Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
735/14.0TBPDL-Q.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ RAINHO
Descritores: INSOLVÊNCIA
RECURSO DE REVISTA
REVISTA EXCECIONAL
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
DIREITO AO RECURSO
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 04/27/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: NÃO SE CONHECE DO OBJECTO DO RECURSO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO.
Sumário :
I - O objetivo da al. d) do n.º 2 do art. 629.º do CPC é possibilitar o acesso ao terceiro grau de jurisdição aos casos em que, por determinação legal, tal estaria à partida impedido (por razões estranhas à alçada).
II - Pretendeu-se desse modo permitir o recurso de revista naquelas situações em que a lei, atendendo à especialidade da matéria (natureza da ação ou procedimento), entendeu afastar normalmente a possibilidade de acesso a um terceiro grau de jurisdição.
III - Não caem nesse pressuposto o art. 854.º e a al. a) do n.º 2 do art. 671.º do CPC e daqui que a menção que ali se faz “aos casos em que o recurso é sempre admissível” não abrange a hipótese prevista na al. d) do n.º 2 do art. 629.º do CPC.
Decisão Texto Integral:


Processo n.º 735/14.0TBPDL-Q.L1-A.S1

Acordam em conferência no Supremo Tribunal de Justiça (6ª Secção):

Vem interposto recurso de revista por Monopoly, Lda. contra o acórdão da Relação de Lisboa proferido nos autos (em 26 de janeiro de 2021) e que confirmou o despacho da 1ª instância (de 8 de junho de 2020).

O recurso foi introduzido como revista excecional, sob invocação da alínea c) do n.º 1 do art. 672.º do CPCivil[1].

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Neste Supremo Tribunal de Justiça proferiu o relator despacho preliminar fundamentado onde expressou que o recurso não seria admissível, abrindo às partes a possibilidade de pronúncia sobre essa inadmissibilidade.

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Pronunciou-se a Recorrente Monopoly, Lda., concluindo pela admissibilidade do recurso.

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Cumpre apreciar e decidir, o que se faz desde já em conferência.

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O recurso não é admissível.

Justificando:

A decisão recorrida incidiu sobre a questão, suscitada pela proponente Monopoly, Lda. no âmbito do processo de liquidação do ativo insolvencial (apenso M), da anulação da venda (nos termos do art. 839.º, n.º 1, al. c) do CPCivil) da verba 51 do auto de apreensão de bens[2], por isso que o Administrador da Insolvência teria deixado indevidamente de lhe dar oportuno conhecimento da existência de uma outra proposta (apresentada por certos credores) de valor superior para que, querendo, pudesse apresentar nova proposta que superasse o valor daquela outra.

Estamos, deste modo, perante decisão que apreciou uma decisão interlocutória da 1ª instância que recaiu unicamente sobre a relação processual.

Ao processo de liquidação insolvencial aplica-se naturalmente (como aliás é pressuposto pela Recorrente), na falta de regulamentação específica no CIRE, o regime geral estabelecido no CPCivil (art. 17.º do CIRE) em matéria executiva (v. a propósito a primeira parte do art. 1.º do CIRE)[3].

Portanto, é irrecusável que se lhe aplica o art. 854.º do CPCivil.

E desta norma decorre que não é admissível recurso de revista (seja ordinária, seja excecional, pois que revista há só uma[4]) numa situação como a vertente[5], sendo que não estamos perante qualquer um daqueles casos (os indicados no n.º 2 do art. 629.º do CPCivil) em que o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça é sempre admissível.

E mesmo que não fosse de aplicar o referido art. 854.º, sempre teria que ser aplicado o n.º 2 do art. 671.º do CPCivil, de que igualmente resulta que não seria admissível recurso de revista num caso como o vertente, na medida em que não concorre aqui qualquer uma das exceções previstas nas suas duas alíneas.

De observar que a apreciação da admissibilidade do recurso de revista no quadro destas duas normas legais nada tem a ver com o regime da revista excecional. Tratando-se embora de recursos de admissão especial, não são recursos de admissão excecional na aceção do art. 672.º do CPCivil[6].

Uma consequência desta constatação é que não tem o presente recurso que ir à decisão da formação a que alude o n.º 3 desta norma, competindo antes corrigir a qualificação do recurso (pois que foi erradamente interposto como revista excecional) e fazê-lo seguir na forma adequada (revista ordinária).

