Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
441/16.1T8CSC.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA
ADIAMENTO
MORA
PERDA DE INTERESSE
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
COMUNICAÇÃO
ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
AÇÃO DE REIVINDICAÇÃO
Data do Acordão: 12/12/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO E NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / NÃO CUMPRIMENTO / FALTA DE CUMPRIMENTO E MORA IMPUTÁVEIS AO DEVEDOR / IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO / MORA DO DEVEDOR – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DA PROPRIEDADE / DEFESA DA PROPRIEDADE.
Doutrina:
-Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Volume II, 7ª edição, pg.108;
-João Baptista Machado, Pressupostos da Resolução por Incumprimento, Obra Dispersa, 1991, p. 164 e ss.;
-Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Volume II, 4ª edição, p.71 ; Anotado, Volume III, 2ª edição, p.113 e 116.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 801.º, 808.º E 1311.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 29-10-1996, PROCESSO N.º 429/96.
Sumário :
I - Existindo sucessivos adiamentos, por acordo das partes, quanto à data da realização do contrato prometido, o promitente fiel que não pretende adiar mais a celebração desse contrato deve tornar inequívoco que a mora da contraparte passa a ter o relevo de um incumprimento definitivo, o qual sustenta o exercício do seu direito de resolução. A resolução do contrato-promessa não é um efeito automático da existência de uma situação de incumprimento atribuível à contraparte.

II - O contraente que deixa de tolerar a mora da contraparte ou perde o interesse na celebração do contrato prometido tem de, efetivamente, comunicar à contraparte que pretende a extinção do contrato, assim exercendo o seu direito potestativo de resolução.

III - Enquanto não se verificar a resolução do contrato promessa, o promitente-vendedor não pode exigir, através de ação de reivindicação, a restituição da fração prometida vender, que voluntariamente entregou à promitente-compradora (traditio).
Decisão Texto Integral:

Acordam na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça

Processo n.441/16.1T8CSC.L1

I- RELATÓRIO

1. AA, Ld.ª propôs ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum (ação de reivindicação), contra BB e marido, CC, pedindo a condenação dos Réus nos termos infra transcritos:

“a) a reconhecerem o direito de propriedade da Autora sobre a fração autónoma identificada no art. 1º da petição inicial e a consequente restituição da mesma à Autora, completamente livre e devoluta de pessoas e bens;

b) a pagar à Autora a quantia de € 135.000,00 (cento e trinta e cinco mil euros), devida pela ocupação e fruição abusiva e ilegal da fração autónoma em causa pelos RR., desde Setembro de 1993 até Fevereiro de 2016, equivalente a uma renda mensal de € 500,00 (quinhentos euros), bem como em idêntica quantia mensal até à entrega efetiva da fração à Autora, acrescida dos juros de mora legais, desde a data da citação dos RR e até efetivo e integral pagamento;

c) a pagar à Autora a quantia de € 3.228,53 (três mil duzentos e vinte e oito euros e cinquenta e três cêntimos), respeitante ao reembolso dos IMIs e tarifas de conservação de esgotos pagos pela Autora, referentes aos anos de 2009 a 2014 e relativos à fração, assim como nos que vierem a ser pagos até à entrega da fração autónoma em causa;

d) no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso na entrega da fração autónoma à Autora, a partir do trânsito em julgado da sentença, em valor diário não inferior a € 50,00 (cinquenta euros), com todas as consequências legais”.

2. Os RR contestaram, mas a contestação foi desentranhada (por despacho de fls. 69, dado ter sido apresentada fora do prazo).

3. O tribunal de primeira instância proferiu a seguinte decisão: “Pelo exposto, julga-se a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenam-se os RR. a reconhecer o direito de propriedade da autora sobre a fração autónoma designada pela letra “…”, correspondente ao 6º andar esquerdo do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., nº …. (anterior Lote nº …), em ..., concelho de ..., descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..., da freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo nº ..., da União das freguesias de ... e ...; absolvendo os RR. do demais peticionado”.

4. Não se conformando com a decisão, a Autora interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa,

Os recorridos não apresentaram contra-alegações.

5. A segunda instância, por maioria, julgou o recurso improcedente e confirmou a sentença recorrida.

Tendo este Acórdão um voto de vencido (do 1º adjunto), tornou-se possível o recurso de Revista.

