Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
617/12.0TBCMN.G1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: ROQUE NOGUEIRA
Descritores: ESCRITURA PÚBLICA
COMPRA E VENDA
CONFISSÃO
PREÇO
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
IMPUGNAÇÃO
PROVA TESTEMUNHAL
Data do Acordão: 04/17/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DOS DIREITOS / PROVAS / PRESUNÇÕES / CONFISSÃO / PROVA TESTEMUNHAL.
Doutrina:
-Antunes Varela, Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, p. 520 a 523 e 560;
-Carvalho Fernandes, A prova da simulação pelos simuladores, Estudos Sobre a Simulação, Quid Juris, 2004, p. 53 e 85;
-Jacinto Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, Volume II, p. 177;
-Mota Pinto, Pinto Monteiro, CJ, Ano X, T. 3, p. 9 e ss.;
-Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil, Anotado, Volume I, 2.ª Edição, p. 304, 320
-Vaz Serra, R.L.J., Ano 103, p. 10 e ss. e p. 13 e ss.; e Ano 107, p. 309 e ss. p. 311 e ss.;
-Vaz Serra, Mota Pinto R.L.J., Ano 107, p. 311.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 351º, 358.º, N.º 2, 393,º E 394.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


-DE 09-06-2005;
-DE 07-02-2008, RELATOR SANTOS BERNARDINO;
-DE 09-10-2008, RELATOR SANTOS BERNARDINO;
-DE 06-12-2011;
-DE 09-07-2014;
-DE 15-04-2015;
-DE 02-06-2016, TODOS IN WWW.DGSI.PT.


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ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DE LISBOA:


-DE 27-04-2010, IN WWW.DGS.PT.


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ACÓRDÃO DA RELAÇÃO DO PORTO:


-DE 09-03-2009, RELATOR FERNANDES DO VALE, IN WWW.DGSI.PT/JTRP.
Sumário :

I - Em escritura pública de compra e venda, a confissão do recebimento do preço pelo autor perante a ré tem força probatória plena – art. 358.º, n.º 2, do CC.
II - A força probatória plena da confissão pode ser afastada pelo autor com a alegação e demonstração do facto contrário e com as restrições previstas nos arts. 351.º, 393,º e 394.º, todos do CC.
III - O assentamento do facto do não recebimento do preço fundado em prova testemunhal determina que seja eliminado dos factos provados e a acção seja julgada improcedente.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1 – Relatório.

No Tribunal Judicial de Caminha, AA intentou acção declarativa de condenação, sob a forma comum ordinária, contra BB, pedindo, a final, que a compra e venda em questão seja declarada simulada e, portanto, válido o negócio dissimulado como sendo uma doação com a cláusula modal da ré cuidar do autor, em sua casa, atá ao final da vida e, em consequência, que a doação da fracção em causa seja anulada por incumprimento voluntário da ré das obrigações que a ela estavam subjacentes, que a ré seja condenada a desocupar a mesma fracção e que seja ordenado o cancelamento do registo da aquisição a favor da ré.

Pediu, ainda, em alternativa, que a ré seja condenada a pagar ao autor a quantia de € 80.000,00, correspondente ao preço do apartamento que ainda não liquidou, a quantia de € 7.000,00 referente à mobília e ao ar condicionado e a quantia de € 480,00 referente ao imposto de selo devido pela transacção.
Após contestação da ré e ampliação do pedido na réplica, o autor desistiu dos pedidos formulados nas als. a), b), c) e d) da petição inicial e do pedido formulado na réplica, desistência que foi homologada por sentença já transitada em julgado.
Foi proferido o despacho saneador, identificado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova.

Realizada a audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença, julgando a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenando a ré a pagar ao autor a quantia de € 60.000,00.

Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação daquela sentença, impugnando as decisões de facto e de direito.

O relator no Tribunal da Relação de Guimarães proferiu decisão sumária, tendo rejeitado o recurso no que se refere à impugnação da decisão que fixou a matéria de facto provada, mantendo esta e confirmando a decisão de direito.

Deduzida reclamação, foi proferido acórdão, que confirmou a decisão reclamada.

De novo inconformada, a ré interpôs revista daquele acórdão, tendo a mesma sido concedida e, em consequência, foi anulado o acórdão recorrido no segmento em que se decidiu rejeitar o recurso no que se refere à impugnação da decisão relativa à matéria de facto, tendo-se determinado a baixa do processo ao Tribunal da Relação para que procedesse à integral apreciação daquela impugnação deduzida no recurso de apelação, bem como, se fosse o caso, do subsequente alcance em sede da solução de direito.

Foi, então, proferido novo acórdão pelo Tribunal da Relação de Guimarães, tendo-se decidido revogar a sentença recorrida e julgar totalmente improcedente a acção, absolvendo a ré do pedido formulado.

Inconformado, o autor interpôs recurso de revista daquele acórdão

Produzidas as alegações e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2 – Fundamentos.

2.1. No acórdão recorrido consideraram-se provados os seguintes factos:

1) Em meados de Maio de 2010, o Autor admitiu a Ré ao seu serviço para cuidar da limpeza da sua habitação, para tratar da roupa, cozinhar e tratar do jardim (art.º 3.º da p.i. e art.ºs 5.º a 7.º da contestação);

2) Inicialmente, a Ré trabalhava em casa do Autor durante o dia e pernoitava em sua casa, mas posteriormente, após o seu divórcio, passou a viver, com as suas duas filhas, em casa do Autor (art.ºs 4.º a 7.º da p.i. e art.ºs 5.º, 9.º, 11.º, 13.º e 16.º a 19.º da contestação);

3) Após ter passado a residir em casa do Autor, a Ré continuou a realizar o seu trabalho como sempre havia feito até então (art.º 20.º da contestação);

4) Por vezes, a Ré falava ao Autor na hipótese de arranjar trabalho fora de casa, mas este sempre se mostrou contra (art.ºs 21.º e 22.º da contestação);

5) Através do contrato de compra e venda com termo de autenticação de fls. 11 v.º a 14 v.º, outorgado no dia 10 de Novembro de 2010, CC e DD declararam vender ao Autor, e este declarou aceitar a venda, a fracção autónoma identificada pela letra “G”, destinada à habitação, correspondente ao 2.º andar esquerdo, lado sul do bloco 1, do prédio sito na rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Caminha sob o n.º 29 da freguesia de Seixas, inscrito na respectiva matriz da freguesia de Seixas, sob o artigo 815, pelo preço de € 60.000,00 (art.º 8.º da p.i.);

6) O Autor remodelou a fracção descrita em 3 e equipou-o, além do mais, com ar condicionado, uma placa de fogão e um forno (art.º 9.º da p.i.);

7) Através de testamento outorgado em 02/02/2011 no Cartório Notarial de Vila Nova de Cerveira, exarado a fls. 17 a fls. 17 e verso do Livro de Notas para Testamentos Públicos e Escrituras de Revogação de Testamentos número cinco-T, daquele Cartório, junto a fls. 15-16, o Autor declarou legar à Ré a fracção autónoma designada pela letra “G” destinada à habitação, correspondente ao 2.º andar esquerdo, lado sul do bloco 1, do prédio urbano sito na rua ..., inscrito na respectiva matriz da freguesia de Seixas, sob o artigo 815, o prédio rústico sito no lugar da ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Valença sob o n.º ... e inscrito na matriz sob o artigo 1984, a sepultura que possuiu no cemitério da freguesia de ..., concelho de Valença e dos veículos automóveis que possuísse à data da morte, o que tivesse a matrícula mais recente (art.º 12.º da p.i.);

8) Em 16/01/2012, através da escritura junta a fls. 16 v.º-17 v.º, o Autor revogou o testamento referido em 7) (art.º 15.º da p.i.);

9) Através de testamento outorgado em 23/01/2012 no Cartório Notarial de ..., exarado a fls. 80 a 81 do Livro de Notas para Testamentos Públicos e Escrituras de Revogação de Testamentos número nove-T, daquele Cartório, junto a fls. 18-19, o Autor declarou legar à Ré um prédio urbano no lugar da ..., concelho de ..., composto de casa de habitação e logradouro, inscrito na matriz sob o art.º 613, um prédio rústico sito no lugar da ..., concelho de ..., composto de terreno de cultura inscrito na matriz sob o artigo 1983, um prédio rústico sito no lugar da ..., composto de terreno de cultura inscrito na matriz sob o artigo 1984, o veículo automóvel, marca Renault, modelo Clio, ligeiro de passageiros, com a matrícula ...-EN-... e a sepultura da família de que é proprietário no Cemitério da freguesia de ..., concelho de ... (art.º 18.º da p.i.);

10) No dia 27/01/2012, o Autor, como primeiro outorgante, e a Ré, como segunda outorgante, celebraram o contrato de compra e venda com termo de autenticação de fls. 21 v.º-22 v.º no qual aquele disse, além do mais, “que, pelo preço de sessenta mil euros, que já recebeu, vende à segunda outorgante” (…) a “fracção autónoma designada pela letra “G”, destinada à habitação, correspondente ao 2.º andar esquerdo, lado sul do bloco 1, localizada no prédio sito na rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de Caminha sob o n.º 29 daquela freguesia, afecto ao regime de propriedade de horizontal “ (…), “inscrita na matriz sob o artigo 815 G, com o valor patrimonial tributário de 22.520,00 € e atribuído de sessenta mil euros” e esta disse “que aceita o presente contrato, e que o prédio ora adquirido se destina a sua habitação própria e permanente.” (art.º 22.º da p.i.);

11) Após a outorga do contrato de compra e venda referido em 10), a Ré continuou a trabalhar para o Autor (art.º 27.º da contestação);

12) O Autor não recebeu o preço da venda realizada através do contrato descrito em 10) (art.ºs 24.º, 44.º e 50.º da p.i.);

13) Em 16/05/2012, através da escritura junta a fls. 26 v.º-27 v.º, revogou o testamento referido em 9) (art.º 36.º da p.i.);

14) Em Maio de 2012, a Ré foi residir com as suas filhas para a fracção autónoma descrita em 10) (art.º 42.º da p.i. e art.º 44.º da contestação);

15) A Ré não tinha dinheiro para adquirir a fracção autónoma descrita em 10) (art.º 45.º da p.i. e art.º 24.º da contestação);

16) O imposto de selo de € 480 devido pela transacção referida em 10) foi liquidado (art.ºs 25.º e 54.º da p.i.);

17) Enquanto residiu com as suas filhas em casa do Autor, a Ré nunca recebeu qualquer quantia pelo trabalho prestado, mas o Autor suportava todas as despesas (de vestuário, calçado e alimentação) da Ré e das suas duas filhas (art.º 25.º da contestação).

