Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1116/05.2TBEPS.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: ABRANTES GERALDES
Descritores: RUÍDO
DIREITOS DE PERSONALIDADE
DEVER DE AGIR
Data do Acordão: 11/29/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Indicações Eventuais: “INQUÉRITO AOS MUNICÍPIOS SOBRE A PREVENÇÃO E CONTROLO DO RUÍDO”, EFECTUADO PELA PROVEDORIA DE JUSTIÇA E ACESSÍVEL ATRAVÉS DO RESPECTIVO SITE WWW.PROVEDOR-JUS.PT/RELATORIOSESP.PHP
(PÁG. 2).
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / DIREITOS DE PERSONALIDADE - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABIIDADE CIVIL
DIREITO DO AMBIENTE - POLUIÇÃO / RUÍDO
Doutrina: - Miguel Lopes, Ambiente em análise, na Revista Judiciária, nº 27, p. 27.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 70.º, 486.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 722.º, N.º 3, E 729.º, N.º 3.
D. L. Nº 9/07, DE 17-1 (REGULAMENTO GERAL DO RUÍDO): - ARTIGO 4.º.
Legislação Comunitária: DIRECTIVA Nº 2002/49/CE, DE 25-6.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 24-10-1995, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 18-2-2003, PROCESSO N.º 4733/02;
-DE 22-9-2005, PROCESSO N.º 4264/04;
-DE 8-4-2010, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :


1. O facto de um estabelecimento de diversão nocturna (discoteca) se encontrar licenciado não dispensa o cumprimento de deveres relacionados com o ruído que do mesmo irradia para o exterior, com reflexos negativos no direito ao descanso e ao sossego de quem habita nas proximidades.

2. Os deveres do dono do estabelecimento não se confinam ao ruído produzido no seu interior, cumprindo-lhe igualmente evitar que nos locais sob o seu domínio ocorram factos perturbadores dos referidos direitos de terceiros.

3. Assim acontece com o local de entrada e de saída da discoteca ou com o parque de estacionamento de veículos, desde que integrem o estabelecimento de diversão.

A.G.

Decisão Texto Integral:

I - MANUEL …

e

MARIA …

moveram a presente acção, com processo comum, sob a forma ordinária,

contra

B … (que, entretanto, veio a falecer, tendo sido habilitados os seus herdeiros)

pedindo o encerramento de uma discoteca que explora e, subsidiariamente, a sua condenação a não a abrir ao público durante o período nocturno e a insonorizá-la totalmente, de forma a que não se sinta, nem oiça, qualquer ruído no exterior, bem como a controlar e impedir o ajuntamento ou agrupamento de clientes à porta da mesma e/ou no parque de estacionamento, a sua permanência aí e a perturbação, por parte dos clientes, do descanso e tranquilidade.

Cumulativamente pediram a condenação do R. no pagamento da quantia de € 50.000,00 (sendo € 25.000,00 para cada um dos AA.) a título de indemnização pelos danos não patrimoniais que sofreram com a violação dos seus direitos de personalidade.

Alegam que são donos de prédios urbanos, onde habitam, junto a outro prédio onde o R. tem instalado e a funcionar um estabelecimento de discoteca. Porque não existe qualquer isolamento entre os referidos prédios, os AA. ouvem e sentem a música e os ruídos produzidos, para além do ruído constante produzido pela clientela até altas horas da madrugada, mantendo-se a discoteca em actividade muito para além do seu horário de funcionamento.

Mais alegam que, no final do período de funcionamento do estabelecimento, os clientes agrupam-se à porta e no exterior, bebem e conversam em grande algazarra, riem e gritam e deslocam-se para o parque de estacionamento em frenética barulheira, aí permanecendo aos gritos, assobios e em discussão, fazendo acelerações com os veículo. Tudo isso perturba o repouso e sossego dos AA., não os deixando descansar, sobretudo aos Domingos, e no período nocturno, durante todos os Sábados de Verão, passagens de ano e Carnaval, afectando o seu rendimento no trabalho.

Contestou o R. e impugnou o alegado pelos demandantes, afirmando que a casa referida pelo AA. não passa de uma garagem, cuja construção, em parede simples, sem qualquer tipo de isolamento, não foi pensada para nela habitarem pessoas.

Atribui as trepidações sentidas nas portas e janelas e nas paredes da habitação do A. ao trânsito que circula pela E.N. n.º 13 que passa a cerca de 1,50 m dela.

e alegou que ao longo do tempo foi realizando obras de isolamento do som provindo da discoteca que praticamente eliminaram a sua propagação para o exterior.

Os AA. replicaram.

Na pendência da audiência de julgamento verificou-se o óbito do R. (fls. 1007), tendo o mesmo sido habilitado pelos respectivos herdeiros (fls. 1009).

