18 de janeiro de 1996, a ré prosseguiu a edificação da sua residência atual, passando a utilizar como acesso à mesma a parcela, identificada em 11.

23. Embora tenha existido um processo de licenciamento da construção no prédio, a que se alude em 2., o mesmo não incluía a área sobrante da parcela de terreno, identificada em 11.

24. O portão, referido em 8., foi colocado na confrontação da área da parcela de terreno, identificada em 11., com a Rua ....

25. A instalação do portão, identificado em 8., passou a impedir qualquer utilização de terceiros da área da parcela, referida em 11.

26. Os réus passaram a utilizar a parcela de terreno, identificada em 11., como parte integrante da edificação, concretamente, como área de acesso à referida edificação.

27. A ré construiu, na área da parcela de terreno, identificada em 11., uma escada de acesso ao prédio, a que se alude em 2., uma vez que existia um desnível entre esse prédio, antes da abertura de acesso ao mesmo, e a área da parcela, identificada em 11.

28. A ré cimentou todo o pavimento da área da parcela de terreno, identificada em 11.

29. A ré pintou, de forma homogénea, o prédio, a que se alude em 2., a área da parcela, identificada em 11., e a parte exterior da parede do prédio, a que se alude em 1., que confronta com a parcela, identificada em 11.

Declararam-se como factos não provados:

1. A parte sobrante da área da parcela de terreno, identificada em 11., durante anos, foi utilizada para acesso da autora à parte exterior da parede da casa, a que se alude em 1., confrontante com a mencionada área.

2. Durante o ano de 1992, os réus resolveram construir um muro, na área sobrante da parcela de terreno, identificada em 11., de modo a impedir o acesso do proprietário DD à parte exterior do muro de sua propriedade ou de qualquer outra pessoa a tal área.

3. O muro tinha, aproximadamente, 2,5 metros de altura por 1 metro de largura.

4. Os réus colocaram plantas ornamentais, na parcela de terreno, identificada em 11.

                                                                  *

Tudo visto e analisado, ponderadas as provas existentes, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.

As questões a decidir, na presente revista, em função das quais se fixa o objeto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 5º, 608º, nº 2, 609º, 635º, nºs 4 e 5, 639º e 679º, todos do CPC, são as seguintes:

I – A questão da determinação da lei aplicável ao loteamento dos autos.

II – A questão da área integrante do domínio público da parcela objeto de loteamento.

                                 I.DA LEI APLICÁVEL AO LOTEAMENTO

Os loteamentos urbanos foram, sucessivamente, regulados, até ao Regime Jurídico da Urbanização e Edificação, atualmente, em vigor, a que se reporta o DL nº 555/99, de 16 de dezembro, pelo DL n° 46673, de 29 de novembro de 1965, pelo DL n° 289/73, de 6 de junho, pelo DL n° 400/84, de 31 de dezembro, e pelo DL n.º 448/91, de 29 de novembro.

O alvará de loteamento nº 358, em análise nos autos, foi emitido, em conformidade com o disposto pelo artigo 19º, do DL nº 289/73, de 6 de junho, tendo sido autorizado, em reunião da Câmara Municipal de Matosinhos, realizada em 22 de junho de 1983, e registado, na mesma entidade municipal, a 28 de fevereiro de 1985, como resulta do teor do documento de folhas 23 a 29.

Com efeito, tendo o DL nº 289/73, de 6 de junho, sido revogado pelo DL nº 400/84, de 31 de dezembro, este entrou em vigor sessenta dias após a sua publicação, ou seja, a 1 de março de 1985, para além de que os pedidos de loteamento formulados, anteriormente, à entrada em vigor deste último diploma, regular-se-ão pelo prescrito no DL n.º 289/73, de 6 de Junho, e respetiva legislação complementar, e pelo estipulado no DL n.º 342/79, de 27 de agosto, quando exercidas as faculdades no mesmo previstas, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 84º, nºs 1 e 2, a) e b) e 85º, nº 1, ambos do supramencionado DL nº 400/84, de 31 de dezembro.