Factos não provados

Não resultaram provados outros factos com relevância para a boa decisão da causa, designadamente que:

a)- A fracção descrita em 10) era usada e estava bastante degradada e o Autor equipou-a com um exaustor marca “Airlux AGMT 62 IX”, uma máquina de lavar roupa marca “Beko WMD15065D”, um plasma, uma mesa de sala de jantar com 4 cadeiras, uma cristaleira e um jogo de sofás em tecido e mobilou os quartos (art.º 9.º da p.i.);

b)- O Autor gastou € 7.000 nas mobílias, máquinas e ar condicionado referidos em 6) e a) (art.ºs 9.º e 53.º da p.i.);

c)- Com as remodelações, a fracção ficou com o valor para cima de € 80.000,00, montante que o Autor receberia se a vendesse no mercado (art.ºs 10.º, 51.º e 52.º da p.i.);

d)- Logo no final das remodelações ou ainda no decurso das mesmas, a Ré propôs ao Autor que se ele quisesse nunca mais deixava de ser sua empregada e o trataria até ao final da vida, mas para assumir isso teria de lhe fazer um testamento do apartamento de ... e das propriedades que tinha em ... (art.º 11.º da p.i.);

e)- O Autor outorgou o testamento referido em 7) porque a Ré lhe fez a proposta descrita em d);

f)- Passado quase um ano de ser instituída legatária no testamento referido em 7), a Ré começou a dizer ao Autor que o testamento não lhe dava segurança já que o filho quando ele falecesse era herdeiro e podia-lhe tirar quase tudo e também o apartamento e por isso tinha de lhe BCMN fazer uma escritura de compra e venda pelo menos do apartamento, mas que ela não pagava nada - era como fosse uma doação por o cuidar até ao fim da vida, dizia ela ré (art.º 13.º da p.i.);

g)- O Autor ficou de pensar no assunto e a Ré mostrava-se muito atenciosa e tratava o Autor com toda a atenção e para melhor o convencer, em conversa que fosse possível, a “talhe de foice”, ia-lhe sempre dizendo que o filho não queria saber dele para nada e se não quisesse ficar só e ir para um lar tinha de lhe “segurar” pelo menos o apartamento que era só dele (as outras propriedades ainda estavam indivisas na herança aberta por óbito da esposa do Autor, e a Ré soube) (art.º 14.º da p.i.);

h)- O Autor revogou o testamento referido em 7) porque se demorou a decidir-se doar a referida fracção através de escritura de compra e venda como propôs a Ré e esta cada vez com mais frequência insistia (art.º 15.º da p.i.);

i)- Dada a atitude do Autor e que a Ré não estaria a contar, esta ainda se começou a descontrolar mas pensou melhor, e, de imediato pediu mil desculpas e dizia vezes sem conta que estava arrependida e não sabia o que lhe tinha passado pela cabeça, mas que isso não voltava a acontecer e voltou a prometer ao Autor que nunca deixaria de ser sua empregada e o trataria como fosse seu pai e reforçou que o cuidaria até ao final da vida e mesmo que tivesse de andar de cadeira de rodas ou estivesse acamado não o deixava ir para um lar, mas insistia que as outras propriedades podiam ser deixadas em testamento, mas o apartamento tinha de lho doar, e frisava que a escritura a fazer tinha de ser de compra e venda e dizia que já tinha recebido o dinheiro (art.º 16.º da p.i.);

j)- A Ré também queria que o Autor lhe pusesse um veículo automóvel em seu nome, que era para se puder deslocar à vontade, dizia ela (art.º 17.º da p.i.);

k)- Dadas as repetidas desculpas e promessas da Ré, o Autor ficou convencido e outorgou o testamento referido em 9) (art.º 18.º da p.i.);

l)- Feito o testamento, sem dar tempo de preparar a escritura que haveria de ser de “compra e venda”, de imediato a Ré começou a insistir com o Autor para lhe fazer a escritura de “compra e venda” da referida fracção nos moldes que ela pretendia, que era escriturá-la como fosse uma compra e venda mas não pagava o preço, e para pressionar o Autor voltava a acrescentar que o BCMN filho não queria saber dele para nada e não merecia nada do que fosse dele, e sequer um dia iria à sepultura e que ela a cuidaria como fosse do seu pai (art.º 19.º da p.i.);

m)- A Ré fez tudo para por o filho contra o pai, aqui Autor (art.º 20.º da p.i.);

n)- O Autor que vivia só depois da esposa falecer e assim pensava que ia continuar até ao fim da vida e o seu destino mais tarde ou mais cedo se não tivesse quem o cuidasse era um lar de idosos - coisa que sempre temeu e a Ré sabia - ficou convencido que se desse o apartamento à Ré, que era o que ela perseguia desde que o viu, iria ser cuidado até ao fim da vida em sua casa, pois o filho, cujas relações estavam cortadas por esforço da Ré, nasceu em França e vive lá, e muito possivelmente sua residência será sempre lá (art.º 21.º da p.i.);

o)- O Autor com aquela promessa de ser cuidado desde então até ao final da vida em sua casa e para o filho não puder reduzir a deixa testamentária ou doação sobre o apartamento cedeu à pressão da Ré e, por isso, outorgou o contrato de compra e venda referido em 10) (art.º 22.º da p.i.);

p)- Não estava em mente dos contratantes realizar uma verdadeira e efectiva compra e venda daquele bem imóvel, porque o que as partes quiseram foi uma doação que consistia na obrigação da Ré cuidar do Autor desde aquela data até ao final da sua vida em sua casa (do autor), e dessa forma (com o contrato de compra e venda) o filho do Autor também ficava arredado de puder reduzir o legado em deixa testamentária ou em doação por inoficiosidade (art.º 24.º da p.i.);

q)- O Autor pagou o imposto de selo do montante de € 480,00 (art.ºs 25.º e 54.º da p.i.);

r)- O valor indicado no contrato de compra e venda também foi intencionalmente baixo para pagar menos imposto de selo (art.ºs 26.º e 55.º da p.i.);

s)- A Ré após ter o apartamento em seu nome e vivendo na habitação do Autor em ..., como empregada interna e as filhas com ela, que mais parecia ser a governanta na casa do Autor e manterem uma relação amantética (atente-se que autor desde há muito que está impotente), começou a abandonar o trabalho durante todo o dia e sequer fazia o almoço ou jantar para Autor (art.º 27.º da p.i.);

t)- As saídas da Ré pela manhã com regresso à noite iam crescendo e outras vezes deitava as filhas e sai pela noite dentro e vinha de madrugada (art.º 28.º da p.i.); BCMN

u)- Com as filhas da Ré a viver em casa do Autor e com as saídas da Ré durante o dia e noite, era o Autor que muitas vezes ia buscar à escola a filha mais nova da Ré e lhe dava o lanche e de noite quando saía, ela(Ré) estava descansada porque o Autor estava em casa. As posições invertiam-se ou seja: Era o Autor a trabalhar de dia para a Ré e à noite servia de “baby-sitter” (art.º 29.º da p.i.);

v)- Dados os citados factos, o Autor chamou a Ré à atenção e lembrou-lhe que ele lhe tinha doado o apartamento (não vendido como reza o contrato, pelas razões já explicadas), para ela cuidar da casa como uma empregada doméstica e dele quando estivesse doente até ao final da vida e não era para andar a passear todos os dias a sair pela manhã e só regressar à noite ou sair à noite e deixar as filhas, sendo ele(autor) que se qualquer coisa acontecesse tinha de resolver (art.º 30.º da p.i.);

w)- A Ré, após a outorga do contrato de compra e venda da fracção autónoma a seu favor, começou a ter novas atitudes e sair de casa de ..., logo pela manhã e era o Autor que cuidava, principalmente da filha mais nova quando a Ré saía, que era uma constante, e o Autor também servia para a Ré fazer noitadas mais descansada (art.º 31.º da p.i.);

x)- A Ré também deixou de ter cuidado e esmero a tratar da casa e o trato que existia para o Autor antes de lhe ser feita a escritura de “compra e venda” sobre a fracção identificada tinha desaparecido (art.º 32.º da p.i.);

y)- O Autor no mês de Abril de 2012, pelo tampo da Páscoa, teve de ir a França resolver lá uns assuntos, pois foi lá emigrante (art.º 33.º da p.i.);

z)- Enquanto o Autor esteve em França, sem autorização a Ré retirou da casa de ... e levou para a fracção “vendida” pelo Autor a melhor roupa de cama (lençóis, cobertores e cobertas) e toalhas de linho assim como as melhores loiças que estavam guardadas, adquiridas pela falecida esposa, que ele(autor) muito estimava (art.º 34.º da p.i.);

aa)- O Autor quando regressou a Portugal, no início de Maio, e se apercebeu que as referidas roupas de cama, toalhas e loiças adquiridas pela falecida esposa tinham sido levadas pela Ré para o apartamento não aceitou tamanho abuso e disse à Ré para trazer de volta tudo o que tinha BCMN levado, o que ela recusou e quando o Autor saia ainda leva o que podia (art.º 35.º da p.i.);

ab)- Dado esse facto e apercebendo-se que a Ré não estava ali para o cuidar mas para se cuidar, o Autor revogou o testamento referido em 9) (art.º 36.º da p.i.);

ac)- Passados um ou dois dias, o Autor com umas postura mais firme voltou a dizer à Ré para trazer de volta o que tinha levado para o apartamento, mas a Ré voltou a recusar trazer o tinha levado (se tinha apropriado) e fê-lo com agressividade aos empurrões e pontapés ao Autor e aos “berros” chamava-lhe nomes ofensivos de toda a espécie (art.º 38.º da p.i.);

ad)- O Autor quase não reagiu dada a sua idade e saúde frágil (art.º 39.º da p.i.);

ae)- Ao mesmo tempo que a Ré agredia o Autor, exigia que lhe desse o jogo de chaves que tinha do apartamento de “Seixas” e também a cópia da contrato de compra e venda que o autor tinha na sua posse, e dizia que era tudo dela (art.º 40.º da p.i.);