Efectuado o julgamento, foi proferida sentença que condenou os herdeiros do R. a não prolongarem o horário de funcionamento da discoteca para além das 04:00 h na noite da passagem do ano, mantendo o horário de funcionamento que se acha estabelecido para os períodos de Verão e de Inverno, mesmo nos dias de Páscoa e na data do aniversário. Condenou-os ainda a pagar ao A. a importância de € 20.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais.

Apelaram os AA. e o herdeiro habilitado do primitivo R., B.

Foi proferido acórdão a julgar improcedente a apelação do herdeiro do R. e parcialmente procedente a apelação dos AA., sendo os RR. habilitados condenados, para além do que já constava da sentença de 1ª instância, a intervirem na entrada e saída do estabelecimento e no parque de estacionamento de apoio no sentido de serem evitados barulhos que possam perturbar o sossego e descanso dos AA. e a pagarem à A. a indemnização de € 24.000,00 por danos não patrimoniais.

Foi interposto recurso de revista pelo R. habilitado BB, concluindo que:

a) Considerando os Tribunais a quo possível a "convivência" dos dois direitos (o do direito ao descanso e o do direito ao exercício da actividade económica), não pode, logicamente, entender que há lugar ao pagamento de uma indemnização por força do exercício de qualquer destes direitos.

b) Tendo sido dado como provado que a discoteca apenas funcionava 3 vezes por ano durante a noite e que, sempre que a discoteca funciona em período nocturno, pelo menos o A. não consegue dormir, por ouvir os ruídos e sons dela provenientes, passando a noite nervoso, ansioso e irritado, a quantia de € 24.000,00 é completamente desproporcionada.

c) Os AA. sempre confirmaram que a incomodidade sentida sempre foi a que o Tribunal a quo pôde apurar na inspecção judicial ao local, não se podendo concluir que o grau de incomodidade causado tivesse sido alguma vez superior ao que agora se verifica e que se considera ser compatível com o direito ao descanso dos recorridos.

d) O Tribunal deu como provado que, até Julho de 2007, as condições de isolamento da discoteca permitiam que os ruídos fossem ouvidos na casa do A., mas não apurou durante quanto tempo é que esse ruído, com um grau de incomodidade susceptível de ser indemnizado, se verificou.

e) Não podem os Tribunais fixar o quantum de uma indemnização a favor do A. por este ter estado, no passado, sujeito a uma incomodidade causada pelo funcionamento da discoteca sem apurar a intensidade dessa incomodidade e durante quanto tempo o A. à mesma foi sujeito.

f) Atentas as regras da experiência comum, se a incomodidade fosse assim tão grande, ao ponto de uma pessoa ser merecedora de uma indemnização no valor de € 24.000,00, naturalmente causaria um sentimento de alguma "revolta" a todos os membros da família, principalmente aos filhos do A., o que os impediria de frequentar a discoteca.

g) O facto de a filha do A. ser frequentadora da discoteca é bem demonstrativo de como, na verdade, nem o A., nem a sua família viviam num estado de "nervosismo", "irritação" e "ansiedade".

h) Entendendo-se que existem danos e que eles são passíveis de ressarcimento, para determinar o quantum indemnizatório (para além de ser essencial determinar, no tempo, os factos ilícitos), importa apurar a culpa do R., o que não foi feito devidamente.

i) Na determinação do quantum indemnizatório não foi tida em consideração que foi considerado provado que o edifício actualmente habitado pelo A. foi inicialmente construído para servir de garagem, e que pelo menos a parede voltada para a discoteca, antes da construção do muro, não se encontrava acabada, tendo o tijolo e os blocos de cimento à vista, e ainda que o ruído produzido pelos veículos que circulam na Estrada Nacional, a 1,50 m dos prédios, é de elevada intensidade.

j) Entendendo que há lugar ao pagamento de uma indemnização, tinha que se ter considerado na determinação do seu valor aqueles factos, já que a incomodidade causada não decorre exclusivamente dos actos do R., sendo que o próprio A. concorreu para ela, bem como a existência da Estrada Nacional perto da casa.

k) A desproporcionalidade da quantia de € 24.000,00 é ainda mais evidente se tivermos em consideração que, após a realização da prova pericial, o R. e os seus herdeiros propuseram aos AA. a realização de obras a expensas suas na própria casa do A., com vista a minorar ou eliminar a transmissão de sons de baixa frequência, proposta que foi recusada.

l) Atenta a prova dada como assente, principalmente a resposta aos pontos 11.° e 12.°, não pode concluir-se que a A. sofreu qualquer prejuízo ou incómodo por força de ruídos provenientes da discoteca.

m) O nexo de causalidade entre o ruído existente e o alegado agravamento da saúde da A. não foi provado.

