Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
241/08.2GAMTR.P1.S2
Nº Convencional: 3ªSECÇÃO
Relator: SANTOS CABRAL
Descritores: LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
FUNDAMENTAÇÃO
MOTIVAÇÃO
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
CAUSALIDADE ADEQUADA
INDÍCIOS
IN DUBIO PRO REO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
CULPA
ILICITUDE
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Data do Acordão: 02/23/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário : I - Momento fundamental em processo penal é o julgamento com o objectivo de produzir uma decisão que comprove, ou não, os factos constantes do libelo acusatório e, assim, concretizar, ou não, a respectiva responsabilidade criminal. Nessa concretização o julgador aprecia livremente a prova produzida com sujeição às respectivas regras processuais de produção aos juízos de normalidade comuns a qualquer cidadão bem como às regras de experiência que integram o património cultural comum e decide sobre a demonstração daqueles factos, extraindo, em seguida, as conclusões inerentes à aplicação do direito.
II - Perante os intervenientes processuais, e perante a comunidade, a decisão a proferir tem de ser clara, transparente, permitindo acompanhar de forma linear a forma como se desenvolveu o raciocínio que culminou com a decisão sobre a matéria de facto e, também, sobre a matéria de direito. Estamos assim perante a obrigação de fundamentação que incide sobre o julgador, ou seja, na obrigação de exposição dos motivos de facto e de direito que há-de fundamentar a decisão.
III - A mesma fundamentação implica um exame crítico da prova que se situa nos limites propostos, ente outros, pelo Ac. do TC 680/98, e que já tinha adquirido foros de autonomia também a nível do Supremo Tribunal de Justiça com a consagração de um dever de fundamentação no sentido de que a sentença há-de conter também os elementos que, em razão da experiência ou de critérios lógicos, construíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse num sentido, ou seja, um exame crítico sobe as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal num determinado sentido
IV - Como refere Letizia Gianformaggio motivar significa justificar. E justificar significa justificar-se dar a razão do trabalho produzido admitindo como linha de princípio a legitimidade das críticas formuladas ou seja a legitimidade de um controle.
V - A exigência de motivação responde, assim, a uma finalidade do controle do discurso, neste caso probatório, do juiz com o objectivo de garantir até ao limite de possível a racionalidade da sua decisão, dentro dos limites da racionalidade legal. Um controle que não só visa uma procedência externa como também pode determinar o próprio juiz, implicando-o e comprometendo-o na decisão evitando uma aceitação acrítica como convicção de algumas das perigosas sugestões assentes unicamente numa certeza subjectiva
VI - Também Paulo Saragoça da Mata se pronuncia sobre o tema referindo que a fundamentação das sentenças consistirá num elenco das provas carreadas para o processo que se consubstanciará numa análise crítica e racional dos motivos que levaram a conferir relevância a determinadas provas e a negar importância a outras; numa concatenação racional e lógica das provas relevantes e dos factos investigados (o que permitirá arrolar e arrumar lógica e metodologicamente os factos provados e não provados); e numa apreciação dos factos considerados assentes à luz do direito vigente.
VII - A motivação existirá, e será suficiente, sempre que com ela se consiga conhecer as razões do decisor. É evidente que o dever de fundamentação da decisão começa, e acaba, nos precisos termos que são exigidos pela exigência de tornar clara a lógica de raciocínio que foi seguida. Não conforma tal conceito uma obrigação de explanação de todas as possibilidades teóricas de conceptualizar a forma como se desenrolou a dinâmica dos factos em determinada situação e muito menos de equacionar todas as perplexidades que assaltam a cada um dos intervenientes processuais, no caso o arguido, perante os factos provados.
VIII - O tribunal tem o dever de indicar os factos que se provam e os que não se provam e a forma como alcançou a respectiva conclusão. Por seu turno, aquele que discorda da forma como se formou tal conclusão e caso lhe assista o respectivo direito de recurso virá indicar aquilo de que discorda e o motivo que discorda.
IX - Se em face das premissas que constituem a matéria de facto, o julgador ensaia um salto lógico no desconhecido dando por adquirido aquilo que não é suportável à face da experiência comum pode-se afirmar a existência do vício do erro notório. Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis ” (Simas Santos e Leal Henriques, C.P.Penal Anotado, II vol., pág. 740).
X - A compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação de uma decisão sobre a matéria de facto, quando respeite a factos que só podem ter sido deduzidos ou adquiridos segundo as regras próprias das presunções naturais, constitui um elemento relevante para o exercício da competência de verificação da (in)existência dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, especialmente do erro notório na apreciação da prova, referido na al. c).do citado normativo.
XI - Não faz a nossa lei processual penal qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária, pelo que o funcionamento e creditação desta estão dependente da convicção do julgador que, sendo uma convicção pessoal, deverá ser sempre objectivável e motivável.
XII - Para Jaime Torres, Presuncion de incencia y prueba en el processo penal, pág 65, importa distinguir dois tipos diferentes de regra de experiência: as regras de experiência de conhecimento geral ou, dito por outra forma, as regras gerais empíricas cujo conhecimento se pressupõe existente em qualquer pessoa que tenha um determinado nível de formação geral e, por outro lado, as máximas de experiência especializada cujo conhecimento só se pode supor em sujeitos que tenham uma formação especifica num determinado ramo de ciência, técnica ou arte.
XIII - Usando tais regras de experiência entendemos que o juiz pode utilizar livremente, sem necessidade de prova sobre elas, as regras de experiência cujo conhecimento se pode supor numa pessoa com a sua formação (concretamente formação universitária no campo das ciências sociais). O próprio ordenamento jurídico parte da liberdade do juiz para utilizar estas máximas da experiência de conhecimento geral sem que as mesmas se inscrevam no processo através da produção de prova.
XIV - As razões que fundamentam a liberdade do juiz para a utilização dos seus conhecimentos de máxima da experiência são as mesmas que impõem a desnecessidade de fixação de factos notórios. Em qualquer um destes casos o que se pede ao juiz é que utilize os seus conhecimentos sobre máximas da experiência comum sem que importe a forma como os adquiriu.
XV - A necessidade de controle dos instrumentos através dos quais o juiz adquire a sua convicção sobre a prova visa assegurar que os mesmos se fundamentam em meios racionalmente aptos para proporcionar o conhecimento dos factos e não em meras suspeitas ou intuições ou em formas de averiguação de escassa ou nula fiabilidade. Igualmente se pretende que os elementos que o julgador teve em conta na formação do seu convencimento demonstrem a fidelidade as formalidades legais e as garantias constitucionais.
XVI - As regras da experiência, ou regras de vida, como ensinamentos empíricos que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtém mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte efectuar a generalização. Estas considerações facilitam a lógica de raciocínio judicial porquanto se baseia na provável semelhança das condutas humanas realizadas em circunstâncias semelhantes a menos que outra coisa resulte no caso concreto que se analisa ou porque se demonstre a existência de algo que aponte em sentido contrário ou porque a experiência ou perspicácia indicam uma conclusão contrária.
XVII - O princípio da causalidade significa formalmente que a todo o efeito precede uma causa determinada, ou seja, quando nos encontramos face a um efeito podemos presumir a presença da sua causa normal. Dito por outra forma, aceite uma causa, normalmente deve produzir-se um determinado efeito e, na inversa, aceite um efeito deve considerar-se como verificada uma determinada causa. O princípio da oportunidade fundamenta a eleição da concreta causa produtora do efeito para a hipótese de se apresentarem como abstractamente possíveis várias causas. A análise das características próprias do facto permitirá excluir normalmente a presença de um certo número de causas pelo que a investigação fica reduzida a uma só causa que poderá considerar-se normalmente como a única produtora do efeito. Provado no caso concreto tal efeito deverá considerar-se provada a existência da causa.
XVIII - Num hipotético conflito entre a convicção em consciência do julgador no sentido da culpabilidade do arguido e uma valoração da prova que não é capaz de fundamentar tal convicção será esta que terá de prevalecer. Para que seja possível a condenação não basta a probabilidade de que o arguido seja autor do crime nem a convicção moral de que o foi. É imprescindível que, por procedimentos legítimos, se alcance a certeza jurídica, que não é desde logo a certeza absoluta, mas que, sendo uma convicção com géneses em material probatório, é suficiente para, numa perspectiva processual penal e constitucional, legitimar uma sentença condenatória. Significa o exposto que não basta a certeza moral mas é necessária a certeza fundada numa sólida produção de prova.
XIX - A forma como se explana aquela prova fundando a convicção do julgador tem de estar bem patente o que se torna ainda mais evidente no caso da prova indiciária pois que aqui, e para alem do funcionamento de factores ligados a um segmento de subjectividade que estão inerente aos principio da imediação e oralidade, está, também, presente um factor objectivo, de rigor lógico que se consubstancia na existência daquela relação de normalidade, de causa para efeito, entre o indicio e a presunção que dele se extrai.
XX - Como tal a enunciação da prova indiciária como fundamento da convicção do juiz tem de se expressar no catalogar dos factos base ou indícios que se considere provados e que vão servir de fundamento á dedução ou inferência e, ainda, que na sentença se explicite o raciocínio através do qual e partindo de tais indícios se concluiu pela verificação do facto punível e da participação do arguido no mesmo. Esta explicitação ainda que sintética é essencial para avaliar da racionalidade da inferência.
XXI - Na prova indiciária devem estar presentes condições relativas aos factos indiciadores; à combinação ou síntese dos indícios; à indiciária combinação das inferências indiciárias; e à conclusão das mesmas.
XXII - Assim:
- 1 ) Os indícios devem estar comprovados e é relevante que esta comprovação resulte de prova directa, o que não obsta a que a prova possa ser composta, utilizando-se, para o efeito, provas directas imperfeitas ou seja insuficientes para produzir cada uma em separado prova plena.
- 2) Os factos indiciadores devem ser objecto de análise crítica dirigida à sua verificação, precisão e avaliação o que permitirá a sua interpretação como graves, média ou ligeiras.
- 3) Os indícios devem também ser independentes e, consequentemente, não devem considerar-se como diferentes os que constituam momentos, ou partes sucessivas, de um mesmo facto.
- 4) Quando não se fundamentem em leis naturais que não admitem excepção os indícios devem ser vários.
- 5) Os indícios devem ser concordantes, ou seja, devem conjugar-se entre si, de maneira a produzir um todo coerente e natural, no qual cada facto indiciário tome a sua respectiva colocação quanto ao tempo, ao lugar e demais circunstancias.
- 6) As inferências devem ser convergentes ou seja não podem conduzir a conclusões diversas.
- 7)- Por igual forma deve estar afastada a existência de contra indícios pois que tal existência cria uma situação de desarmonia que faz perder a clareza e poder de convicção ao quadro global da prova indiciária.
XXIII - O princípio in dubio pro reo, constitucionalmente fundado no princípio da presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (art. 32.º, n.º 2, da CRP), vale só em relação à prova da questão de facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão de direito. Aqui, a única solução correcta residirá em escolher não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que juridicamente se reputar mais exacto. Relativamente, porém, ao facto sujeito a julgamento o princípio aplica-se sem qualquer limitação e, portanto, não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude e da culpa, às condições objectivas de punibilidade, bem como às circunstâncias modificativas atenuantes e, em geral, a todas as circunstâncias relevantes em matéria de determinação da medida da pena que tenham por efeito a não aplicação da pena ao arguido ou a diminuição da pena concreta, Em todos estes casos, a prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido.
XXIV - Conforme refere Figueiredo Dias a sindicância do respeito pelo princípio em causa configura uma questão de direito pois que se trata de um princípio geral do processo penal, pelo que a sua violação conforma uma autêntica questão de direito que cabe, como tal, na cognição do STJ e das Relações ainda que estas conheçam apenas de direito. Nem contra isto está o facto de dever ser considerado como princípio de prova, mesmo que assente na lógica e na experiência (e por isso mesmo), conforma ele um daqueles princípios que devem ter a sua revisibilidade assegurada, mesmo perante o entendimento mais estrito e ultrapassado do que seja uma "questão de direito" para efeito do recurso de revista.
XXV - A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação sendo um tipo de culpa. Seguindo Roxin, por tipo de culpa entende-se aquele que na descrição típica da conduta contem elementos da culpa que integra factores relativos à actuação do agente que estão relacionados com a culpa mais grave ou mais atenuada. A culpa consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto deste ter actuado em desconformidade com a ordem jurídica quando podia, e devia, ter actuado em conformidade com esta, sendo uma desaprovação sobe a conduta do agente.
XXVI - O juízo de censura, ou desaprovação, é susceptível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela actuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas. Em suma, o agente actua culposamente quando realiza um facto ilícito podendo captar o efeito de chamada de atenção da norma na situação concreta em que desenvolveu a sua conduta e, possuindo uma capacidade suficiente de auto controlo, e poderia optar por uma alternativa de comportamento.
XXVII - O especial tipo de culpa do homicídio qualificado é conformado através da especial censurabilidade ou perversidade do agente
XXVIII - O crime de homicídio constitui uma violação do bem mais precioso de qualquer pessoa que é a própria vida e, como tal, será sempre inadmissível. Porém, o processo causal que leva à consumação de tal crime, isto é, a dinâmica de emoções e sentimentos que lhe esta associada assume uma policromia por tal forma plurifacetada que, necessariamente, terá de lhe corresponder uma maior, ou menor, compreensão da sua génese. Por outras palavras dir-se-á que, sendo sempre o objecto da mais viva reprovação jurídico criminal, o homicídio pode ter na sua origem uma situação que face à experiência comum poderia conduzir àquele desenlace (v.g., o confronto extremo para desagravo da honra: a defesa de bens que se consideram essenciais)
XXIX - Porém, casos existem em que o homicídio surge numa situação em que de todo não era expectável porquanto os motivos que lhe estão na causa são mínimos; são razões menores. A prática do crime surge aqui como resultado de um processo pautado pela ilógica, ou de plena irracionalidade, em que uma culpa do agente acentuada por um alto grau de censurabilidade leva a tirar a vida a alguém por razões fúteis.
XXX - No caso concreto, mostrando-se assente a prática de um crime de homicídio praticado com manifesta superioridade em razão da arma; com um tiro nas costas por razões fúteis ou de menor relevância (acções judiciais para impugnação da paternidade de um neto da vítima), em que se detecta uma culpa profunda; um dolo intenso e uma ilicitude densa, a pena aplicada de 20 anos de prisão não merece qualquer censura, sendo de confirmar a decisão recorrida.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