af)- Após a discussão, o Autor referiu à Ré que se ela continuasse a tratá-lo daquela forma, lhe ia desfazer a “venda” do apartamento de Seixas ao que ela(Ré) respondeu que nunca mais o podia fazer e que ela não andava a dormir e para sair da sua frente que já não o podia ver e que não estava para aturar velhos (art.º 41.º da p.i.);

ag)- A Ré saiu pela porta fora e foi residir para a fracção que lhe foi “vendida” e ainda avisou o Autor que não tentasse ir buscar alguma coisa que o atirava pelas escadas abaixo (art.º 42.º da p.i.);

ah)- O Autor também deu falta da carteira e outros objectos valiosos e ainda apresentou queixa pelas agressões e furto, mas o processo foi arquivado (art.º 43.º da p.i.);

ai)- Não houve venda nem nunca esteve na mente de ambos fazer uma verdadeira compra e venda e a intenção de ambos residia em simular a venda para retirar ao filho do Autor toda e qualquer possibilidade de redução por inoficiosidade de uma doação ou deixa testamentária (art.ºs 44.º e 49.º da p.i.);

aj)- Todo o recheio que existe dentro da fracção pertence ao Autor (art.º 46.º da p.i.);

ak)- A Ré comprometeu-se a cuidar do Autor até ao final da vida e, voluntariamente, depois de apanhar a fracção em seu nome, não quis cumprir (art.ºs 47.º e 48.º da p.i.); BCMN

al)- A Ré desempenhava o seu trabalho com gosto, dedicação e o máximo de zelo. Para si, era extremamente gratificante, na medida em que se sentia útil ao Autor e solidária para consigo (art.º 8.º da contestação);

am)- A Ré só saía do trabalho às 17:00 Horas, voltando ainda a casa do Autor amiúde para ver se estava tudo bem e acautelar um ou outro pormenor que pudesse estar em falta (ver se as portas estavam todas fechadas, saber se o Autor precisava de alguma coisa etc.) (art.º 9.º da contestação);

an)- À medida que o tempo passava, a Ré ia estabelecendo as suas rotinas em função do Autor, atendendo sempre às suas necessidades e vontades, estando e mostrando-se sempre disponível para fazer o que o Autor lhe pedisse, a qualquer momento (art.º 10.º da contestação);

ao)- O Autor estava ao corrente desta separação da Ré, e sempre lhe ia dizendo que não se preocupasse, dando-lhe apoio nas várias conversas que mantinham durante a “jornada de trabalho” da Ré (art.º 12.º da contestação);

ap)- Foi então que o Autor se disponibilizou a auxiliar a Ré, propondo-lhe que pernoitasse em sua casa, já que lá passava todo o dia, tendo a Ré aceitado (art.º 13.º da contestação);

aq)- O Autor dissuadia a Autora ter um trabalho fora de casa, dizendo-lhe que “a punha dali para fora” se a Ré insistisse nessa ideia, algo que a Ré não entendia nem pretendia, até porque não havia motivos para isso (art.º 22.º da contestação);

ar)- O Autor começou a falar à Ré na sua vontade em vender-lhe a Fracção em questão juntamente com o respectivo recheio que esta tivesse à data da escritura, mas que como sabia que a Ré não teria dinheiro para lha pagar, o preço desta venda corresponderia ao valor do tempo de dedicação e trabalho que a Ré tinha prestado ao Autor, até então, diariamente e 24 horas/dia durante quase 2 anos (art.º 24.º da contestação);

as)- A Ré considerou a proposta justa e aceitou-a (art.º 25.º da contestação);

at)- A Ré deslocou-se ao escritório da Sra. Solicitadora para realizar o contrato de compra e venda referido em 10) por iniciativa do Autor (art.º 26.º da contestação);

au)- Com o passar do tempo, a Ré começou a notar alguma animosidade por parte do BCMN Autor para com as filhas menores da Ré, situação que sempre desvalorizou até que o Autor quis dar uma estalada na sua filha mais nova (art.º 28.º da contestação);

av)- A Ré não gostou da situação e advertiu o Autor de que não voltasse a fazê-lo, dizendo-lhe que pretendia educar as suas filhas na base do respeito e não da violência ou da intimidação física das crianças (art.º 29.º da contestação);

aw)- A partir de então, desse episódio, a harmonia que existia entre si, Autor e as suas filhas pareceu vir a desaparecer e rapidamente o Autor começa a ter um comportamento de intolerância e rejeição das crianças, menores (art.º 30.º da contestação);

ax)- A Ré continuou a tratar o Autor com total disponibilidade e humanidade – o que sempre fez, procurando que todos vivessem felizes, em harmonia e com afecto uns pelos outros (art.º 31.º da contestação);

ay)- A Ré, apercebendo-se de que o Autor não gostava muito do contacto com as crianças, algo que era novidade para si até ao episódio que se relata, pedia com frequências às filhas para falaram baixo, brincarem sem fazer barulho (…) pedido a que as filhas, apesar da sua tenra idade, atendiam (art.º 32.º da contestação);

az)- A Ré tudo fazia em prol do bem-estar do Autor, pessoa que muito estimava, mas tudo parecia não chegar (art.º 33.º da contestação);

ba)- O Autor levou a mal a “chamada de atenção” da Ré e desde então, a relação “laboral” e de companheirismo entre Autor e Ré e deste para com esta, ficou completa e irreversivelmente inquinada, parecia que o Autor se pretendia “ver livre da Ré e das suas filhas” (art.º 37.º da contestação);

bb)- A partir de então, o Autor começou a falar à Ré na possibilidade de esta e as suas filhas irem viver para a casa que o Autor havia vendido à Ré, algo que a Ré foi sempre desvalorizando e rejeitando, na esperança de que a atitude e comportamento hostil do Autor para com esta e as suas filhas mudasse (art.ºs 38.º e 39.º da contestação);

bc)- Os esforços da Ré revelaram-se totalmente infrutíferos (art.º 40.º da contestação);

bd)- O Autor não só não inflectia no seu comportamento distante e hostil, como agudizava BCMN a rejeição às crianças e por inerência à mãe, ora Ré (art.º 41.º da contestação);

be)- Foi neste contexto de mal estar generalizado em casa do Autor, que este ordenou à Ré que deixasse a sua casa e fosse juntamente com as suas filhas, viver para a casa que este lhe havia vendido (art.º 42.º da contestação);

bf)- E após inúmeras tentativas para dissuadir o Autor, a quem a Ré pretendia continuar a cuidar e servir por muitos mais anos, a Ré teve mesmo que sair de casa do Autor (art.º 43.º da contestação);

bg)- O Autor a expulsou de casa a Ré e as suas filhas e estas deixaram, contra vontade e com muita tristeza, a casa do Autor (art.º 44.º da contestação);

2.2. O recorrente remata as suas alegações com as seguintes conclusões:

a) No documento particular de compra e venda da fracção autónoma pelo recorrente à recorrida, a Sr. Solicitadora escreveu:

"Pelo primeiro outorgante foi dito que pelo preço de sessenta mil euros, que já recebeu, vende à segunda outorgante, o seguinte"( .. ).

b ) O documentador não menciona que viu a recorrida pagar o valor da fracção autónoma ao recorrente nem outra percepção do pagamento refere.

c) Nada impede, por isso, que se impugne por qualquer meio essa declaração negocial documentada.

d)- Foi o que aconteceu em primeira instância com recurso à prova testemunhal, foi provado o nº 12 dos factos provados com a seguinte redação – “ O autor não recebeu o preço da venda realizada através do contrato descrito em 10)”.

e) Fundamenta o Tribunal de 1ª instância o facto provado no n.12 dos factos provados: “( ... ) o Tribunal estribou a sua convicção no depoimento da testemunha ..., filha da ré( ... )”.

f) E como a recorrida não tinha pago o preço da fracção condenou-a a pagar ao recorrente a quantia de €60.000,00 (sessenta mil euros).

g) O Tribunal recorrido reverteu a decisão com o fundamento de que não é admitida prova testemunhal de declarações negociais reduzidas a escrito.

h) Entendeu o Tribunal recorrido que o meio de prova de declarações negociais reduzidas a escrito só pode ser documento escrito ou haver um princípio de prova escrita.

i) Ao arrepio do entendimento do Tribunal recorrido situa-se a jurisprudência dominante, nomeadamente a decisão dos Ac. do STJ indicados nas alegações, onde em todos eles é admitida prova testemunhal sobre declarações negociais reduzidas a escrito.

j) Também Pires de Lima e Antunes Varela, no Código Civil Anotado, volume I, relativamente ao preceituado no artigo 393° do CC., dizem: “Nada impede que se recorra à prova testemunhal para demonstrar a falta ou os vícios de vontade, com base nos quais se impugna a declaração documentada”.

1) O inserto no artigo 24 da contestação, pelas razões apontadas nas alegações, ao contrário do entendimento do Tribunal recorrido, não configura uma dação em pagamento e muito menos a recorrida tinha um salário de mais de €3.000,00/mês pelas razões apontadas nas alegações.

m) O Tribunal recorrido ao decidir de forma diversa da primeira instância ao não admitir prova testemunhal de declarações negociais reduzidas a escrito, no caso sobre a declaração do recorrente constante do documento particular de compra e venda, faz uma errada aplicação e interpretação dos artigos, 837, 347°, 358° n°2, 359°, 363°, 369°, 371°, 372°, 376° e 393°, todos de Código Civil.

Termos em que, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando­-se o Acórdão da Relação, repondo a decisão de 1 ª instância,

2.3. A recorrida contra-alegou, concluindo nos seguintes termos:

1.Entre recorrente e recorrida foi celebrada escritura de compra e venda da fracção melhor identificada no nº 10 dos factos provados.

2.Dessa escritura consta "Pelo primeiro outorgante foi dito que pelo preço de sessenta mil euros, que já recebeu, vende à segunda outorgante, o seguinte( ... )".

3.O recorrente vem dizer que apesar de ter declarado que recebeu o preço da venda da fracção, a Ré nunca lhe pagou o preço.