n) Sem prescindir, considerando-se que não há lugar a indemnização por força de ruídos provocados dentro do estabelecimento, mas apenas pelos clientes fora do estabelecimento onde funciona a discoteca, os factos que fundamentam e estão na causa de grande parte dos prejuízos e danos alegadamente causados à A. caem por terra, não havendo fundamento causal que justifique uma grande percentagem do montante indemnizatório peticionado por aquela.

o) Concluindo-se pela fixação de uma indemnização à A. (hipótese que se coloca por dever de patrocínio), a quantia de € 24.000,00 é completamente desproporcionada e excessiva para ressarcir alguém que (a) não ouve qualquer barulho produzido pelo funcionamento da discoteca; (b) ouve ruído de pessoas durante a noite apenas durante 3 noites por ano, sendo que uma delas é a noite de passagem de ano (noite em que, normalmente, todas as pessoas, vão descansar de madrugada); (c) independentemente do funcionamento da discoteca, ouve, constantemente, o ruído da Estrada Nacional contígua à sua casa e que é de elevada intensidade e (d) nunca quis colaborar para que a alegada incomodidade cessasse ou fosse, pelo menos, minorada.

p) O proprietário de uma discoteca, como o proprietário de qualquer estabelecimento, apenas pode impor restrições à entrada e/ou permanência de clientes no interior do seu estabelecimento, o que decorre do normal exercício do seu direito de propriedade.

q) Não pode impor-se aos herdeiros do R. que ajam em infracção à lei e se substituam às entidades policiais na manutenção do direito ao sossego das pessoas vizinhas da discoteca e nem se lhes pode impor que complementem a acção das mesmas entidades policiais pelo risco de conflito que isso pode suscitar.

r) O facto de haver incomodidade no exterior da discoteca não é justificação para que sejam condenados no pagamento de uma indemnização ao A., porque tudo o que suceda no exterior foge ao seu controlo e porque o seu direito de propriedade e a autoridade que dele lhe advém não se estende aos terrenos que são públicos, ainda que sejam os das imediações da discoteca.

s) A Relação não apreciou se o espaço onde era produzido o barulho ouvido pela A. era feito na via pública ou numa zona pertencente ao domínio privado, o que é essencial para que, de acordo com a própria teoria defendida, se possa decidir se o R. ou os seus herdeiros são ou não responsáveis pelo ressarcimento que entende ser devido à A.

Houve contra-alegações.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - Factos provados:

1. O A. encontra-se inscrito na Repartição de Finanças de Esposende como titular do rendimento respeitante ao prédio urbano, sito no lugar de …, freguesia de B…, composto de casa com 2 pavimentos destinada a habitação, com 7 divisões, duas no r/c e 5 no 1º andar, com 38 m2 de superfície coberta, a confrontar a norte com M...T...de A..., a sul com diversos, a nascente com Estrada Nacional, e a poente com R...G..., assim inscrito sob o art. 434º (certidão de fls. 84 do apenso) - A);

2. O A. encontra-se ainda inscrito na Repartição de Finanças de Esposende como titular do rendimento respeitante ao prédio urbano sito no lugar de Caniço, freguesia de B…, composto de casa com um pavimento destinada a habitação, com 6 divisões e logradouro, com 142 m2 de superfície coberta, e 220 m2 de logradouro, a confrontar a norte com Maria de Lurdes …e outros, a sul com Manuel …, a nascente com estrada nacional e proprietário, e a poente com Manuel …, assim inscrito sob o art. 815º (certidão de fls. 84 do apenso) - B);

3. O prédio descrito em 1., é contíguo ao descrito em 2. – G);

4. Há mais de 30 anos que o A. vem fruindo de todas as utilidades dos prédios descritos em 1. e 2., neles habitando, comendo, relaxando, dormindo e vivendo, conservando-os, neles fazendo obras, cuidando dos jardins e logradouro, e pagando as respectivas contribuições e impostos, tudo ininterruptamente, à vista de todos, sem oposição de ninguém – C);

5. Há mais de 30 anos que a A. vem fruindo de todas as utilidades de uma casa de r/c e 1º andar, uma dependência e logradouro, sita no lugar do Caniço, a confrontar com Manuel …, de nascente com estrada nacional, e de poente com B, nela habitando com o seu marido, comendo, relaxando, dormindo e vivendo, conservando-a, nela fazendo obras, cuidando dos jardins e logradouro, e pagando as respectivas contribuições e impostos, tudo ininterruptamente, à vista de todos, sem oposição de ninguém – E);

6. Presentemente (reportado ao ano de 2005) o prédio referido em 2. é habitado pelo A., pela sua mulher, Lúcia …, e pela sua filha N., e o referido em 1. é habitado por Maria …, tia do A. – D);