6. Contra tal Acórdão a Autora/Recorrente interpôs recurso de Revista, no qual formulou as conclusões que se transcrevem:

A) Perante os factos dados como provados sob os nºs. 10 a 18, dúvidas não podem subsistir que a Recorrida (promitente compradora) incumpriu definitivamente e após interpelação expressa da Recorrente para o efeito, em 18/03/2013, a transação celebrada pelas partes, pela qual a ora aquela confessou-se devedora a esta da quantia de €51.000,00, que seria paga numa prestação única no momento da celebração da escritura pública de compra e venda da fração objeto da lide, a qual deveria ser celebrada até ao dia 31 de Outubro de 2008, posteriormente alterada para 31 de Dezembro de 2008.

B) Ou que, no limite, como bem se considera na “Declaração de Voto Vencido”, subscrita pelo ilustre Juiz-Desembargador Eurico Reis, no acórdão recorrido, a petição inicial da presente ação pode ser entendida como constituindo a (nova – parêntesis nosso) interpelação admonitória exigida pela opinião maioritária.

C) Nos termos do artigo 808º, nº 1 do Código Civil, a lei permite ao credor que, independentemente da perda do seu interesse, este, no caso de mora do devedor, fixe ao devedor um prazo razoável para cumprir – trata-se da chamada “interpelação admonitória ou cominatória” –, com fixação de prazo perentório para o cumprimento, sob pena de se verificar uma situação de incumprimento definitivo, que provoca a extinção do dever de prestar principal.

D) O não cumprimento definitivo e culposo da prestação pelo devedor surge como um efeito da fixação de um prazo suplementar previsto no art.º 808º, nº 1 do Código Civil, remetendo este implicitamente, em termos de consequências, para o princípio geral de responsabilidade do devedor disposto no art.º 798º do Código Civil (o devedor que falte culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que cause ao credor) e para o disposto no art.º 801º, nº 1 do Código Civil, em sede de impossibilidade culposa do cumprimento, “tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor, é este responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação”.

E) O incumprimento culposo definitivo da prestação [máxime prestação de facere – outorga de escritura pública de compra e venda] acarreta a extinção, ainda que superveniente, automática do dever de prestar principal, pelo que tal efeito afasta, logico-juridicamente, o recurso ou necessidade de resolução do contrato, como figura jurídica ou meio de extinção da mesma obrigação e simultaneamente da contra obrigação, em obediência ao princípio do sinalagma contratual.

F) Sob o ponto de vista de lógica jurídica não se pode fazer cessar, através da resolução do contrato, uma prestação que já não existe, porque se extinguiu no momento em que se deu, ou melhor, se fixou o incumprimento definitivo da mesma (facto extintivo da obrigação e, necessária e simultaneamente, da contra obrigação de acordo com o sinalagma contratual) – a resolução do contrato torna-se desnecessária.

G) O incumprimento definitivo do contrato promessa de compra e venda, devido a culpa do promitente-comprador, nos termos do citado art.º 808º, nº 1 do Código Civil, afasta a necessidade de peticionar a resolução do referido contrato promessa ou a declaração do seu incumprimento, uma vez que aquele incumprimento já provocara a extinção da relação obrigacional, tornando assim ilegítima a posse ou detenção, a título sempre precário, do promitente-comprador sobre a fração autónoma objeto daquele contrato promessa, que havia sido igualmente objeto de tradição.

H) Atendendo ao caso dos autos, desnecessárias se tornavam emitir, pelo promitente-vendedor, ou obter do Tribunal a declaração de incumprimento do contrato promessa de compra e venda por culpa do promitente-comprador, assim como peticionar judicialmente a resolução do contrato promessa de compra e venda, para efeitos de acionamento do pedido de reivindicação da propriedade.

I) No caso dos autos, o reconhecimento do direito de propriedade da Autora sobre a fração autónoma melhor descrita nos mesmos, implicaria também a condenação dos Recorridos (possuidores ou detentores precários da coisa sem a titularidade daquele direito) na restituição daquela fração à Recorrente, sob pena de se frustra o fim da ação de reivindicação, sob pena de violação do disposto nos artigos 808º, nº1 e 1311º do Código Civil.

J) Com a consequente condenação dos Recorridos no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória por cada dia de atraso na entrega da fração autónoma à Recorrente, a partir do trânsito em julgado da sentença, nos termos do art.º 829º-A do Código Civil.