4.Na sua contestação, artigo 24º, a recorrida reconhece não ter dinheiro para pagar o valor do apartamento com dinheiro, afirmando que esta e o recorrente acordaram que o preço da fracção seria pago com o trabalho/serviços que a recorrida havia desempenhado para e por conta do recorrente, 24 horas por dia, durante cerca de 2 anos, já que não tinha recebido nenhum dinheiro por tal trabalho.

s.Em sede de audiência de julgamento, a testemunha ..., filha da recorrida, afirmou que a sua mãe nunca pagou o preço daquela fracção ao Autor (porque não tinha dinheiro) e que nunca ouviu o A. dizer que a referida fracção se destinava a pagar ou a compensar o trabalho e os cuidados que a Ré lhe prestou.

6.Considerando, com base neste depoimento, o Tribunal de primeira instância que "O Autor não recebeu o preço da venda realizada através do contrato descrito em 10 ( ... )", condenando assim a recorrida a efectuar o pagamento de 60.000 Euros ao recorrente.

7.A recorrida entende que o depoimento da testemunha Daniela não é legalmente admissível nem o conteúdo do mesmo poderia levar à conclusão a que a Mmª Juiz chegou, uma vez que a testemunha quando questionada pela Mmª Juiz sobre se alguma vez ouviu o recorrente dizer que o apartamento era para compensar a sua mãe pelo trabalho respondeu "É assim eu nunca ouvi porque o que eles falavam falavam entre eles ... essas conversas não me competiam a mim n é?.".

8.O depoimento da testemunha, in casu, não é admissível já que não existem nos autos quaisquer documentos que, isoladamente ou em conjunto, permitam concluir pela existência do incumprimento do contrato (não pagamento do preço) e como tal, não existindo nenhum princípio de prova escrita que ponha em causa a validade duma escritura que goza de forca probatória plena. a prova testemunhal é inadmissível, cf. artigos 393º e 394º do Código Civil, doravante designado por CC.

9.Também não existe qualquer confissão por parte da recorrida no sentido de não ter pago o preço, pelo contrário, afirma que o pagou com o seu trabalho.

10.Com efeito, o contrato de compra e venda em causa corresponde à vontade que se encontra declarada na respectiva escritura pelas partes e o preço foi aquele que elas acharam justo atribuir-lhe, em compensação dos serviços pessoais e domésticos prestados pela recorrida ao recorrente.

11.Ora, não existindo confissão da recorrida; não existindo qualquer documento que ponha em causa a força plena probatória da escritura de compra e venda; não sendo admissível prova testemunhal;

12.constando da escritura de compra e venda em causa que o respectivo preço foi pago e não tendo o recorrente feito prova do facto contrário, a declaração negocial por este feita na escritura vale "in totum", cfr. arts. 352, 358 nº 2, 363 e 371 nº 1 do Cód. Civil. Pelo que,

13.não tendo o recorrente logrado a prova do facto de que não recebeu o preço declarado na escritura, vale o que nesta consta declarado a tal respeito "o preço foi pago e recebido".

14.E sendo o não pagamento do preço um facto constitutivo do direito invocado pelo recorrente na acção e não tendo este efectuado a respectiva prova, a decisão a proferir terá de ser no sentido da sua improcedência e absolvição da recorrida, como bem decidiu o TRG.

15.Assim, este Tribunal da Relação de Guimarães começa por apreciar a possibilidade ou não da valoração do depoimento da testemunha ..., na parte em que contraria a validade da escritura de compra e venda (recebimento do preço).

16.E fá-lo, na medida em que foi com base neste depoimento que o Tribunal de primeira instância deu como provado o facto 12 "O Autor não recebeu o preço da venda realizada através do contrato descrito em 10 ( ... )".

17.Ora, se este depoimento for legalmente inadmissível, o facto dado como provado supra deixará de existir, enquanto tal, o que determinará a improcedência da acção interposta pelo aqui recorrente contra a ora recorrida e a absolvição desta última, como decidido TRG.

18.Assim, este tribunal da Relação de Guimarães diz-nos que, por regra, a prova testemunhal é admissível (392º CC) e livremente apreciada pelo tribunal (396º CC), regra que comporta excepções.

19.Ou seja, a prova testemunhal é muitas vezes o único meio que as partes têm para demonstrar a realidade dos factos por si invocados e reveste-se de extrema importância, contudo, e para evitar os perigos decorrentes da fragilidade a que muitas vezes a prova testemunhal está votada, a lei exclui a possibilidade de recurso a esta prova nos casos previstos nos artigos 393º, 394º e 395º do CC.

20.Pelo que, não é admitida a prova testemunhal de declarações negociais que, por disposição de lei ou estipulação das partes, houverem de ser reduzidas a escrito ou necessitarem de ser provadas por escrito; caso da escritura de compra e venda do imóvel destes autos.

21.Contudo, parte da jurisprudência e da doutrina entendem que este regime de inadmissibilidade da prova testemunhal, contra ou além do conteúdo de documentos, comporta excepções, como defendem, por exemplo, o Prof. Vaz Serra e o Dr. Mota Pinto para quem a prova testemunhal é admitida também quando: a) exista um começo de prova por escrito do facto alegado; b) tiver sido impossível a obtenção de uma prova escrita; c) tiver sido impossível prevenir a perda da prova escrita; d) quando as circunstâncias do caso tornem verosímil a existência de convenções anteriores, contemporâneas ou posteriores ao documento; e e) quando a prova testemunhal tiver em vista fazer valer a ilicitude do contrato dissimulado.

22.para Luis A. Carvalho Fernandes, por outro lado, esta inadmissibilidade é total porque "Estar-se-ia, do mesmo passo, a destruir, com base numa prova insegura, a melhor fé que um documento merece".

23.O Tribunal da Relação de Guimarães opta por uma solução mitigada e ponderada, (entendimento que sufragamos) considerando que "a prova testemunhal é admissível quando existe um começo de prova por escrito ( ... )"Em ambas essas circunstâncias a convicção do tribunal está já parcialmente formada com base nessas ... ou neste escrito e a prova testemunhal limitar-se-á a completar essa convicção, ou antes, a esclarecer o significado de tais circunstâncias ( .. .). Conclui-se, assim, pela possibilidade do tribunal atender à prova testemunhal para formar a sua convicção em casos excepcionais como os acima aludidos, quanto a convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos autênticos ou documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º do C.C. .. "

24.Reportando-nos ao nosso caso em concreto e fazendo o seu enquadramento legal, urge apurar se existem documentos que ponham em causa o recebimento do preço por parte do vendedor/recorrente e concomitantemente o conteúdo do documento que formalizou o contrato de compra e venda.

25.A resposta é negativa, ou seja, não existem nestes autos quaisquer documentos que, isolados ou em conjunto, permitam concluir pela existência do incumprimento do contrato de compra e venda, nomeadamente, que permitam concluir que o vendedor/recorrente não recebeu o preço da fracção vendida à recorrida.

26.Pelo que, não existindo um substracto probatório passível de constituir um princípio de prova do facto controvertido, o recurso à prova testemunhal é ilegítimo e inadmissível.

27.Em conformidade, o !depoimento da testemunha ... será legalmente inadmissível.

28.Concluindo, não existindo confissão do não pagamento do preço e não existindo qualquer princípio de prova documental de não pagamento do preço, o que torna inadmissível a prova testemunhal, prevalece a declaração de quitação constante do contrato de compra e venda, de pagamento do preço contratualmente acordado.

29.Neste sentido vai a malorla da jurisprudência e doutrina portuguesas, como por exemplo Abílio Neto em anotação ao artigo 393º do CC, in Código Civil Anotado, 18º Edição Revista e Actualizada de Janeiro/2013, é peremptório e na página 350, nota 9 "A força probatório plena da confissão, relativamente ao recebimento do preço, atestada em escritura pública de compra e venda de imóvel, só pode ser contrariada por meio de prova que mostra não ser verdadeiro aquele facto, não sendo, porém, admissível a prova testemunhal nem a prova por presunções judiciais( .. .)."

30.E na página 331 nota 5. ainda Abílio Neto I É admissível a prova testemunhal relacionada com a convenção contrária ao conteúdo de uma escritura pública, quando complementar de um elemento de prova escrito. II Existindo um princípio de prova escrita suficientemente verosímil, fica aberta a possibilidade de complementar, mediante testemunhas, a prova do facto contrário ao constante dadeclaração confessória, demonstrando não ser verdadeira a afirmação consciente e voluntariamente produzida perante o documentador”.

31.Uma vez mais na esteira do entendimento que vimos defendendo, o STJ, no seu Ac. de 09/07/2014, processo 28252/10.0T2SNT.L1.S1, relator Paulo Sá, defende que: V - Se o vendedor alega que não recebeu o preço, impunha-se-lhe alegar a falsidade do aludido documento autêntico ou fazer prova da falta ou vícios da vontade que inquinaram a declaração constante desse documento. V - Fora destes casos, só quando existir um princípio de prova escrita suficientemente verosímil, fica aberta a possibilidade de complementar, mediante testemunhas, a prova do facto contrário ao constante da declaração confessória, ou seja, de demonstrar não ser verdadeira a afirmação consciente e voluntariamente produzida mediante o documentador."

32.Ainda no sentido que vimos expondo, o Ac. do STJ de 6-12-2011, relator Gregório da Silva Jesus: "V- Trata-se de uma confissão extrajudicial, em documento autêntico, feita à parte contrária, admissível pela sua própria essência, que goza de força probatória plena contra o confitente (faz prova plena de que, nesse acto, a vendedora declarou já ter recebido o preço) ( ... ) Se a vendedora alega que não recebeu o preço, impunha-se, ainda, alegar a falsidade do aludido documento autêntico (art. 372.º, n.º 1, do CC) para, deste modo, afastar a força probatória plena que advém da confissão nele exarada. VII-( ... ) "Para que a confissão seja impugnada há-de alegar-se e provar-se que, além de o facto confessado não corresponder à realidade, o confitente errou ou foi vítima de falta ou de vício da vontade."

33.Também com este entendimento, veja-se o sumário do Ac. do STJ, de 02/06/2016, processo 781/11.6TBMTJ.L1.S1V, relator Fernanda Isabel Pereira: "Não tendo o resultado da prova testemunhal sido empregue para infirmar o âmago da força probatório plena reconhecida a esse documento) ( ... ), inexiste violação do disposto no n.º 2 do art. 393º daquele diploma.".