O arguido AA veio interpor recurso da decisão que, como autor de um crime de Homicídio Qualificado, p. e p. pelos artigos 131º, 132º, nº 1 e 2, alínea e), ambos do Código Penal, o condenou na pena de prisão de 20 anos;

Mais foi julgado procedente o pedido de indemnização civil e condenado o arguido a pagar aos demandantes civis a quantia global de € 105.000,00, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a data desta decisão, e, ainda, a pagar à demandante BB a quantia de € 1.370,00 relativa aos danos patrimoniais, acrescida de juros de mora à taxa legal desde a notificação do pedido de indemnização civil;

As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões da respectiva motivação de recurso onde se refere que:

1 - O douto acórdão impugnado considerou que não ocorriam os vícios de "contradição insanável entre a fundamentação e a decisão" e de um erro notório na apreciação da prova"', previstos nas ais b) e c) do n° 2 do art° 410°, que o Arguido imputou à sentença do Tribunal colectivo.

2- O Recorrente discorda, nesta parte, do douto acórdão e, porque tais vícios são do conhecimento oficioso e o STJ tem competência para deles conhecer, insere esta questão no objecto do presente recurso. Assim:

3- A sentença do Tribunal Colectivo, como resulta do seu texto, incorreu no vício previsto na segunda parte da al. b) do n° 2 do art° 410° ao considerar provados os factos descritos sob os n°s 1, 3, 4, 6 e 10 da matéria de facto provada apenas com base na prova pericial e ao retirar desta ilações que a mesma não admite.

4- Desde logo porque centra a sua fundamentação em duas premissas que extrai dos relatórios periciais:

-           ao arguido foram detectados nas mãos e roupa vestígios de pólvora tecnicamente compatíveis com o disparo que provocou a morte da vítima;

-           nas calças que o arguido usou no dia do crime foram detectados vestígios de sangue idênticos ao sangue da vítima.

5- Na completa ausência de outras provas directas ou indirectas da autoria material do disparo que determinou a morte da vítima, existe um salto lógico incontornável entre a fundamentação dos factos em causa e os factos em si.

6- Por um lado, porque não é imprescindível para afectar a força probatória do primeiro desses elementos que tenha existido contaminação da prova.

7- A alegada compatibilidade técnica entre os vestígios de pólvora existentes nas mãos e na roupa do arguido e o disparo - mesmo que não resulte de contaminação da prova (e, quanto a esta parte, nunca o Arguido sustentou que tenha resultado) e ainda que se prescinda da análise crítica do alcance e sentido da respectiva conclusão pericial - não permite retirar outra ilação senão a de que é possível que o arguido seja o .autor do disparo mortal.

8- Não consente, de modo algum, que, acompanhando a sentença da primeira instância, se afirme essa autoria em termos definitivos.

9- Por outro lado, porque a existência, nas calças do arguido, de vestígios de sangue idênticos ao sangue da vítima - que pode ter resultado de efectiva contaminação da prova - não determina por si só, sem o apoio de outros elementos probatórios consistentes, a autoria material do disparo de que resultou a morte da vítima.

10- Para efeitos de considerar provados aqueles factos, a prova pericial não é conclusiva e apresenta enormes fragilidades científicas, a nível de concepção e execução, que justificam as mais sérias dúvidas sobre a sua validade. Assim:

11- Os peritos não concluem que os vestígios de pólvora existentes nas mãos e roupa do permitam afirmar que este disparou armas de fogo,

12-Limitando-se a concluir que esses vestígios apenas sugerem que as possa ter deflagrado ou manuseado,

13- O que não exclui a possibilidade de tais vestígios provirem do contacto físico (por exemplo, cumprimentos com aperto de mãos ou contacto com armas para guardar, no local de trabalho) do Arguido com caçadores no dia dos factos (domingo de caça).

14 - As perícias não esclarecem, por outro lado, se os vestígios de pólvora existentes nas mãos e na roupa do Arguido são ou não iguais aos da bucha retirada do corpo da vítima é aos existentes na roupa desta, e se o tipo de pólvora existente no cartucho intacto que analisaram era ou não igual a estes últimos,

15-O que representa uma enorme deficiência dos exames, uma vez que existem dezenas de tipos de pólvora, com composições químicas muito diferentes entre si.

16- Por outro lado, os peritos não compararam os vestígios de pólvora recolhidos nas mãos e roupas do arguido com os vestígios existentes na roupa da vítima.

17-Iisto, não obstante terem constatado a evidência de que, considerando a distância a que ocorreu o disparo, "a vítima deverá ter estado exposta è deposição de vestígios expelidos à boca do cano da arma".

18- Perante esta constatação, em vez de procederam ao exame básico de comparação dos resíduos (sobretudo do ponto de vista químico), os senhores peritos consideraram que "quaisquer resultados obtidos na pesquisa de resíduos de disparo seriam irrelevantes" "não analisaram as referidas peças de vestuário", como ficou exarado a fls 125.

19- Esta opção incompreensível e errada deixou no limbo da incerteza uma prova que poderia ser crucial para confirmar ou infirmar as teses da Acusação e da Defesa.

20- Acresce que o relatório do exame regista que o LPC efectuou pesquisa de resíduos, além do mais,

- nos bolsos do casaco e

- na zona do cós Interior e nos bolsos das calças do Arguido.

21- A probabilidade da deposição directa desses resíduos nessa parte do vestuário, por efeito dum eventual disparo de arma de fogo, é, por certo, muito diminuta, se não for nula.

22- É intuitivo que essa deposição resulta do contacto com as mãos do Arguido, uma vez que se trata de zonas do vestuário que não estão expostas ao exterior.

23- Daí que não se possa estabelecer uma ligação entre esses vestígios e o eventual disparo de armas sem recurso ao contacto manual do Arguido.

24- Daí também a relevância da análise comparativa da composição química dos vestígios da pólvora existentes nas mãos do Arguido e na bucha mortal e na roupa da vítima e, por contraponto, a importância da omissão desse exame.

25- São, por isso, legitimas as mais sérias dúvidas sobre a validade objectiva deste meio de prova que sendo científico, está muito longe de ser rigoroso e concludente, como foi considerado pelo Tribunal.

26- O exame pericial efectuado às manchas de sangue existentes nas calças do Arguido justifica dúvidas e hesitações que não são menos consistentes e tornam incontornável a possibilidade de efectiva contaminação da prova,

27- Este exame, em primeiro lugar, não referencia o local exacto das calças do Arguido onde foram recolhidas as manchas de sangue analisadas, o que constitui uma deficiência excruciante.

28- Para conferir a força probatória deste exame e apurar o processo dinâmico de deposição das manchas torna-se imprescindível identificar com precisão, pelo menos, se essas leves manchas se localizavam na parte da frente ou na parte de trás das calças.

29- Se as manchas se localizam na parte de trás das calças é de todo improvável - é mesmo impossível - que o sangue tenha sido projectado do ferimento aberto no corpo da vítima.

30- Daí a relevância da omissão do relatório do exame acerca desta matéria.

31- Estas dúvidas mais se consolidam se tivermos presente que as fotografias de fls 121 e 152 parecem mostrar que as manchas se situam na parte de trás das calças e não na parte da frente.

32- A sentença do Tribunal Colectivo, porque rejeita, com um desconforto indisfarçado, a hipótese de contaminação da prova, nem sequer se debruça sobre esta perturbadora deficiência da prova, o que é tanto mais inaceitável quanto é certo que existem outros factos que, sem recurso a essa hipótese, tornam muito improvável que as manchas de sangue tenham sido depositadas no decurso da agressão que determinou a morte da vítima.

33- Desde logo, a inexistência de vestígios de sangue em todas as demais peças de vestuário que o Arguido envergava à data do crime.

34- Se o sangue tivesse sido depositado pelo processo dinâmico concomitante ao disparo, seria muitíssimo improvável que essas peças não contivessem vestígios hemáticos.

35-   E a verdade é que não continham.

36- A sentença do Tribunal Colectivo sofre, portanto, dos vícios previstos nas ais b) e c) do n° 2 do art° 4l0º

37-0 douto acórdão recorrido decidiu o contrário, sob invocação de que o vício da contradição insanável "não existe pois a decisão foi a de que o arguido foi o autor do crime e o trecho da fundamentação transcrita refere a razão porque o tribunal o considera ser o autor desse facto",

38- O Recorrente não põe em causa que a sentença refira a razão por que o Tribunal considerou ser o Arguido "o autor do crime".