K) Em face dos factos dados como provados sob os nºs. 18 a 23, os Recorridos deviam também ser condenados no pagamento à Recorrente das indemnizações pela ocupação indevida da fração e de pagamento de despesas com IMI e taxa de esgotos desta, pedidas por aquela, dado que aqueles são responsáveis pelos prejuízos causados à mesma, sob pena de violação dos artigos 798º e 801º, nº 1 do Código Civil.

Nestes termos e nos melhores de direito que V. Exas. certa e muito doutamente sempre suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente e, por conseguinte, revogar-se o acórdão recorrido substituindo-o por outra decisão que condene os Recorridos conforme peticionado, com todas as consequências legais”.

7.Os RR/Recorridos não apresentaram contra-alegações.

II. ANÁLISE E FUNDAMENTAÇÃO

a) Objeto do recurso

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da Recorrente, cabe conhecer das seguintes questões:

- Deviam os RR/Recorridos ter sido condenados a restituir a fração autónoma prometida vender?

-Devia ter sido estabelecida uma sanção pecuniária compulsória até efetiva restituição desse imóvel?

-Deviam os RR/Recorridos ter sido condenados no pagamento de indemnização pela ocupação da fração prometida vender, bem como no pagamento do IMI e taxas de esgotos inerentes a essa fração?

b) Factualidade provada

No Acórdão recorrido dá-se como provada a seguinte matéria de facto que se transcreve:

1. A propriedade do prédio sito na Rua ..., nº …, em ..., concelho de ..., descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº …, da freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo nº ..., da União das freguesias de ... e ..., mostra-se inscrita no registo predial a favor da A (cfr. documento de fls. 7vº e ss.).

2. O referido prédio foi constituído em propriedade horizontal (cfr. documento de fls. 7vº e ss.).

3. A propriedade da fração autónoma designada pela letra “…”, correspondente ao 6º andar esquerdo do prédio urbano, em regime de propriedade horizontal, sito na Rua ..., nº … (anterior Lote nº …), em ..., concelho de ..., descrita na 2ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ..., da freguesia de ... e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo nº ..., da União das freguesias de ... e ..., mostra-se inscrita no registo predial a favor dos RR., aquisição averbada como provisória por natureza, pela apresentação 12 de 27/06/1994, por compra à ora A. (cfr. documento de fls. 7vº a 9)

4. Em 08 de Setembro de 1993, Autora e Ré mulher, então solteira, celebraram um contrato-promessa de compra e venda pelo qual a Autora prometeu e obrigou-se a vender e a Ré mulher prometeu e obrigou-se a comprar a fração autónoma acima identificada, pelo preço de 18.250.000$00 (dezoito milhões duzentos e cinquenta mil escudos), o equivalente hoje a € 91.030,62 (noventa e um mil trinta euros e sessenta e dois cêntimos). – cfr. documento de fls. 11, cujo teor se dá aqui por reproduzido.

5. Como sinal e princípio de pagamento, a Ré mulher entregou à Autora, na data da celebração do referido contrato-promessa de compra e venda, a quantia de 1.000.000$00, o equivalente hoje a € 4.987,98, devendo a restante parte do preço, no montante de 17.250.000$00, o equivalente a € 86.042,64, ser paga no ato da outorga da respetiva escritura pública de compra e venda (cfr. documento de fls. 11).

6. A escritura pública de compra e venda prometida deveria ter sido celebrada dentro do prazo de 120 dias a contar da data da celebração do mencionado contrato-promessa de compra e venda, ou seja, até 07 de Janeiro de 1994 (cfr. documento de fls. 11).

7. Com a celebração do aludido contrato-promessa de compra e venda, foi tolerado à Ré mulher, a título precário, a ocupação e posse da fração autónoma prometida, devido ao então bom relacionamento entre o, na altura, sócio-gerente da Autora, Sr. DD, e o pai da Ré mulher, Sr. EE, na presunção e convicção de que a dita escritura pública de compra e venda se realizaria dentro do prazo acordado no referido contrato.

8. A escritura pública de compra e venda prometida não se realizou até à data fixada no mencionado contrato, nem a Ré mulher se disponibilizou para a celebrar em qualquer outra data, apesar da tolerância que a Autora demonstrou, a qual procurou por todos os meios, quer verbais, quer escritos, que a Ré resolvesse definitivamente a situação.