34.Em conformidade, se quando o resultado da prova testemunhal não infirmar a força probatória plena reconhecida ao documento não há violação do disposto do 393º, nº2, a contrario podemos concluir que quando a prova testemunhal infirmar a força probatória há violação do disposto no 393º nº2 do CC.

35.Novamente com este entendimento vejamos o sumário do Ac. do TRC, de 20/11/2010, processo 906/08.9TBILH-A.C1, relator Manuela Fialho "1.As restrições legais à admissibilidade da prova testemunhal, para efeitos de prova do pagamento de uma obrigação que as partes reduziram a escrito, cedem perante a prova da verosimilhança do mesmo, assente em documentos que o indiciam.".

36.Em todos estes acórdãos, a jurisprudência demonstra de forma inequívoca que há efectivamente restrições legais à admissibilidade da prova testemunhal para efeitos de prova de uma obrigação que as partes reduziram a escrito, só a admitindo quando exista um princípio de prova assente em documentos, princípio de prova que não existe nestes autos.

37.Por tudo o exposto, constata-se inequivocamente que a quitação do recorrente constitui uma confissão extrajudicial que faz prova plena do recebimento do preço, não sendo admissível o depoimento da testemunha .... Concluindo,

38.decidiu bem o TRG ao absolver a recorrida do pedido formulado pelo recorrente.

39.Deste modo, não existe qualquer fundamento material e legal para alterar o douto Acórdão recorrido, no sentido pretendido pelo recorrente.

2.4. A questão fulcral que importa apreciar no presente recurso consiste em saber se, no caso, é admissível prova testemunhal para demonstrar que o vendedor, apesar de se dizer na escritura de compra e venda «que, pelo preço de sessenta mil euros, que já recebeu, vende …», não recebeu efectivamente a quantia indicada.

Na decisão da matéria de facto proferida na 1ª instância considerou-se provado o ponto 12º, com a seguinte redacção:

«O Autor não recebeu o preço da venda realizada através do contrato descrito em 10)».

Para fundamentar tal resposta, escreveu-se o seguinte naquela sentença:

«No que respeita ao facto inserto em 12) - o não recebimento do preço da venda da fracção - o Tribunal estribou a sua convicção no depoimento da testemunha ..., filha da Ré.

Como resulta do escrito de fls. 20 v.º e 21, o Autor declarou no contrato de compra e venda que já havia recebido o respectivo preço.

Não obstante aquele escrito conferir força probatória plena àquela declaração, comportando uma declaração confessória de um facto à parte contrária (art.º 358.º, n.º 2, do C.C.), a força probatória plena do documento abrange apenas a existência da declaração, mas já não a veracidade do conteúdo da mesma, no caso concreto que o Autor recebeu efectivamente a quantia indicada a título de preço. Este facto pode ser impugnado por qualquer das partes sem necessidade de arguição da falsidade do documento, uma vez que o mesmo faz prova plena em relação à materialidade das afirmações atestadas mas já não quanto ao rigoroso sentido, sinceridade, veracidade ou validade das declarações emitidas pelas partes.Assim. tal declaração apenas vale se, e enquanto, o seu autor não alegar e provar que a declaração não contém o facto que disse conter, podendo tal prova ser feita por qualquer forma, mormente por prova testemunhal (neste sentido, vide Ac. do STJ de 15/04/2015, em que foi relator o Exm.º Senhor Conselheiro Pires da Rosa e disponível em www.dgsi.pt).

Vejamos então de que forma o depoimento da referida testemunha permitiu ao tribunal concluir que o Autor não recebeu o preço da venda realizada através do contrato descrito em 10).

O Autor alegou que, não obstante ter declarado que recebeu o preço da venda da descrita fracção autónoma, a Ré nunca lhe pagou tal preço.

A Ré, por seu turno, alegou que não tinha dinheiro para pagar o preço da referida fracção, pelo que foi acordado entre as partes que o preço corresponderia ao valor do tempo de dedicação e trabalho que a mesma tinha prestado até então ao Autor, diariamente e 24 horas por dia, durante quase 2 anos, já que não tinha recebido nenhum dinheiro por tal trabalho.

Questionada sobre tal matéria, a testemunha ... afirmou que a Ré (sua mãe) nunca pagou o preço daquela fracção ao Autor (porque não tinha dinheiro) e que nunca ouviu o A. dizer que a referida fracção se destinava a pagar ou a compensar o trabalho e os cuidados que a Ré lhe prestou.

A testemunha referida infirmou, assim, a versão da Ré na parte em que alegou que foi acordado entre as partes que o preço corresponderia ao valor do tempo de dedicação e trabalho que a mesma tinha prestado até então ao Autor, diariamente e 24 horas por dia, durante quase 2 anos.

Não se vislumbra qualquer motivo para duvidar do relatado por esta testemunha, cujo depoimento se nos afigurou, apesar da juventude, espontâneo, maduro, consistente e verosímil e, por isso, credível, acrescentando-se que se a versão apresentada pela Ré correspondesse, nesta parte, à verdade, a referida testemunha não poderia deixar de ter conhecimento da mesma e de a confirmar em juízo.

Por tal motivo, o tribunal considerou provado que o Autor não recebeu o preço da venda à Ré da referida fracção».

Em sede de fundamentação de direito, a sentença da 1ª instância concluiu que a ré não cumpriu a sua obrigação de pagar ao autor o preço da fracção que lhe comprou, pelo que condenou a mesma a pagar àquele a quantia de € 60.000,00.

Tendo a ré interposto recurso de apelação daquela sentença, impugnando a decisão relativa à matéria de facto no que respeita ao aludido ponto 12º, o Tribunal da Relação de Guimarães julgou improcedente o recurso, por ter entendido que a recorrente não havia cumprido devidamente os ónus a seu cargo, previstos no art.640º, do CPC.

Em sede de revista interposta pela ré daquele acórdão, foi o mesmo anulado, no  segmento em que decidiu rejeitar o recurso no que se refere à impugnação da decisão relativa à matéria de facto, conforme acórdão deste Supremo Tribunal de 27/10/16 (cfr. fls.222 a 230 v.º).

E tendo o processo baixado ao Tribunal da Relação de Guimarães para que procedesse à integral apreciação daquela impugnação, bem como, se fosse o caso, do subsequente alcance em sede de solução de direito, foi proferido o acórdão daquela Relação, ora recorrido.

Este acórdão revogou a decisão recorrida e julgou totalmente improcedente a acção, com base na seguinte argumentação:

«Ora, como de resto é reconhecido no acórdão do S.T.J., proferido nestes autos, a impugnação mostra-se feita no âmbito da referida norma, constando do processo os elementos em que se baseou o despacho que na primeira instância respondeu à matéria controvertida – os depoimentos prestados em audiência, registados em suporte digital.

Cumpriu, assim, a Recorrente o ónus imposto no art. 640º ao recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto – não só especificou os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, como identificam os concretos meios probatórios que impunham, sobre eles, decisão diversa da recorrida, tendo ainda procedido à transcrição dos depoimentos na parte que considera relevante.

Insurge-se a Recorrente contra a respostas positiva dada ao facto alegado e controvertido, ínsito no nº 12, dos provados, cuja formulação á seguinte:

“O Autor não recebeu o preço da venda realizada através do contrato descrito em 10) (art.ºs 24.º, 44.º e 50.º da p.i.)”

Assentou a sua divergência em relação a essa materialidade que considera indevidamente julgada pelo tribunal a quo, no depoimento prestado pela testemunha ..., referindo a propósito da discussão dos meios probatórios que impões decisão diversa da recorrida, que deste depoimento à evidência resulta que esta testemunha “não sabe por que motivo o Autor comprou o apartamento para a Ré”, razão pela qual deveria ter sido considerado como não provado o facto 12, da decisão recorrida.

A apreciação da questão em apreciação impõe que, preliminarmente, se apure se pode ser valorizada, no caso concreto, para formação da convicção do tribunal quanto à matéria controvertida, objecto de impugnação, a prova testemunhal produzida em audiência de discussão e julgamento, que fundamentou a própria resposta positiva dada ao facto impugnado, e em que, igualmente, conferindo-lhe uma interpretação diversa, se pretende alicerçar a própria impugnação da resposta positiva que lhe foi dada.

Efectivamente, a regra da admissibilidade da prova testemunhal (prova esta apreciada livremente pelo tribunal – art. 396º do C.C.) estabelecida no art. 392º do C.C., sofre excepções (veja-se também o disposto no art. 607º, nº 5 do C.P.C.), excepções essas que reflectem, quer o seu valor, quer o seu perigo especial.        

Se, em regra, e atendendo ao seu valor (na maior parte das vezes ela é o único meio que os litigantes têm à disposição para demonstrar a realidade dos factos por si alegados) a prova testemunhal é admitida, a sua admissibilidade é noutros casos excluída (art. 393º, 394º e 395º do C.C.), atendendo aos perigos especiais que comporta e mesmo à conveniência de estimular o recurso a outros meios probatórios mais seguros.

Assim, e desde logo, não é admitida a prova testemunhal de declarações negociais que, por disposição da lei ou estipulação das partes, houverem de ser reduzidas a escrito ou necessitarem de ser provadas por escrito (art. 393º, nº 1 do C.C.).

Nestes casos, a prova testemunhal apenas será admissível para demonstrar a realidade material do acto sem observância das formalidades legais, com vista à obtenção de qualquer dos efeitos provenientes da nulidade do negócio ou até para alicerçar pretensão fundada em abuso de direito.

Por outro lado, do art. 394º, nº 1 do C.C., resulta a inadmissibilidade da prova testemunhal relativamente a convenção contrária ou adicional ao conteúdo de documento autêntico ou documento particular mencionado nos artigos 373º a 379º do C.C., quer tais convenções sejam anteriores, posteriores ou contemporâneas à formação do documento.

Tal proibição tem por objecto convenções havidas entre as partes e não já actos unilaterais ou factos jurídicos.

Originariamente, a presente acção alicerçava-se nos seguintes fundamentos:

A- A pretensão principal do A. traduzida:

- No pedido de declaração de nulidade do contrato de compra e venda, com termo de autenticação, de um imóvel urbano, com fundamento em que que tal negócio se encontra ferido do vício de simulação, pois que, sobre o negócio simulado ou aparente, existe um negócio dissimulado, uma vez que o que realmente se pretendeu celebrar foi uma doação com cláusula modal;

- E no pedido de declaração de nulidade do negócio dissimulado, consistente numa doação do mesmo imóvel, por incumprimento de alegada cláusula modal a que se subordinou esse negócio.

