Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2835/14.8TCLRS.L1.S1
Nº Convencional: 6ª. SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
BEM IMÓVEL
SENTENÇA CRIMINAL
BURLA QUALIFICADA
USO DE DOCUMENTO FALSO
TRÂNSITO EM JULGADO
OBJECTO IMPOSSÍVEL
NULIDADE DO CONTRATO
SIMULAÇÃO ABSOLUTA
CONHECIMENTO OFICIOSO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DECISÃO-SURPRESA
SANEADOR-SENTENÇA
Data do Acordão: 06/07/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: ANULADO O ACÓRDÃO RECORRIDO POR AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Área Temática:
DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGÓCIO JURÍDICO / NULIDADE DO NEGÓCIO - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / GARANTIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES / IMPUGNAÇÃO PAULIANA.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / DESPACHO SANEADOR / SENTENÇA / EFEITOS DA SENTENÇA / RECURSOS / RECURSO DE REVISTA / JULGAMENTO DA REVISTA / AMPLIAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO.
Doutrina:
- Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil”, 843/844, e nota de rodapé 940.
- Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, “Código de Processo Civil” Anotado, vol. 2, 691.
- Lopes do Rego, Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª edição, p. 563.
- Pinto Furtado, Curso do Direito das Sociedades, 3.ª edição, 438 a 441.
- Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, I Volume, 258; “Código Civil” Anotado, 4.ª edição, 634, nota 5.
- Vaz Serra, “Responsabilidade Patrimonial”, no BMJ 75, 287.
Comentário ao “Código Civil” Parte Geral, em anotação ao artigo 280.º, 694 e 695.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 240.º, 280.º, 610.º, 616.º, N.ºS 1 E 4.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 3.º, N.º 1, 595º, Nº1, B), 623.º, 672.º, N.º1, AL. B), 682.º, N.º 3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 28.3.96, IN CJ/STJ, 1996, I, 159.
Sumário :
1. Não podem os Tribunais ser alheios ao sentido de justiça dominante na sociedade que é o que as pessoas de bem acolhem intemporalmente. Um negócio jurídico de compra e venda e outros sequentes, tendo por objecto imóveis de outrem, que o vendedor adquiriu por actuação criminosa sancionada com sentença transitada em julgado, não pode ser considerado válido: é nulo por ser legalmente impossível, decorrendo essa nulidade do art. 280º, do Código Civil.

2. Tendo em conta alegação da Autora, sobretudo, no que deve ser articulado com a sentença transitada em julgado proferida em processo-crime, foi prematuro julgamento do mérito de causa no despacho saneador, por aí se ter entendido que a Autora não dispunha de um direito de crédito, no enfoque do seu pedido correspondente ao da acção de impugnação pauliana.

3. A provarem-se os factos alegados pela Autora, o Tribunal poderá considerar a nulidade dos negócios jurídicos celebrados pelos Réus, invocados como causa de pedir, não só pela via do conhecimento oficioso de simulação absoluta, se provados os pertinentes requisitos, como também por violação do art. 280º do Código Civil, como se assinalou.

4. A ordem jurídica não tolera, que, com base em actos sancionados com condenação penal transitada em julgado, possam subsistir negócios jurídicos de cariz patrimonial lesivos da Autora, praticados pelo arguido, agora 1º Réu, que são sequentes e supõem a sua actuação criminosa – um crime de burla qualificada e outro de falsificação de documento (uso de documento falso) – e que beneficiaram os demais Réus em indiciado conluio.

Tal julgamento terá que observar o princípio do contraditório, devendo as partes ser previamente notificadas da possibilidade de tal julgamento, visando evitar que se profira decisão-supresa.

Decisão Texto Integral:

Proc. 2835/14.8TCLRS.L1.S1

R-550[1]

Revista

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

           

Associação de Proprietários e Moradores do AA, Zona Norte”, intentou, em 13.5.2014, no Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Loures – Vara de Competência Mista – acção declarativa de condenação sob forma de processo comum – contra:

1. BB

           

2. CC;

           

3. DD;

           

4. EE;

           

5. FF;

6. “GG-Mediação Imobiliária, Lda.”

Alegaram que o primeiro Réu se apropriou de património da Autora e foi condenado em processo-crime a devolver os lotes identificados.

O primeiro Réu passou o património para a 6ª Ré que tinha como sócios os outros réus filhos do primeiro.

Concluiu, pedindo que se julgue procedente a impugnação e declare a ineficácia dos actos de alienação dos 10 lotes em relação à Autora e, ordene a restituição desses imóveis, reconhecendo a possibilidade da Autora executar ou praticar actos de conservação de garantia patrimonial sobre os referidos imóveis na medida do seu direito de crédito no património da 6ª Ré.

Notificados para contestar, impugnaram os factos e invocaram a excepção da litispendência com o processo-crime a correr termos sobre os mesmos factos, além da caducidade da acção.

As excepções foram julgadas improcedentes.


***

Dispensada a audiência prévia, saneados os autos, decididas as excepções, no despacho saneador foi proferida decisão que julgou improcedente a acção.


***

Inconformada a Autora recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por Acórdão de 22.10.2015 – fls. 587 a 602 –, negou provimento ao recurso confirmando a decisão recorrida.


***

De novo inconformada recorreu de revista excepcional para este Supremo Tribunal de Justiça, – que admitiu o recurso por Acórdão de fls.657 a 659 – e, alegando, formulou as seguintes conclusões:

1. O n.°3 do art. 721° do Código de Processo Civil aplicável ex vi artigo 7.°, nº1, da Lei 41/2013 de 26 de Junho que aprova o Novo Código de Processo Civil consagra a dupla conforme, sendo que é admitido excepcionalmente recurso de revista nos termos do artigo 672.° n.°1 alínea a) do Novo Código de Processo Civil.

2. Para que seja admitida a Revista Excepcional, exige-se que a questão possa entrar em colisão com valores sócio-culturais suscitar alarme social em que, nomeadamente, fique posta em causa a eficácia do direito e a sua credibilidade, por se tratar de casos em que há um invulgar impacto na situação da vida que a norma ou as normas jurídicas em apreço visem regular, ou em que exista um interesse comunitário que, pela sua peculiar importância, pudesse levar ir, por si só, à admissão da revista por os interesses em jogo ultrapassarem significativamente os limites do caso concreto.

3. Com esta decisão o Tribunal da Relação de Lisboa não logrou apreciar a ineficácia dos actos de alienação dos dez lotes, e bem assim determinar a restituição desses imóveis, reconhecendo à Recorrente a possibilidade de executar ou praticar os actos de conservação de e garantia patrimonial obre os respectivos imóveis na medida do seu direito de crédito.

4. Os interesses comunitários aqui em causa visam não só a afectação da comunidade em geral, mas sobretudo a que respeita à associação de moradores do bairro de génese ilegal, composto sobretudo por reformados e pessoas com baixos recursos económicos, atento o reflexo de decisões que resultem de uma parca ponderação de valores e que, naturalmente, implica a degradação de tais interesses, quando não são atendidos os seus direitos.