9. A Autora viu-se forçada a intentar contra a Ré mulher, em 29 de Maio de 2006, uma ação judicial de condenação, que correu termos no 2º Juízo de Competência Cível do Tribunal Judicial da Comarca de ..., sob o processo nº 6675/06.0TBOER, no âmbito da qual peticionava (i) a resolução do aludido contrato promessa de compra e venda por incumprimento definitivo da Ré, com a consequente perda do sinal a favor da Autora, (ii) a condenação da Ré a entregar à Autora a fração, livre e completamente devoluta de pessoas e bens e (iii) a condenação da Ré a pagar à autora o montante mensal de € 600,00 pela ocupação e fruição abusiva e ilegal da fração desde maio de 1996 até à efetiva entrega da fração à A., bem como os juros de mora respetivos (iv) a condenação da R. a pagar o montante e € 35.685,30 respeitante aos juros de mora, desde 08/01/1994 a 30/04/1996, sobre o capital em dívida e nos juros vincendos até integral pagamento, (v) caso não proceda p montante peticionado a título de ocupação, a condenação da R. a pagar juros de mora legais, desde 01/05/1996 até integral pagamento e efetiva entrega da fração, a apurar sobre o capital em dívida; (vi) condenação da R. no pagamento de € 6.108,55 respeitante a contribuição autárquica/IMI até 2005 e na que vier a ser paga até à entrega da fração; (vii) condenação da R. no pagamento de € 1.126,34 respeitante à taxa de esgoto e saneamento e na que vier a ser paga até à entrega da fração (cfr. documento de fls.12 e ss., cujo teor se dá aqui por reproduzido.).

10. No âmbito desse processo judicial, em 09 de Julho de 2008, foi proferida sentença homologatória, transitada em julgado, da transação celebrada pelas partes, a qual tem as seguintes cláusulas :

- A reduz o pedido para € 51.000 (cinquenta e um mil euros);

- Esta quantia, que ressarcirá a A. de todos os danos de natureza patrimonial e não patrimonial emergentes da presente lide, será paga pela R. à A. numa única prestação, no montante de € 51.000 (cinquenta e um mil euros), como contrapartida e com vencimento na data em que as partes celebrarem a escritura pública mediante a qual a A. venderá à R. e esta lhe comprará o imóvel objeto da lide (nele melhor identificado e com a licença de utilização nº …, emitida em 11 de Junho de 1993 pela Câmara Municipal de ...), o que ambas as partes se comprometem a fazer. O preço global da referida venda é assim de € 91.030,62 (noventa e um mil e trinta euros e sessenta e dois cêntimos), cfr. contrato-promessa junto aos autos. A R. confessa-se devedora da referida importância, que pagará à A. numa prestação única no valor de € 51.000, no momento da celebração da escritura pública referida na cláusula anterior, nada mais tendo a pagar à A. para aa celebração da referida escritura.

- A escritura pública que será outorgada em nome da R. ou de quem esta indicar, deverá ser celebrada até ao dia 31 de Outubro de 2008, dado que a R. compradora poderá vir a recorrer a crédito bancário para efetivar a aquisição do imóvel.

- A autora disponibilizará todos os documentos necessários que da sua parte dependam para o efeito. A R. logo que tenha tudo pronto notificará a A. para que esta marque o dia, hora e local para a realização da venda prometida ou promoverá ela essa marcação e disso informará a A. com, pelo menos cinco dias de antecedência.

- A. e R. desistem, reciprocamente, de todos os restantes pedidos formulados nos autos.

- As custas em dívida a juízo, caso as haja, serão suportadas pela A. e R., na proporção de metade a cada parte, prescindindo ambas das custas de parte e de procuradoria na parte disponível.

- Uma vez pago à A. o supra referido montante de € 51.000 e celebrada a escritura pública supra mencionada, as partes declaram nada mais ter a haver ou a reclamar uma da outra no âmbito do assunto subjacente à presente causa (cfr. documento de fls. 19 a 23, cujo teor se dá aqui por reproduzido.)

11. Em 31 de Outubro de 2008, a pedido e por necessidade da Ré mulher, foi celebrado novo acordo entre aquela e a Autora, prorrogando o prazo de celebração da prevista escritura pública de compra e venda até ao dia 31 de Dezembro de 2008 (cfr. documento de fls. 24, cujo teor se dá aqui por reproduzido.).