Assim sendo, tendo o DL nº 400/84, de 31 de dezembro, entrado em vigor, em 1 de março de 1985, e tendo o alvará de loteamento nº 358, em análise nos autos, sido passado de harmonia com o disposto pelo artigo 19º, do DL nº 289/73, de 6 de junho, sendo autorizado, em reunião da Câmara Municipal de Matosinhos, realizada em 22 de junho de 1983, e registado na mesma entidade municipal, a 28 de fevereiro de 1995, é este último, inequivocamente, o diploma legal aplicável à situação material controvertida.

II. DA ÁREA INTEGRANTE NO DOMÍNIO PÚBLICO DA PARCELA OBJETO DE LOTEAMENTO

II.1. Os réus alegam, neste particular, que o DL nº 289/73, de 6 de junho, entretanto, declarado aplicável, não previa a integração no domínio público das áreas não necessárias à implantação dos equipamentos coletivos do loteamento, como é o caso do posto de transmissor, nem o próprio alvará emitido o impõe, razão pela qual ao aplicar à decisão da questão em apreço norma que não existia, à data da deliberação de autorização e emissão do alvará, o acórdão recorrido violou o disposto no artigo 12º, do Código Civil.

A sentença proferida em 1ª instância considerou na sua fundamentação que “conjugando o teor do alvará de loteamento e respetivo aditamento com o teor da certidão acabada de mencionar, entendeu-se que o alvará de loteamento apenas determina que passa a pertencer ao domínio público a concreta área de implantação do posto de transformação no solo, já não a área sobrante da parcela que de acordo com o aditamento ao alvará estava destinada a essa edificação e que não veio a ser necessária”.

 E, assim, concluiu a sentença que, não tendo a autora logrado demonstrar que a parcela de terreno sobrante, destinada à edificação do posto de transformação, integrava o domínio público, a ação é julgada improcedente, sendo esta, igualmente, a posição dos réus recorrentes.

Por seu turno, o acórdão recorrido entendeu, diferentemente, considerando que “foi cedida uma determinada parcela para a instalação de um posto de transformação que foi construído nessa parcela e, consequentemente, toda a parcela assim destinada passou para o domínio municipal, por força do preceituado pelo artigo 44º do DL nº 555/99, de 16 de dezembro, apesar do posto de transformação não a ocupar, totalmente, porquanto o que reverte para o domínio municipal é a parcela enquanto tal, independentemente da área nela construída não a abranger na totalidade”, sendo esta, também, a posição da autora recorrida.

II.2. Ora, com a entrada em vigor do DL nº 289/73, de 6 de junho[2], que já se definiu como sendo a lei aplicável à decisão da questão em apreço, alargou-se o conceito de loteamento que, tal como estava formulado, deixava à margem de qualquer disciplina uma série de situações que, não se concretizando através de contratos de venda ou locação, logravam, na prática, os mesmos efeitos.

Porém, não se estabeleceu o conceito de loteamento urbano, muito embora o artigo 1º, do mesmo diploma legal, ao delimitar o seu campo de aplicação, estatuísse que "a operação que tenha por objeto ou simplesmente tenha como efeito a divisão em lotes de qualquer área de um ou vários prédios, situados em zonas urbanas ou rurais, e destinados imediata ou subsequentemente à construção, depende de licença da câmara municipal da situação do prédio ou prédios, nos termos do presente diploma".

O loteamento consiste, assim, na realização de uma operação urbanística de divisão de um ou vários prédios, em parcelas autónomas [lotes], de qualquer área, unidades prediais destinadas, imediata ou subsequentemente, à construção, sujeita a prévia autorização ou licenciamento dos órgãos administrativos competentes e de que resultam alterações na titularidade, objeto e limites dos direitos reais que incidem sobre o prédio ou prédios em causa[3].

Dispunha ainda o artigo 19º, nº 1, do DL nº 289/73, de 6 de junho, que “a licença de loteamento será titulada por alvará, do qual constarão sempre…as condições a que ficam obrigados o requerente, ou aqueles que tomarem a posição de titular do alvará, e, na parte aplicável, os adquirentes dos lotes”, acrescentando o seu nº 2 que “sem prejuízo do disposto no nº 1 do artigo 13.º, o Ministro das Obras Públicas fixará, em portaria, as áreas mínimas a ceder às câmaras municipais para instalação dos equipamentos gerais destinados a servir os loteamentos urbanos”.

