Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
046471
Nº Convencional: JSTJ00025155
Relator: SOUSA GUEDES
Descritores: BURLA
ELEMENTOS DA INFRACÇÃO
HABITUALIDADE
REINCIDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
Nº do Documento: SJ199405120464713
Data do Acordão: 05/12/1994
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIAL.
Área Temática: DIR CRIM - CRIM C/PATRIMÓNIO / TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CP82 ARTIGO 72 ARTIGO 76 ARTIGO 77 N1 ARTIGO 313 N1.
L 15/94 DE 1994/05/11.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1992/06/17 IN CJ ANOXVII TIII PAG47.
ACÓRDÃO STJ DE 1991/10/07 IN CJ ANOXVI TIV PAG34.
ACÓRDÃO STJ DE 1992/01/09 IN CJ ANOXVII TI PAG10.
Sumário : I - Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo através de erro ou engano sobre factos, que astuciosamente provocou, determinar outrém à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízos patrimoniais, praticará o crime de burla.
II - Não se pode dizer "a priori", qual o número de infracções que deve representar-se suficiente para se considerarem habitual a sua prática.
Pertence ao bom critério do julgador avaliar os factos em cada caso, quando todas as circunstâncias que nele concorrem e as que dizem respeito ao agente para determinar o seu valor como sinais que revelem hábito.
III - Os requisitos da habitualidade não podem confundir-se com os da reincidência.
IV - Na reincidência o elemento fundamental é o desrespeito por parte do delinquente da solene advertência contida na sentença anterior.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal da Justiça:
1. No Tribunal Judicial da Póvoa de Lanhoso respondeu em processo comum, perante o Tribunal Colectivo, o arguido A, com os sinais dos autos, o qual foi condenado, como autor material de um crime previsto e punivel pelo artigo 313, n. 1 do Código Penal (de que serão todos os artigos adiante indicados sem menção do diploma a que pertencem), na pena de dez meses de prisão.
Recorreu desta decisão o Ministério Público que, na sua motivação, concluiu, em síntese, o seguinte:
I - Deve o arguido ser condenado por um crime de burla agravada pela circunstância da habitualidade - artigo 314, a) - e não pelo crime de burla simples do artigo 313;
II - Atentas as circunstâncias ocorrentes, a pena por aquele crime deverá situar-se próximo dos 4 anos de prisão;
III - Quando assim se não entenda, sempre a pena pelo crime do artigo 313 deverá fixar-se próximo dos dois anos de prisão;
IV - O acórdão recorrido violou os artigos 72 e 314, a).
Não houve resposta do arguido.
2. Procedeu-se à audiência com observância das formalidades legais e cumpre agora decidir.
É a seguinte a matéria de facto que o Colectivo considerou provada:
1) Em finais de Fevereiro, princípios de Março de 1992, na "Casa Gomes", sita na Rua ..., Póvoa de Lanhoso, o arguido adquiriu do dono daquela,
B, id. folha 3, um auto-rádio e duas colunas que os empregados deste lhe montaram no carro, tendo liquidado logo toda a despesa;
2) Depois apareceu no dito estabelecimento, pelo menos, mais duas vezes, mantendo conversa e criando um relacionamento de confiança, de honestidade e de pessoa cumpridora dos seus compromissos;
3) Na última vez que foi ao estabelecimento, no dia 13 de Março de 1993, adquiriu um video Tensai TVR 150, no valor de 88000 escudos, um televisor Philco MV 1039, no valor de 59200 escudos, e um cabo, no valor de 1990 escudos;
4) Além disso, solicitou ao dono do estabelecimento que lhe fornecesse alguns filmes para ver no video, tendo-lhe aquele entregue três cassettes com um filme referência 01748, com o título "queres ou não queres", um filme referência 01760, com o título "alta traição" e o filme referência 01836, com o título "um crime americano", todos no valor de 45000 escudos;
5) Na altura disse que não tinha ali o livro de cheques, mas que voltaria no dia 16 de Março de 1992 para pagar os objectos adquiridos e devolver os filmes, bem sabendo que tal não era verdade e que isso nunca aconteceria;