39- Mas dessa razão não é possível, por impedimento da mera lógica formal, retirar a conclusão que o Tribunal retirou, ao julgar provados os factos descritos nos n°1, 3, 4, 6 e 10 da sentença.

40- Existe, por isso, uma contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, no sentido de que o Tribunal retirou uma conclusão de premissas que a não consentem.

41- Esta hipótese - de as premissas em que assenta não permitirem a decisão proferida - está abrangida pela previsão da al. b) do nº 2 do art° 410° e consubstancia o vício nela referido.

42- E implica, de igual modo, um erro notório na apreciação e valoração da prova, consubstanciador do vício previsto na al. c) daquele preceito,

43-0 douto acórdão impugnado, ao confirmar a decisão da primeira instância, ofendeu, assim o disposto nas ais b) e c) do n° 2 do art° 410º.

44 - E violou, de igual modo, o princípio in dúbio pro reo, que decorre do art° 32°, 2, CRP, ao fazer impender sobre o Arguido (a propósito das deficiências da prova pericial e da necessidade de as complementar para que delas se pudesse extrair a conclusão de que o Recorrente é o autor do crime dos autos) o ónus de invocar a nulidade da omissão de diligências descoberta da verdade, essenciais para a de  diligências verdade.

45 - As dúvidas sobre a verdade essencial, quando não forem ultrapassadas - como não foram neste caso -, só podem ser decididas a favor do arguido e, portanto, não compete a este invocar a nulidade da falta essenciais para a descoberta da verdade.

 46 - Os factos provados - ainda que venham a manter-se inalterados - não são subsumíveis no tipo do art° 132° CP, porque não permitem qualificar a sua conduta do Arguido como torpe e traiçoeira nem permitir concluir pela especial censurabilidade ou perversidade da sua conduta.

47-   Ao decidir em sentido acórdão desrespeitou o art° 132º contrário, o douto CP.

48- Ainda que, sem conceder, o Arguido viesse a ser condenado como autor material dum crime de homicídio qualificado, sempre seria certo que a pena de 20 anos que lhe foi aplicada é excessiva e nunca deveria ser superior a 18 anos de prisão.

49- Como bem se acentua naquele voto de vencido, "o grau de ilicitude» é moderado, situando-se a culpa no mesmo patamar |..:|

Tratando-se de uma moldura penal que vai de 12 aos 25 anos de prisão e sendo a culpa do arguido razoável ou mediana, aquela pena deveria situar-se entre os 15 e os 18 anos".

50 - Ao decidir de modo diverso o douto acórdão recorrido ofendeu, entre outros, os arts 71° 131° e 132°, n°s 1 e 2, do Código Penal.

 Em sede de resposta advogou-se a falta de fundamento do recurso interposto. 

    O ExºMº Sr.Procurador Geral Adjunto emitiu douto parecer nos termos constantes de fls advogando a improcedência do recurso.

                                                Os autos tiveram os vistos legais

                                                                     *

                                                        Cumpre decidir

 Em sede de decisão recorrida encontra-se provada a seguinte factualidade:

1)

No dia 2 de Novembro de 2008, a hora não concretamente apurada, ma entre as 13,00 horas e as 17,00 horas, no lugar de .........., freguesia de ............., concelho de Montalegre, no lugar denominado ".............", num caminho rural (vicinal) que dá acesso da localidade de .......... às propriedades rústicas, situado a cerca de 100 metros das habitações, o arguido empunhou uma arma de caça não concretamente apurada e disparou a cerca de 90 cm da vítima CC na direcção da zona abdominal das costas do mesmo, tendo os projécteis penetrado na cavidade abdominal da vítima desde o plano posterior, sendo o trajecto seguido de trás para a frente e ligeiramente de baixo para cima, provocando lesões abdominais.

2)

As lesões abdominais sofridas pela vítima, em consequência daquele disparo, associadas a choque hipovolémico, que surgiu como complicação imediata, foram causa directa e necessária da morte de CC.

3)

Ao disparar os projécteis da arma de caça na direcção da zona abdominal da vítima CC, pretendia o arguido tirar-lhe a vida, o que logrou conseguir.

4)

O arguido agiu desse modo pelo facto de a vítima, sendo sogro da amante do arguido, DD, ter envidado todos os esforços, face às limitações intelectuais e psicológicas do seu filho, no sentido de que fossem propostas: acção de impugnação de paternidade do menor EE, uma vez que esta criança, segundo a convicção da vítima, é filha do arguido e de DD; e acção de divórcio de DD e de FF.

5)

Com efeito, a amante do arguido teve conhecimento de tais acções a ..../..../2008 e a ..../..../2008, respectivamente, ou seja, poucos dias antes do homicídio, dando conhecimento de tais processos ao arguido.

6)

O arguido agiu livre e voluntariamente, sabendo que a respectiva conduta era punida por lei e que incorria em responsabilidade criminal.

7)

Antes da prática dos factos objecto destes autos, o arguido foi condenado, por decisão de ..../..../2005, pela prática de um crime de desobediência, p.p. pelo artº 348.° do Código Penal, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de € 8,00.

8)

O arguido é casado, tem dois filhos, com 9 e 13 anos de idade, vive com a esposa e a sua mãe, que é reformada, em casa desta, trabalhando a esposa como empregada de limpeza.

9)

o arguido tem o 6.° ano de escolaridade e trabalha como abastecedor de combustíveis e é pessoa respeitada no seu meio social.

10)

Quando o arguido disparou, a vítima encontrava-se de costas para ele, situação que o arguido procurou para impedir a defesa da vítima.

11)

A assistente e demandante civil era casada com a vítima, há já 49 anos, à data da morte desta, com quem formava um casal harmonioso e feliz.

12)

GG e FF, aqui demandantes civis, são os únicos filhos da vítima.

13)

Com a morte de CC, a quem muito amavam e com quem tinha excelente relacionamento, os demandantes civis foram acometidos de dor, sofrimento, abalo moral e angústia, sentido uma perda que jamais conseguirão esquecer.

14)

Os demandantes sentem revolta e consternação pelo que sucedeu, acentuadas pelas circunstâncias em que a morte ocorreu.

15)

A vítima era um pai dedicado, amigo dos demandantes e de toda a família.

16)

O filho, FF, que se encontrava mentalmente afectado, tinha e via no pai o pilar da sua vida, um protector seguro que o orientava e lhe prestava a assistência material e efectiva de que necessitava.

17)

A filha GG votava ao pai carinho e mantinha com ele laços afectivos que faziam com que viesse visitá-lo com regularidade e muitas vezes passasse os fins-de-semana em casa dos pais.

18)

A vítima era um marido atencioso, temo, com contagiante alegria de viver.

19)

O falecido CC tinha à data da sua morte 76 anos de idade, era uma pessoa robusta, dinâmica, gozava de excelente saúde, quer física, quer intelectual.

20)

 Não se lhe conheciam doenças, tinha total liberdade de movimentos, usando com plenitude os seus membros superiores e inferiores.

21)

Embora reformado, mantinha uma vida preenchida e activa, levava diariamente o gado aos campos e trabalhava as terras, colhendo os seus frutos.

22)

Era reformado e auferia uma pensão mensal de € 236,47, quantia que destinava exclusivamente ao sustento e despesas da família que constituía com a sua esposa, ora demandante, BB.

23)

A demandante BB pagou pelas despesas de funeral da vítima a quantia de € 1.370,00.

Factos não provados:

_ que o filho da nora da vítima que determinou a propositura da acção de impugnação de paternidade seja filho do arguido;

_ que as limitações intelectuais do filho da vítima tenham tido origem em lesões que lhe foram causadas pelo arguido

                                                              *

I

        Constata-se que os pontos 4 a 35 das conclusões são a repetição integral das conclusões apresentadas perante o tribunal da Relação.

   Assim, uma primeira análise do recurso interposto confronta-nos com uma questão recorrente que é a da repetição perante o Supremo Tribunal de Justiça da motivação presente ao Tribunal da Relação, sendo certo que tal facto deve assumir relevância em termos de conhecimento de recurso quando represente uma indiferença absoluta perante a decisão proferida por este último Tribunal.

   Na verdade, resulta da aplicação dos artigos 400 nº1 e 432 do Código de Processo Penal que a decisão proferida pelo Tribunal da Relação é susceptível de recurso para este Supremo Tribunal de Justiça. O que está então em causa é a concreta decisão proferida por aquele tribunal superior face á impugnação produzida pelo recorrente em relação á decisão de primeira instância, ou seja, o objecto de qualquer um daqueles tipos de recurso é, necessariamente, distinto do outro.

            Igualmente é certo que o tribunal de segunda instância examinou, de forma concisa, as questões que foram suscitadas pelo recorrente no recurso que lhe dirigiu e que foi julgado improcedente.

            Face a tal patologia importa precisar qual o conteúdo do direito ao recurso do recorrente e se, por alguma forma, é admissível que subverta a lógica dos sistema de recursos e que, como pretende o recorrente, este Supremo Tribunal retorne á análise da decisão de primeira instância, omitindo a pronuncia que sobre a mesma produziu o Tribunal da Relação.

            Na verdade, integrando o núcleo essencial de direitos outorgados constitucionalmente, o direito ao recurso tem subjacente uma definição clara das regras processuais que o devem reger, determinando o desenvolvimento formal harmónico e adequado a estabelecer o equilíbrio entre o seu exercício e o formalismo do processo. Se é certo que existem patologias relativas a tal exercício que são susceptíveis de serem superadas por uma perspectiva teleológica de visão garantística, dando a possibilidade de superar os eventuais defeitos, corrigindo e esclarecendo o sentido da vontade, igualmente é exacto que noutros casos tal não é possível de fazer sem estar subverter todo a lógica do sistema de recursos.

            Aplicando o exposto ao caso vertente, que constitui um paradigma da última situação, dir-se-á que uma vertente é a impugnação da decisão do tribunal da Relação, que constitui, assim, o objecto de recurso, formulada de forma irregular e a merecer aperfeiçoamento, e outra, distinta, é a impugnação neste Supremo Tribunal de Justiça de uma decisão proferida em primeira instância, omitindo por completo toda a fundamentação e decisão que a seu propósito formulou o Tribunal da Relação na sindicância que efectuou. A discordância nesta sede tem sentido se dirigida à solução perfilhada pela Relação, com argumentos novos, específicos, explicitando razões jurídicas novas, dirigidas à nova decisão, agora recorrida, que infirmem os fundamentos nesta apresentados, pois agora é o acórdão da Relação o objecto de recurso e não a já reapreciada decisão da 1ª instância.

            No caso vertente, e como se referiu, as conclusões reproduzem parcialmente o conteúdo daquelas que tiveram por alvo o Tribunal da Relação.

            Sucede que o apelo ao núcleo da motivação imprime a conclusão de que o recorrente equaciona a decisão recorrida, ou seja a decisão do Tribunal da Relação do Porto sendo certo que, mesmo em face da eventual diferenciação argumentativa da mesma constante, entende por adequado dirigir o mesmo tipo de impugnação.

            Neste condicionalismo, e numa perspectiva benévola, não consideramos um alheamento, ou ostracização, da decisão do Tribunal da Relação, mas sim uma eventual persistência da mesma crítica que já foi dirigida á decisão de primeira instância por considerar que se mantêm as razões anteriormente deduzidas. A rejeição do recurso representaria neste condicionalismo uma insuportável desproporcionalidade perante a irregularidade praticada.