5. É importante referir que o 1° Recorrido foi presidente da Recorrente e que, por essa via e na qualidade de representante legal, adjudicou e registou a seu favor inúmeros lotes e, acto contínuo, outorgou em dia 27 de Junho de 2002 uma procuração a favor dos 2.° e 3.° Recorridos, conferindo-lhes poderes necessários para vender ou prometer vender os bens dos quais se havia indevidamente apropriado.

6. Nessa sequência foi feita uma denúncia por um grupo de 79 proprietários da Recorrente – com data de 2 de Maio de 2002, na Procuradoria-Geral da República, a qual deu origem ao processo-crime no qual o 1.° Recorrido foi condenado por 1 (um) crime de falsificação e 1 (um) crime de burla qualificada.

7. A verdade é que a partir do momento em que os Recorridos tomaram conhecimento que a transmissão dos lotes para a sua propriedade estava posta em causa, estes gizaram um plano para obstar a que isso viesse a suceder.

8. A Recorrente tem combatido judicialmente, nos estritos termos da lei, para que lhe sejam devolvidos o conjunto de lotes que o 1.° Recorrido, em conjunto com os demais, se apropriaram ilegitimamente, crédito que até à presente data continuar sem satisfazer.

9. Todas estas condutas são reveladoras de que o 1.° Recorrido tudo fez para impossibilitar o cumprimento do crédito, procurando sempre, simultaneamente, engendrar justificações que lhe permitissem, num futuro previsível delapidar todo o seu património, colocando-se numa situação de insolvência premeditada que em tudo lhe impossibilitaria cumprir qualquer decisão judicial.

10. O T.R.L, ao decidir como decidiu, desvalorizou os interesses dos 489 proprietários moradores daquele bairro, que não só se sentem profundamente lesados e enganados na via judicial para acautelar o seu direito de crédito.

11. Por todo o exposto só pode concluir-se que a decisão de improcedência da presente acção terá consequências devastadoras para comunidade de moradores que se sente desacreditada pelas sucessivas decisões judicias que em tudo parecem acompanhar os actos de incumprimento, culposos e ilegais que norteiam o comportamento do 1.º Recorrido e dos demais Recorridos em pleno conluio com aquele!

12. Num estado de Direito como aquele em que vivemos e sobretudo numa altura em que a confiança nos meios judiciais deve ser reforçada, não poderão V. Exas., salvo o devido respeito que é muito, compactuar com tais condutas e deixar na impunidade quem tudo fez para prejudicar seriamente os seus concidadãos!

13. O que pretende a Recorrente com este Recurso é acautelar o seu direito de crédito, impugnando todos os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito, até porque a assim não ser estaria aberto o “Ovo de Colombo” para todos os devedores poderem dissipar dolosamente o seu património, escudando-se assim de garantir o crédito e satisfazê-lo, o que reveste particular relevância social, atenta a indispensabilidade do credor ver salvaguardado o pagamento do seu crédito, podendo praticar medidas conservatórias que impeçam a dissipação desses bens.

14. A Recorrente não pode concordar com a solução jurídica alcançada no sentido de não proceder o pedido de ineficácia dos actos de alienação dos 10 (dez) lotes e, em consequência ordenar a restituição desses imóveis – o que, ao contrário do que refere o T.R.L, na página 15, faz parte do pedido da Recorrente –, reconhecendo a possibilidade da Autora executar ou praticar actos de conservação de garantia patrimonial sobre os referidos imóveis na medida do seu direito de crédito.

15. O Recurso aqui apresentado cinge-se ao erro de direito decorrente da decisão de mérito quanto a estes pontos, que merece censura pelo raciocínio adoptado na decisão recorrida em violação da lei substantiva, a qual atingiu uma solução injusta em si mesma e violadora das normas respeitantes à ratio da impugnação pauliana.

16. Assim, apresentam-se as alegações infra, as quais sindicam o processo lógico-dedutivo seguido pelo Tribunal que merece uma correcção apta a garantir uma melhor aplicação do direito – que não foi, até agora, alcançada, mas sim contornada pelo T.R.L. sob considerações acerca da possibilidade de “executar” uma decisão penal assente num regime de prova num processo cível (o que não se requereu!).

17. A presente acção advém do crédito que a Recorrente detém sobre o 1º Recorrido, o qual adquiriu, na qualidade e em representação da ora Recorrente, um terreno, sendo que em momento posterior e com recurso à prática de crimes, foi desanexado em diversos lotes tendo o 1.° Recorrido registado a seu favor lotes que não eram seus, aí ficando devedor da Recorrente em € 835.250,00, vendendo posteriormente 10 (dez) lotes, dissipando assim o seu património de forma a frustrar a satisfação do referido crédito.

18. Não pode a Recorrente concordar com a decisão proferida pelo Tribunal de primeira instância e confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, fixando-se desde já o objecto do presente recurso à matéria de Direito, no que respeita à existência de um crédito, crédito esse no valor de € 835.250,00 (oitocentos e trinta e cinco mil duzentos e cinquenta euros) conforme escritura oportunamente junta e datada de 15 de Maio de 2009.

19. Tal como alegado na Petição Inicial o 1.° Recorrido torna-se devedor da Recorrente no momento em que, através da Escritura Pública de Divisão de Coisa Comum decide desanexar dez lotes que adjudicou e registou a ser favor, conforme consta dos factos VI) e VII) dados como provados.

20. Através da apropriação indevida daqueles 10 (dez) lotes, a Recorrente ficou credora do montante de € 835.250,00 (oitocentos e trinta e cinco mil duzentos e cinquenta euros), o qual não só o 1.°Recorrido não procurou cumprir, como, por outro lado, logrou ainda retirar tais lotes da sua propriedade, transferindo-os para a 6.ª Recorrida, da qual são sócios os demais Recorridos, seus filhos, frustrando a satisfação do crédito da Recorrente,

21. Como matéria relevante para a apreciação deste recurso importa desde logo destacar a factualidade que o tribunal de primeira instância deu como provada nos pontos I), II), III), IV), V), VI), VII), VIII), IX), X), XI) e XII) e que servirá de base para o que infra se irá discutir.

22.Andou mal o tribunal a quo ao considerar desde logo, e sem mais, manter a decisão da primeira instância por entender que aquilo que – pensa – formular a pretensão da Autora não consubstanciar em si um direito de crédito.

23. E fê-lo considerar que o direito de crédito da Recorrente não pode ter origem no processo-crime supra mencionado, obstante a Recorrente sempre especificou que o direito de crédito não nasceu daquele processo-crime como o próprio tribunal recorrido e também o Tribunal de 1.ª instância parecem ter entendido, sendo que a Recorrente nunca procurou na presente acção obter um qualquer efeito decorrente do processo-crime, até porque aquele não é causa de pedir deste, nem a causa de pedir de ambos os processos é coincidente (como o Tribunal de 1.ª instância entendeu em resposta à excepção de litispendência aduzida pelos RR.).

24. E o que a Recorrente aqui visava discutir era o negócio celebrado no dia 15 de Maio de 2009 por parte dos RR. demandados, atento o manifesto intuito de frustração do crédito que a Recorrente detém relativamente ao 1º Recorrido!