A licença de loteamento seria titulada por alvará, do qual constariam as prescrições a que o requerente ficava sujeito, "e designadamente os condicionamentos de natureza urbanística, entre eles o traçado da rede viária, espaços livres e arborizados, parques de estacionamento, zonas comerciais ou industriais e desportivas..." (artigo 6º, nº 1), prescrições essas que obrigavam "todos os que tomarem a posição do titular do alvará e, na parte aplicável, também os adquirentes dos lotes" (artigo 6º, nº 2, do DL nº 289/73, de 6 de junho).

A operação de loteamento não gera, apenas, lotes urbanos, que é o estatuto jurídico que revestem as unidades prediais destinadas a edificação, mas, também, parcelas, em que se traduz o estatuto jurídico que assumem as áreas que, no loteamento, se destinam a zonas verdes, zonas de utilização coletiva, infraestruturas e equipamentos, quer sejam cedidas ao município, quer permaneçam propriedade privada, embora com o estatuto especial de partes comuns dos lotes e dos edifícios que neles venham a ser erigidos.

Estas parcelas apresentam-se como condição imprescindível para que as construções a erigir nos lotes definidos possam ser utilizadas de um modo, urbanisticamente, sustentável, quer do ponto de vista funcional, como é o caso das parcelas destinadas a infra-estruturas e a equipamentos de utilização coletiva, quer do ponto de vista ambiental, paisagístico e do ordenamento do território, como sucede com as parcelas destinadas a espaços verdes ou a espaços de utilização coletiva, sendo certo que as aludidas parcelas apenas justificam a sua razão de existência em função da edificabilidade prevista para cada um dos lotes.

Com efeito, ê o loteamento que, ao transformar os prédios em lotes urbanos, determina uma sobrecarga urbanística justificadora destas mesmas áreas e respetivo dimensionamento, sendo sua finalidade última garantir a qualidade de vida dos futuros residentes ou utentes da área loteada.

II.3. Seguidamente, nesta matéria de loteamento urbano, o artigo 42º, c), do DL nº 400/84, de 31 de dezembro[4], entretanto, entrado em vigor, preceituava que “o proprietário e os demais titulares de direitos reais sobre o terreno objeto da operação de loteamento cederão à câmara municipal, obriga­toriamente, a título gratuito, as parcelas de terreno devidamente assinaladas na planta de síntese rela­tivas a equipamentos públicos, tais como os destinados a educação, saúde, assistência, cul­tura e desporto, a superfícies verdes para convívio, recreio e lazer e bem assim a parques de estacionamento”, enquanto que o seu artigo 47º, nº 1, dispunha que “o licenciamento das operações de loteamento e das obras de urbanização é titulado por alvará”, acrescentando o correspondente nº 2 que “as condições estabelecidas no alvará vinculam o proprietário do prédio ou prédios a que o mesmo se refere e, na parte aplicável, os adquirentes dos lotes”, devendo o alvará “especificar[á] obrigatoriamente as cedências obrigatórias e especificar[ção] [d]as parcelas a integrar respetivamente no do­mínio público ou privado municipal”, segundo o estipulado pelo artigo 48º, nº 1, f), do mesmo diploma legal, contendo o alvará, em anexo, segundo o seu nº 2, “as plantas confirmativas dos elementos referidos nas alíneas e) e f), bem como o contrato de urbanização, se for caso disso".

Por sua vez, o artigo 16º, nº 1, do DL nº 448/91, de 29 de novembro, sucessivamente, vigente, prescrevia que “o proprietário e os demais titulares de direitos reais sobre o prédio a lotear cedem gratuitamente à câmara municipal parcelas de terreno para espaços verdes públicos e de utilização coletiva, infra-estruturas, designadamente arruamentos viários e pedonais, e equipamentos públicos, que, de acordo com a operação de loteamento, devam integrar o domínio público”, acrescentando o seu nº 2 que “as parcelas de terreno cedidas à câmara municipal integram-se automaticamente no domínio público municipal com a emissão do alvará e não podem ser afetas a fim distinto do previsto no mesmo,…”, contendo o alvará, de acordo com o disposto no artigo 29º, nº 1, f), “a especificação das cedências obrigatórias, sua finalidade e especificação das parcelas a integrar no domínio público da câmara municipal”.