7. Junto aos prédios descritos em 1., 2. e 5. encontra-se instalado um estabelecimento de discoteca denominado “Bel…” explorado pelo R. – F);

8. O estabelecimento dispõe de licença de utilização e situa-se a cerca de 2 m do prédio descrito em 2. e a cerca de 50 m do prédio referido em 5. – 1º e 2º;

9. Em 21-11-96 a Direcção Regional do Ambiente procedeu a um ensaio acústico para avaliação do grau de incomodidade do ruído proveniente da discoteca referida em 5., tendo obtido o valor de 19,5 dB (A) (doc. fls. 361) – 16º;

10. O ruído produzido pelos veículos que circulam na Estrada Nacional, a 1,50 m dos prédios referidos em 1. e 5., é de elevada intensidade – 18º;

11. Até meados de 2004, o edifício onde funciona a discoteca tinha uma parede simples, tendo nessa altura sido construída outra parede, formando uma parede dupla, tendo ainda havido intervenção no telhado, colocando material de isolamento, e foram colocados dispositivos no interior, numa tentativa de evitar ou, pelo menos, minorar a propagação do som – 5º;

12. Após os estudos realizados em Novembro e Dezembro de 2003, em que foi detectado um nível de ruído excessivo produzido pela discoteca, o R. fez executar obras de isolamento acústico que reduziram o ruído produzido pelo funcionamento da discoteca na vizinhança, redução essa para valores abaixo do mínimo previsto no Regulamento Geral do Ruído após as últimas obras que se realizaram – 19º;

13. Após realização da prova pericial de medição acústica nestes autos, o R. propôs aos AA. a realização de obras na residência daqueles e a suas expensas, forma adequada de minorar ou eliminar a transmissão de sons de baixa frequência provenientes efeito da discoteca, tendo os AA. recusado tal pedido – 22º;

14. O R. fez proceder então a um corte estrutural no chão de cimento que unia os dois prédios e fez elevar a parede divisória entre os mesmos, reconstruindo-a com blocos de tijolo de 20 cm2 de espessura, com colocação entre tais blocos de 40 cm2 de lã de rocha prensada – 23º;

15. Em resultado destes trabalhos, o ruído produzido pelo funcionamento da discoteca nos prédios onde habita cada um dos AA. foi reduzido para valores abaixo do mínimo previsto no Regulamento Geral do Ruído – 24º;

16. Até Julho de 2007, o espaço que separa a discoteca do prédio descrito em 2. encontrava-se coberto por uma camada de cimento que unia a parede do prédio habitado pelo A. e sua família à parede do edifício onde funciona a discoteca, tendo naquela data sido executado um rasgo no chão de cimento, como se refere em 14. – 3º;

17. Quando se fez esse rasgo, colocou-se lã de rocha prensada no espaço respectivo, havendo-se ainda colocado lã de rocha no interior da parede dupla, tendo, a partir dessa altura, deixado de se sentir trepidação na casa do A. por qualquer movimento que se faça naquele espaço – 4º;

18. Até Julho de 2007, no exterior do edifício da discoteca e no interior da casa onde habita o A., eram audíveis os sons reproduzidos pela aparelhagem de música e, a partir daquela data, são audíveis apenas os sons graves da bateria, e somente num dos quartos que fica mais próximo do edifício da discoteca – 6º (parte);

19. O horário de funcionamento da discoteca, autorizado pela Câmara Municipal de Esposende, estendia-se até às 4:00 h de Domingo a Quinta-Feira e até às 6:00 h às Sextas-Feiras, Sábados e vésperas de Feriados – H);

20. A discoteca funciona aos Domingos entre as 16:00 h e até cerca das 22:00 h, prolongando-se no Verão até às 24:00 h. Na passagem do ano, no dia do aniversário e no Domingo de Páscoa estava autorizada a funcionar até às 5:00 h, tendo sido encurtado para as 4:00 h, a partir de Março de 2010 – 21º;

21. Quando os clientes saem deste estabelecimento, se falam mais alto, ouvem-se as vozes no interior da casa do A. e, essencialmente no silêncio da noite, também se ouvem no interior da casa da A., nos compartimentos voltados para a parte exterior da discoteca – 6º (parte);

22. Após o encerramento, os clientes da discoteca dirigem-se para o parque de estacionamento, produzindo conversas, risos e, às vezes, gritos que como se refere em 21., são audíveis no interior dos prédios onde habita cada um dos AA. – 9º;

23. Por vezes, os referidos clientes, já no parque de estacionamento da discoteca, produzem ruídos com acelerações de veículos automóveis e ciclomotores com os quais executam “piões” e “cavalinhos” – 10º;