  Assim, proceder-se-á ao conhecimento do recurso interposto.

II

Importa precisar que constitui jurisprudência hoje pacífica do Supremo Tribunal de Justiça a de que, nos recursos para si interpostos, seja de acórdãos finais do tribunal colectivo, seja de acórdãos proferidos em recurso pelos tribunais da relação, está vedada a invocação de eventuais vícios previstos no nº 2 do artº 410º do CPP. Na verdade, funcionando o Supremo Tribunal de Justiça como tribunal de revista, tais recursos só podem visar o reexame de matéria de direito (arts. 432º-d) e 434º, do CPP) e aquela invocação, mais ou menos profundamente, a apreciação de matéria de facto.

Reavivando posição já expressa em plurimos Acórdãos desta Secção Criminal[1] o recurso para o Supremo Tribunal visa exclusivamente o reexame das questões de direito, sem prejuízo do conhecimento oficioso dos vícios referidos no artigo 410º, nº 2 do CPP. Assim, relembrando conceitos por demais sedimentados em relação ao invocado vicio da sentença importa precisar que o C.P.P. de 1987 trata os vícios previstos no artigo 410 nº2 do Código Penal como vícios da decisão, e não de julgamento. Nesta disposição estamos em face de vícios da decisão recorrida, umbilicalmente ligado aos requisitos da sentença previstos no artigo 374 nº2 do Código de Processo Penal, concretamente á exigência de fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal.

            Consubstancia-se, assim, o mesmo recurso num recurso de revista ampliada, configurando a possibilidade que é dada ao tribunal de recurso de conhecer a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a decisão de direito não encontre na mesma matéria uma base tal que suporte um raciocínio lógico subsuntivo que permita a conclusão; de verificar uma contradição insanável da fundamentação sempre que através de um raciocínio lógico conclua que da fundamentação resulta precisamente a decisão contrária ou que a decisão não fica suficientemente esclarecida dada a contradição entre os fundamentos aduzidos; de concluir por um erro notório na apreciação da prova sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária, ou pelo menos diferente, da exposta pelo tribunal.

            Não vislumbramos na análise da decisão recorrida, e só ela releva para o fim em vista, onde é que exista uma insuficiência dos factos para a decisão de direito ou se descortine um erro notório ou de desconformidade entre a fundamentação e a decisão.

     Na verdade o recorrente confunde o vício da sentença com a discordância sobre a matéria de facto.   Importa precisar:

            - Momento fundamental em processo penal é o julgamento com o objectivo de produzir uma decisão que comprove, ou não, os factos constantes do libelo acusatório e, assim, concretizar, ou não, a respectiva responsabilidade criminal.

             Nessa concretização o julgador aprecia livremente a prova produzida com sujeição ás respectivas regras processuais de produção aos juízos de normalidade comuns a qualquer cidadão bem como ás regras de experiência que integram o património cultural comum e decide sobre a demonstração daqueles factos, extraindo, em seguida, as conclusões inerentes á aplicação do direito.

            Perante os intervenientes processuais, e perante a comunidade, a decisão a proferir tem de ser clara, transparente, permitindo acompanhar de forma linear a forma como se desenvolveu o raciocínio que culminou com a decisão sobre a matéria de facto e, também, sobre a matéria de direito. Estamos assim perante a obrigação de fundamentação que incide sobre o julgador, ou seja, na obrigação de exposição dos motivos de facto e de direito que hão de fundamentar a decisão.

            A mesma fundamentação implica um exame crítico da prova que se situa nos limites propostos, ente outros, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional 680/98, e que já tinha adquirido foros de autonomia também a nível do Supremo Tribunal de Justiça com a consagração de um dever de fundamentação no sentido de que a sentença há-de conter também os elementos que, em razão da experiência ou de critérios lógicos, construíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse num sentido, ou seja, um exame crítico sobe as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal num determinado sentido  

            Por essa forma acabaram por obter consagração legal as opções daqueles que consideravam a fundamentação uma verdadeira válvula de escape do sistema permitindo o reexame do processo lógico ou racional que subjaz á decisão. Também por aí se concretiza a legitimação do poder judicial contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre o qual repousa: o dever de dizer o direito no caso concreto. 

            Igualmente é certo que a exigência de motivação emerge directamente de um dever de fundamentação de natureza constitucional-artigo 208-em relação ao qual ponderam Gomes Canotilho e Vital Moreira que é parte integrante do próprio conceito de Estado de Direito democrático, ao menos quanto ás decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e da garantia do direito ao recurso (Constituição Anotada pag 799).Na verdade é um dado adquirido o de que um sistema de processo penal inspirado nos valores democráticos não se compadece com razões que hão-se impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz. O entendimento que a lei se basta com a mera indicação dos elementos de prova frustra a “mens legis”, impedindo de se comprovar se na sentença se seguiu um processo lógico e racional na apreciação da prova, não sendo portanto uma decisão ilógica, arbitrária ou notoriamente violadora das regras da experiência comum na apreciação da prova. Tal entendimento assume assim uma concreta conformação violadora do direito ao recurso consagrado constitucionalmente.

            Como refere Letizia Gianformaggio motivar significa justificar. E justificar significa justificar-se dar a razão do trabalho produzido admitindo como linha de princípio a legitimidade das críticas formuladas ou seja a legitimidade de um controle [2] .

            A exigência de motivação responde, assim, a uma finalidade do controle do discurso, neste caso probatório, do juiz com o objectivo de garantir até ao limite de possível o racionalidade da sua decisão, dentro dos limites da racionalidade legal. Um controle que não só visa uma procedência externa como também pode determinar o próprio juiz, implicando-o e comprometendo-o na decisão evitando uma aceitação acrítica como convicção de algumas das perigosas sugestões assentes unicamente numa certeza subjectiva

            A concretização de tal obrigação de fundamentação em sede de motivação da sentença é formulada em termos lapidares pelo Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 13/10/1992 quando refere que: "A sentença, para além da indicação dos factos provados e não provados e da indicação dos meios de prova deve conter os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituam o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados na audiência ''Ou seja, "trata-se ( .. .) de referir os elementos objectivos de prova que permitam constatar se a decisão respeitou ou não a exigência de prova, por uma parte; e de indicar o íter formativo da convicção, isto é o aspecto valorativo cuja análise há-de permitir, em especial na prova indiciária, comprovar se o raciocínio foi lógico ou se foi irracional absurdo, por outra".

            Também Paulo Saragoça da Mata se pronuncia sobre o tema referindo que a fundamentação das sentenças consistirá: num elenco das provas carreadas para o processo que se consubstanciará numa análise crítica e racional dos motivos que levaram a conferir relevância a determinadas provas e a negar importância a outras;  numa concatenação racional e lógica das provas relevantes e dos factos investigados (o que permitirá arrolar e arrumar lógica e metodologicamente os factos provados e não provados); e, numa apreciação dos factos considerados assentes à luz do direito vigente.

Adianta o mesmo Autor que apenas desse modo se garante uma tutela judicial efectiva. Com efeito, só assim o decisor justifica, perante si próprio, a decisão (o momento da exposição do raciocínio permite ao próprio apresentar e conferir o processo lógico e racional pelo qual atingiu o resultado), e garante a respectiva comunicabilidade aos respectivos destinatários e terceiros (dando garantias acrescidas de que a prova juridicamente levante foi não só correctamente recolhida e produzida, mas também apreciada de acordo com cânones claramente entendíveis por quem quer).

A motivação existirá, e será suficiente, sempre que com ela se consiga conhecer as razões do decisor. 

                                                                  *

      Considerando por tal forma temos que, em primeira análise, a tarefa do Tribunal da Relação ao apreciar a impugnação produzida em termos de matéria de facto incidiu, também, sobre a forma como o Tribunal de primeira instância exprimiu a lógica dedutiva que permitiu a aceitação de determinados factos em detrimento de outros. A questão era, então, a de saber se a decisão recorrida tinha cumprido o seu dever de investigar e de indagar, de uma forma precisa e detalhada, a validade da impugnação produzida em relação a concretos pontos de facto.

   A análise da mesma decisão recorrida imprime, de forma inexorável, a conclusão de que tal obrigação foi efectivamente cumprida.

    O Tribunal da Relação concluiu de forma correcta, com uma compreensão unitária e superior, e com um rigor que cumpre salientar, de que não foram violados quaisquer dos ónus que impediam sobre a decisão recorrida em termos de fundamentação ou pronúncia.[3]

  É evidente que o dever de fundamentação da decisão começa, e acaba, nos precisos termos que são exigidos pela exigência de tornar clara a lógica de raciocínio que foi seguida. Não conforma tal conceito uma obrigação de explanação de todas as possibilidades teóricas de conceptualizar a forma como se desenrolou a dinâmica dos factos em determinada situação e muito menos de equacionar todas as perplexidades que assaltam a cada um dos intervenientes processuais, no caso o arguido, perante os factos provados.

    O tribunal tem o dever de indicar os factos que se provam e os que não se provam e a forma como alcançou a respectiva conclusão.

Por seu turno aquele que discorda da forma como se formou tal conclusão e caso lhe assista o respectivo direito de recurso virá indicar aquilo de que discorda e o motivo que discorda.

      III

 O facto de o tribunal e primeira instância ter submetido a sua actuação á regra da livre convicção, e nos limites propostos por aqueles princípios, não contende com a possibilidade de o Tribunal da Relação se pronunciar sobre a verosimilhança do relato de uma testemunha, ou perito, e demais meios de prova e para apreciar a emergência da prova directa ou indiciária e de aí controlar o raciocínio indutivo pois que estaremos perante uma questão de verosimilhança, ou plausibilidade, das conclusões contidas na sentença.

  Por outro lado, e conforme se referiu, a credibilidade em concreto de cada meio de prova tem subjacente a aplicação de máximas da experiência comum que informam a opção do julgador. E estas podem, e devem, ser escrutinadas.

            Pode-se, assim, concluir que o recurso em matéria de facto não pressupõe, uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento da decisão recorrida, mas apenas, em plano diverso, uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, da avaliação das provas que, na perspectiva do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) - artigo 412º, nº 3, alínea b) do CPP, ou determinado a renovação das provas nos pontos em que entenda que deve haver renovação da prova.

             Porém, tal sindicância deverá ter sempre uma visão global da fundamentação sobre a prova produzida de forma a poder acompanhar todo o processo dedutivo seguido pela mesma decisão em relação aos factos concretamente impugnados. Não se pode, nem deve substituir, a compreensão e análise do conjunto da prova produzida sobre um determinado ponto de facto pela visão parcial e segmentada eventualmente oferecida por um dos sujeitos processuais.

             Essa compreensão global está omissa na crítica formulada.

                                                            *

            Como decorre da análise das suas conclusões de recurso o verdadeiro núcleo da interpelação do recorrente centra-se na sua incapacidade de acompanhar o tribunal de primeira instância quando este baseado em prova indirecta, nomeadamente os vestígios hemáticos, e de pólvora, encontrados no seu vestuário, arranca para a conclusão de que foi o mesmo quem disparou a arma que matou a vítima.

             O recorrente arguido não coloca em causa a existência dos vestígios nem a conclusão pericial que sobre os mesmos incidiu. Para ele a questão é outra:-tal tipo de prova pericial não permite, á face das regras da lógica, e da experiência, que o tribunal possa concluir que é sua a autoria do crime.