Assim sendo, as condições a que ficou obrigado o requerente do loteamento ajuizado, ou aqueles que, subsequentemente, tomaram a posição de titulares do alvará, correspondem às prescrições constantes dos artigos 19º, nº 1, do DL nº 289/73, de 6 de junho, 47º, nº 2, do DL nº 400/84, de 31 de dezembro, e 16º, nº 1, do DL nº 448/91, de 29 de novembro, que, sobre esta matéria, se sucederam no tempo.

Entre as condições a que ficou obrigado o requerente do loteamento, ou aqueles que, posteriormente, tomaram a posição de titulares do alvará, contam-se as especificações respeitantes a cedências obrigatórias à câmara municipal, a título gratuito, das parcelas de terreno a integrar, respetivamente, no do­mínio público ou privado municipal, devidamente, assinaladas, na planta de síntese, rela­tivas a equipamentos públicos, tais como os destinados a superfícies verdes para convívio, recreio e lazer e bem assim como a parques de estacionamento, cujo cumprimento vincula o proprietário do prédio, integrando-se as parcelas de terreno cedidas à câmara municipal, automaticamente, com a emissão do alvará, no domínio público municipal, não podendo ser afetas a fim distinto do previsto no mesmo.

Até à entrada em vigor do DL n.º 448/91, de 29 de novembro, essas parcelas eram sempre e, obrigatoriamente, cedidas ao município, pelo que o DL nº 289/73, de 6 de junho, diploma em vigor no momento da aprovação do loteamento titulado pelo alvará n.º 358, previa, nos seus artigos 19.°, nºs 1 e 2 e 6º, nº 1, que o requerente da operação de loteamento, em relação ao terreno objeto do mesmo, devia ceder à câmara municipal as áreas mínimas para instalação dos equipamentos gerais destinados a servir os loteamentos urbanos, atendendo, designadamente, aos condicionamentos de natureza urbanística, entre eles, o traçado da rede viária, os espaços livres e arborizados, os parques de estacionamento, as zonas comerciais ou industriais e desportivas.

Com efeito, o alvará de loteamento previa, expressamente, como «condições a observar» pelo requerente, que “4 – Serão integrados no domínio público todas as áreas de arruamentos, passeios, baías de estacionamento, posto de transformação e placas ajardinadas”, acrescentando que “para instalação de equipamentos gerais são cedidas as parcelas identificadas na planta a que se refere o nº 1”.

II.4. Efetuando uma análise crítica da factualidade mais relevante que ficou demonstrada, importa enfatizar que, no aditamento ao alvará de loteamento, consta a existência de uma parcela de terreno destinada à instalação de um posto de transformação, cedida pelo requerente à Câmara Municipal de Matosinhos, a qual, segundo as «Condições a observar», aludidas no mesmo documento, “será integrada no domínio público por todas as áreas de ( ... ) posto de transformação”.

Com efeito, apenas parte da parcela de terreno destinada à instalação de um posto de transformação da EDP foi ocupada pela edificação do mesmo, permanecendo liberta, isto é, por ocupar, uma área sobrante da mesma parcela de terreno, com, aproximadamente, 4,65 m2.

Por outro lado, embora tenha existido um processo de licenciamento da construção do prédio dos réus, no mesmo não se incluía a sobredita área sobrante da parcela de terreno destinada à instalação do posto de transformação da EDP, que estes passaram a utilizar, como parte integrante dessa sua edificação, concretamente, como área de acesso à mesma, sendo que a instalação de um portão pelos réus, do qual eles, apenas, detêm a chave, passou a impedir qualquer utilização, por terceiros, sobre a área remanescente da referida parcela.