25. Ainda assim, o Tribunal a quo distorceu todo o pedido e, em particular, a causa de pedir e, de seguida, decidiu do mérito da causa por entender que o dever de restituir os lotes no âmbito do processo-crime não configura um verdadeiro direito de crédito – pese embora aquilo que a decorrente sempre veio demonstrar é que esse crédito nasceu sim da adjudicação e registo de dez lotes que não lhe pertenciam (através de prática a ilícitos criminais devidamente decididos na respectiva sede).

26. Mas, em bom rigor, o raciocínio de subsunção da norma aplicável ao caso concreto e os seus respectivos requisitos – desde logo, a existência do crédito – assentou em parte da causa de pedir, tomando-a, como dissemos, pelo todo, sendo em tudo o resto diverge da que foi alegada e fundamentada pela Recorrente.

27. Razão pela qual a Recorrente invocou, na peça do texto recursivo daquela decisão da 1.ª instância, a nulidade por violação do artigo 615,° n°1, alínea c) do Código de Processo Civil, uma vez que a matéria de facto dada como provada se encontra em clara contradição com a decisão, tornando-a inteligível.

28. E o Tribunal da Relação de Lisboa acabou por concluir que não verificou qualquer oposição que fosse “susceptível de conduzir a um resultado lógico distinto do da decisão nele tomada, independentemente da eventual existência de algum erro de julgamento.”, argumentação que a Recorrente considera simplista e em tudo pouco fundamentada.

29. Aliás, a falta de fundamentação do Acórdão culmina na nulidade nos termos do artigo 615.°, n°1 alínea b) aplicável ex vi do art. 674.º, n°1, alínea c) do Código de Processo Civil – a qual desde já argui para todos os efeitos legais.

30. É que, não pode aceitar-se a decisão da qual ora se recorre, porquanto se considera que da prova produzida, nomeadamente dos factos dados como provados IV), V), VI), VII) e VIII) resulta inequívoco que o 1.° Recorrido adjudicou e registou a seu favor dez lotes, tendo outorgado, nessa sequência, uma procuração aos 2° e 3.° Recorridos conferindo-lhes poderes necessários para vender ou prometer vender os bens – os quais integram desde logo a propriedade da Recorrente!

31. Com isto, procuraram os Recorridos garantir que aqueles lotes permanecessem ilegitimamente na disposição do 1.° Recorrido ainda que por intermédio de uma sociedade titulada pelos seus filhos.

32. A verdade é que os factos dados como provados na Sentença e já alegados pela Recorrente na sua Petição Inicial são inequívocos ao comprovar a existência de um direito de crédito e a sua posição como credora.

33. Assim, pergunta-se a este Venerando Tribunal como se pode negar a existência de um crédito e assim, inviabilizar a salvaguarda do património por parte do credor, permitindo ao devedor dissipar a quase totalidade do seu património como forma de se exonerar do pagamento da quantia (no valor de € 835.250,00) que bem sabe lhe ser devida.

34. O tribunal recorrido, à semelhança do tribunal de 1ª instância, acaba por concluir pela inexistência de um direito de crédito, dispensando-se de verificar os demais requisitos (por que cumulativos). E não só deixou de verificar os demais requisitos que configuram a acção pauliana como ainda ignorou por completo a própria matéria de facto dada como provada, essa sim, resultante da alegação da qual sempre se retiraria a existência de um crédito e da qual o Tribunal se dispensou de retirar as respectivas conclusões e consequências legais!

35. Espantosamente, o próprio tribunal supra mencionado alicerçou a sua fundamentação na decisão da 1.ª instância que dá como provada a sentença proferida no processo-crime, da qual resulta que o 1º Recorrido actuou de forma ilegítima e criminal para fazer seus bens que sabia serem da aqui Recorrente.

36. Aliás a Recorrente nem tão pouco poderia configurar a presente acção com base num alegado crédito proveniente da sentença criminal, uma vez que à excepção do 1.° Recorrido os restantes Recorridos nem sequer foram intervenientes processuais naquele processo, e a assim ser, nunca estes não poderiam ser afectados por tal decisão judicial! E, diga-se, o T.R.L. fundamenta essa inoponibilidade da sentença proferida no processo-crime como se a mesma fosse contrária à pretensão da Recorrente.

37. A Recorrente tem perfeita consciência de que esta acção não está a “executar” ou a produzir efeitos decorrentes de uma qualquer decisão noutra sede! A Recorrente não pretendeu obter qualquer outro efeito do processo-crime ao mencioná-lo nestes autos além da demonstração da actuação fraudulenta do 1.° Recorrido.

38. Incompreensivelmente o T.R.L. entendeu erradamente esta questão, limitando-se a descontextualizar, mais uma vez, o denominado artigo 24.° da Petição Inicial para concluir que todo o pedido da Recorrente emerge da decisão condenatória, o que não é de todo verdade!

39. Mais uma vez a Recorrente esclarece que, aquilo que sempre alegou foi que o referido Acórdão transitado em julgado respeitante ao Processo n.°1228/02.4TALRS, faz prova plena do reconhecimento do crédito que a Recorrente detém sobre o 1.° Recorrido nos termos dos artigos 369º, nº1 e 371.°, n.°1, do Código Civil, mas não que este processo é o fundamento da existência do crédito da recorrente!

40. A referência a este processo tinha como único propósito a descrição pormenorizada e fiel da sucessão dos factos – o que confirmaria a existência de um crédito anterior – mas não o fazia nascer!

41. Ademais, a impugnação pauliana pressupõe uma pré-ordenação de condutas, e nunca se poderia a Recorrente coibir de falar e reforçar o papel da sentença condenatória, quando foi aquela que conduziu à rápida dissipação dos lotes por parte dos Recorridos, que já aí deveriam ser entregues à Recorrente!

42. Ora, dúvidas não restam que o direito de crédito que advém de toda a actuação concertada pelo 1.° Recorrido em conluio com os demais Recorridos!

43. Entende-se, face ao exposto, que o Tribunal a quo não conheceu da acção nos termos configurados pela ora Recorrente, não apreciando da admissibilidade da acção tal qual foi configurada, ignorando os factos dados como provados de onde, efectuado o raciocínio lógico, só poderia resultar a verificação da existência do crédito anterior alegado pela Recorrente.

44. Pelo exposto, só pode o Acórdão ser declarado nulo por falta de fundamentação nos termos do artigo 615.° n.°1, alínea b) do Código de Processo Civil – por não concretizar o raciocínio lógico-dedutivo qual se alicerça a improcedência dos pedidos abastadamente referidos.

Nestes termos e nos melhores de Direito requer-se a V. Exa. se digne declarar a nulidade acima identificada com as devidas consequências legais, devendo em consequência, considerar provada a existência do crédito e para tanto declarar a ineficácia dos actos de alienação dos 10 (dez) lotes em relação à Recorrente e, bem assim, ordenar a restituição desses imóveis, reconhecendo a possibilidade da Recorrente executar ou praticar todos os actos de conservação de garantia patrimonial sobre os referidos imóveis.

Não houve contra-alegações.