24. O A. e a sua esposa, nos períodos de funcionamento da discoteca, por causa dos ruídos e sons que daí provinham, não conseguiam descansar – 11º;

25. Sempre que a discoteca funciona em período nocturno, pelo menos o A. e a sua esposa não conseguem dormir, por ouvirem os ruídos e sons dela provenientes, passando a noite nervosos, ansiosos e irritados em consequência do que o A. e a sua mulher têm o seu rendimento laboral afectado – 12º e 13º;

26. A A. desde sempre sofreu de enxaquecas, as quais se agravam com a falta de descanso e a tornam menos tolerante aos ruídos – 15º;

27. O edifício actualmente habitado pelo A. foi inicialmente construído para servir de garagem e, pelo menos a parede voltada para a discoteca, antes da construção do muro referido em 11., não se encontrava acabada, tendo o tijolo e blocos de cimento à vista – 17º;

28. Durante o funcionamento da discoteca o R. mantém normalmente o volume da música em intensidade abaixo do que a aparelhagem permite – 20º;

29. O R., no início de Agosto de 2009, adquiriu um aparelho limitador de áudio  que diminui as frequências graves e instalou-o no estabelecimento – 25º, 26º e 27º.

III – Decidindo:

1. Questiona o recorrente dois aspectos:

a) O valor das indemnizações atribuídas a cada um dos AA., considerando-as excessivas;

b) A sua condenação na prestação de facto relativamente a ocorrências fora do estabelecimento de diversão nocturna, considerando que tal é missão das autoridades públicas.

            

2. Quanto às indemnizações pelos danos morais:

2.1. Estamos perante uma acção interposta em 2005, mas na qual foram invocados factos relacionados com danos na esfera do direito de personalidade de cada um dos AA. que vêm ocorrendo desde que o estabelecimento de discoteca foi aberto ao público.

Como decorre dos factos apurados, pelo menos já em 21-11-96 a Direcção Regional do Ambiente procedera a um ensaio acústico para avaliação do grau de incomodidade do ruído proveniente da discoteca, obtendo-se então o valor de 19,5 dB (A) (esclarecendo-se no respectivo relatório pericial, de fls. 361, que tal “excede 10 dB(A) o grau de incomodidade Leq-L95 permitido pelo DL 251/87, de 24-6”).

Apesar disso, até meados de 2004, o edifício onde funciona a discoteca manteve uma parede simples que não permitia conseguir o isolamento do som. Só nesta altura foi construída outra parede, formando-se por isso uma parede dupla, e foi colocado no telhado do edifício material de isolamento, assim como dispositivos no interior para evitar ou minorar a propagação do som.

Tais trabalhos e outros que foram realizados já na pendência da acção, em 2007 - corte estrutural no chão de cimento que unia os dois prédios e inserção de lã de rocha prensada – produziram efectivamente uma redução do nível de ruído com repercussão no exterior.

Mas até Julho de 2007, no exterior do edifício da discoteca e no interior da casa onde habita o A., eram audíveis os sons reproduzidos pela aparelhagem de música, sendo que, a partir dessa data, passaram a ser audíveis apenas os sons graves da bateria, e somente no quarto mais próximo do edifício da discoteca.

A acrescentar ao ruído do som que advinha e ainda advém do interior da discoteca, há que contar – e contar ao longo de todo o período de funcionamento do estabelecimento – com o ruído provocado pelos clientes quando pretendem entrar e sair da discoteca e com os ruídos resultantes de acelerações de veículos automóveis e de ciclomotores com os quais aqueles executam “piões” e “cavalinhos”.

Pela descrição que decorre dos factos apurados e por tudo aquilo que, a partir dos mesmos, é possível inferir, por corresponder às regras da experiência comum, o A. e a sua esposa, nos períodos de funcionamento da discoteca, por causa dos ruídos e sons emitidos, debatem-se com dificuldades em dormir ou descansar, passando a noite nervosos, ansiosos e irritados, o que se repercute negativamente no seu trabalho.

A Autora, por seu lado, sempre sofreu de enxaquecas, sofrendo com o seu agravamento com a falta de descanso, tornando-a ainda menos tolerante aos ruídos.

2.2. Em face da realidade que a matéria de facto permitiu retratar, não há dúvidas quanto à violação de direitos de personalidade de ambos os AA. que decorre do facto de o primitivo R. e, depois do seu óbito, os respectivos sucessores manterem em funcionamento um estabelecimento de diversão nocturna que, atenta a proximidade com as casas onde os AA. habitam, vem perturbando a sua vida quotidiana nas noites em que funciona e dentro de períodos temporais que têm variado no tempo, mas que outrora já permitiram o funcionamento até à 4 horas da madrugada e em certos dias até às 6 horas.