Certo é que, por seu turno, consta do teor do documento de folhas 47, com data de 26 de junho de 1996, designadamente, "Mais se certifica que nenhuma decisão foi tomada sobre a matéria em apreço, porque a referida parcela de terreno não pertence ao domínio municipal não competindo, deste modo, à Câmara Municipal provocar qualquer acção judicial".

Porém, em outro documento, emanado do mesmo Município de Matosinhos, com data posterior de 8 de março de 2005, subscrito pelo respetivo Diretor Municipal, cujo teor não foi impugnado, consta que «Existe um portão que separa o espaço do lote do espaço exterior que, pela sua localização “interioriza” uma pequena área que no âmbito do Alvará de Loteamento seria a integrar no Domínio Público».

Efetivamente, a parcela de terreno cedida, obrigatoriamente, pelo requerente do loteamento à Câmara Municipal de Matosinhos, destinada à edificação de um posto de transformação da EDP, cuja área total deveria integrar o domínio público, apenas foi ocupada, parcialmente, para esse fim, permanecendo liberta e por ocupar uma área sobrante da mesma parcela de terreno, com, aproximadamente, 4,65 m2.

Contudo, como acabou de se considerar, e os réus enfatizam, em 1996, a requerimento de DD, que pretendia que a Câmara Municipal provocasse uma ação judicial com vista à afirmação da dominialidade da sobredita parcela de terreno sobrante, a mesma edilidade certificou que “…a referida parcela de terreno não pertence ao domínio municipal…”, para, em documento posterior de 2005, subscrito pelo respetivo Diretor Municipal, ficar a constar que aquela pequena área, aludida no âmbito do Alvará de Loteamento, «seria a integrar no Domínio Público».

Ora, os réus, no decurso do presente processo, nomeadamente, na contestação, constroem a sua tese com a alegação de que a referida parcela sobrante é um bem particular de sua propriedade, embora sem invocarem a causa da respetiva aquisição, não obstante “o domínio público ser integrado por todas as áreas de ( ... ) posto de transformação”, consoante constava do alvará de loteamento em que aquela parcela se incluía.

II.5. Tudo o que pode ser objeto de relações jurídicas é uma coisa, segundo dispõe o artigo 202º, nº 1, do Código Civil (CC), ou melhor, as coisas, em sentido jurídico, são «os bens (ou os entes), desprovidos de personalidade e não integradores do conteúdo necessário desta, suscetíveis de constituírem objeto de relações jurídicas»[5], mas consideram-se “fora do comércio todas as coisas que não podem ser objeto de direitos privados, tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza, insuscetíveis de apropriação individual”, atento o preceituado pelo artigo 202º, nº 2, do CC.

As coisas do domínio público são coisas fora do comércio, por disposição da lei, ou seja, aquelas que não sendo, materialmente, impossível a sua apropriação, e que, por sua natureza, poderiam ser apropriadas, a lei declara irredutíveis a propriedade privada.

O critério geral da dominialidade ou da qualidade das coisas públicas consubstancia-se na inalienabilidade e na imprescritibilidade do uso público a que as mesmas estão afetadas, a fim de não prejudicar a continuidade da satisfação das necessidades públicas a que provêm e de corresponderem, inteiramente, ao destino a que estão votadas[6].

Para que se constitua a dominialidade importa que o ente administrativo correspondente tenha decidido ou deliberado a afetação ou destinação da coisa, ou seja, votá-la ao uso público, viabilizando-se a aquisição da propriedade, por um dos modos previstos pelo artigo 1316º, do CC, designadamente, pela forma derivada da aquisição da propriedade, em que se traduz o contrato resultante da sua cedência por uma entidade particular.

Reunidos os pressupostos, acabados de considerar, a coisa será pública “mesmo que de facto nenhum uso tenha lugar, não relevando, em princípio, o uso público anterior, nem a ulterior falta de uso público”[7].

Deste modo, as coisas públicas são indisponíveis, em sentido privatístico, ou seja, estão fora do comércio jurídico privado e, consequentemente, não estão sujeitas a prescrição, “pelo seu não exercício durante o lapso de tempo estabelecido na lei”, nos termos do estipulado pelo artigo 298º, nº 1, do CC.