***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que o Tribunal da Relação considerou provados os seguintes factos:

i.) A autora é uma associação sem fins lucrativos constituída por escritura pública em 30 de Abril de 1980, celebrada no Cartório Notarial de …, tendo como objecto o desenvolvimento e recuperação do AA;

ii.) O 1.º réu foi presidente da autora e presidente da Comissão de Administração do Bairro HH;

iii.) A 6.ª Ré é uma sociedade por quotas, cujos sócios à data dos factos eram os 2.º, 3.º, 4.º e 5.º réus, sendo que na presente data apenas o 5.º réu subsiste como gerente;

iv.) O 1.º réu, por escritura pública de compra e venda de 22 de Julho de 1997, celebrada no Cartório Notarial de …, adquiriu, na qualidade de representante da autora e em conjunto com um terceiro em representação dos vendedores, dezasseis mil quatrocentos e setenta e cinco barra vinte mil avos indivisos de um prédio rústico, sito no AA, …, freguesia de … (ao tempo, Concelho de …), que se compõe de parcela de terreno destinado a agricultura com a área de vinte mil metros quadrados, inscrito na matriz cadastral da freguesia de … sob a parte do artigo número vinte e quatro, secção B, e descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número três mil e quarenta e dois, da freguesia de …;

v.) Na sequência do processo de recuperação de bairro de génese ilegal, aquele prédio, em conjunto com outros, foi objecto do Alvará de Loteamento n.º …/…001/DRLA – Bairro HH Norte AUGI 1, emitido em 14 de Maio de 2001 pela Comissão Instaladora do Município de …, que procedeu à divisão física dos prédios;

vi.) De acordo com o referido Alvará, foram desanexados os lotes n.º…35 a …44, …03, …78, …93 a …02, …04, …05, …07 a …14, …37 e …38, tendo sido o remanescente integrado no domínio público;

vii.) Por via da Escritura Pública de Divisão de Coisa Comum destacou, adjudicou e registou a seu favor os lotes …43, …44, …97 a …02, …07 a …14 e …38;

viii.) O 1.º réu outorgou no dia 27 de Junho de 2002 uma procuração aos 2.º e 3.º réus conferindo-lhes poderes necessários para vender ou prometer vender os bens dos quais se havia indevidamente apropriado;

ix.) No âmbito do processo-crime NUIPC 1228/02.4TALRS, no dia 24 de Abril de 2009 foi lido o Acórdão (transitado em julgado em 23.11.2009), cuja parte dispositiva tem a seguinte redacção:

“Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem este Tribunal Colectivo em julgar procedente, por provada, a pronúncia e, em consequência, decidem:

1. Condenar o arguido BB, pela prática em autoria material e em concurso efectivo de:

a) Um crime de falsificação de documento (uso de documento falso), previsto e punido pelo art. 256.º, n.º 1, al. c) do Cód. Penal, vigente à data dos factos, a que corresponde actualmente a al. e) do mencionado n.º 1 do art. 256.º, na redacção dada pela Lei n.º 59/2007, de 04.09, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;

b) Um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos art. 217.º, n.º 1 e 218.º, nºs. 1 e 2, al. a) do Cód. Penal, na pena de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão.

2. Operando o cúmulo jurídico das penas concretamente aplicadas ao arguido, condenar o arguido BB, na pena única de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão.

3. Ao abrigo do disposto nos art. 50º e 53º, n.º 3 do Cód. Penal, decretar a suspensão da execução da pena única de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão aplicada ao arguido BB pelo período de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses, acompanhada de regime de prova, assente num plano de reinserção social a elaborar pelos serviços de reinserção social, o qual deverá conter obrigatoriamente a devolução (doação) pelo arguido à assistente [Associação de Proprietários e Moradores do AA, Zona Norte], no prazo de três meses a contar do trânsito em julgado da presente decisão, dos lotes de terreno de entre os lotes com os números …97 a …01, …07 a …14 e …38 que à data da leitura do presente acórdão ainda se encontrem na titularidade do arguido”.

x.) Em 24 de Abril de 2009, os lotes …97, …98, …99, …00, …01, …11, …12, …13, …14 e …38, constantes da decisão, ainda se encontravam na esfera jurídica do ali arguido, aqui 1.º réu;

xi.) Estiveram presentes na leitura do Acórdão os 2.º e 3.º réus, sendo que o 2.º réu interveio como testemunha do 1.º réu;

xii.) O 1.º réu não procedeu à devolução dos lotes de terreno …97, …98, …99, …00, …01, …11, …12, …13, …14 e …38, tendo, através da procuração referida no ponto viii.), vendido os mesmos à 6.ª ré, por escritura pública do dia 15 de Maio 2009.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

- se a Relação julgou com acerto ao considerar, tal como a 1ª Instância, que, estando em causa uma acção de impugnação pauliana, desde logo não podia a Autora invocar ser titular de um direito de crédito, por não existir na sua esfera jurídico-patrimonial, e, inexistindo esse requisito, considerar improcedente o pedido da acção;

- se  Acórdão é nulo por falta de fundamentação.

Antes de mais cumpre realçar que a revista excepcional foi admitida ao abrigo do art. 672º, nº1, b) do Código de Processo Civil por se ter considerado estarem em causa interesses de particular relevância social.

A dado trecho do douto Acórdão da Formação – fls.658/659 – pode ler-se:

“De notar, antes de mais, que não cabendo à formação apreciar a bondade da decisão impugnada quanto ao mérito, mas atender apenas à verificação desses conceitos indeterminados ou abertos, irrelevará, para os fins ora em vista, a concreta solução da questão face ao direito ordinário constituído, questão que, no essencial se reconduz a saber se a Autora é, ou não, detentora de um direito qualificável como direito de crédito como requisito da impugnação pauliana.

O problema surge intimamente ligado, até sequencialmente, à decisão proferida na ação penal movida contra o alienante a reconhecer à ora Autora o direito sobre os lotes e a contemplar a sua devolução pelo 1° Ré, ali arguido, situação que permite compreender e admitir a criação e manutenção de fortes expectativas aos alegados 489 proprietários moradores que a Requerente representa.

Aceitável, a essa luz, que, socialmente, possa pôr-se em dúvida, como alegado, o crédito das instituições e a autoridade das decisões dos tribunais.

A circunstância de os factos se passarem num processo de regularização de um bairro de génese ilegal, atingindo tão elevado número de pessoas, assume, pela sua própria natureza, uma especialmente atendível relevância social, com relevância também em sede de valores sócio-culturais importantes, como refletido pela condenação criminal, a projetarem-se para além dos estritos limites do processo e das Partes nele envolvidas, ao menos na medida em que uma delas representa interesses de natureza comunitária.

Justificar-se-á, portanto, à luz da convocada ponderação de valores, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça na apreciação da questão, ao abrigo do requisito invocado pela Recorrente, que se tem por verificado”.