12. Em contrapartida daquela prorrogação, a Ré mulher vinculou-se ao pagamento de juros de mora, à taxa legal comercial, sobre o valor de € 51.000,00 constante da citada transação judicial, contados desde 1 de Novembro de 2008, até ao dia da celebração da escritura pública prevista na mesma transação judicial; bem como, ao pagamento do IMI e taxas de esgotos e saneamento, correspondentes ao ano de 2008, da fração autónoma identificada na supra referida transação judicial (cfr. documento de fls. 24).

13. A Ré mulher não se mostrou disponível para a realização da dita escritura pública de compra e venda até à data acordada com a Autora (31-12-2008), nem em qualquer outra data, procurando a A. por todos os meios, quer verbais, quer escritos, que a Ré resolva definitivamente a situação.

14. Em 18 de Março de 2013, a Autora enviou à Ré mulher uma carta, registada com aviso de receção, interpelando-a expressamente para o cumprimento da transação judicial celebrada no citado processo nº 6675/06.0TBOER, isto é, para que procedesse à marcação da mencionada escritura pública de compra e venda e pagamento do referido valor, no prazo máximo de 30 dias a contar da receção daquela carta, sob pena de se considerar incumprido definitivamente o acordado e se proceder à instauração da competente ação judicial de reivindicação do imóvel ocupado, bem como ressarcimento de todas as despesas suportadas (cfr. documento de fls. 25, cujo teor se dá aqui por reproduzido).

15. Em 11 de Junho de 2013, a Ré mulher enviou uma carta de resposta à Autora, na qual apresentou a seguinte proposta de pagamentos:

- até final de 2013, liquidação do valor de € 3.034,92, relativos a IMI e Esgotos desde 2008 até à data; - até 30 de Junho de 2014, liquidação do valor de € 51.000,00 e realização da escritura e demais despesas que porventura possam advir (cfr. documento de fls. 25vº, cujo teor se dá aqui por reproduzido)

16. Em 30 de Dezembro de 2013, a Ré mulher enviou nova carta à Autora, solicitando uma prorrogação nos prazos acordados na correspondência acima mencionada, de 180 dias (cfr. documento de fls. 26, cujo teor se dá aqui por reproduzido).

17. A Autora respondeu à Ré mulher, por carta registada com aviso de receção, datada de 28 de Janeiro de 2014, comunicando-lhe que não aceitava o referido pedido de prorrogação da escritura (cfr. documento de fls. 26 vº, cujo teor se dá aqui por reproduzido).

18. Até à presente data, a Ré mulher não só não procedeu à marcação da aludida escritura pública de compra e venda da fração autónoma em causa ou se disponibilizou para a realização da mesma; como não procedeu ao pagamento de qualquer uma das quantias a que se vinculou, incluindo todas as despesas com IMI e Esgotos, que continuaram a ser integralmente suportadas pela Autora.

19. A Autora tem pago os valores referentes a IMI da fração autónoma em causa, os quais, referentes aos anos de 2009 a 2014, somam a quantia de € 2.765,23. (cfr. documentos de fls. 27 a 31vº).

20. A Autora pagou as tarifas de conservação de esgotos relativas à fração autónoma em causa, as quais, referentes aos anos de 2009 a 2012, somam a quantia de € 463,30 (cfr. documentos de fls. 32 a 34).

21. A Ré mulher mantém-se a habitar juntamente com o seu marido, ora Réu, a fração autónoma em causa, sem o pagamento de qualquer contrapartida.

22. A A. encontra-se privada quer daquele bem imóvel, quer do valor ajustado pelo mesmo e, ainda, do ressarcimento das respetivas despesas legais inerentes àquele.

23. O valor de renda mensal médio e razoável para a fração dos autos é não inferior a € 500,00 (quinhentos euros) mensais”.

c) O direito:

      No Acórdão recorrido, tal como na sentença da primeira instância, decidiu-se que: a improcedência do pedido de restituição da coisa se baseia no entendimento de que o pedido de entrega da fração prometida vender não se basta com a propositura da ação de reivindicação e o alegado (e demonstrado) direito de propriedade, impondo-se que seja invocada a resolução do contrato-promessa ou exista declaração de incumprimento do promitente-comprador.