Por seu turno, a dominialidade pode cessar por degradação, isto é, quando se torna imprópria para o uso público a que era destinada, por desafetação do uso público, embora este continue, de facto e, eventualmente, por desuso imemorial[8].

As coisas do domínio público podem, assim, ingressar no comércio jurídico privado, desde que sejam desafetadas do domínio público, em consequência da cessação de funções que está na base do carater dominial atribuído por lei, quer por desafetação expressa, como por desafetação tácita, designadamente, pela via do abandono[9].

Deste modo, tendo a parcela de terreno sido integrada, no domínio público municipal, em consequência do contrato de cedência gratuita, está fora do comércio jurídico privado e, consequentemente, não é suscetível de ser adquirida pelos réus, designadamente, pelo decurso do tempo conducente à usucapião, nos termos do disposto pelo artigo 298º, nº 1, do CC, não se provando, por seu turno, o seu reingresso no comércio jurídico privado, por força de degradação, desafetação ou desuso imemorial.

Assim sendo, em consequência do contrato de cedência gratuita resultante das «condições a observar» impostas pelo alvará de loteamento, passou a pertencer ao domínio público, não só a área de terreno ocupada pelo posto de transformação da EDP, como, também, a parte sobrante da parcela em causa.

Os réus alegam, neste particular, que o DL nº 289/73, de 6 de junho, aplicável, não previa a integração, no domínio público, das áreas não necessárias à implantação dos equipamentos coletivos do loteamento, como é o caso do posto de transformação da EDP, nem o próprio alvará emitido o impõe, razão pela qual, ao aplicar à decisão da questão norma que não existia, à data da deliberação de autorização e emissão do alvará, o acórdão recorrido violou o disposto pelo artigo 12º, do Código Civil.

Nos termos do preceituado pelo artigo 44º, nºs 1, 2 e 3, do DL nº 555/99, de 16 de dezembro [Regime Jurídico da Urbanização e Edificação], o proprietário do prédio a lotear cede, gratuitamente, ao município as parcelas, designadamente, para utilização coletiva e infra-estruturas, que devam incluir o domínio municipal, assinalando as áreas de cedência, em planta respetiva, integrando-se as mesmas, no domínio municipal, com a emissão do alvará.

Sendo aplicável, à situação «sub judice», o DL nº 289/73, de 6 de junho, como sustentam os réus e de definiu em I, este diploma legal permite afirmar, no seu artigo 19, nºs 1 e 2, ao contrário do que estes defendem, que “a licença de loteamento será titulada por alvará, do qual constarão sempre as condições a que ficam obrigados o requerente, ou aqueles que tomarem a posição de titular do alvará, e, na parte aplicável, os adquirentes dos lotes”, em consonância com “as áreas mínimas a ceder às câmaras municipais para instalação dos equipamentos gerais destinados a servir os loteamentos urbanos”.

Ora, ficou demonstrado que do aditamento ao alvará de loteamento consta a existência de uma parcela de terreno destinada à instalação de um posto de transformação da EDP, cedida pelo requerente à Câmara Municipal de Matosinhos, a qual, segundo as «Condições a observar», aludidas no mesmo documento, “integrará no domínio público todas as áreas de ( ... ) posto de transformação”, ainda que nem toda a parcela de terreno destinada a esse fim tenha sido ocupada pela edificação do aludido posto de transformação da EDP.

Não é de aceitar, com o devido respeito, como pretendem os réus, que a área de implantação do posto de transformação da EDP tivesse de coincidir, necessariamente, com a superfície do espaço destinado ao domínio público para esse fim, além do mais, por uma questão de acessibilidade e praticabilidade do ingresso no aludido equipamento.

Efetivamente, os sucessivos diplomas legais que regeram esta matéria, a partir do DL nº 289/73, de 6 de junho, já citados, limitam-se a seguir a trajetória antecedente, numa verdadeira renovação na continuidade, suscetível de servir de linha orientadora interpretativa do instituto em análise, sem que se mostre violada a norma do artigo 12º, do CC.