Dito isto, importa referir que a Autora intentou (assim a apelidou) acção de impugnação pauliana formulando o pedido inerente a esse meio de tutela do crédito ameaçado, muito embora, na alegação constante da petição inicial se vislumbre, ainda, alegação factual enquadrável na invocação de simulação negocial do ponto em que enfatiza ter havido conluio entre o 1º Réu e os demais RR., pessoas singulares, no sentido de terem eles intervindo, tal como a 6ª Ré (de que ao tempo eram sócios gerentes dois filhos daquele Réu) em vendas fantásticas que tiveram por objectivo defraudar a Autora, dona dos 10 lotes no valor de € 835.250,00, que o 1º Réu integrou fraudulentamente no seu património e que agora constam registados em nome da 6ª Ré, cuja restituição foi imposta ao 1º Réu na sequência da condenação em pena de prisão transitada em julgado, suspensa condicionalmente na sua execução, por crimes de burla e falsificação de documento.

De muito relevante o facto de o 1º Réu ter sido condenado em processo-crime pela prática de actos abusivos praticados em nome da Autora, não autorizados no contexto de procuração emitida a seu favor, e por via desse actuação criminosa, ter engendrado negócios jurídicos de alienação de tais lotes de terreno de que se arrogou dono, esvaziando o seu património, em alegado conluio com os RR. seus filhos e a 6ª Ré.

Na sentença proferida, em 24.4.2009, no processo-crime que lhe foi movido pela aqui Autora, o Réu foi condenado na pena de 4 anos e 10 meses de prisão, viu tal pena ser-lhe suspensa pelo período de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses, acompanhada de regime de prova, assente num plano de reinserção social a elaborar pelos serviços de reinserção social, o qual deverá conter obrigatoriamente a devolução (doação) pelo arguido à assistente [Associação de Proprietários e Moradores do AA, Zona Norte], no prazo de três meses a contar do trânsito em julgado da presente decisão, dos lotes de terreno de entre os lotes com os números 297 a 301, 307 a 314 e 338 que à data da leitura do presente acórdão ainda se encontrem na titularidade do arguido”.

A condição para a suspensão da pena foi decretada no âmbito de plano de reinserção social que lhe foi imposto “a devolução (doação) pelo arguido à assistente [a aqui Autora] no prazo de três meses a contar do trânsito em julgado daquela condenação dos lotes de terreno de entre os lotes com os números 297 a 301, 307 a 314 e 338 que à data da leitura do acórdão ainda se encontrem na titularidade”.

As instâncias consideraram que a Recorrente ancorou a sua pretensão, quanto aos requisitos a provar pelo credor que recorre à acção pauliana, que o requisito direito de crédito – art. 610ºc) do Código Civil – assenta na condição imposta pela sentença que condenou o 1º Réu, para lhe suspender a pena, Isto é entenderam que a obrigação de devolver/doar os lotes de terreno de que o 1ª Réu se apropriou, não conferem à Autora qualquer direito de crédito, já que tal imposição decorre dos poderes do Estado não atribuindo qualquer direito de crédito, mesmo que a condição de suspensão da pena se traduza numa obrigação de indemnizar ou de facere.

Sem dúvida que assim é.

A indemnização ou reparação imposta ao arguido como condição de suspensão da pena de prisão é comummente considerada um tertium genus, considerando-se que dispõe de natureza jurídica própria, cumprindo a “função adjuvante da realização da finalidade da punição”, onde desde logo avulta como traço diferenciador o facto de ela não ser exigível pelo lesado”.

No caso da sentença condenatória do 1º Réu, a condição imposta pelo Tribunal para a suspensão da pena, usando a expressão “devolução(doação)” pelo arguido à Autora dos lotes de terreno que indica, afasta-se do cariz indemnizatório da reparação pecuniária, trata-se de uma “obrigação/imposição” de “facere” parecendo reconhecer, desde logo, que a Autora tem direito a essa devolução (o que pressupõe que os bens a devolver lhe pertencem), ou então, que fazendo parte do património do arguido, devem ser doados a quem é seu proprietário.

Daí que não seja descabido considerar que, muito embora a Autora não possa exigir do arguido o cumprimento da imposição, porque ela dimana do jus imperii inerente à actuação punitiva do Estado pela via dos Tribunais, é reconhecido que o seu direito subjectivo de crédito foi violado do ponto em que tal imposição se relaciona com a reintegração do seu património, ameaçado pelas vendas que, após a sentença condenatória penal o 1º Réu, em indiciado conluio com os seus filhos fez à 6ª Ré. 

Voltando à argumentação das Instâncias, salvo o devido respeito, pese embora a leitura do art. 24º da petição inicial, poder causar alguma dúvida, analisando e interpretando a petição inicial, com a articulação do aí alegado com os factos provados na sentença-crime (a que insistentemente se apela), decorre que o direito de crédito da Autora se situa em momento anterior à prática dos reiterados actos pelo arguido, agora 1º Réu, que integram a prática dos dois crimes por que foi condenado. Ademais, tendo o 1º Réu celebrado, em 15.5.2009, já depois da sua condenação no processo-crime, negócios de alienação dos lotes que, criminosamente integrou no seu património (bens que pertencem à Autora) agiu com patente dolo.

É inquestionável que os lotes de terreno de que o arguido se apropriou, e depois alienou em conluio com os demais RR., integram o património da Autora e foram os actos praticados pelo arguido, sancionados penalmente, que lesaram o direito de crédito da Autora.

Os sucessivos actos de transmissão, promovidos pelo 1º Réu em alegado conluio com os demais – os 2º a 5º Réus são filhos do 1º Réu – colocam, na tese da demandante, em risco o direito da Autora que é um direito subjectivo de crédito ameaçado pelas ulteriores alienações congeminadas por todos os Réus.

           

Neste entendimento, que se nos afigura o mais correcto, considera-se, que ao invés do sentenciado pelas instâncias, ter sido proficientemente alegado o requisito em causa, que não se fez radicar na condição imposta para que fosse suspensa a pena de prisão em que foi condenado o ora 1º Réu.

Tanto quanto se sabe o Recorrente ainda não cumpriu a condição de suspensão da pena, malgrado, de há anos, ter transitado em julgado a decisão condenatória.

Deveras importante, na articulação inevitável que importa fazer entre a condenação penal e a pretensão cível em apreço na acção de onde dimana o recurso, é que os 2º a 5º Réus – que na acção se afirma serem filhos do 1º Réu – não terem sido demandados no processo-crime.

Todavia, os 2º a 5º Réus – filhos do 1º Réu – não são alheios, na tese da Autora exposta na petição inicial, aos actos fraudulentos, expressos em contratos envolvendo os lotes de que o agora 1º Réu (seu pai) se apropriou, praticados em conluio, e colimados à finalidade de subtraírem do seu “património”, os bens aí ingressados por via da sua actuação criminosa como se considerou provado nos factos vi.), vii.), viii.) e xi.) da decisão proferida no processo-crime em que foi arguido.

Assim, alega a Autora – ut. arts. 18º a 21º da petição inicial – que tendo sido o Acórdão proferido em 24.4.2009, data na qual os lotes …97, …98, …99, …00, …01, …11, …12, …13, …14 e …38, constantes da decisão, ainda se encontravam na esfera jurídica do ali Arguido, aqui 1º Réu.