     

Lê-se na fundamentação do Acórdão recorrido:

 “Estando em causa um contrato-promessa, só o incumprimento definitivo é suscetível de conduzir à sua resolução”. E acrescenta-se: “a interpelação admonitória ao devedor, sendo pressuposto da conversão da mora em incumprimento definitivo, assume a natureza de facto constitutivo essencial, relativamente ao direito potestativo de resolução judicial, fundado em incumprimento da outra parte. (…) No caso em apreço, está provado que a autora interpelou admonitoriamente a ré para cumprir no prazo de 30 dias após a receção daquela comunicação enviada em 18/03/2013 (…) Todavia, decorrido esse prazo e até ultrapassado com eventual anuência da autora (…) a autora não optou por resolver o contrato nem extrajudicialmente, nem judicialmente, já que nesta ação omitiu por completo o pedido de resolução do contrato promessa ainda em vigor.

      Ora, estando em causa uma ação de reivindicação, procedendo o pedido de reconhecimento do direito de propriedade sobre a coisa reivindicada, o pedido de restituição da coisa só poderia ser recusado nos casos previstos na lei (artigo 1311.º do Código Civil). Estando, porém, demonstrado que a ré é detentora por ter havido tradição da coisa ao abrigo de um contrato-promessa ainda em vigor, não o tendo a autora resolvido, o pedido de restituição da coisa não poderia deixar de improceder.” E conclui-se: “Em face do exposto, improcede a apelação quanto ao pedido de restituição da fração, daí resultando, em consequência, prejudicada a apreciação dos demais pedidos formulados pela autora.”

A aplicação do direito:

1. Quanto ao pedido de restituição do imóvel prometido vender:

A resposta à questão pressupõe que se conclua se o contrato-promessa está ou não em vigor e se o contrato prometido pode ainda ser celebrado, dado que foi na expectativa da celebração do contrato de compra e venda que a promitente vendedora acordou a traditio do imóvel (objeto do contrato prometido).  

 

A Autora interpelou a Ré promitente-compradora, através de carta de 18.03.2013, para cumprir, no prazo de 30 dias, sob pena de considerar o contrato definitivamente incumprido e de propor ação de reivindicação do imóvel prometido vender. Todavia, nem nessa interpelação, nem em comunicação posterior a Autora invocou a resolução do contrato-promessa.

A presente ação foi proposta (em 11.02.2016) quase três anos depois daquela interpelação. Nesta ação (além de pedir o reconhecimento do direito de propriedade), a Autora/Recorrente pede a restituição do imóvel prometido vender sem, todavia, invocar a resolução do contrato-promessa.

 

Da matéria de facto provada, conclui-se pela existência de repetidas situações de indefinição do comportamento das partes no exercício dos seus direitos e no cumprimento dos seus deveres contratuais.

Já em 2006, a Autora tinha proposto ação de resolução do contrato-promessa contra a promitente compradora, a qual terminou por transação (homologada em 09.07.2008, vd. fls. 23- verso).

Em 03/10/2008, foi celebrado acordo de prorrogação do prazo para a celebração do contrato prometido, até 31.12.2008, vinculando-se a Ré a pagar juros de mora, à taxa legal comercial, sobre o valor de €51.000,00, desde 01.11.2008, até ao dia da celebração da escritura pública prevista na transação judicial, bem como a pagar o IMI e taxas de esgotos e saneamento correspondentes ao ano de 2008.

Dúvidas não existem de que a Ré promitente-compradora se constituiu, repetidas vezes, em mora quanto ao dever de celebrar o contrato-prometido e, consequentemente, quanto ao cumprimento das prestações pecuniárias que deviam ser executadas até à data da celebração desse contrato.

Nos termos do art.442º, n.3 do CC, o contraente não faltoso, face à mora da contraparte, tem a faculdade de requerer a execução específica do contrato prometido, nos termos do art.830º. Em alternativa, o art.808º permite-lhe promover a passagem da situação de mora à de incumprimento definitivo e, consequentemente, invocar a resolução do contrato-promessa, nos termos do art.801º, n.2.

No caso em apreço, sendo a prestação devida [a celebração do contrato prometido] uma prestação que, pela sua própria natureza, ainda podia ser cumprida, e não tendo a Ré promitente-compradora manifestado, de forma inequívoca, a sua recusa em celebrar o contrato prometido, a promitente vendedora tinha o ónus de proceder à sua interpelação admonitória, para que o incumprimento pudesse qualificar-se como definitivo e assim fundar a resolução do contrato. Independentemente de a Autora manter o interesse na realização do contrato prometido, não lhe é exigível permanecer indefinidamente numa situação de incerteza (quanto à celebração do contrato) causada pela mora da Ré.