Isto posto:

Invoca a Recorrente, com vista a justificar a admissibilidade do recurso, uma contradição de julgados. Na sua perspetiva o acórdão recorrido estaria em contradição com o acórdão da Relação de Coimbra de 15 de novembro de 2016, proferido no processo n.º 2112/12.9TBLRA-F.C1, e de que juntou cópia com nota do trânsito em julgado.

Dir-se-ia então que, visto o disposto na primeira parte do art. 854.º (ou na alínea a) do n.º 2 do art. 671.º), o recurso seria admissível nos termos da alínea d) n.º 2 do art. 629.º do CPCivil.

Ocorre, porém, que é de entender que a alínea d) do n.º 2 do art. 629.º do CPCivil não tem qualquer aplicação a um caso como o vertente.

Efetivamente[7], a boa interpretação da lei vai no sentido de que tal norma tem em vista exclusivamente aqueles processos em que a lei limita absolutamente o direito ao recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, como sucede, por exemplo, nas hipóteses do n.º 2 do art. 370.º do CPCivil ou do n.º 5 do art. 66.º do Código das Expropriações (neste sentido, v. os acórdãos deste Supremo de 18 de setembro de 2014, processo n.º 1852/12.7TBLLE-C.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt; de 26 de novembro de 2019, processo n.º 1320/17.0T8CBR.C1-A.S1, disponível em www.dgsi.pt; de 10 de dezembro de 2019, processo n.º 704/18.1T8AGH-A.L1.L1.S2, disponível em www.dgsi.pt; de 11 de fevereiro de 2020, processo n.º 383/17.3T8BGC-B.P1.S2; de 27-02-2020, processo n.º 14021/17.0T8LSB.L1.S1, estes dois últimos sumariados em www.stj/jurisprudência/acórdãos/sumários).

Pretendeu-se, dessa forma, permitir o recurso de revista naquelas situações em que, atendendo à especialidade da matéria (natureza da ação ou procedimento), a lei entendeu adequado abduzir a possibilidade de acesso a um terceiro grau de jurisdição. Deste modo, o recurso previsto na alínea d) do n.º 2 do art. 629.º visa garantir (esta, repete-se, a sua ratio) que não fiquem sem possibilidade de pronúncia por parte do Supremo conflitos na jurisprudência das Relações em matérias que nunca poderiam vir a ser apreciadas pelo Supremo Tribunal de Justiça, porque, independentemente do valor das causas a que respeitem, o recurso para este tribunal está à partida afastado.

Portanto, não é simplesmente porque se regista uma contradição de julgados a nível das Relações quanto à mesma questão fundamental de direito que o recurso de revista (e ainda por cima independentemente do valor da causa e da sucumbência) se torna sempre admissível à luz da alínea d) do n.º 2 do art. 629.º Abonando o que vem sendo referido, atente-se no seguinte apontamento de Miguel Teixeira de Sousa (https://blogippc.blogspot.com/2015/06/jurisprudencia-157.html): «se todos os acórdãos da Relação em contradição com outros acórdãos da Relação admitissem a revista “ordinária” nos termos do art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC, deixaria necessariamente de haver qualquer justificação para construir um regime de revista excecional para a contradição entre acórdãos das Relações tal como se encontra no art. 672.º, n.º 1, al. c), CPC», de sorte que «a única forma de atribuir algum sentido útil à contradição de julgados das Relações que consta, em sede de revista excecional, do art. 672.º, n.º 1, al. c), CPC é pressupor que a revista “ordinária” não é admissível sempre que se verifique essa mesma contradição», na medida em que só «nesta base é possível compatibilizar a vigência do art. 672.º, n.º 1, al. c), CPC com a do art. 629.º, n.º 2, al. d), CPC».

Relativamente à ilogicidade da aplicação literal da alínea d) do n.º 2 do art. 629.º do CPCivil (o que também não deixa de valer para o caso do art. 854.º), por força da alínea a) do n.º 2 do art. 671.º, cite-se ainda o acórdão deste Supremo de 30 de abril de 2020 (processo n.º 7459/16.2T8LSB-A.L1.S1, sumariado em www.stj/jurisprudência/acórdãos/sumários), onde se avança que por razões de coerência interna do regime de recursos para o Supremo deve entender-se que esta última norma não abrange a hipótese prevista na al. d) do n.º 2 do art. 629.º, sob pena de os requisitos de admissibilidade do recurso para o Supremo de uma decisão intercalar serem mais amplos do que o recurso que viesse a ser interposto de uma decisão final (no mesmo sentido, cite-se também o acórdão deste Supremo de 11 de fevereiro de 2020, processo n.º 383/17.3T8BGC-B.P1.S2, sumariado em www.stj/jurisprudência/sumários).