Não falamos pois de uma manifestação evidente de ilogicidade da decisão, consagrando algo de contrário ao imposto pelas normas comuns de vida, ou de uma manifesta incapacidade dos factos para suportarem uma conclusão judicial e nem tão pouco de uma incongruência entre as peças que compõem o silogismo judiciário. Do que falamos em concreto é da discordância em relação a um ponto de facto considerado provado-a autoria do disparo que matou a vítima-sendo certo que tal discordância está centrada na inadmissibilidade da conclusão extraída da prova pericial á luz dos ensinamentos das regras de experiência comum.

            A questão fulcral colocada pelo recorrente é exactamente esta: existe, ou não um incorrecto entendimento das regras ministradas pela dinâmica da vida e, se existe, como configurar tal vício?

            - No que concerne a este segundo ponto entende-se que, se em face das premissas que constituem a matéria de facto, o julgador ensaia um salto lógico no desconhecido dando por adquirido aquilo que não é suportável à face da experiência comum pode-se afirmar a existência do vicio do erro notório. Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis ...” (Simas Santos e Leal Henriques, “C.P.Penal Anotado”, II vol., pág. 740)

            Como se refere em decisão deste Supremo Tribunal de Justiça de 4/02/2005[4]  “O  "erro notório na apreciação da prova" constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou que traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.

A incongruência há-de resultar de uma descoordenação factual patente que a decisão imediatamente revele, por incompatibilidade no espaço, de tempo ou de circunstâncias entre os factos, seja natural e no domínio das correlações imediatamente físicas, ou verificável no plano da realidade das coisas, apreciada não por simples projecções de probabilidade, mas segundo as regras da "experiência comum". Na dimensão valorativa das "regras da experiência comum" situam-se, por seu lado, as descontinuidades imediatamente apreensíveis nas correlações internas entre factos, que se manifestem no plano da lógica, ou da directa e patente insustentabilidade ou arbitrariedade; descontinuidades ou incongruências ostensivas ou evidentes que um homem médio, com a sua experiência da vida e das coisas, facilmente apreenderia e delas se daria conta.[5]

A compreensão e a possibilidade de acompanhamento do percurso lógico e intelectual seguido na fundamentação de uma decisão sobre a matéria de facto, quando respeite a factos que só podem ter sido deduzidos ou adquiridos segundo as regras próprias das presunções naturais, constitui um elemento relevante para o exercício da competência de verificação da (in)existência dos vícios do artigo 410º, nº 2, do CPP, especialmente do erro notório na apreciação da prova, referido na alínea c). - cfr. os acórdãos deste STJ, de 7 de Janeiro de 2004, proc.3213/03, e de 24 de Março de 2004, proc. 4043/03..

 Partindo de tal pressuposto importa agora sindicar a sua aplicação ao caso vertente.

        Equacionemos o que está em questão:

-Ao arguido foram recolhidas amostras nas mãos, casaco e calças com vista á detecção de resíduos de disparos, e conforme relatório pericial de fls. 122 do LPC conclui-se que:

“ - Nas amostras com vestígios recolhidos nas mãos, no casaco e nas calças do suspeito … foram detectadas partículas características de disparos de armas de fogo, sendo a composição das partículas detectadas compatível com a composição das partículas usualmente detectadas em resíduos originados pela deflagração de cartuchos de caça.

- Os resultados obtidos sugerem que o suspeito tenha disparado ou manuseado uma arma de fogo recentemente, ou que tenha estado muito próximo do(s) disparo(s).”

E quanto ás partículas detectadas nos resíduos recolhidos nas mãos, casaco e calças do arguido eram constituídas por chumbo, antimónio, bário e alumínio (texto do exame a fls. 122), e á conclusão de que são essas “partículas características de disparos de armas de fogo” e compatíveis com “ resíduos de disparos originado pela deflagração de cartuchos de caça”, ou seja o arguido tinha resíduos característicos dos disparos de armas de caça, mas mãos e na roupa. Mais refere o juízo pericial, que para o arguido ter esses vestígios nas mãos e na roupa era necessário:

- que tenha disparado uma arma de caça;

- ou que tenha manuseado uma arma de caça,

- ou que tenha estado muito próximo do disparo.

 Como se refere na decisão recorrida não nos é dito, em termos periciais, que a arma de caça que disparou sobre o falecido e o matou foi usada, ou manuseada pelo arguido, ou que ele estava junto a ela quando disparou esse tiro, nem o podia dizer, e o tribunal também não diz que o exame o refere, nem podia referir por não fazer parte da perícia, e por outro lado não se refere o relatório pericial ao contrário do mencionado pelo recorrente a “vestígios de pólvora”, mas aos ”resíduos deixados pelo disparo de arma de fogo” ou seja originados pela deflagração dos cartuchos.

Igualmente é certo, face á decisão de primeira instância, que “… o tribunal ficou convencido que foi o arguido quem matou o CC pelo seguinte: tinha um motivo, pois ficou exasperado com as diligências por ele empreendidas para impugnar a paternidade presumida do menor EE, cuja paternidade biológica atribuía ao arguido, e para obter o divórcio entre o seu filho e a DD, com quem o arguido mantinha relação amorosa, em ambas as acções mencionando expressamente o nome do arguido; além disso, as relações do arguido com a vítima eram más, chegando a ameaçá-lo de morte (“Vais saltar”); o arguido tinha más relações com a vítima e o seu filho; o arguido já foi visto a disparar armas de fogo e revela uma personalidade agressiva, inclusivamente em relação a pessoas com deficiência; ao arguido foram detectados nas mãos e roupa vestígios de pólvora tecnicamente compatíveis com o disparo que provocou a morte da vítima; finalmente, nas calças que o arguido usou no dia do crime foram detectados vestígios de sangue idênticos ao sangue da vítima; para decidir o contrário, o tribunal teria de dar crédito à tese de contaminação de provas e a algumas testemunhas providas de prodigiosa memória, ou pelo menos, teria de pensar que tais elementos de prova lhe criaram dúvidas, o que, manifestamente, não sucedeu”         

A conclusão do tribunal em relação á matéria de facto é a consequência lógica da conjunção de uma pluralidade de índicos apontando para uma conclusão. Em termos criminalisticos os indícios apontam para a resposta a qualquer uma das perguntas: Quem? Como? e Porquê?

      Dito por outra forma a questão que se coloca é a de saber se, em termos de lógica normal, é correcto concluir que disparou a arma que matou a vítima aquele que tinha aqueles vestígios sem que nenhuma explicação plausível tenha apresentado para tal facto, ou seja, uma questão de prova indiciária.

                                                                    *

          Não faz a nossa lei processual penal qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária.

            O funcionamento e creditação desta estão dependente da convicção do julgador que, sendo uma convicção pessoal, deverá ser sempre objectivável e motivável.

            Refere Marques da Silva que o juízo sobre a valoração da prova tem vários níveis. Num primeiro aspecto trata-se da credibilidade que merecem ao tribunal os meios de prova e depende substancialmente da imediação e aqui intervêm elementos não racionais explicáveis. Num segundo nível inerente á valoração da prova intervêm as deduções e induções que o julgador realiza a partir dos factos probatórios e, agora já as inferências não dependem substancialmente da imediação, mas hão-de basear-se na correcção do raciocínio que há-de fundamentar-se nas regras da lógica, principio da experiência e conhecimentos científicos, tudo se podendo englobar na expressão regras da experiência.                    

             Porém, o facto de também relativamente á prova indirecta funcionar a regra da livre convicção não quer dizer que na prática não se definam regras que, de forma alguma se poderão confundir com a tarifação da prova. Assim, os indícios devem ser sujeitos a uma constante verificação que incida não só sobre a sua demonstração como também sobre a capacidade de fundamentar uma lógica dedutiva; devem ser independentes e concordantes entre si

            Nada impedirá, porém, que devidamente valorada a prova indiciária a mesma por si, na conjunção dos indícios permita fundamentar a condenação.

                                                                      *

            Fundamentando-se a condenação na prova indiciária a interpretação da prova e a fixação dos factos concretos terá, também, como referência as regras gerais empíricas ou as máximas da experiência que o juiz tem de valorar nos diversos momentos de julgamento

            Para Jaime Torres[6]importa distinguir dois tipos diferentes de regra de experiência: -as regras de experiência de conhecimento geral ou, dito por outra forma, as regras gerais empíricas cujo conhecimento se pressupõe existente em qualquer pessoa que tenha um determinado nível de formação geral e, por outro lado, as máximas de experiência especializada cujo conhecimento só se pode supor em sujeitos que tenham uma formação especifica num determinado ramo de ciência, técnica ou arte.

            Usando tais regras de experiência entendemos que o juiz pode utilizar livremente, sem necessidade de prova sobre elas, as regras de experiência cujo conhecimento se pode supor numa pessoa com a sua formação (concretamente formação universitária no campo das ciências sociais). O próprio ordenamento jurídico parte da liberdade do juiz para utilizar estas máximas da experiência de conhecimento geral sem que as mesmas se inscrevam no processo através da produção de prova.

            As razões que fundamentam a liberdade do juiz para a utilização dos seus conhecimentos de máxima da experiência são as mesmas que impõem a desnecessidade de fixação de factos notórios. Em qualquer um destes casos o que se pede ao juiz é que utilize os seus conhecimentos sobre máximas da experiência comum sem que importe a forma como os adquiriu 

            A necessidade de controle dos instrumentos através dos quais o juiz adquire a sua convicção sobre a prova visa assegurar que os mesmos se fundamentam em meios racionalmente aptos para proporcionar o conhecimento dos factos e não em meras suspeitas ou intuições ou em formas de averiguação de escassa ou nula fiabilidade. Igualmente se pretende que os elementos que o julgador teve em conta na formação do seu convencimento demonstrem a fidelidade as formalidades legais e as garantias constitucionais.

As regras da experiência, ou regras de vida, como ensinamentos empíricos que o simples facto de viver nos concede em relação ao comportamento humano e que se obtém mediante uma generalização de diversos casos concretos tendem a repetir-se ou reproduzir-se logo que sucedem os mesmos factos que serviram de suporte efectuar a generalização.             Estas considerações facilitam a lógica de raciocínio judicial porquanto se baseia na provável semelhança das condutas humanas realizadas em circunstâncias semelhantes a menos que outra coisa resulte no caso concreto que se analisa ou porque se demonstre a existência de algo que aponte em sentido contrário ou porque a experiência ou perspicácia indicam uma conclusão contrária.

            Como afirma Duran[7] o princípio da normalidade torna-se assim o fundamento de toda a presunção abstracta. Tal normalidade deriva da circunstância de a dinâmica das forças da natureza e, entre elas, das actividades humanas existir uma tendência constante para a repetição dos mesmos fenómenos. O referido principio está intimamente ligado com a causalidade: as mesmas causas produzem sempre os mesmos efeitos e tem justificação na existência de leis mais ou menos imutáveis que regulam de maneira uniforme o desenvolvimento do universo.

            O princípio da causalidade significa formalmente que a todo o efeito precede uma causa determinada, ou seja, quando nos encontramos face a um efeito podemos presumir a presença da sua causa normal. Dito por outra forma, aceite uma causa, normalmente deve produzir-se um determinado efeito e, na inversa, aceite um efeito deve considerar-se como verificada uma determinada causa. O princípio da oportunidade fundamenta a eleição da concreta causa produtora do efeito para a hipótese de se apresentarem como abstractamente possíveis várias causas. A análise das características próprias do facto permitirá excluir normalmente a presença de um certo número de causas pelo que a investigação fica reduzida a uma só causa que poderá considerar-se normalmente como a única produtora do efeito. Provado no caso concreto tal efeito deverá considerar-se provada a existência da causa.