Todavia, porque a mora não é suficiente para fundar a resolução do contrato, como decorre dos artigos 801º e 808º do CC, cabe ao promitente fiel interpelar o promitente faltoso, fixando-lhe um prazo razoável para derradeiramente cumprir, com a cominação de que o incumprimento se considera definitivo após esse momento[1].

Faltando o interpelado culposamente ao incumprimento desta obrigação, assiste ao promitente fiel o direito potestativo de resolver o contrato (art.801º)[2]. Por força do exercício deste direito, caberá ao promitente incumpridor a obrigação de restituir o que lhe havia sido entregue (art.433º e 289º); no caso concreto, a fração prometida vender.

No caso em apreciação, apesar de a Autora ter interpelado a Ré promitente compradora para o cumprimento do contrato, em 18.03.2013, não invocou, nem nessa carta, nem em comunicação posterior que considerava o contrato promessa resolvido.

Todavia, o direito de resolução de um contrato com base em incumprimento culposo da contraparte é um direito potestativo que tem de ser expressamente exercido, e levado ao conhecimento da contraparte (art.436º), por via extrajudicial ou judicial[3].

A Autora/Recorrente pede a restituição da fração prometida vender, mas não demonstra ter exercido o direito de resolução do contrato-promessa. E esse é um direito potestativo que só pelo seu titular pode ser exercido; não pode, assim, ser de declaração oficiosa.

Acresce que, não sendo a resolução de um contrato o único fundamento teoricamente possível para o pedido de condenação na restituição de um bem, não se pode presumir que ao propor uma ação de reivindicação o promitente-vendedor esteja a exercer o seu direito de resolução[4].

Deste modo, também não se acompanha o entendimento expresso no voto de vencido constante do Acórdão recorrido[5].

Em rigor, a ação de reivindicação pressupõe que o detentor do imóvel não tenha qualquer direito de usar o bem reivindicado[6].

No caso concreto (não estando em causa o reconhecimento do direito de propriedade da Autora) encontra-se, porém, ainda em vigor um contrato-promessa, o qual justificou a traditio do imóvel prometido vender.

Assim, em setembro de 1993, com a celebração do contrato promessa (e o pagamento do sinal) a Autora permitiu à Ré que passasse a habitar a fração prometida vender, tendo em vista a celebração do contrato prometido.

Em maio de 2006 (face à mora da Ré em marcar a escritura pública), a Autora propôs ação de condenação da Ré, visando a resolução do contrato-promessa e a restituição daquela fração. Todavia, em julho de 2008, este processo terminou por transação homologada, nos termos da qual as partes renegociaram as condições para a celebração do contrato prometido, e a Autora desistiu do pedido de restituição da fração prometida vender. A promitente-vendedora deu, assim, o seu consentimento, pelo menos tácito, a que a promitente compradora continuasse a viver no imóvel até à celebração do contrato prometido.

A traditio é um modo específico de cedência do gozo de um bem prometido vender, previsto no quadro legal do contrato-promessa [nos art.442º, n.2 e art.755º, n.1, al. f)], que confere ao promitente-comprador uma particular tutela face ao eventual incumprimento do promitente-vendedor. Por outro lado, quando o contrato prometido vem efetivamente a celebrar-se, a traditio constitui um modo voluntário de cumprimento antecipado da obrigação de entregar a coisa vendida [art.879º, al.b)]. Em suma, a traditio é, nestes termos, um modo lícito de acesso ao gozo temporário de um imóvel alheio.

Deste modo, mantendo-se o contrato-promessa ainda em vigor, não se pode qualificar a detenção feita pelos Réus como ilícita, pelo que sempre o pedido de entrega daquele bem terá de improceder, justificando-se a recusa da entrega nos termos do art.1311º, n.2 in fine[7].  

2. Quanto à sanção pecuniária compulsória até efetiva entrega do imóvel:

Dado não existir fundamento para condenar os Recorridos a restituírem a fração prometida-vender, porque o contrato-promessa ainda não está resolvido, fica prejudicada a questão da eventual sanção pecuniária compulsória.