Durante os primeiros anos praticamente foram ignorados pelo primitivo R. os efeitos que isso determinava na esfera dos AA. Apenas depois de diligências que estes efectuaram e em que também se insere a instauração da presente acção, foram executadas modificações estruturais no edifício onde funciona a discoteca e alterados os horários de funcionamento, permitindo atenuar, mas não eliminar ainda totalmente, os efeitos perniciosos derivados do seu funcionamento.

A actividade do estabelecimento e de outros similares é legítima, desde que licenciada e desde que sejam respeitadas as demais regras legais, designadamente as que se mostrem necessárias para acautelar direitos absolutos de terceiros. Contudo, tratando-se de actividade que funciona essencialmente em período nocturno mostra-se imprescindível uma especial atenção relativamente aos factores susceptíveis de afectarem o sossego e a tranquilidade de terceiros, com especial relevo para os aspectos atinentes ao ajustamento da potência da aparelhagem sonora e/ou ao eficaz isolamento do som, de modo a evitar-se a perturbação de todos quantos, habitando nas proximidades, pretendam descansar.

Trata-se de matéria que, devendo obedecer ao Regulamento Geral do Ruído, não dispensa a adopção de outros cuidados quando, porventura, o respeito por tal Regulamento não seja suficiente para evitar a violação de direitos de natureza pessoal como os de personalidade, maxime quando é posto em causa o direito ao sono, ao sossego e à tranquilidade em período nocturno (Acs. do STJ, de 22-9-05, Revista nº 4264/04, e de 18-2-03 (Revista nº 4733/02).

Afinal, os direitos de personalidade não podem deixar de ser privilegiados no confronto com outros direitos, como são os conexos com o exercício de actividades lucrativas que impliquem o funcionamento de locais de diversão nocturna.

2.3. Nem sempre estes aspectos têm sido considerados, acautelados e preservados. Como a experiência o revela, não raras vezes os interesses daqueles que exploram ou que frequentam aqueles estabelecimentos de diversão acabam por se sobrepor a outros interesses ou aos direitos de outros indivíduos, perante a inacção das autoridades competentes em matéria de licenciamento ou de fiscalização de actividades ruidosas.[1]

Com demasiada frequência se verificam comportamentos dilatórios ou atitudes de pura inércia geradoras de uma verdadeira denegação de direitos, abstendo-se aquelas entidades do uso dos mecanismos legais e/ou dos instrumentos administrativos que, com menores custos para os interessados e com mais eficácia, permitiriam uma melhor compatibilização dos direitos em conflito ou, se necessário, a cessação efectiva de situações de pura e manifesta ilegalidade.

Numa sociedade hedonista, parecem ganhar excessivo relevo tais actividades, como se não merecessem atenção os incómodos causados aos cidadãos (muitas vezes cidadãos mais idosos ou com menor capacidade de reacção) que habitam nas proximidades de estabelecimentos de diversão produtores de ruído. Omitindo-se medidas que levem a introduzir melhorias de ordem técnica ou de gestão capazes de evitar ou de atenuar os impactos negativos, são passados para plano secundário interesses inerentes a direitos subjectivos que deveriam ser merecedores de maior protecção.

Tal não se deve à falta de dispositivos legais: desde a Constituição que tutela o direito à qualidade de vida e à qualidade ambiental, passando pelo preexistente Código Civil que já na década de 60 do século XX previu a tutela dos direitos da personalidade (art. 70º), culminando com a aprovação do Regulamento Geral de Ruído (que actualmente consta do Dec. Lei nº 9/07, de 17-1, que revogou o Dec. Lei nº 292/00, de 14-11), a par da publicação de outros diplomas avulsos que regem aspectos de ordem urbanística ou relacionados especificamente com a qualidade das construções, nomeadamente com o respectivo isolamento acústico.

Como o quotidiano o revela, o que tem faltado, isso sim, é o uso adequado dos mecanismos legais já existentes, tudo se passando, com uma frequência inadmissível, como se a Lei Fundamental e outros diplomas constituíssem meros elementos decorativos de um ordenamento aparentemente moderno e zelador dos direitos dos cidadãos mas que, na realidade, acaba por descurar a tutela efectiva de direitos fundamentais.

Isto, apesar de o Regulamento Geral do Ruído prever no seu art. 4º a atribuição de competências específicas às autoridades públicas para efeito de prevenção e controlo do ruído, assegurando o cumprimento de regras que tutelam interesses de ordem pública e os direitos dos cidadãos.