CONCLUSÕES:

 I - O loteamento consiste na realização de uma operação urbanística de divisão de um ou vários prédios, em parcelas autónomas [lotes], de qualquer área, unidades prediais essas destinadas, imediata ou subsequentemente, à construção, sujeita a prévia autorização ou licenciamento dos órgãos administrativos competentes e de que resultam alterações na titularidade, objeto e limites dos direitos reais que incidem sobre o prédio ou prédios em causa.

II - A operação de loteamento não gera, apenas, lotes urbanos, que é o estatuto jurídico que revestem as unidades prediais destinadas a edificação, mas, também, parcelas, em que se traduz o estatuto jurídico que assumem as áreas que, no loteamento, se destinam a zonas verdes, zonas de utilização coletiva, infra-estruturas e equipamentos, quer sejam cedidas ao município, quer permaneçam propriedade privada, embora com o estatuto especial de partes comuns dos lotes e dos edifícios que neles venham a ser erigidos.

III - Estas parcelas apresentam-se como condição imprescindível para que as construções a erigir nos lotes possam ser utilizadas de um modo, urbanisticamente, sustentável, quer do ponto de vista funcional, como é o caso das parcelas destinadas a infra-estruturas e equipamentos de utilização coletiva, quer do ponto de vista ambiental, paisagístico e do ordenamento do território, como sucede com as parcelas destinadas a espaços verdes ou a espaços de utilização coletiva, sendo certo que as aludidas parcelas apenas se justificam em função da edificabilidade prevista para cada um dos lotes.

IV – Em consequência da cedência obrigatória à Câmara Municipal, pelo requerente de um loteamento, de uma parcela de terreno destinada à instalação de um posto de transformação da EDP, identificada na planta, cuja área total afeta deveria integrar o domínio público, segundo as «condições a observar», previstas, expressamente, no alvará de loteamento, passa a pertencer ao domínio público, não só a área de terreno ocupada pelo posto de transformação da EDP, como, também, a parte sobrante da parcela em causa, não obstante, apenas, parte da parcela de terreno destinada a esse fim ter sido ocupada pela edificação do mesmo.

V - Tendo a parcela de terreno sido integrada no domínio público municipal, em consequência do contrato de cedência gratuita, está fora do comércio jurídico privado e, consequentemente, não é suscetível de ser adquirida pelos réus, designadamente, pelo decurso do tempo conducente à usucapião, não se provando, por seu turno, o seu reingresso no comércio jurídico privado, por força de degradação, desafetação ou desuso imemorial.

DECISÃO[10]:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que constituem a 1ª secção cível do Supremo Tribunal de Justiça, em negar a revista dos réus e, em consequência, confirmam o douto acórdão recorrido.

                                                                *

Custas da revista, a cargo dos réus.

                                                    *

Notifique.

Helder Roque (Relator) *

Roque Nogueira

Alexandre Reis

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[1] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Roque Nogueira; 2º Adjunto: Conselheiro Alexandre Reis.
[2] Em vigor, desde 6-6-1973 a 28-2-1985, inclusive.
[3] José Osvaldo Gomes, Loteamentos Urbanos, Direito do Urbanismo, INA, 1989, 396; Manual dos Loteamentos Urbanos, 2ª edição, revista, atualizada e ampliada, 1983, 67 a 97.
[4] Este diploma revogou, expressamente, entre outros, o citado DL nº 289/73, de 6 de junho, sem prejuízo do disposto no artigo 84º, nº 2, a), ao estipular que "os pedidos de loteamento formulados anteriormente à entrada em vigor do presente diploma regular-se-ão pelo disposto no Decreto-Lei nº 289/73, de 6 de Junho, e respetiva legislação complementar;".
[5] Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, 2005, 342.
[6] Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, I, 2ª reimpressão, 1966, 278, 281, 289 e nota (1), 292 e 293.
[7] Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, I, 2ª reimpressão, 1966, 294.
[8] Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, I, 2ª reimpressão, 1966, 294 e 295.
[9] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, I, 4ª edição, revista e atualizada, com a colaboração de Henrique Mesquita, 1987, 192.
[10] Relator: Helder Roque; 1º Adjunto: Conselheiro Roque Nogueira; 2º Adjunto: Conselheiro Alexandre Reis.