            Do exposto resulta que o princípio da normalidade, como fundamento que é de toda a presunção abstracta, concede um conhecimento que não é pleno mas sim provável. Só quando a presunção abstracta se converte em concreta, após o sopesar das contraprovas em sentido contrário e da respectiva valoração judicial se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno.

Só este convencimento alicerçado numa sólida estrutura de presunção indiciária-quando é este tipo de prova que está em causa- pode alicerçar a convicção do julgador.

Num hipotético conflito entre a convicção em consciência do julgador no sentido da culpabilidade do arguido e uma valoração da prova que não é capaz de fundamentar tal convicção será esta que terá de prevalecer. Para que seja possível a condenação não basta a probabilidade de que o arguido seja autor do crime nem a convicção moral de que o foi. É imprescindível que, por procedimentos legítimos, se alcance a certeza jurídica, que não é desde logo a certeza absoluta, mas que, sendo uma convicção com géneses em material probatório, é suficiente para, numa perspectiva processual penal e constitucional, legitimar uma sentença condenatória. Significa o exposto que não basta a certeza moral mas é necessária a certeza fundada numa sólida produção de prova.

            A forma como se explana aquela prova fundando a convicção do julgador tem de estar bem patente o que se torna ainda mais evidente no caso da prova indiciária pois que aqui, e para alem do funcionamento de factores ligados a um segmento de subjectividade que estão inerente aos principio da imediação e oralidade, está, também, presente um factor objectivo, de rigor lógico que se consubstancia na existência daquela relação de normalidade, de causa para efeito, entre o indicio e a presunção que dele se extrai.

            Como tal a enunciação da prova indiciária como fundamento da convicção do juiz tem de se expressar no catalogar dos factos base ou indícios que se considere provados e que vão servir de fundamento á dedução ou inferência e, ainda, que na sentença se explicite o raciocínio através do qual e partindo de tais indícios se concluiu pela verificação do facto punível e da participação do arguido no mesmo. Esta explicitação ainda que sintética é essencial para avaliar da racionalidade da inferência.

                                                          *

       Mas, pergunta-se, serão quaisquer uns os indícios que permitem tal inferência lógica, ou seja, quais são os requisitos que devemos exigir para que o facto indiciante permita tal operação lógica?

-No funcionamento da prova indiciária não podemos omitir a exigência da gravidade do indício a qual está directamente ligada ao seu grau de convencimento: é grave o indício que resiste ás objecções e que tem uma elevada carga de perssuasividade como ocorrerá quando a máxima da experiência que é formulada exprima uma regra que tem um amplo grau de probabilidade. Por seu turno é preciso o indicio quando não é susceptível de outras interpretações. Mas sobretudo, o facto indiciante deve estar amplamente provado ou, como refere Tonini corre-se o risco de construir um castelo de argumentação lógica que não está sustentado em bases sólidas

Por fim os indícios devem ser concordantes, convergindo na direcção da mesma conclusão facto indiciante. Porém, uma perplexidade assalta o analista nestas áridas matéria na enumeração dos requisitos deste tipo de prova, pelo menos em face da lógica. É que ultrapassando a questão da necessidade de vários indícios, ou da suficiência de um indício, o certo é que, quando existe aquela pluralidade, coloca-se a questão do objecto em função dos quais se deve avaliar os requisitos enunciados. Nunca é demais sublinhar que é a compreensão global dos indícios existentes, estabelecendo correlações e lógica intrínsecas que permite e avaliza a passagem da multiplicidade de probabilidades, mais ou menos adquiridas, para um estado de certeza sobre o facto probando.

            Tal debate, crucial na jurisprudência italiana, tem tido três respostas diferentes: uma mais garantista; uma avaliação mais elástica e teleológica e uma tese intermédia. Para os primeiros os requisitos da gravidade; precisão e concordância devem verificar-se em relação a cada indício. Para a tese intermédia a avaliação da prova indiciária deve considerar os mesmos indícios em parte isoladamente e em parte na sua complexidade total. Mais precisamente o juízo de avaliação da prova indiciária deve acontecer em dois momentos bem distintos. No primeiro momento ocorre a avaliação de cada um dos indícios em termos de gravidade e precisão com o que se pretende, ante do mais, que cada indicio deve ser certo sobre a sua base de partida e, assim, deve estar rigorosamente provada a existência de uma circunstância indiciante; para além disso as regras de experiência comum; lógica ou científicas devem trazer á circunstância indiciante um número restrito e bem preciso de consequências devendo-se excluir da categoria de indicio todas as inferências excessivamente vagas. Só depois de se ter correctamente individualizado os indícios é possível- e necessário- passar á sua avaliação em termos de concordância por forma a restringir o campo das múltiplas possibilidades a uma única certeza.

A terceira tese coloca sobre um plano distinto os pressupostos e consequências. Segundo esta interpretação a prova indiciária deve emergir de uma avaliação global e unitária dos indícios: eles devem ser graves, precisos e concordantes, mas sempre numa perspectiva global, e não considerados isoladamente. É esta, no dizer de Tonini, a convergência na multiplicidade e o que importa é somente o resultado final de uma operação de co-avaliação dos indícios. Na verdade, o indício que, isoladamente, parece ser de pouca gravidade pode assumir uma importância decisiva no seu cotejo e articulação com os restantes indícios. 

                                                            *

  Pretendendo desenhar alguns dos princípios a que se refere a prova indiciária diremos que na mesma devem estar presentes condições relativas aos factos indiciadores; á combinação ou síntese dos indícios; á indiciárias combinação das inferências indiciárias; e á conclusão das mesmas    

Assim

1 )  Os indícios devem estar comprovados e é relevante que esta comprovação resulte de prova directa, o que não obsta a que a prova possa ser composta, utilizando-se, para o efeito, provas directas imperfeitas ou seja insuficientes para produzir cada uma em separado prova plena

 Porém, estamos em crer que a exclusão de indícios contigentes e múltiplos que não deixam dúvidas acerca do facto indiciante como prova de um facto judiciário, e pela simples circunstância de serem resultado de prova indirecta, é arbitral e ilógica e constitui um consequência de preconceitos considerando a prova indiciária como uma prova inferior

A prova por inspecção ocular é a que, normalmente facilita a recolha de indícios pelo menos numa fase inicial de recolha da prova. Porém, como acentua Clement Duran os demais meios probatórios também transmitem elementos indiciários de relevo. Assim pode suceder com uma declaração ou um documento, uma parte ou um segmentos dos quais pode fazer alusão a um facto indiciário que é relevante para o julgamento (por exemplo se era noite se o carro tinha ficado fechado ou aberto qual foi o preço de aquisição etc)

Directamente relacionada com a questão da unidade, ou pluralidade de indícios, que se examinará, situa-se a questão dos indícios periféricos ou instrumentais em relação ao facto probando. Significa o exposto que os factos indiciantes não têm de coincidir necessariamente com os que conformam o facto sujeito a julgamento, ou algum dos seus elementos, ou bem assim a autoria material do facto ilícito, mas podem tratar-se de factos que estão em conexão ou relação directa com aqueles, situando-se na sua periferia sendo indicativos da realidade do facto que se pretende provar. Isto significa que devem ser concomitantes, ou seja, que devem acompanhar-se entre si por constituir diversos aspectos fácticas de um determinado facto penalmente relevante e que, em consequência têm uma existência comum e em paralelo 

2) Os factos indiciadores devem ser objecto de análise crítica dirigida á sua verificação, precisão e avaliação o que permitirá a sua interpretação como graves, o médio ou o ligeiro. Porém, e como refere Bentham, não é pela circunstância de se inscreverem nesta última espécie que os indícios devem ser afastados pois que o pequeno indicio conjugado como outros pode assumir uma importância fundamental

3) Os indícios devem também ser independentes e, consequentemente, não devem considerar-se como diferentes os que constituam momentos, ou partes sucessivas, de um mesmo facto. Framarino ilustra este último ponto com o seguinte exemplo: “uma testemunha  terá visto o arguido sair precipitadamente da casa da licença de Ticio; outro tê-lo-á visto numa viela transversal á mesma casa e uma outra viu entrar no carro na mesma transeversal e ausentar-se”. Estas três declarações não servem dar a fé mais do que de um único fato do indiciário, do vôo, e deste fato, por mais do que é provado de mil maneiras, nunca constituem mais do que uma única indicação “.

 4) Quando não se fundamentem em leis naturais que não admitem excepção os indícios devem ser vários.

Todavia, a exigência formulada por alguns autores no sentido de existência de um determinado número de indícios concordantes não se afigura de todo razoável e antes se reconduz a uma exigência matemática de algo que se situa no domínio da lógica. De concreto pensamos que apenas se pode formular a exigência daquela pluralidade de indícios quando os mesmos considerados isoladamente não permitirem a certeza da inferência   

            Porém, quando o indício mesmo isolado é veemente, embora único, e eventualmente assente apenas na máxima da experiência o mesmo será suficiente para formar a convicção sobre o facto 

. 5) Os indícios devem ser concordantes, ou seja, devem conjugar-se entre si, de maneira a produzir um todo coerente e natural, no qual cada facto indiciário tome a sua respectiva colocação quanto ao tempo, ao lugar e demais circunstancias. Neste aspecto Devis Echandia refere que os indícios se pesam, e não se contam, motivo pelo qual não basta somente a pluralidade já que é indispensável que, examinados em conjunto produzam a certeza sobre o facto investigado e para que isto ocorra requere-se que sejam graves que concorram harmonicamente a apontar o mesmo facto.

6) As inferências devem ser convergentes ou seja não podem conduzir a conclusões diversas.

7)- Por igual forma deve estar afastada a existência de contra indícios pois que tal existência cria uma situação de desarmonia que faz perder a clareza e poder de convicção ao quadro global da prova indiciária.

    Transplantando o exposto somos interpelados para a verificação dos requisitos supra no contexto do caso vertente. No que respeita afirmamos que os mesmos indícios constatados na decisão recorrida são precisos, convergentes, graves e susceptíveis de fundamentar uma inferência lógica apontando para a autoria do crime de homicídio pelo recorrente e arguido.

         Na verdade,

 Inexistindo qualquer demonstração plausível e anódina para existência de vestígios de disparo no vestuário, e nas mãos do arguido, e para a existência de vestígios hemáticos; existindo uma relação de animosidade evidenciada na prova considerada provada é, ou não, lógico, e imposto pelas regras da experiência condicionadas pela gravidade dos indícios a conclusão de que foi o arguido o autor do crime?

-A resposta é, sem qualquer margem para dúvida, afirmativa. Para um cidadão comum é evidente que, não obstante a ausência de prova directa, a prova indiciária aponta, de forma insofismável, no sentido de que o arguido disparou a arma que matou, e que tal resulta de uma conjunção de indícios fortes, fornecidos pela prova pericial e pela prova testemunhal, os quais inculcam uma conclusão que nenhum outro elemento colocou em crise.  

            Aliás, nem sequer estamos perante um único indicio que, por mais forte que seja importa sempre uma ponderação da sua falibilidade, mas estamos perante uma convergência de indicios.

           Ao fim e ao cabo o recorrente persiste num erro comum na prática judiciária dos nossos tribunais que é o de renegar qualquer outra prova que não a directa ignorando que a prova indirecta ou indiciária pode assumir exactamente o mesmo valor senão superior.