Para o efeito, justificar-se-iam seguramente maiores limitações do que aquelas que a experiência revela no que concerne, por exemplo, ao licenciamento de estabelecimentos de diversão nocturna geradores de maiores incómodos para a generalidade dos cidadãos. Limitações essas especialmente justificadas em zonas habitacionais, exigindo cuidados redobrados o licenciamento desses estabelecimentos, designadamente com efectiva ponderação da sua localização, horário de funcionamento ou condições de isolamento (cfr., para o efeito, o que consta do actual Regulamento Geral do Ruído aprovado pelo Dec. Lei n. 9/07, de 17-1, ou o Dec. Lei nº 146/06, de 31-7, na sequência da Directiva nº 2002/49/CE, de 25-6).

Como refere Miguel Lopes, “é possível proceder ao isolamento acústico entre diferentes tipos de estabelecimentos e as habitações, mas a melhor forma de controlo do ruído está no zonamento de actividades”, para o efeito, “sobrepondo o bom senso aos interesses económicos em jogo, através da definição de zonas especiais para a implantação de bares e discotecas, por forma a não perturbarem as habitações”. Por outro lado, não será o facto de um determinado estabelecimento se mostrar licenciado e a cumprir formalmente todas as obrigações constantes do alvará que obstará à responsabilização dos seus proprietários, desde que se apurem factos integrantes da responsabilidade civil extracontratual, tanto mais que, como assinala o referido autor, é ao utilizador final do estabelecimento que compete o “cumprimento das exigências legais a respeito do ruído emitido pelo estabelecimento” (em Ambiente em análise, na Revista Judiciária, nº 27, pág. 27).

2.4. Neste contexto, tendo em conta a natureza e a duração dos factos ilícitos atinentes aos ruídos e trepidações advindos do interior do estabelecimento de discoteca e os efeitos perturbadores causados nas esferas pessoais dos AA., não existem motivos para modificar o valor das indemnizações que a cada um foram fixadas pelas instâncias.

Não vale para o efeito invocar as deficientes condições de isolamento dos edifícios onde os dois AA. habitam, nem o facto de se encontrarem nas imediações de uma Estrada Nacional movimentada cujo tráfego rodoviário também é produtor de ruído, já que a causa essencial da perturbação daqueles continua a ser o funcionamento da discoteca.

Também é de desconsiderar o modo como o recorrente encara os específicos efeitos que a actividade ruidosa produz sobre a saúde da Autora, uma vez que, apesar de a sua habitação estar mais distante da discoteca do que a do outro Autor, aqueles efeitos encontram a sua motivação no modo como funcionou e continua a funcionar a discoteca.

É verdade que os RR. introduziram medidas destinadas a evitar a repercussão externa da aparelhagem produtora de som e de trepidações. Essencialmente a partir de 2007 (sendo que a presente acção foi instaurada em 2005) operaram-se modificações estruturais positivas que, em boa verdade, levaram a que o grau de incomodidade para os AA. seja agora bastante mais reduzido.

Mas, para além de os sons graves do referido equipamento de som continuarem a projectar-se nas habitações dos AA., a indemnização a atribuir a cada um deles deve reflectir o longo período em que o R. e respectivos sucessores agiram com grave desconsideração pelos direitos individuais dos AA. cujas habitações confinavam com a discoteca que exploram.

Sendo naturalmente difícil a determinação de um quantum ajustado a cada Autor, que determine uma efectiva compensação pelos danos de natureza não patrimonial que têm sofrido, os valores que foram fixados pelas instâncias integram-se nos parâmetros gerais e são apoiados pelos critérios de equidade, ponderando especialmente o período durante o qual os AA. suportaram os efeitos negativos mais graves resultantes do funcionamento da discoteca sem que os seu dono (o primitivo R.) tivesse agido no sentido de os minorar, e ainda que em menor grau os efeitos que continuaram e continuam a afectar cada um dos AA.

3. Importa agora verificar se deve ser mantida a condenação do R. na prestação de facto.

3.1. Alterando o que fora decidido pela 1ª instância, o Tribunal da Relação, no acórdão recorrido, condenou ainda os RR. a “intervirem na entrada e saída do estabelecimento e no parque de estacionamento de apoio no sentido de serem evitados barulhos que possam perturbar o sossego e descanso dos AA.”.

Diz o recorrente (herdeiro do primitivo R.) que nenhuma obrigação tem relativamente ao controlo dos comportamentos dos clientes que ocorrem no exterior do estabelecimento, por se tratar de espaço público relativamente ao qual não tem poderes de autoridade.

Os recorridos obtemperam que tanto o local de entrada da discoteca como o parque de estacionamento estão sob domínio dos RR., devendo estes actuar em tais locais por forma a que não ocorram os ruídos neles produzidos.

3.2. Para a apreciação desta pretensão importa, antes de mais, evidenciar que se encontra definitivamente decidido, por não ter sido objecto de impugnação, que os herdeiros do R. deverão respeitar o horário de funcionamento fixado para os períodos de Verão e de Inverno, mesmo nos dias de Páscoa e na data do aniversário, e que apenas na noite da Passagem do Ano o poderão prolongar até às 04:00 h.