B- A pretensão subsidiária, por seu lado, deduzida para a situação de se não demonstrar a existência deste vício e o incumprimento da aludida cláusula modal, alicerçada num incumprimento contratual da compra e venda, por parte da Ré, decorrente do facto de alegadamente não ter efectuado a contraprestação a que se obrigou, devendo, por isso, sempre ser condenada no pagamento do preço contratualmente acordado.

Assim, em termos substanciais, para o aquilatar dos meios probatórios legitimamente admissíveis e a produzir, teríamos, originariamente, factos subsumíveis a uma das seguintes causas de pedir ou fundamentos da acção:

- Ou se está perante factos integrantes de uma alegada simulação relativa (e do alegado incumprimento da cláusula modal a que foi subordinado o negócio dissimulado), que, como é consabido, constitui uma das formas possíveis que pode revestir a divergência de índole intencional, e que consiste num vício, atinente à declaração negocial, em que o dissídio entre a vontade real dos contraentes e o que por estes é efectivamente declarado, ou seja, entre o «querido» e o «declarado», é intencional, e se traduz na circunstância de o declarante emitir, consciente e livremente, uma declaração com um sentido objectivo diferente da sua vontade real.

- Ou pura e simplesmente se está perante factos integrantes de um alegado incumprimento de um contrato de compra e venda documentalmente formalizado.

Ora, devidamente analisados, parece-nos de todo evidente a contradição existente entre os fundamentos do pedido principal, que consiste na celebração de um negócio ferido de simulação relativa (uma venda que dissimula uma alegada doação), e o fundamento do pedido subsidiário, que consiste no próprio incumprimento do contrato oneroso que, simultaneamente, se alega não ter sido celebrado enquanto tal, mas sim como negócio jurídico gratuito, e portanto, sem a estipulação de uma qualquer contrapartida.

E, mesmo sendo certo que a relevância desta questão, em termos processuais, terá ficado esbatida ou mesmo resolvida com a desistência do pedido principal efectuada na audiência prévia, o certo é que a decisão recorrida e, em nosso entender, incorrectamente, teve em consideração toda a materialidade que alicerçava o pedido principal (de declaração de nulidade da compra e venda, por existência de simulação relativa, e de declaração de nulidade do negócio dissimulado, a doação, por incumprimento da cláusula modal), eventualmente com intuito (não se consegue esclarecer) de lhe atribuir uma relevância meramente instrumental do pedido fundando em alegado incumprimento do contrato de compra e venda, já que foi o único dos pedidos originários que se manteve e que foi objecto de decisão.

Na verdade, com linear evidência resulta que essa materialidade se mostra de todo imprestável para esse efeito, uma vez que não pode revestir qualquer relação de mera instrumentalidade com os factos essenciais que alicerçam o incumprimento de compra e venda (por falta de pagamento do preço), o qual, como é óbvio, pressupõe a própria existência deste último contrato, sendo que, a sua demonstração (dos factos integrantes da simulação relativa), se efectuada, levaria mesmo à demonstração de um negócio dissimulado gratuito e, portanto, excludente da existência e eventual incumprimento do contrato oneroso, que existiria apenas em termos formais.

Assim sendo, e pese embora o facto 12, tido como demonstrado e objecto de impugnação, onde se refere que “o Autor não recebeu o preço da venda realizada através do contrato” em causa nos autos, constituir um facto que, simultaneamente, integra os factos integrantes dos fundamentos do perdido principal (o da declaração de nulidade do contrato de compra e venda com fundamento em existência de simulação) e do pedido subsidiário formulado com fundamento em incumprimento contratual, tendo havido desistência do primeiro dos pedidos, e pese embora, não obstante esse facto, a decisão recorrida ter produzido prova e ter fixado os factos alicerçantes desse pedido, que foi objecto de desistência, tais factos não serão tidos em consideração, e a impugnação efectuada será apenas analisada no contexto do pedido subsidiário, ou seja, exclusivamente enquanto facto alicerçante do eventual incumprimento contratual do contrato de compra e venda.

Defende Vaz Serra[1] que apesar do art. 394º do C.C. não formular expressamente excepções à regra estabelecida (a inadmissibilidade da prova testemunhal) devem elas ter-se por existentes, pois que da sua razão de ser se conclui não ter ela alcance absoluto, não devendo ser sempre aplicada, havendo que ressalvar algumas hipóteses em que a prova testemunhal será admissível apesar de ter por objecto convenção contrária ou adicional ao conteúdo do documento.

Defende tal autor que devem ter-se por verdadeiras no nosso direito as excepções que o direito francês e o direito italiano estabelecem à regra da inadmissibilidade da prova testemunhal contra ou além do conteúdo de documentos, e isto apesar do silêncio da lei a respeito dessas excepções.

Tais excepções ocorrerão quando:

a) Existir um começo de prova por escrito do facto alegado (isto é, qualquer escrito, proveniente daquele contra quem a acção é dirigida ou do seu representante, que torne verosímil o facto alegado) - excepção que deve valer também para qualquer outra circunstância que torne verosímil o facto alegado[2];

b) Tiver sido impossível a obtenção de uma prova escrita;

c) Tiver siso impossível prevenir a perda da prova escrita;

d) Quando, no que concerne a convenções posteriores ao documento, as circunstâncias do caso tornem verosímil que elas tenham sido realizadas (esta fundada no direito italiano – art. 2727º).

Esta excepção deve valer também para pactos anteriores ou contemporâneos do documento – a mesma razão que leva a admitir a prova testemunhal, havendo circunstâncias que tornem verosímeis os pactos posteriores ao documento, é aplicável aos pactos anteriores e contemporâneos dele[3].

e) Quando a prova testemunhal tiver em vista fazer valer a ilicitude do contrato dissimulado (também fundada no direito italiano – art. 1417º).

Contra a doutrina defendida pelo Prof. Vaz Serra pronunciou-se o Sr. Dr. Jacinto Rodrigues Bastos[4], afirmando que não vem, salvo o devido respeito, acompanhada de argumentos que, de iure constituto, façam admitir tais restrições ao preceito em análise.

Conforme defende Luís A. Carvalho Fernandes, a razão de ser do regime decorrente do art.º 394.º, n.º 2, do Código Civil, radica no propósito de “(…) afastar os riscos inerentes à falibilidade e fragilidade da prova testemunhal. Seria, na verdade, inadmissível pôr assim ao alcance de um dos simuladores, contra o outro, ou de ambos contra terceiros, um meio relativamente fácil de, simulando a simulação, atacar um negócio verdadeiro e sem vício, que se tornou incómodo ou indesejável, pondo em causa a sua eficácia e frustrando a confiança que justificadamente a outra parte ou terceiro nele fundou. Estar-se-ia, do mesmo passo, a destruir, com base numa prova insegura, a melhor fé que um documento merece”. [5]

Uma interpretação rígida do referido dispositivo propiciaria graves iniquidades, na medida em que possibilita que um dos simuladores, aproveitando-se da aparente titularidade de situações jurídicas que resulta do conluio simulatório, retire daí um benefício infundado em prejuízo do outro.

Somos, assim, de entender que a posição defendida pelo Prof. Vaz Serra (e pelo Dr. Mota Pinto) merece inteiro acolhimento, pois a aplicação irrestrita da regra da inadmissibilidade da prova testemunhal consagrada no art. 394º, nº 1, do C.C., poderia, como se disse, dar lugar a graves iniquidades[6] e significaria a aceitação de que o ordenamento jurídico tutelaria situações absolutamente desconformes à realidade, sem que uma tal tutela fosse justificada por exigências de segurança do comércio jurídico.

Acresce que se aplicaria a regra da inadmissibilidade da prova testemunhal para lá do âmbito delimitado pelas razões que justificam a sua consagração.

A regra estabelecida não pode ser aplicada a terceiros (art. 394º, nº 3 do C.C.) – quer porque estes não podem munir-se da prova escrita das aludidas convenções (adicionais ou contrárias ao conteúdo dos documentos), quer porque o contrato em causa é para esses terceiros um simples facto e já não um negócio jurídico, e a proibição refere-se a convenções negociais.

Assim, será de permitir o recurso a prova testemunhal para a prova da simulação quando não for arguida pelos simuladores, ou seja, quando for invocada por terceiros, excepção que se justifica pela dificuldade que teriam terceiros de obter documentos probatórios das convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo do documento ou do acordo simulatório[7], ou, nas palavras de Carvalho Fernandes, pela circunstância de os terceiros não terem na sua disponibilidade a existência de prova documental.[8]

Mas, o art.º 394.º, nºs 1 e 2, do Código Civil, ao impedir o recurso exclusivo à prova testemunhal e/ou por presunções judiciais – e/ou por declarações de parte –, não veda completamente a ponderação de tais meios de prova quando conjugados com meios de prova documental ou outra de valor idêntico que constitua, pelo menos, um princípio de prova do acordo simulatório ou do negócio dissimulado.

Quando exista um começo de prova por escrito que demonstre a verosimilhança da convenção adicional que se quer demonstrar ou quando as circunstâncias do caso tornam verosímil a existência da convenção adicional, a prova testemunhal desta não tem já os mesmos perigos que a regra dos artigos 394º e 395º se destina a conjurar, dado que o tribunal se não apoiará, para considerar provada a convenção, apenas nos depoimentos das testemunhas, mas também nas circunstâncias objectivas que tornam verosímil a convenção ou no próprio escrito que constitui princípio de prova.

Em ambas essas circunstâncias a convicção do tribunal está já parcialmente formada com base nessas circunstâncias ou neste escrito, e a prova testemunhal limitar-se-á a completar essa convicção, ou antes, a esclarecer o significado de tais circunstâncias ou da declaração constante do escrito que constitui começo de prova[9].

Conclui-se, assim, pela possibilidade do tribunal atender à prova testemunhal para formar a sua convicção em casos excepcionais como os acima aludidos[10], quanto a convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo de documentos autênticos ou documentos particulares mencionados nos artigos 373º a 379º do C.C..