Conclusão: não é admissível a presente revista, uma vez que não ocorre nenhum dos pressupostos especiais de admissibilidade previstos nos art.s 854.º e 671.º, n.º 2, alínea a) (com reporte à alínea d) do n.º 2 do art. 629.º), todos do CPCivil.

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No seu pronunciamento quanto à pré-anunciada inadmissibilidade do recurso diz a Recorrente que é interveniente acidental no processo, concluindo a partir daí que a interpretação acima exposta, e que leva à inadmissibilidade do recurso, a discrimina e prejudica injustificadamente (no confronto de quem for parte).

Mas é uma conclusão que não pode ser subscrita, na medida em que tal interpretação vale para todos os sujeitos processuais, sejam estes intervenientes acidentais ou sejam partes. A interpretação em causa é de aplicação geral, nada tem a ver especificamente com a qualidade ou com o estatuto (de interveniente acidental, proponente) que cabe à Recorrente.

Mais vê a Recorrente na referida interpretação desvalores constitucionais, convocando para o caso os art.s 20.º, n.º 4 (com reporte ao direito a um processo equitativo) e 13.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa.

Também aqui se afigura que está desviada da razão.

Com efeito, e como acaba de ser dito, a interpretação que leva a concluir pela inadmissibilidade do recurso é de aplicação geral, nada tendo a ver com a circunstância de se ser ou não interveniente acidental. Logo, sendo a solução processual igual para todos aqueles que se encontrem em situação igual, não se pode dizer que está a ser postergado o princípio da igualdade.

E também não se pode falar aqui em processo não equitativo.

Pois que não se vê que esteja em causa qualquer limitação desproporcionada ou irrazoável de acesso aos tribunais.

Em boa verdade, a questão não passa o limiar do modo como o legislador entendeu organizar o sistema de recursos.

Como se apontou no acórdão deste Supremo de 9 de junho de 2021 (Processo n.º 1155/20.3T8CSC-D.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt)[9]:

“(…) em matéria de processo civil não existe constitucionalmente um direito irrestrito ao recurso.

É verdade que alguma doutrina (assim, Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4ª ed., p. 418; Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, p. 200) defende que o recurso das decisões judiciais que afetem direitos fundamentais, mesmo fora do âmbito penal, pode apresentar-se como garantia imprescindível desses direitos.

Mas isto tem unicamente em vista a garantia de recurso, não se confundindo com qualquer pseudo-direito a um triplo grau de jurisdição.

Não há qualquer imposição constitucional no sentido de que toda e qualquer causa cível deva poder ser revista pelo Supremo, sendo a lei ordinária livre de, dentro dos amplos poderes de modelação do processo que a Constituição lhe reconhece, determinar os casos em que tal poderá acontecer. (…)

Ora, no caso vertente, a estar eventualmente em causa algum direito fundamental (o que nos parece nem sequer ser o caso), o direito ao recurso já foi garantido (duplo grau de jurisdição), com o que sempre estaria cumprida a suposta garantia constitucional.

E se a lei ordinária não admite a intervenção de uma terceira jurisdição (neste caso, o Supremo), isso é apenas a forma (constitucionalmente legítima) como entendeu organizar o sistema de recursos, organização essa a que este tribunal deve obediência.”

Deste modo, a circunstância de, na apontada interpretação, resultar da lei a inadmissibilidade do presente recurso de revista tendente a impugnar uma decisão interlocutória que recaiu unicamente sobre a relação processual, isso não contende só por si com o direito a um processo equitativo. Uma tal impossibilidade de acesso ao recurso a um terceiro grau representa apenas a forma (constitucionalmente legítima) como a lei ordinária entendeu organizar o sistema de recursos (neste caso entendeu a lei que era suficiente um duplo grau de jurisdição), organização essa a que este tribunal deve obediência.