3. Quanto aos pedidos indemnizatórios:

Resulta da factualidade provada que a Ré/Recorrida assumiu a obrigação do pagamento das quantias referidas na transação judicial (de 09.07.2008) bem como no acordo posterior (de 03/10/2008), até à data da celebração da escritura de compra e venda. Sendo a celebração desse contrato (pela sua natureza) uma prestação ainda possível, e não tendo a Autora promitente-vendedora, procedido ainda à resolução do contrato-promessa, fica prejudicado o conhecimento daquele pedido (até porque, nos termos do art.779º do CC, o prazo se tem por estabelecido a favor do devedor). Quanto a outros eventuais montantes, devidos pelo uso do imóvel ou respeitantes a impostos ou taxas, não se provou que tivesse havido acordo das partes relativamente ao seu pagamento, nem nos autos foi feita concreta prova de danos. 

Conclui-se, assim, que o Acórdão recorrido fez correta interpretação e aplicação do direito pertinente (nomeadamente dos artigos 801º, 808º e 1311º do CC).

III. DECISÃO

Nos termos expostos, julga-se a Revista improcedente, confirmando-se o Acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 12 de dezembro de 2017

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Salreta Pereira

João Camilo

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[1] Neste sentido, e explicitando os requisitos da interpelação admonitória, vd. João Baptista Machado, “Pressupostos da Resolução por Incumprimento”, in Obra Dispersa, 1991, pág. 164 e segs.
[2] Escreveram Pires de Lima/Antunes Varela: “O credor não pode, em princípio, resolver o negócio em consequência da mora do devedor. O que pode é exigir o cumprimento da obrigação e a indemnização pelos danos sofridos. O direito potestativo de resolução só é concedido, em princípio, no caso de impossibilidade culposa”. E acrescentam (na mesma página): “Independentemente da perda do interesse do credor, a lei permite que este, no caso de mora, fixe ao devedor um prazo razoável para cumprir, sob pena, igualmente, de se considerar a prestação como não cumprida – e não em mora apenas. Não se admitindo o recurso do credor à resolução pelo simples facto da mora, impõe-se a resolução consagrada no art.808º, n.1, como substituto da execução forçada”; Código Civil Anotado, Vol. II, 4ª ed., pág.71.
[3] Neste sentido afirma Antunes Varela: “A resolução opera-se por meio de declaração unilateral, receptícia do credor (art.436º), que se torna irrevogável logo que chega ao poder do devedor ou é dele conhecida (art.224º, n.1 e 230º, n. 1 e 2”; Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7ª ed., pg.108.
[4] Neste sentido, pronunciando-se sobre um caso bastante próximo do caso sub judice, vd. o Acórdão do STJ, de 29.10.1996, Processo n.º 429/96 - 1.ª Secção (relator Torres Paulo), com o seguinte sumário: “Improcede acção de reivindicação de imóvel urbano se o réu prova que o ocupa com base em contrato-promessa de compra e venda que ainda não foi resolvido, pois nem o autor demonstrou perda do interesse na prestação, nem notificou o réu para a escritura de compra e venda com a cominação inequívoca da resolução do contrato não comparecendo”.
[5] Defendeu-se, nesse voto de vencido, que a petição inicial da presente ação podia ser entendida como constituindo a interpelação admonitória exigida pela opinião maioritária. Consequentemente, na opinião vencida, a sentença recorrida teria sido parcialmente revogada, os RR condenados a restituírem o imóvel, bem como a pagarem a indemnização requerida pela ocupação, sendo ainda decretada a sanção pecuniária compulsória [mas já não o pagamento dos reembolsos enunciados na alínea c) do pedido].
[6] Como escreveram Pires de Lima/Antunes Varela: “… não há reivindicação, se o autor pede a entrega da coisa (…) como efeito de um negócio ou de um facto jurídico que obriga o possuidor ou detentor a entrega-la. São os casos, por exemplo, de o pedido se fundar nos artigos (…) 289º, n.1 e 433º (nulidade ou resolução do contrato)”; Código Civil Anotado, Vol. III (2ª ed.), pág.113.
[7] Em anotação ao art.1311º do CC, afirmam Pires de Lima/Antunes Varela que o demandado “poderá contestar o seu dever de entrega, sem negar o direito de propriedade do autor, com base em qualquer relação (obrigacional ou real) que lhe confira a posse ou a detenção da coisa”; CC Anotado, Vol. III (2ª ed.), pág.116º.