Deve, assim, entender-se, que havendo um princípio de prova documental, a prova testemunhal já não é o único meio de prova do facto, razão pela qual o perigo decorrente da falibilidade da prova testemunhal é eliminado em grande parte, visto a convicção do tribunal se achar já formada parcialmente com base num documento.

Deste modo, o depoimento de testemunhas pode funcionar – e não pode senão funcionar – como prova complementar de outros meios permitidos pelo legislador, em particular dos que se fundam em títulos escritos.

Bastará, para tanto, que um ou mais documentos, isoladamente ou no seu conjunto, tornem verosímil a existência de simulação.

A prova testemunhal não é, então, o único meio de prova, podendo assim ser valorada pelo tribunal.[11]

Cumpre, então, verificar se existem nos autos documentos que, isolados ou em conjunto, permitam formular um juízo no sentido da verosimilhança do facto controvertido e impugnado, ou seja, se, em contrário do que consta do documento que formalizou o contrato de compra e venda em causa nos autos, no sentido do recebimento do preço acordado, o Autor, de facto, não terá recebido o preço estipulado nesse contrato, consubstanciando, assim, ou dando existência factual, ao alegado incumprimento contratual.

A convicção positiva do tribunal a propósito do facto 12, dos provados, atinente ao não recebimento do preço, como consta da própria decisão, alicerçou-se nos seguintes fundamentos:

(…)

Desta fundamentação, e dos próprios termos da causa (da impugnação da Ré), à evidência resulta que a Ré, ao considerar que o preço contratualmente acordado corresponderia ao valor do tempo de dedicação e trabalho que tinha prestado ao Autor até então, admitiu que não efectuou o pagamento do preço em dinheiro.

No entanto, sendo a confissão uma declaração de ciência, emitida pela parte, que traduz o reconhecimento da realidade de um facto desfavorável ao declarante e favorável à parte contrária, a Ré, quando alega que a propriedade do imóvel lhe foi transmitida em dação em pagamento como contrapartida do valor dos serviços que prestou ao Autor, afasta de modo expresso o reconhecimento de que não tenha pago qualquer valor por esse mesmo prédio, pois que, como é consabido, a dação em cumprimento caracteriza-se por ser um negócio em o devedor pretende extinguir imediatamente a sua obrigação por via de prestação diversa da devida.

E assim sendo, rejeita expressamente que não tenha efectuado o pagamento do preço contratualmente acordado, não podendo, por consequência, tal comportamento ser entendido como confissão, pois que, embora aceite que não pagou em dinheiro, alega outros factos que contrariam a verificação do facto constitutivo do direito do autor, ou seja, de que não houve pagamento.

Ora, inexistido confissão, e sendo certo que o Tribunal apenas deve valorar a prova testemunhal produzida, na medida que se verifique a existência de prova documental da qual resulte verosímil a existência de incumprimento do contrato oneroso (compra e venda), temos que, analisada a motivação, e bem assim todos os elementos probatórios aduzidos nos autos, conclui-se pela total inexistência de documentos que, isolados ou em conjunto, permitam formular um juízo no sentido da verosimilhança dos factos controvertidos e impugnados, ou seja, um princípio de prova do mero incumprimento do contrato de compra e venda, no sentido de que torne verosímil a sua existência, ou seja, de um principio de prova do não recebimento do valor material do preço acordado como contrapartida contratual a suportar pela Ré.

Assim sendo, na inexistência de um substrato probatório passível de constituir um princípio de prova do facto controvertido e impugnado, que torna ilegítimo o recurso a prova testemunhal, como inelutável resulta que deverá ser alterada a matéria de facto considerada como demonstrada, com fundamento no supra aludido depoimento, objecto de impugnação, e, consequentemente, o facto 12, terá de ser eliminado dos factos provados, e de ser considerado como não provado.

Destarte, não tendo logrado adesão de prova o não pagamento do preço acordado, por parte da Ré, soçobram os fundamentos do pedido formulado, prevalece a declaração de quitação constante do contrato de compra e venda, de pagamento do preço contratualmente acordado, havendo de proceder a presente apelação, com a consequente absolvição da Ré desse pedido formulado».

Verifica-se, pois, que o acórdão recorrido não procedeu, rigorosamente, à integral apreciação da impugnação deduzida na apelação da ré, antes considerou que, no caso, é inadmissível a prova por testemunhas, por força do disposto no art.394º, do C.Civil (serão deste Código os demais artigos citados sem menção de origem).

Daí que tenha eliminado o facto 12º dos factos provados, considerando-o como não provado e, assim, fazendo prevalecer a «declaração de quitação» constante do contrato de compra e venda.

O que determinou a improcedência da acção e, consequentemente, a absolvição da ré do pedido.

Deste modo, quem recorre, agora, na presente revista é o autor, defendendo que o acórdão recorrido, ao não admitir a prova testemunhal, fez uma errada aplicação e interpretação da lei.

Vejamos.

Antes do mais, passaremos a reproduzir o expendido por Antunes Varela, in Manual de Processo Civil, 2ª ed., págs.520 a 523, dada a clareza da exposição e a sua pertinência ao caso dos autos.

Assim, segundo aquele ilustre Professor:

«Uma coisa é saber se o documento provém da pessoa ou entidade a quem é imputado (força probatória formal); outra, muito distinta, é saber em que medida os actos nele referidos e os factos nele mencionados se consideram como correspondentes à realidade (força probatória material).

A força probatória material dos documentos autênticos vem definida, com grande precisão, pelo art.371º do Código Civil nos seguintes termos: “Os documentos autênticos fazem prova plena dos factos que referem como praticados pela autoridade ou oficial público respectivo, assim como dos factos que neles são atestados com base nas percepções da entidade documentadora; os meros juízos pessoais do documentador só valem como elementos sujeitos à livre apreciação do julgador”.

A disposição legal distingue assim três categorias de factos.

A primeira é a dos factos que o documento refere como praticados pela entidade  documentadora. Diz-se, por exemplo, na escritura pública que o notário leu o documento às partes, que o explicou, que lhes entregou duas cópias dele.

Todos estes factos se têm não só por verdadeiros, como cobertos pela força probatória plena do documento autêntico. A parte que pretender impugná-los terá de provar o contrário, não lhe aproveitando a simples contraprova, como bem se compreende em face da fé pública atribuída ao documentador. Mas só poderá fazer prova do contrário, arguindo o documento de falso, no incidente de falsidade (art.372º, 1, do Cód. Civil).

A segunda faixa ainda abrangida pela força probatória plena dos documentos autênticos é a dos factos, não praticados pelo documentador, mas por ele atestados com base nas suas percepções. São os factos de que o funcionário pode inteirar-se pelos seus próprios sentidos e não aqueles sobre os quais a entidade documentadora apenas pode formar um juízo ou apreciação de natureza mais ou menos falível.

Diz-se na escritura que um dos outorgantes declarou perante o notário querer comprar certa coisa e que o outro, declarando querer vendê-la, afirmou ter já recebido, no dia anterior, o preço de 500 contos entre eles convencionado (sublinhado nosso).

Quanto a esta segunda camada de factos, como se depreende do texto do art.371º, 1, do Código Civil, a força probatória plena do documento só vai até onde alcançam as percepções do notário ou outra entidade documentadora (quórum notitiam et scientiam habet propriis sensibus, visus et auditus).

No exemplo figurado, ter-se-á assim como plenamente provado (até prova do contrário, feita no incidente da falsidade) que um dos outorgantes declarou perante o notário querer comprar e que o outro declarou na presença do mesmo oficial querer vender e ter recebido determinada quantia, a título de preço da coisa.

Mas já se não tem por provado que o primeiro quis realmente comprar e que o segundo quis na realidade vender, nem que este recebeu efectivamente a quantia indicada, nem que essa quantia corresponde, de facto, ao preço convencionado entra as partes (Já assim não sucederá se a entrega e a contagem do dinheiro constitutivo do preço tiverem sido efectuadas perante o notário e este certificar os factos no documento. Neste caso, estes factos já se consideram cobertos pela força probatória plena do documento.)

A essa zona de factos do foro interno dos outorgantes ou de factos exteriores, não ocorridos no acto da escritura e fora até do cartório notarial, não chegam as percepções do funcionário documentador.

São factos que podem, consequentemente, ser impugnados por qualquer das partes, sem necessidade de arguir a falsidade do documento, por não estarem cobertos pela força probatória plena deste.

O documento autêntico faz prova plena em relação à materialidade das afirmações atestadas; mas não quanto à sinceridade, à veracidade ou à validade das declarações emitidas pelas partes.

A terceira categoria de factos referida na lei é a dos meros juízos pessoais (simples apreciações) do documentador. No testamento, o notário declara que o testador se encontrava na plena posse das suas faculdades mentais; ou afirma, na  escritura, que o objecto vendido estava em perfeitas condições de funcionamento.

Estas declarações não são evidentemente apoiadas pela força probatória plena do documento, porque transcendem a área das percepções do documentador.

E nem sequer valem como juízo pericial, à semelhança do que ocorre com o reconhecimento da assinatura por mera semelhança, porque se trata de afirmações num domínio em que o documentador não é perito. Trata-se, por conseguinte, de elementos sujeitos, em toda a linha, à livre apreciação do julgador (art.371º, 1, in fine, do Cód. Civil)».

No mesmo sentido, podem ver-se Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil, Anotado, vol.I, 2ª ed., pág.304, em anotação ao art.371º, onde referem:

«Um exemplo: numa escritura de compra e venda de imóveis o vendedor declara que recebeu o preço convencionado; o documento só faz prova plena de que esta declaração foi proferida perante o notário, nada impedindo que mais tarde se prove que ela foi simulada e que o preço ainda não foi pago».

Como se diz no Acórdão do STJ, de 6/12/11, disponível in www.dgsi.pt., trata-se de entendimento de há muito sustentado no direito português (cfr., ainda, entre outros, os Acórdãos do STJ, de 9/6/05, 9/7/14, 15/4/15 e 2/6/16, igualmente disponíveis in www.dgsi.pt).

Assim, no caso dos autos, o que está plenamente provado é que o autor declarou perante o notário, designadamente, já ter recebido o preço de sessenta mil euros.

Mas não está provado que tenha recebido, efectivamente, aquela quantia, pois que se trata de facto não percepcionado pelo notário.