Por último:

Menciona a Recorrente um acórdão deste Supremo (acórdão de 8 de setembro de 2021, processo n.º 122900/17.2YIPRT-C.E1.S1, publicado em www.dgsi.pt) no qual se avança uma interpretação diversa daquela que está aqui a ser defendida, e em cuja argumentação se louva.

Ora, quanto a isto diremos simplesmente que não é desconhecido de ninguém que a interpretação (sua exata abrangência) da alínea d) do n.º 2 do art. 629.º do CPCivil não concita unanimidade neste Supremo. Da nossa parte, e respeitando embora entendimento diverso, cremos que a melhor interpretação é aquela que acima ficou exposta e que tem sido reiteradamente assumida em casos similares.

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Decisão

Pelo exposto acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar inadmissível o recurso de revista aqui em causa (o interposto sob a invocação de contradição de julgados), que se considera findo por não haver que conhecer do seu objeto.

Regime de custas

A Recorrente é condenada nas custas do presente incidente a que dá causa. Taxa de justiça: 3 Uc’s.

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Lisboa, 22 de abril de 2022

José Rainho (Relator)

Graça Amaral

Maria Olinda Garcia

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Sumário (art.s 663º, nº 7 e 679º do CPCivil).

                                                          

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[1] O recurso também foi introduzido sob a invocação das alíneas a) e b) do art. 672.º do CPCivil, mas nessa parte está já definitivamente decidido que o recurso não é admissível, razão pela qual o presente despacho não se lhe aplica.
[2] E também da verba 46. O presente recurso de revista é, todavia, expressamente circunscrito à verba 51.
[3] De facto, o processo de insolvência, na sua fase de liquidação do ativo, resolve-se basicamente numa execução, com a particularidade de ser universal, visando-se com ele precisamente (embora não inevitavelmente) liquidar e distribuir o produto dos bens do devedor pelos credores (o que é a função própria do processo executivo). Como diz. Amâncio Ferreira (Curso de Processo de Execução, 3ª ed., pp. 250 e 251), podemos distinguir três tipos de execução: a execução singular (nesta apenas intervém o credor que executa), a execução coletiva especial (a que só são admitidos os credores que beneficiam de garantias reais) e a execução coletiva universal (a que são admitidos todos os credores), que é a insolvência.
[4] A chamada revista excecional o que significa é apenas uma admissão excecional da revista, com vista a superar o obstáculo à irrecorribilidade ditada pela dupla conforme.
[5] Sendo de observar que a liquidação de que aí se fala nada tem, obviamente, a ver com a liquidação do ativo insolvencial aqui em presença.
[6] Isto tem sido particularmente evidenciado a propósito do n.º 2 do art. 671.º. V. neste sentido (e entre muitos outros) os acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça de 15 de dezembro de 2020 (processo n.º 330/19.8T8OAZ-D.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt), de 2 de março de 2021 (processo n.º 1257/13.2TJCBR-AD.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt) (de cujo sumário se contém que: “II - Os acórdãos da Relação que apreciem decisões interlocutórias que recaiam unicamente sobre a relação processual só podem ser objeto de revista nas situações referidas nas als. a) e b) do n.º 2 do art. 671.º do CPC. III - O acórdão da Relação que recai sobre decisão interlocutória confinada à relação processual não é suscetível de recurso de revista excecional, por a situação quadrar precisamente no disposto no art. 671.º, n.º 2, do CPC” e de 11 de abril de 2019 (Revista excecional n.º 1355/10.4JPRT-I.P1.S1). Pode ler-se do sumário deste último acórdão (acessível em www.stj/jurisprudência/revista/excecional) que “O acórdão da Relação que recaiu sobre decisão interlocutória confinada à relação processual não é suscetível de recurso de revista excecional, por a situação quadrar no disposto no art. 671.º, n.º 2, do CPC.”
[7] E aqui estamos a ultrapassar a questão de saber se a alínea d) do n.º 2 do art. 629.º do CPCivil não será de aplicação restrita às decisões finais, excluindo-se da sua previsão, pois, as decisões interlocutórias (como seria aqui o caso). V. a propósito Lebre de Freitas, Ribeiro Mendes e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3.º, 3.ª ed., anotação ao artigo 629.º.
[9] Assim sumariado: “III- Não há qualquer imposição constitucional no sentido de que toda e qualquer causa cível deva poder ser revista pelo Supremo, sendo a lei ordinária livre de determinar os casos em que tal poderá acontecer.”