IV

            Invoca, ainda, o recorrente a sua discordância em relação á forma como foi abordada a questão da aplicação do princípio “in dubio pro reo”.

            Estamos em crer que a questão foi indevidamente colocada. Na verdade, o princípio in dubio pro reo, constitucionalmente fundado no princípio da presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (artigo 32º, nº 2, da Constituição), vale só, evidentemente, em relação à prova da questão de facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão de direito. Aqui, a única solução correcta residirá em escolher não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que juridicamente se reputar mais exacto.

            Relativamente, porém, ao facto sujeito a julgamento o princípio aplica-se sem qualquer limitação e, portanto, não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude e da culpa, às condições objectivas de punibilidade, bem como às circunstâncias modificativas atenuantes e, em geral, a todas as circunstâncias relevantes em matéria de determinação da medida da pena que tenham por efeito a não aplicação da pena ao arguido ou a diminuição da pena concreta, Em todos estes casos, a prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido 

            Conforme refere Figueiredo Dias a sindicância do respeito pelo principio em causa configura uma questão de direito pois que se trata de um princípio geral do processo penal, pelo que a sua violação conforma uma autêntica questão de direito que cabe, como tal, na cognição do Supremo Tribunal de Justiça e das Relações ainda que estas conheçam apenas de direito. Nem contra isto está o facto de dever ser considerado como princípio de prova:- mesmo que assente na lógica e na experiência (e por isso mesmo), conforma ele um daqueles princípios que devem ter a sua revisibilidade assegurada, mesmo perante o entendimento mais estrito e ultrapassado do que seja uma "questão de direito" para efeito do recurso de revista.

            Pronunciando-se sobre questão em apreço este Supremo Tribunal tem assumido, genericamente, o entendimento de que tal principio se encontra, intimamente ligado ao da livre apreciação da prova (artº 127º, do C.P.Penal) do qual constitui faceta e este último apenas comporta as excepções integradas no princípio da prova legal, ou tarifada, ou as que derivem de uma apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa da prova produzida e ofensiva das regras da experiência comum.

            De tal pressuposto emerge a conclusão de que o aludido princípio "in dubio pro reo” se situa em sede estranha ao domínio cognitivo do Supremo Tribunal de Justiça enquanto tribunal de revista (ainda que alargada) por a sua eventual violação não envolver questão de direito (antes sendo um princípio de prova que rege em geral ou seja quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário), o que conduz a esta outra asserção de que o Supremo Tribunal de Justiça tão só está dotado do poder de censurar o não uso do falado princípio se, da decisão recorrida, resultar que o tribunal "a quo' chegou a um estado de dúvida patentemente insuperável e que perante ele, e mesmo assim, optou por entendimento decisório desfavorável ao arguido. Este Supremo Tribunal de Justiça só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o Tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido.

            Não se verificando a hipótese referida resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do art. 127.º do CPP que escapa ao poder de censura do Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista. (Ac. de 23/01/2003, proc. n. 4627/02-5).

Como se viu, a primeira instância não ficou em estado de dúvida quanto à ocorrência de qualquer facto, afastando decididamente a invocação do arguido em relação a uma detenção para consumo pessoal. E não tendo ficado em estado de dúvida, não cabe a invocação do princípio in dubio pro reo.

V

A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação sendo um tipo de culpa. Seguindo Roxin por tipo de culpa entende-se aquele que na descrição típica da conduta contem elementos da culpa que integra factores relativos á actuação do agente que estão relacionados com a culpa mais grave ou mais atenuada. A culpa consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto deste ter actuado em desconformidade com a ordem jurídica quando podia, e devia, ter actuado em conformidade com esta, sendo uma desaprovação sobe a conduta do agente. O juízo de censura, ou desaprovação, é susceptível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela actuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas. Em suma, o agente actua culposamente quando realiza um facto ilícito podendo captar o efeito de chamada de atenção da norma na situação concreta em que desenvolveu a sua conduta e, possuindo uma capacidade suficiente de auto controlo, e poderia optar por uma alternativa de comportamento.

            O especial tipo de culpa do homicídio qualificado é conformado através da especial censurabilidade ou perversidade do agente Como refere Figueiredo Dias a lei pretende imputar á especial censurabilidade aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refracção ao nível da atitude do agente de formas de realização do acto especialmente desvaliosas e á especial perversidade ou seja aquelas em que o juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no fato de qualidades do agente especialmente desvaliosas.

Enumera o normativo em análise um catálogo dos exemplos padrão e o seu significado orientador como demonstrativo do especial tipo de culpa que está associado á qualificação.

                                                                 *

Dentro de tal enumeração aquele que é especificamente chamado á colação no caso vertente é a denominada especial censurabilidade ou censurabilidade.

O crime de homicídio constitui uma violação do bem mais precioso de qualquer pessoa que é a própria vida e, como tal, será sempre inadmissível. Porém, o processo causal que leva á consumação de tal crime, isto é, a dinâmica de emoções e sentimentos que lhe esta associada assume uma policromia por tal forma plurifacetada que, necessariamente, terá de lhe corresponder uma maior, ou menor, compreensão da sua génese. Por outras palavras dir-se-á que, sendo sempre o objecto da mais viva reprovação jurídico criminal, o homicídio pode ter na sua origem uma situação que face á experiência comum poderia conduzir àquele desenlace (v.g. o confronto extremo para desagravo da honra: a defesa de bens que se consideram essenciais)

    Porém, casos existem em que o homicídio surge numa situação em que de todo não era expectável porquanto os motivos que lhe estão na causa são mínimos; são razões menores. A prática do crime surge aqui como resultado de um processo pautado pela ilógica, ou de plena irracionalidade, em que uma culpa do agente acentuada por um alto grau de censurabilidade leva a tirar a vida a alguém por razões fúteis.

     No caso concreto está em causa a prática de um crime de homicídio praticado com manifesta superioridade em razão da arma; com um tiro nas costas por razões fúteis ou de menor relevância.

      Uma culpa profunda; um dolo intenso e uma ilicitude densa.

      A pena aplicada não merece qualquer censura.  

   Nestes termos julga-se improcedente o recurso interposto confirmando-se a decisão recorrida que condenou AA na pena de vinte anos de prisão

Custas pelo recorrente.