Logo, em princípio, nada impede que tal facto seja impugnado pelo autor, por não estar coberto pela força probatória plena do documento autêntico.

Ou seja, a materialidade da declaração é indiscutível, porém, o respectivo contéudo, porque não atestado pelo oficial público, é passível de demonstração/impugnação.

No caso, a declaração do autor-vendedor na escritura de compra e venda, face à ré-compradora, de que já recebeu o preço, constitui o reconhecimento do acto de pagamento, sendo, nessa medida, favorável à devedora e desfavorável ao credor, pelo que constitui uma confissão extrajudicial em documento autêntico, tendo força probatória plena da realidade dessa declaração de recebimento do preço, uma vez que foi feita à própria compradora, na presença do notário que a documentou autenticamente (cfr. o art.358º, nº2).

Tal confissão pode ser infirmada em dois planos distintos, como se diz no Acórdão da Relação de Lisboa, de 27/4/10, disponível in www.dgs.pt:

a) com fundamento em inadmissibilidade da confissão ou em vício que afecte a própria validade formal ou substancial do acto confessório, nos termos previstos, respectivamente, nos arts.354º e 359º;

b) por impugnação directa da eficácia probatória da confissão, com vista a provar não ser verdadeiro o facto que dela foi objecto, nos termos do art.347º.

No 1º caso, põe-se em crise a admissibilidade ou a validade do próprio acto jurídico da confissão, ao qual, não obstante revestir a natureza de declaração de ciência, a lei sujeita, em princípio, a um regime similar ao da ineficácia do negócio jurídico, como resulta do disposto no art.359º (cfr. Antunes Varela, ob.cit., págs.560 e segs.).

No 2º caso, apenas se impugna o seu efeito e alcance probatório.

No caso dos autos, não obstante o autor, inicialmente, ter arguido a nulidade da compra e venda, por simulação, e do negócio dissimulado (doação), por não cumprimento de cláusula modal, desistiu dos respectivos pedidos, mantendo apenas o pedido que havia formulado subsidiariamente, ou seja, o de condenação da ré a pagar-lhe o preço do imóvel.

Assim sendo, o que está em aberto é apenas a questão do efeito probatório da declaração feita pelo autor na escritura, isto é, a de já ter recebido o preço.

Ora, resulta do disposto no art.347º que incumbe ao confitente, para ilidir a prova plena da confissão, alegar e provar que não ocorreu o facto por ela compreendido, mas com as restrições especialmente previstas nos arts.351º, 393º e 394º, não podendo, assim, fazê-lo mediante prova por presunção judicial, nem por prova testemunhal, a não ser que seja meramente contextual ou complementar de outros meios de prova autorizados.

Deste modo, uma vez que a declaração do autor, quanto ao pagamento do preço, foi objecto de confissão perante a ré, prestada na escritura de compra e venda, incumbia àquele provar que tal pagamento não ocorreu, nos termos do citado art.347º, com referência ao art.358º, nº2, em derrogação do preceituado na norma geral do nº2, do art.342º.

Todavia, como já se referiu, nem a prova testemunhal, nem as ilações que dela se pudessem inferir por presunção judicial seria, por si só, suficiente para ilidir a prova plena da confissão.

É certo que, como referem Pires de Lima e Antunes Varela, ob.cit., pág.318, é necessário interpretar nos seus justos termos a doutrina daquele nº2, cingindo-a aos factos cobertos pela força probatória plena, nada impedindo, pois, que se recorra à prova testemunhal para se demonstrar a falta ou vícios da vontade, com base nos quais se impugna a declaração.

E acrescentam aqueles autores:

«O documento prova, em dados termos, que o seu autor fez as declarações dele constantes; os factos compreendidos na declaração consideram-se provados quando sejam desfavoráveis ao declarante. Mas o documento não prova nem garante, nem podia garantir, que as declarações não sejam viciadas por erro, dolo ou coacção ou simuladas.

Por isso mesmo a prova testemunhal se não pode, neste aspecto, considerar legalmente interdita».

Porém, no caso dos autos, o único ponto da matéria de facto que é impugnado pela ré é o constante do ponto 12º da matéria de facto provada, do seguinte teor: «O Autor não recebeu o preço da venda realizada através do contrato descrito em 10)».

Sendo que não vêm demonstrados quaisquer elementos que apontem no sentido da existência de vícios na declaração confessória.

Ou seja, a sentença da 1ª instância considerou provado o contrário do que consta daquela declaração, que, no caso, reveste força probatória plena.

E fê-lo com recurso, tão só, a prova testemunhal, como resulta da respectiva fundamentação, atrás transcrita.

O que não é consentido pelo art.393º, nº2, que, de entre os meios probatórios a que reconhece força especial, de um lado, e a prova testemunhal, reconhecidamente falível e precária, do outro, optou deliberadamente pelos primeiros.

Como já se referiu, a proibição da prova testemunhal não impede o recurso a testemunhas para prova dos vícios da vontade (erro, dolo, coacção) ou da divergência entre a vontade e a declaração (falta de vontade, erro na declaração, etc.).

Acresce que, para infirmar a confissão não basta a alegação e a prova da inexactidão ou da não verificação do facto reconhecido, antes há-de alegar-se e provar-se que, além do facto confessado não corresponder à realidade, o confitente errou acerca dele ou que foi vítima de outra causa de falta ou de vício da vontade (cfr. Antunes Varela, ob.cit., pág.564).

Ora, no caso, essa alegação e prova não foram feitas, não contendo o ponto 12º, único impugnado, matéria relacionada com aqueles vícios.

Assim, concorda-se com o exarado no acórdão recorrido quando aí se considera que é inadmissível, no caso, prova por testemunhas, e que, por isso, não há que apreciar a impugnação da decisão da matéria de facto quanto ao referido ponto 12º, antes devendo ser eliminado dos factos provados, por ter sido decidido com base, apenas, em prova testemunhal, passando, assim, a ser tido como não provado, a implicar a improcedência da acção.

É que, por um lado, a prova testemunhal que a ré convocou, em sede de apelação, é absolutamente irrelevante para demonstrar o contrário do que consta da escritura de compra e venda, dada a inadmissibilidade de tal prova, o que justifica, por si só, a rejeição da apreciação da aludida impugnação.

E, por outro lado, provado como está, por confissão extrajudicial com força probatória plena, não ilidida pelo autor, o pagamento pela ré àquele do preço a que se refere o contrato de compra e venda em causa, tem necessariamente de improceder a acção quanto à respectiva pretensão.

3 – Decisão.

Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso de revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelo recorrente.


Roque Nogueira (Relator)
Alexandre Reis
Pedro Lima Gonçalves

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[1] R.L.J., Ano 103, pp. 10 e seguintes, maxime, p. 13 e seguintes e Ano 107, pp. 309 e seguintes, maxime p. 311 e seguintes. No mesmo sentido, Prof. Mota Pinto, com a colaboração do Prof. Pinto Monteiro, em Parecer, publicado na CJ, Ano X, T. 3, pp. 9 e seguintes.
[2] Cfr. R.L.J., Ano 107, p. 312 (1ª coluna).
[3] Cfr. R.L.J., Ano 107, p. 312 (2ª coluna). 
[4] Cfr. Notas ao Código Civil, Vol. II, p. 177
[5] Cfr.  Carvalho Fernandes, “A prova da simulação pelos simuladores”, in Estudos Sobre a Simulação, Quid Juris, 2004, págs. 53
[6] Cfr. R.L.J., Ano 107, p. 311. 
[7] Cfr. A. Varela e Pires de Lima. Código Civil Anotado, P. Lima, vol. I, pag.320.
[8] Cfr. Carvalho Fernandes, in Estudos Sobre a Simulação, pag.85.
[9] Cfr. Vaz Serra, R.L.J., Ano 103, p. 13 (2ª coluna), e R.L.J., Ano 107, p. 312.
[10] A negação do alcance absoluto da regra estabelecida no art. 394º do C.C. vem sendo afirmada e aplicada pela nossa jurisprudência, na esteira dos aludidos ensinamentos do Prof. Vaz Serra. A título de exemplo, e sem qualquer pretensão exaustiva, cfr. Ac. STJ de 9/10/2008 e de 7/02/2008 (ambos relatados pelo Exmº Sr. Conselheiro Santos Bernardino), no sítio www.dgsi.pt/jstj e o Ac. R. Porto, de 9/03/2009 (Desembargador Fernandes do Vale), no sítio www.dgsi.pt/jtrp.
[11] Cfr., neste sentido, autor e estudo citados de Carvalho Fernandes, págs. 56 a 61, e, na jurisprudência, Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 6.07.1993, BMJ, n.º 429, pág. 761, Ac. da Relação de Coimbra, de 9.12.1997, BMJ, n.º 472, pág. 576, Ac. da Relação de Lisboa, de 17.12.1998, BMJ, n.º 482, pág. 295, Ac. da Relação de Lisboa, de 21.01.1999, BMJ, n.º 483, pág. 270, Ac. da Relação de Lisboa, de 18.05.1999, CJ, 1999, t. III, pág. 102, Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 23.09.1999, BMJ, n.º 489, pág. 304, Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 17.06.2003, CJ-STJ, 2003, t. II, pág. 112, Ac. da Relação de Coimbra, de 28.09.2004, CJ, 2004, t. IV, pág. 14, Ac. da Relação de Coimbra, de 23.10.2007, CJ, 2007, t. IV, pág. 43, Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 7.02.2008, proc. n.º 07B3934, disponível em www.dgsi.pt., Ac. da Relação de Lisboa, de 10.01.2008, CJ, 2008, t. I, pág. 75, Ac. da Relação do Porto, de 27.11.2008, proc. n.º 0834257, disponível em www.dgsi. pt., Ac. da Relação do Porto, de 15.01.2009, CJ, 2009, t. I, pág. 201, Ac. da Relação de Guimarães, de 5.02.2009, proc. n.º 2745/08-I, disponível em www.dgsi.pt., Ac. da Relação do Porto, de 25.03.2010, proc. n.º 4925/07.4TBSTS.P1, disponível em www.dgsi.pt., Ac. da Relação de Lisboa, de 27.04.2010, proc. 6580/05.7TBALM.L1-7, disponível em www.dgsi. pt., Ac. da Relação de Coimbra, de 6.09.2011, CJ, 2011, t. IV, pág. 5.