6) O ofendido, mercê da confiança que o arguido lhe inspirou pela primeira compra a pronto e pela conversa dos dias seguintes e ainda porque este lhe deixou ficar fotocópia do Bilhete de Identidade, acedeu em entregar-lhe os objectos acima referidos;
7) O arguido, que pagou os primeiros artigos a pronto e que foi ao estabelecimento nos dias seguintes para ganhar a confiança do ofendido e levá-lo a crer que era pessoa honesta, agiu com o propósito de obter benefícios económicos, levando aquele a entregar os objectos mencionados, causando-lhe um prejuízo de
194190 escudos;
8) O arguido foi condenado três vezes por burla em penas de prisão, em 22 de Dezembro de 1975, 13 de
Fevereiro de 1980 e 13 de Março de 1987 (folhas 48, 51 e 55);
9) Por acórdão de 4 de Novembro de 1991, transitado, proferido no processo da querela n. 1244/90, segunda secção, do Quarto Juízo de Coimbra, o arguido foi condenado na pena única de 6 anos e 6 meses de prisão
(e multa), pena que cumpriu, tendo sido libertado em 30 de Novembro de 1991, reportando-se os factos a 1986 e, decorrido o tempo que esteve na prisão, não decorreram
5 anos desde essa altura até à data em que os factos destes autos ocorreram, sendo certo que tal condenação não constituiu suficiente prevenção contra o crime;
10) O arguido, à data dos factos, era condutor profissional e agora (data do acórdão) trabalha de sapateiro no estabelecimento Prisional, sendo de modesta condição sócio-económica; o ofendido é comerciante e não foi ainda indemnizado;
11) O arguido declarou que pretendia pagar os objectos referidos, mas mencionou que não tinha dinheiro suficiente em qualquer conta bancária e que vendeu os objectos em Leiria para poder arranjar dinheiro para pagar ao ofendido, mas que, depois, se esqueceu de lhe pagar.
3. Como se afirma no acórdão deste Supremo Tribunal de
17 de Junho de 1992 (C.J., XVII, III, 47), citando
Beleza dos Santos, não se pode dizer a priori qual o número de infracções que deve reputar-se suficiente para se considerar habitual a sua prática; pertence ao bom critério do julgador avaliar os factos em cada caso, pesando todas as circunstâncias que nele concorrem e as que dizem respeito ao agente para determinar o seu valor como sinais que revelem o hábito.
E acrescenta-se: "A natureza dos crimes cometidos, espaço de tempo entre eles e as circunstâncias que os rodearam é que permitem concluir pela existência do hábito de delinquir e servir de fundamento para a verificação da agravação da habitualidade".
Expressamente referido ao crime de burla, também no acórdão deste tribunal, citado pelo recorrente, de 7 de
Outubro de 1991 (C.J., XVI, IV, 34), se acentua que a habitualidade se verifica não apenas quando o agente faz da prática do tipo legal de crime o seu modo de vida, mas também quando as circunstâncias do caso fazem concluir que tal prática se tornou para ele normal e como que uma "segunda natureza".
E o acórdão deste Supremo de 9 de Janeiro de 1992
(C.J., XVII, I, 10) exprime ideia semelhante ao afirmar que, para moldar a habitualidade, o complexo de infracções deve revelar um sistema de vida, não sendo suficiente a mera homotropia, que se reduz à prática repetida de infracções da mesma natureza.
No caso concreto, o Colectivo - a nosso ver com bom critério - afastou a habitualidade porque "não se demonstrou que o arguido se entregasse habitualmente à burla", apoiando esta conclusão na circunstância de as três condenações do arguido por tal crime terem sido espaçadas e em tempo tão recuado em relação à data dos factos que, à míngua de outros elementos, se não pode inferir que, no momento dos factos, ele se dedicou à burla e fizesse deste modo de vida, sendo certo que até era, nessa altura, condutor profissional.
Entende o Excelentíssimo recorrente que está demonstrada a conformação interior do agente à prática de actos criminosos do tipo referido, prática essa para ele já perfeitamente aceitável e normal.