Estiveram presentes na leitura do Acórdão os 2º e 3º Réus, sendo que o 2º Réu interveio como testemunha do 1º Réu – conhecendo assim, in totum, o teor da decisão e consequente imposição de conduta ao seu pai.

Não obstante o ali decidido, o 1.° Réu não só não procedeu à devolução dos lotes de terreno …97, …98, …99, …00, …01, …11, …12. …13, …14 e …38, como, através da supra aludida procuração outorgada em 27 de Junho de 2002, os vendeu no dia 15 de Maio de 2009 à 6ª Ré (sociedade comercial cujos sócios-gerentes eram à data os 2º,3º, 4° e 5° RR.), já em momento posterior à condenação em primeira instância, desrespeitando a decisão judicial referida, - conforme Escritura Pública de Compra e venda que ora se junta como Doc. 6 (da qual consta a assinatura de todos os filhos do 1.° Réu, os 2.°, 3.º 4.º e 5.º RR.)”

A provar-se a factualidade alegada, ela revelaria a existência de simulação absoluta – art. 240º do Código Civil – de contratos de compra venda, sendo compradores os filhos do Réu e a 6ª Ré. A alegação preenche os requisitos da simulação: pacto simulatório entre o declarante e o declaratário, divergência intencional entre o sentido da declaração e os efeitos do negócio jurídico celebrado e o intuito de enganar terceiros.  

 

O desvalor jurídico do negócio simulado é a sua nulidade, vício de vontade que o Tribunal pode conhecer oficiosamente.

Se em relação aos agora 2º a 6ºs Réus a eficácia do caso julgado penal é estranha e inoponível, já o não é em relação ao 1º Réu.

Dispõe o art. 623º do nCódigo de Processo Civil, a que corresponde o anterior art.674º-A: “A condenação definitiva proferida no processo penal constitui, em relação a terceiros, presunção ilidível no que se refere à existência dos factos que integram os pressupostos da punição e os elementos do tipo legal, bem como dos que respeitam à formas do crime, em quaisquer acções cíveis em que se discutam relações jurídicas dependentes da prática da infracção”.

O agora Conselheiro Lopes do Rego, in “Comentário ao Código de Processo Civil” – Vol. I, 2ª edição, pág. 563, em nota ao citado preceito cuja formulação é, como dissemos, igual ao correspondente normativo, antes da reforma, afirma:

Estabelece-se neste preceito a relevância “reflexa” do caso julgado penal condenatório em subsequentes acções de natureza civil, materialmente conexas com os factos já apurados no processo penal – e tendo, nomeadamente, em conta que a condenação penal pressupõe uma exaustiva e oficiosa indagação de toda a matéria de facto relevante, bem como a certeza “prática” de que o arguido cometeu a infracção que lhe era imputada.

Entendeu-se, porém, em homenagem à regra do contraditório – e ao contrário do que resultava do citado art. 152.° - que a condenação definitiva no processo penal não deveria impor-se, necessária e “cegamente”, a sujeitos processuais que nele não tiveram oportunidade de expor as suas razões – constituindo tão-somente presunção ilidível, relativamente aos elementos referenciados no preceito.

Toma-se, deste modo, possível, v.g., ao responsável civil ulteriormente demandado no foro cível demonstrar que, afinal, o arguido – apesar de já condenado no âmbito do processo penal – não actuou culposamente, cf. Ac. Supremo Tribunal de Justiça de 23/5/00, in BMJ 497, 298.

A eficácia “erga omnes” da decisão penal condenatória é, deste modo, temperada com a possibilidade de os titulares de relações civis conexas – terceiros relativamente ao processo penal – ilidirem a presunção de que o arguido cometeu efectivamente os factos integradores da infracção que ditou a sua condenação”. (destaque nosso)

             

Lebre de Freitas, Montalvão Machado e Rui Pinto, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. 2, pág. 691, opinam sobre o mesmo preceito legal: 

“A sentença proferida em processo penal constitui presunção ilidível da existência dos factos constitutivos em que se tenha baseado a condenação em qualquer acção de natureza civil em que se discutam relações jurídicas dependentes ou relacionadas com a prática da infracção. 

O caso mais frequente é o da acção de indemnização: provada, no processo penal, a prática de um acto criminoso que constitua ilícito civil, o titular do interesse ofendido não tem o ónus de provar na acção civil subsequente o acto ilícito praticado nem a culpa de quem o praticou, sem prejuízo de continuar onerado com a prova do dano sofrido e do nexo de causalidade

[…] A presunção é invocável perante terceiros relativamente ao processo penal (por exemplo, perante a seguradora da pessoa penalmente condenada por acidente de viação), que a poderão ilidir.

Não se trata, directamente, da eficácia extraprocessual da prova produzida no processo penal, mas da eficácia probatória da própria sentença, independentemente das provas com base nas quais os factos tenham sido dados como assentes. A presunção estabelecida difere das presunções stricto sensu, na medida em que a ilação imposta ao juiz cível resulta do juízo de apuramento dos factos por um acto jurisdicional com trânsito em julgado. 

Não está, porém, em causa a eficácia do caso julgado (ao contrário do que a defeituosa inserção dos artigos que regulam a matéria podia levar a supor), mas a eficácia probatória da sentença penal.” (destaque nosso)

O Tribunal está sujeito ao princípio do pedido segundo o qual – art. 3º, nº1, do Código de Processo Civil – não pode resolver o conflito de interesses que a acção pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes, sendo-lhe defeso, salvo casos de questões de conhecimento oficioso, pronunciar-se extra petitum, sob pena de ofender aquele princípio, incorrendo a decisão em nulidade.

Como enfatizou o douto Acórdão da Formação que admitiu revista excepcional, seria socialmente censurável se a conduta do 1º Réu – já sentenciada com pena de prisão pela prática de crimes sem os quais não lhe teria sido possível apropriar-se de lotes de terreno da Autora e proceder à sua subsequente alienação em aparente conluio (simulação negocial de contratos de compra e venda) com os filhos, ora 2º a 5º Réus e a sociedade 6ª Ré [de que ao tempo eram sócios-gerentes os demais réus pessoas singulares] –, pudesse não ser sancionada, sobretudo, estando em causa interesses muito sensíveis de “particular relevância social” – art. 672º, nº1, b) do Código de Processo Civil – dos associados da Autora que podem ver em risco o seu direito à habitação.

A ordem jurídica, impondo a todos actuação de boa fé e respeito pelos bons costumes, não pode tolerar violações dolosas, criminosas, de direitos de terceiros, que, pela sua repercussão chocam a comunidade, a cidadania e o sentido geral de justiça, transcendendo os meros ingresses individuais, particulares. Nesse caso está em causa a lesão de interesses que se situam num patamar supra partes.

Dispõe o art. 280º do Código Civil: 1. É nulo o negócio jurídico cujo objecto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável. 2. É nulo o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos bons costumes”.

       

Como ensinam Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, I Volume, pág. 258 – “O negócio ofensivo dos bons costumes é, essencialmente, o que tem por objecto actos imorais, podendo estes ser imorais em si mesmos ou repugnar à consciência moral”.