Taxa de Justiça 5 UC

23 de Fevereiro de 2011


Santos Cabral
Oliveira Mendes


[1] Processo 4463/07
[2] Conf. Perfecto Andrés Ibanez “Acerca de la motivacion de los hechos  en la sentencia penal”
[3] Somente para elucidar sobre o cuidado colocado pelo Tribunal da Relação transcreve-se a decisão eemitida no que concerne ás duvidas colocadas: o arguido foram recolhidas amostras nas mãos, casaco e calças com vista á detecção de resíduos de disparos, e conforme relatório pericial de fls. 122 do LPC é-nos dito que:
“ - Nas amostras com vestígios recolhidos nas mãos, no casaco e nas calças do suspeito … foram detectadas partículas características de disparos de armas de fogo, sendo a composição das partículas detectadas compatível com a composição das partículas usualmente detectadas em resíduos originados pela deflagração de cartuchos de caça.
- Os resultados obtidos sugerem que o suspeito tenha disparado ou manuseado uma arma de fogo recentemente, ou que tenha estado muito próximo do(s) disparo(s).”
E quanto ás partículas detectadas nos resíduos recolhidos nas mãos, casaco e calças do arguido eram constituídas por chumbo, antimónio, bário e alumínio (texto do exame a fls. 122), e á conclusão de que são essas “partículas características de disparos de armas de fogo” e compatíveis com “ resíduos de disparos originado pela deflagração de cartuchos de caça”, ou seja o arguido tinha resíduos característicos dos disparos de armas de caça, mas mãos e na roupa. Mais refere o juízo pericial, que para o arguido ter esses vestígios nas mãos e na roupa era necessário:
- que tenha disparado uma arma de caça;
- ou que tenha manuseado uma arma de caça,
- ou que tenha estado muito próximo do disparo.
Não nos é dito que a arma de caça que disparou sobre o falecido e o matou foi usada ou manuseada pelo arguido ou que ele estava junto a ela quando disparou esse tiro, nem o podia dizer, e o tribunal também não diz que o exame o refere, nem podia referir por não fazer parte da perícia, e por outro lado não se refere o relatório pericial ao contrário do mencionado pelo recorrente a “vestígios de pólvora”, mas aos ”resíduos deixados pelo disparo de arma de fogo” ou seja originados pela deflagração dos cartuchos.
Para que exista o erro notório quanto aos exames periciais importaria que o tribunal tivesse divergido (não fundamentadamente) do juízo técnico expresso nos relatórios (artº 163º CPP) e não só não divergiu, como não se basta com o resultado de tais exames periciais para afirmar a autoria do crime, pois que afirma ““… o tribunal ficou convencido que foi o arguido quem matou o CC pelo seguinte: tinha um motivo, pois ficou exasperado com as diligências por ele empreendidas para impugnar a paternidade presumida do menor EE, cuja paternidade biológica atribuía ao arguido, e para obter o divórcio entre o seu filho e a DD, com quem o arguido mantinha relação amorosa, em ambas as acções mencionando expressamente o nome do arguido; além disso, as relações do arguido com a vítima eram más, chegando a ameaçá-lo de morte (“Vais saltar”); o arguido tinha más relações com a vítima e o seu filho; o arguido já foi visto a disparar armas de fogo e revela uma personalidade agressiva, inclusivamente em relação a pessoas com deficiência; ao arguido foram detectados nas mãos e roupa vestígios de pólvora tecnicamente compatíveis com o disparo que provocou a morte da vítima; finalmente, nas calças que o arguido usou no dia do crime foram detectados vestígios de sangue idênticos ao sangue da vítima; para decidir o contrário, o tribunal teria de dar crédito à tese de contaminação de provas e a algumas testemunhas providas de prodigiosa memória, ou pelo menos, teria de pensar que tais elementos de prova lhe criaram dúvidas, o que, manifestamente, não sucedeu”
e assim, por esta via inexiste o apontado vício.
Mas analisando a motivação, cremos que o arguido alega que esses exames não são suficientes para levar á conclusão tirada pelo tribunal de que o arguido disparou a arma de caça que causou a morte ao falecido, porque descurou outros exames (compatibilidade dos vestígios com os que deveriam existir na bucha retirada do corpo do falecido, e com as roupas do mesmo).
Mas cremos que não tem razão nessa alegação, não apenas porquanto tais factos são insindicáveis por via de recurso, dado que a alegação da “ insuficiência da prova” para decidir, é irrelevante como fundamento da alteração da matéria de facto (cfr. Ac. STJ 9/12/98 BMJ 482, 68), mas desde logo porque o tribunal não chega á autoria do crime apenas por esses factos, como se expressa na síntese da fundamentação supra transcrita, e depois porque os exames periciais, tal não afirmam nem pode afirmam, e quanto ao exame dos resíduos de disparos nas mãos e roupa se limita a constatar que as partículas detectadas nos resíduos recolhidos nas mãos, casaco e calças do arguido eram constituídas por chumbo, antimónio, bário e alumínio (texto do exame a fls. 122), e á conclusão de que são essas “partículas características de disparos de armas de fogo” e compatíveis com “ resíduos de disparos originado pela deflagração de cartuchos de caça”, ou seja o arguido tinha resíduos característicos dos disparos de armas de caça, mas mãos e na roupa.
Como refere o ilustre Procurador na sua Resposta, no que respeita á inexistência de exame á bucha do cartucho (de arma de caça) encontrada no interior do corpo do falecido (com os chumbos dele retirados) e mais especificamente aos vestígios do disparos na roupa da vitima, estes constatam que por “ter estado exposta à deposição de vestígios expelidos á boca do cano da arma” quaisquer resultados obtidos na pesquisa de resíduos de disparos seriam irrelevantes (exame a fls. 125), juízo pericial este que não é fundadamente contrariado pelo recorrente, o que aliado ás possibilidades expressas no relatório sobre a origem dos resíduos põe de lado a possibilidade de serem resíduos de resíduos (ou seja transmitidos por aperto de mão de quem disparou com arma de caça, ou contacto com esta para guardar, como aventa o arguido, mas que não explicaria, senão através de uma nova tese, a existência dos resíduos no casaco e calças), e a decisão recorrida expressa na sua fundamentação apenas que “… a composição das partículas detectadas compatível com a composição das partículas usualmente detectadas em resíduos de disparos originados pela deflagração de cartuchos de caça…” – fls. 681.
Por outro lado a hipótese de contaminação por ter pegado na arma de caça e colete do caçador para guardar, também não colhe e é de excluir, porque a ter ocorrido (conforme as declarações do arguido gravadas a 30´´30), foi logo ao abrir as bombas – ás 7,00 h - e antes de ir á caça (e logo antes de a arma ter disparado, e por isso sem recentes vestígios de pólvora) - caçador que ninguém mais viu por aquelas bombas  nomeadamente o seu patrão / dono das Bombas JJ, conforme depoimento gravado a 7´´50,  sendo inverosímil que tais vestígios assim “pegados” se mantivessem desde as 7,00h nas mãos do arguido ( não apenas pelo uso que delas fazia em condições normais: contacto com imensas coisas, desde mangueira de gasolina, bebidas que servia, dinheiro, gavetas, portas, cadeiras do café, panos de limpeza, lavagem das chávenas, copos …)  como pela necessidade de as lavar (idas ao WC, tomada de refeições etc) de acordo com as regras de normalidade e da experiência geral, e tudo é incompatível com as conclusões supra do resultado do exame pericial, que impõe, repete-se “que para o arguido ter esses vestígios nas mãos e na roupa era necessário que:
- tenha disparado uma arma de caça; ou que tenha manuseado uma arma de caça,  ou que tenha estado muito próximo do disparo.” e não apenas que nela tivesse pegado para guardar.
Acresce que a ausência de vestígios de resíduos (senão nos bolsos do casaco do arguido) pelo menos na zona do cós interior e nos bolsos das calças apela á ideia de que os vestígios nas mãos e roupa do arguido são recentes, pois não é normal  durante um dia não ter ocorrido que o arguido tivesse levado pelo menos uma vez as mãos a tais zonas do vestuário ali depondo resíduos que pudesse levar nas mãos.
Assim de acordo com a normalidade tais vestígios não podem resultar de simples contacto ao inicio do dia com a arma de um caçador antes de ir á caça, e mesmo que pudesse por alguma razão servir para os vestígios na mão (por ter pegado nela para guardar), não serviria certamente para os vestígios nas calças e no casaco.
Não existe assim qualquer incompatibilidade ou desconformidade factual, ou de processo racional e lógico na apreciação das provas;
Por outro lado, quanto á falta de exame á pólvora do cartucho encontrado junto do carro / Peugeot do arguido para saber se era igual ao da bucha que atingiu a vitima e á pólvora das roupas e mãos do arguido (uma vez que do exame á bucha resultou que é idêntica), dir-se-á como o próprio arguido refere que existem “ dezenas de tipos de pólvora” pelo que nunca se chegaria a nenhuma conclusão no que á autoria do crime respeita e por outro lado apenas teria relevo ou poderia ter interesse o exame a esse cartucho se pudéssemos dizer, com a certeza inerente a uma confissão, que esse cartucho encontrado junto ao carro Peugeot era do arguido (coisa que o arguido não admite), pelo que na falta de identidade do dono do cartucho, era irrelevante o exame mencionado para determinar a autoria.
Assim os resultados periciais mencionados não foram mal interpretados, nem contrariados nem estão em desacordo com outras provas;
No que respeita ao exame hematológico realizado ás manchas de sangue  existentes nas calças do arguido, através da análise de ADN, questiona-o o arguido, porque não indica onde foram encontradas essas manchas, que não deviam ser mais do que salpicos a existirem, não haver sangue noutras peças de vestuário, e o modo como o falecido se encontrava não permitia a ejecção do sangue pela ferida de entrada do projéctil.
O juízo pericial expresso no relatório é o seguinte: “ De acordo com os resultados obtidos na análise de DNA, para o conjunto de loci estudados:
 - há identidade de poliformismos dos vestígios hemáticos detectados no par de calças(2) e a amostra de sangue recolhida ao cadáver de CC”
Em face deste resultado e das questões suscitadas pelo arguido, cremos não poder dar-lhe razão, e desde logo porque não põe em causa este juízo pericial pois o que questiona é como aquele sangue foi “parar” ás calças do arguido (na sequência aliás da tese da contaminação das mesmas pela Policia Judiciária, que o tribunal refutou e não concedeu credibilidade), e
ora parte de pressupostos incorrectos - como acontece com a afirmação “de que no local do crime, apenas foi detectado sangue por baixo do cadáver, que se encontrava de decúbito ventral horizontal (deitado de costas para cima)” cfr. motivação a fls.753 e 1084verso,  e por isso “de difícil conciliação  com a ejecção de sangue pela ferida” e “seu depósito na roupa do autor do disparo “,
quando a realidade dos depoimentos em causa é oposta, pois  as testemunhas HH e  II, são bem explícitos ao referenciar nos seus depoimentos que o falecido foi por eles encontrado dizendo que: (gravação a 5´00) estava “ deitado de bruços com as mãos junto á cabeça, nariz e boca na vertical junto ao chão”,(a  7´55 )os do INEM “viraram o corpo” e (ás 9´00) “ voltaram-no ao contrario para pôr as máquinas ao peito” e (ás 9,55 ) “deram uma volta, viraram-no”(depoimento gravado do depoente HH),  ou /a 1´50 a 2´24 ) estava  “ de bruços, forquilha á frente, saca de lado, cabeça para baixo ao longo do caminho, caiu para a frente” e (a 3´30) INEM viraram-no e viram o sangue”  idem ás 11´00 ( depoimento gravado de II), também a fundamentação do acórdão onde se referem expressamente estas circunstâncias e a posição do corpo quando foi encontrado, radicalmente oposta á expressa na motivação do recurso) - donde se verifica a possibilidade de ejecção de sangue não apenas aquando do disparo (a 90 cm), mas também aquando da queda para a frente da vitima.
Pois que o saltar / respigar do sangue aquando do disparo é perfeitamente possível e verosímil, em face da proximidade da pessoa que disparou (disparo a 90 cm), resultado da violência do disparo, e altura do disparo: zona abdominal, e choque do corpo no chão, o que justifica também a pequena quantidade de sangue assim expelida no momento do disparo e queda. 
- e indemonstrados: de que essas manchas se encontrem na parte de trás das calças, ou que teriam de existir noutras peças de roupa, e teriam de ser salpicos, como se as calças não estivessem em uso e não fossem usadas (as calças onde estava o sangue foram as que o arguido usou nesse dia e por ele entregues á Policia Judiciária,  pois em face do uso qualquer “salpico” seria desfeito convertendo-se em mancha)
Não deu o tribunal recorrido crédito á tese da contaminação pela Policia Judiciária aquando da recolha da roupa entregue pelo arguido, e independentemente das razões que invoca, depois de ouvir a gravação das declarações do arguido e dos depoentes Inspectores da PJ não vemos razões para contrariar essa convicção, tanto mais que a ser verdade o que alega o arguido as roupas foram por si entregues dentro de um saco de plástico, e para haver contaminação ( que o arguido deixa pairar no ar que seria no porta bagagens do carro da PJ: local para onde teria atirado com as roupas – gravação das declarações do arguido a 21´20) teria de haver sangue do falecido no porta bagagens do carro da PJ e em condições de liquidez de se “pegar” á roupa do arguido, matéria acerca da qual nenhuma prova ou principio de prova foi sequer feita pois tal ninguém aventa ou sequer pensa, e que se saiba o transporte do corpo do falecido não foi feito no porta bagagens do carro da PJ, mas certamente pelo INEM que estava no local;
(A latere há a salientar que o tribunal não deu credibilidade á tese do arguido de contaminação - através do aperto de mão a caçadores e guarda de arma, não apenas em face do teor do relatório que indica as várias possibilidades de deposição daqueles resíduos (na qual não cabe a de transmissão de resíduos por outrem), e  porque ninguém viu lá no local de trabalho do arguido (bombas de gasolina) armas ou caçadores, incluindo o seu patrão JJ (cfr. seu depoimento gravado de 7.59 a 8.08), sendo que a deposição no corpo do arguido daqueles resíduos são compatíveis com a posição de disparo (a meio corpo), e nem o arguido nas suas declarações refere expressamente aquele facto (transmissão de resíduos) como ocorrido, mas apenas como uma hipótese (cfr. as suas declarações gravadas a 18,01 a 19,35 em contradição aliás com as suas declarações prestadas em 1º interrogatório judicial, com que foi confrontado em audiência, onde negava tais contactos e as explicações dadas conforme 2ª gravação das declarações de 00,35 a 02,35) - ou do modo como a roupa foi entregue pelo arguido e recolhida pelos agentes da PJ.);  
Assim também aqui se verifica que os resultados periciais mencionados não foram mal interpretados, nem contrariados nem estão em desacordo com outras provas, não havendo incompatibilidade ou desconformidade factual ou de processo racional e lógico;
E numa apreciação global  se tivermos em conta que o tribunal recorrido, para chegar á decisão que proferiu, não se bastou com o resultado dos exames periciais, antes procedeu á valoração todo um conjunto de meios de prova, incluindo aqueles, que o levaram a sintetizar no final da fundamentação, a existência de motivo, personalidade do arguido e relações existentes entre o arguido e falecido e seus familiares, verificamos que não existe insuficiência de averiguação ou de indagação de factos, nem a apreciação do resultados dos exames periciais realizada pelo tribunal se encontrava eivada de qualquer vicio, e basta atentar que se está perante uma recente e forte (ou acentuada) exposição aos resíduos do disparo, por resistirem ao uso e manuseamento do vestuário pelo arguido, e bem assim os resíduos das mãos, que resistiram à sua lavagem (como referido e em condições normais teria acontecido, pois conforme as suas declarações saiu do serviço foi para a casa, fez alguns trabalhos, tirou a roupa, jantou e regressou ás bombas ver o futebol e regressou a casa, e só nessa altura foram colhidos os vestígios nas mãos e no dia seguinte entregou as roupas), denunciadora de uma incompatibilidade de contaminação por “simples” toque.
[4] Juiz Conselheiro Henriques Gaspar
[5] cfr., v. g., acórdãos deste Supremo Tribunal, no BMJ nºs. 476, pág. 82; 477, pág, 338; 478, pág. 113; 479, pág. 439, 494, pág. 207 e 496, pág. 169).
[6] Presuncion de incencia y prueba en el processo penal pag 65
[7] Carlos Climent Duran “La Prueba Penal” pag 611