Mas a sua conclusão, que se contém no domínio da matéria de facto, não é suportada pelas premissas que se colhem no texto da decisão recorrida.
Os requisitos da habitualidade não podem confundir-se com os da reincidência.
E uma coisa é poder-se concluir que determinada condenação não constituiu suficiente prevenção contra o crime; outra bem diferente é demonstrar-se toda a conformação psicológica do agente necessária à figura da habitualidade.
Não merece censura, pois, neste aspecto, o acórdão recorrido: o crime praticado pelo arguido é, efectivamente, o do artigo 313, n. 1.
4. Este crime é punível com prisão até 3 anos.
Na determinação da pena concreta há que ter em atenção o complexo critério dosimétrico do artigo 72 e tem razão o Excelentissímo recorrente quando afirma que a pena aplicada foi demasiado benévola.
O arguido é reincidente e há que ter presente o disposto nos artigos 76 e 77, n. 1.
Foi ele condenado - como se vê dos documentos juntos aos autos - em penas de prisão, por crimes dolosos, por sentenças de 3 de Outubro de 1988, em Moimenta da Beira, de 3 de Outubro de 1988, em Anadia, de 26 de Abril de 1990, em Pombal, de 1 de Junho de 1990, em Anadia e, em cúmulo jurídico efectuado em 28 de Maio de 1991, na pena de 6 anos e 6 meses da prisão e 100 dias de multa a 250 escudos por dia, na alternativa de 66 dias de prisão, depois modificado, por força da Lei n.
23/91, para 6 anos e 1 mês de prisão e 90 dias de multa a 250 escudos por dia, na alternativa de 60 dias de prisão, de que foi perdoado 1 ano de prisão, metade da multa e a prisão em alternativa; na Comarca de Fafe, em 19 de Fevereiro de 1993, foi condenado, em cúmulo jurídico das outras penas, em 4 anos e 6 meses de prisão, pena que foi englobada em novo cúmulo efectuado na Comarca de Alcobaça em 9 de Junho de 1993 e que fixou a pena única de 8 anos de prisão e 12000 escudos de multa, na alternativa de 20 dias de prisão.
E o tribunal recorrido considerou provado que nos cinco anos que precederam os factos dos autos - não contando o tempo em que cumpriu prisão - o arguido foi condenado pela prática de crimes dolosos punidos com prisão que cumpriu e, apesar disso, voltou a praticar crimes dolosos punidos com prisão, "indiferente à advertência proveniente daquelas condenações", pelo que "estas não constituiram suficiente prevenção contra o crime".
Tendo presente o disposto no artigo 77, n. 1 e ponderando a culpa (dolo intenso) do arguido, as presentes exigências da prevenção geral e especial
(sendo certo, quanto a esta, que o agente revela uma personalidade avessa a conformar-se com a ordem jurídica), as consequências do crime e o grau de ilicitude do facto (são consideráveis os prejuízos sofridos pelo ofendido), as condições pessoais do agente e, por outro lado, que nenhuma circunstância milita a seu favor, considera-se adequada e pena de dois anos de prisão.
Na primeira instância se procederá ao cúmulo jurídico desta pena com as que constam, designadamente, do acórdão da comarca de Alcobaça de 9 de Junho de 1993; e ter-se-á em atenção a lei n. 15/94, de 11 de Maio, ainda não recebida neste Tribunal.
5. Pelo exposto, decide-se conceder provimento parcial ao recurso e revogar a parte punitiva do acórdão recorrido, substituindo-a pela condenação do arguido A na predita pena de dois anos de prisão, mas confirmando o mesmo acórdão quanto ao mais.
Pagará o recorrido os mínimos de taxa de justiça e procuradoria.
Fixa-se em 15000 escudos os honorários à Excelentíssima defensora nomeada em audiência.
12 de Maio de 1994.
Sousa Guedes;
Sá Nogueira;
Cardoso Bastos;
Sá Ferreira.
Decisão impugnada:
Acórdão de 26 de Novembro de 1993 do Tribunal Judicial da Póvoa do Lanhoso.