No “Comentário ao Código Civil Parte Geral, em anotação ao art. 280º, págs. 694 e 695 pode ler-se: “ […] A ordem pública corresponde ao conjunto dos princípios fundamentais e estruturais da ordem jurídica, mormente com assento constitucional. Diferentemente, os bons costumes são geralmente identificados com a moral social, moral pública ou moral dominante. É uma cláusula de receção, através da qual a ordem jurídica recebe no seu seio “o conjunto de regras éticas aceites pelas pessoas honestas, correctas, de boa fé, num dado ambiente e num certo momento” (C. Mota Pinto, 2012:559). Segundo esta visão, a remissão para os bons costumes seria o meio utilizado pelo legislador para juridificar normas de índole moral. […].

[…] Por fim, cabe frisar que a apreciação do eventual desrespeito da ordem pública ou dos bons costumes deve ser feita em concreto, no momento da celebração do negócio e de um ponto de vista estritamente objetivo, não relevando, para a nulidade do negócio, a consciência das partes relativamente a esse desrespeito.”

Não podem os Tribunais ser alheios ao sentido de justiça dominante na sociedade e que as pessoas de bem acolhem intemporalmente. Assim, um negócio jurídico tendo por objecto imóveis de outrem, que o vendedor adquiriu por actuação criminosa, sancionada com sentença penal transitada em julgado, não pode ser considerado válido: é nulo por ser legalmente impossível, trata-se de negócio fora do comércio.

É contrário à lei um negócio jurídico de alienação de um bem de que se obteve o domínio e posse com base em actuação criminosa, decorrendo essa nulidade do art. 280º do Código Civil.

No caso, está provado, na sentença penal que condenou o 1º Réu, que os lotes de terreno a que se refere tal condenação pertencem à demandante “Associação de Proprietários e Moradores do AA, Zona Norte”, tendo a associação sido constituída em 30.4.1980, visando a regularização de um Bairro de Moradores de génese ilegal. O 1.° Réu foi presidente da autora e presidente da Comissão de Administração do Bairro HH. Por via da Escritura Pública de Divisão de Coisa Comum destacou, adjudicou e registou a seu favor os lotes …43, …44, …97 a …02, …07 a …14 e …38. No dia 27 de Junho de 2002 outorgou uma procuração aos 2.° e 3.° réus conferindo-lhes poderes necessários para vender ou prometer vender os bens dos quais se havia indevidamente apropriado.

Transitou em julgado a sentença penal que obrigou o arguido – aqui 1º Réu – a devolver/doar 10 lotes de terreno à Autora, sendo essa a condição imposta para a suspensão de pena de prisão de 4 anos e 10 meses, em que foi condenado.

O Réu, tendo no processo-crime pedido a prorrogação do prazo para diligenciar no sentido de “desfazer” os negócios de alienação, tacitamente – ut. fls. 384 a 387 – reconhece essa obrigação de restituição, não só para preencher a condição imposta para a suspensão da pena que lhe foi aplicada, mas também porque afirma que “sempre foi, e continua a ser, vontade do Arguido cumprir a decisão judicial que lhe foi aplicada” – como escreveu no art. 9º do referido requerimento.

Ante estes factos e ao muito mais que decorre das decisões do julgamento das instâncias penais, resulta, de forma clara, que a Autora foi lesada.

É certo que recorreu, para obter a reparação dessa lesão patrimonial, a acção de impugnação pauliana – art. 610º do Código Civil – é certo, igualmente, que as instâncias cíveis consideraram que inexiste o requisito elementar que postula que o impugnante seja titular de um direito de crédito, julgamento que este Supremo Tribunal de Justiça, definitivamente, e com o devido respeito, não sufraga.

Vejamos:

A acção de impugnação pauliana consiste na faculdade concedida por lei ao credor, de atacar os actos do seu devedor que realizados, dolosamente, façam perigar a satisfação do seu crédito.

Ao contrário do regime legal que vigorava no Código de Seabra em que tal acção era considerada uma “acção rescisória” ou “anulatória”, já que o art. 1404º estipulava que: “Rescindido o acto ou contrato, revertem os bens ao cúmulo dos bens do devedor, em benefício dos seus credores”, a lei actual, diversamente, estabelece no art. 616º, nº1, do Código Civil:

 

 “Que julgada procedente a impugnação o credor tem o direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei”.

Os actos gratuitos, ou onerosos, praticados em desfavor do credor são intrinsecamente válidos; todavia, o credor impugnante tem direito à restituição dos que forem necessários à satisfação do seu crédito, podendo directamente agredir o património de quem estiver obrigado à restituição.

Vaz Serra, in “Responsabilidade Patrimonial”, estudo publicado no BMJ-75 escreveu: “A acção pauliana é dada aos credores para obterem, contra um terceiro, que procedeu de má-fé ou se locupletou, a eliminação do prejuízo que sofreram com o acto impugnado.

Daqui resulta o seu carácter pessoal ou obrigacional.

O autor na acção exerce o crédito de eliminação daquele prejuízo...O efeito da acção deve ser uma simples consequência da sua razão de ser e, por isso, parece dever limitar-se à eliminação do prejuízo sofrido pelo credor, deixando o acto, quanto ao resto, tal como foi feito” obra citada pág.287.

Tanto assim é que, nos termos do art. 616º, nº4, do Código Civil, os efeitos da impugnação aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido.

Não se está, assim, perante uma declaração de nulidade com a inerente repristinação do “statuo quo ante” que permitiria a todos os credores do devedor executar o património deste – cfr. neste sentido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.3.96, in CJ/STJ, 1996, I, 159 –  “A impugnação pauliana reveste um carácter pessoal, já que os seus efeitos aproveitam apenas ao credor que a tenha requerido”.

 Também os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, 4ª edição, pág. 634, nota 5, acentuam o carácter pessoal da acção de impugnação pauliana a partir do preceituado no art. 616º, nº4, daquele Código.

São requisitos da impugnação pauliana, enquanto meio de conservação da garantia geral do cumprimento de obrigações: a existência de um crédito; a prática, pelo devedor, de um acto que não seja de natureza pessoal, que cause ao seu credor, um prejuízo (a impossibilidade de obter a satisfação integral do seu crédito ou o agravamento dessa impossibilidade); a anterioridade do crédito relativamente ao acto ou, se o crédito for posterior, ter sido o acto dolosamente praticado com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor; que o acto seja de natureza gratuita ou, sendo oneroso, que o devedor e o terceiro tenham agido de má fé  - arts. 610.º a 612.º do Código Civil.

A consideração da inexistência do requisito direito de crédito – foi decisiva para o julgamento no despacho saneador, e para que o Tribunal de 1ª Instância não tivesse sequer apreciado os demais requisitos do art. 610º do Código Civil: desde logo, a decisão recorrida que sufragou o entendimento da 1ª Instância não pode manter-se, tendo sido prematuro o julgamento do processo no despacho saneador – art. 595º, nº1, b) do Código de Processo Civil.

Por tal motivo a decisão recorrida será anulada, e com ela a decisão da 1ª Instância, com vista à ampliação da matéria de facto – art. 682º, nº3, do Código de Processo Civil – alegada e integrante da causa de pedir invocada na acção.

Sempre se dirá que o processo documenta a existência de negócios celebrados pelo 1º Réu – escrituras públicas de contratos de compra e venda – e outros actos praticados pelo 1º Réu sem os quais não seria possível a lesão patrimonial da Autora, negócios que, ademais constam dos factos provados no processo-crime que evidenciam ostensiva contrariedade à ordem pública e são ofensivos dos bons costumes, sendo nulos, nos termos do art. 280º do Código Civil, como antes se referiu.

A propósito do conceito bons costumes, o Conselheiro Pinto Furtado, in “Curso do Direito das Sociedades” – 3ª edição – págs. 438 a 441 – noutro contexto, é certo, afirma:

[…] A ideia de bons costumes forma, obviamente, um conceito indeterminado que devemos esforçar-nos por precisar, oferecendo a menor margem possível a subjectivismos perniciosos.

Na nossa perspectiva, importará começar, assim, por prevenir que não se considera aqui como atentado aos bons costumes, latamente, todo comportamento ilícito, mas apenas, mais circunscritamente, aquele que atenta contra os fundamentos mais profundos da moral — e não, unicamente, a moral sexual, mas toda a que poderá afectar o humano comportamento; não a moral deste ou daquele, mas a moral pública, isto é, a que pode dizer-se comum à sociedade em que se insere.

Num sistema jurídico laico, será directamente o critério sociológico que nos ajudará a precisar esta moral pública — reservando-se ao critério religioso, numa sociedade que não prescinde da religião, a magistratura de influência que consegue moldar mais ou menos marcadamente áreas importantes do critério sociológico, ou desempenhar, ao menos, um papel moderador.

A fórmula do critério sociológico definidora dos bons costumes que nos parece mais feliz é a adoptada pelo Supremo Tribunal alemão: “o sentido do decoro ou da dignidade de todas as pessoas que pensam com equidade e justiça”. (destaque e sublinhado nosso)

Carneiro da Frada, in “Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil”, págs.843/844, refere:

“Segundo uma conhecida noção legada pelo Reichsgericht, os bons costumes representam “o sentido de decência de todos os que pensam équa e justamente”. A própria fórmula deixa entrever que os bons costumes têm uma pretensão de validade supra-individual. Apontam para valores sem dúvida consensuais e alargados (no que vai aliás também uma exigência das sociedades pluralistas), mas que não se reconduzem de modo algum, nem ao subjectivismo do julgador, nem a uma maioria amorfa de sensibilidades empiricamente comprovável (a uma qualquer moral social dominante que se desvie dos boni mores). Ainda que apelando a referentes na sua “primeira essência” extrajurídicos, uma vez que os bons costumes se destinam inequivocamente a desempenhar uma função jurídico-normativa, no seu preenchimento importa naturalmente atender às valorações susceptíveis de se recolher, mesmo que incompletamente, de disposições legais diversas.

Além disso, eles enlaçam-se com certos princípios de justiça material sobrepostos às próprias normas positivadas, mas que nem por isso se deixam de oferecer a um desvendar pelo intérprete como tal, de o pressupor).

Em todo o caso, apresentam uma acentuada coloração ética, em contraste com a dimensão colectiva e organizatória  da vida social que impregna a ordem  pública.

A noção convoca a probidade e outras qualidades pessoais básicas dos sujeitos, entendendo-se que na sua infracção vai envolvido um desvalor da conduta que não se parifica a uma simples ilicitude ou antijuridicidade. Os bons costumes podem assim assumir a feição de cláusula de salvaguarda do mínimo ético-jurídico reclamado pelo Direito e exigível de todos os membros da comunidade”. Na nota de rodapé 940 – lê-se: “.       No direito português, a situação é diferente porque não há disposição paralela, do ponto de vista sistemático, à do § 826 (o que não inviabiliza — como já se indicou — a necessidade incontornável de colmatar a lacuna no direito da responsabilidade civil com uma solução similar, apoiada em exigências indeclináveis de natureza ético-jurídica). Contudo, há outros indícios, como se alertou, no sentido de um desvalor qualificado da infracção dos bons costumes.”

Uma vez que este Tribunal considera estar provado o requisito da impugnação pauliana, que as instâncias consideraram não existir – o direito de crédito da Autora – a anulação do julgamento visa a ampliação da matéria de facto, em ordem à apreciação do pedido formulado, em função da causa de pedir, ou seja, dos factos que a Recorrente alega no contexto da impugnação pauliana.

   

A provarem-se os factos alegados pela Autora, o Tribunal poderá considerar, oficiosamente, a nulidade dos negócios jurídicos invocados como causa de pedir, com fundamento na simulação absoluta, se provados os pertinentes requisitos, como os poderá considerar nulos, nos termos do art. 280º do Código Civil, porquanto a ordem jurídica não tolera que, com base em actos sancionados com condenação penal transitada em julgado, possam subsistir negócios jurídicos de cariz patrimonial lesivos da Autora, praticados pelo arguido, agora 1º Réu, que são sequentes e supõem a sua actuação criminosa – um crime de burla qualificada e outro de falsificação de documento (uso de documento falso) – e que beneficiaram os demais Réus.   

Tal julgamento terá que observar o princípio do contraditório, devendo as partes serem previamente notificadas da possibilidade de julgamento oficioso, visando evitar que se profira decisão-supresa.

A provarem factos que demonstrem que os negócios jurídicos celebrados com base na actuação 1º Réu, são simulados, ou ofensivos dos bons costumes ou contrários à lei, estão eles feridos de nulidade, que deverá ser decretada, oficiosamente, pelo Tribunal.

Em função do que se decide, não há que apreciar, por prejudicada, a questão da alegada nulidade do Acórdão recorrido por falta de fundamentação.

Sumário – art. 667º, nº3, do Código de Processo Civil

Decisão:

           

Nestes termos, anula-se oficiosamente, o Acórdão recorrido e com ele a decisão da 1ª Instância, por se considerar prematuro o julgamento do mérito no despacho saneador, nos termos supra referidos, devendo ser ampliada a matéria de facto a fim de o feito ser submetido a novo julgamento, tendo desde já como assente que os factos com que operou a decisão exprimem a existência de um direito de crédito da Autora – na perspectiva do art. 610º do Código Civil – devendo o Tribunal, à luz dos factos que se vierem a provar, ponderar, oficiosamente, a nulidade dos contratos celebrados pelos RR., em prejuízo da Autora, à luz da existência de negócios simulados, ou da sua contrariedade à ordem pública e aos bons costumes, devendo sempre ser observado o contraditório prévio ao julgamento, com vista a evitar decisão-supresa.

Para tanto serão os autos remetidos directamente à 1ª Instância.

Custas pelo vencido a final.

Supremo Tribunal de Justiça, 07 de junho de 2016

Fonseca Ramos (Relator)

Fernandes do Vale

Ana Paula Boularot

______________________________________________________
[1] Relator – Fonseca Ramos.
Ex.mos Adjuntos:
Conselheiro Fernandes do Vale.
Conselheira Ana Paula Boularot.