3.3. Diversamente do que referem os recorrentes, ao funcionamento de um estabelecimento de diversão nocturna, como uma discoteca, não interessam apenas os ruídos produzidos no seu interior.

Em tese, quando se trate de apreciar o condicionalismo de que depende a condenação no encerramento do estabelecimento, se acaso esta medida constituir a forma mais eficaz de impedir a continuação da violação dos direitos de terceiros, a ponderação da ilicitude da situação poderá contar também com os comportamentos que, embora ocorrendo no exterior do estabelecimento, encontrem no respectivo modo de funcionamento a causa adequada.

Assim acontecerá, designadamente, quando a zona exterior constitua uma “extensão” do mesmo estabelecimento, circunstância esta em que a ilicitude traduzida na verificação de uma actividade ruidosa causadora de poluição sonora lesiva de direitos de personalidade que tenha o seu epicentro no estabelecimento de diversão poderá resultar também da apreciação dos comportamentos de terceiros (maxime dos clientes) causalmente ligados ao modo ou condições de funcionamento do mesmo.

Assim foi decidido no Ac. do STJ, de 8-4-10, www.dgsi.pt, aresto em que, para se sustentar a decisão de condenação do Réu no encerramento de um estabelecimento de diversão nocturna situado em zona habitacional, foi ponderado o “impacto ambiental negativo global que está necessariamente associado ao tipo de actividades nele exercidas”, desde que “quem explora o estabelecimento com eles pudesse razoavelmente contar, por serem indissociáveis da actividade exercida”.

Ponderação que para o mesmo efeito, mas não só, também foi feita pelo Ac. do STJ, de 24-10-95 (www.dgsi.pt).

3.4. Porém, não está em discussão neste momento o encerramento do estabelecimento dos RR. Conquanto este pedido tenha sido formulado pelos AA. a título principal, o processo evoluiu para a adopção de medidas contidas nas pretensões subsidiárias visando pôr termo às fontes de ruído incomodativo.

De modo que, para além do dever de agir imposto aos RR. quanto ao horário de funcionamento (depois das modificações que foram efectuadas nas condições de isolamento acústico), cabe tão só reapreciar se deve ser confirmada a sua condenação na obrigação de prestação de facto positivo traduzida em intervenções no exterior do estabelecimento junto dos clientes causadores de ruídos excessivos.

Para o efeito, é importante a distinguir entre os locais que ainda se inscrevem no estabelecimento de diversão nocturna, por constituírem seus anexos ou partes integrantes, sob o domínio dos interessados na sua exploração, e os restantes relativamente aos quais não exista qualquer posição de domínio, por estarem integrados na via pública ou pertencerem a terceiros.

Sem embargo do exercício por parte das autoridades públicas, maxime das forças policiais, das diligências destinadas a prevenir ou sancionar condutas ilícitas de clientes, nomeadamente quando se manifestem através da produção de ruído ilegal, os interesses dos lesados não podem ficar exclusivamente dependentes dessa eventual intervenção quando tais manifestações ocorram em locais que estejam sob o controlo do titular do estabelecimento, desde que no respectivo funcionamento encontrem o adequado nexo de causalidade. Nessas circunstâncias, cumpre aos titulares do estabelecimento alocar os meios humanos e materiais adequados ao estabelecimento de uma correcta e equilibrada compatibilização entre o exercício de actividades lucrativas e os direitos de personalidade de terceiros, em concreto, na sua vertente do direito ao sossego e ao descanso em período nocturno.

Obtendo os titulares do estabelecimento lucros emergentes do seu funcionamento, desde que este se situe numa área em que se verifique o conflito com direitos de terceiros, designadamente habitantes da zona, cabe aos respectivos donos agir de modo que o exercício legítimo da sua actividade empresarial se compatibilize com tais direitos, exercendo o dever de diligência tendente a evitar a prática de factos ilícitos, como decorre, além do mais, dos arts. 70º e 486º do CC.

3.5. Porém, no caso concreto, não estão preenchidos os requisitos que permitam a confirmação da condenação dos RR. na mencionada prestação de facto positivo.

A justa resolução do litígio, na parte em que ainda persiste o diferendo, não prescinde de uma segura delimitação da matéria de facto relevante. Segurança especialmente imposta no âmbito de um recurso de revista, já que ao Supremo Tribunal de Justiça se pede essencialmente a reapreciação do que constitui matéria de direito, sendo residual a sua interferência no que concerne à matéria de facto (arts. 722º, nº 3, e 729º, nº 3, do CPC).

Invocando os AA. a ocorrência de ruídos no local de entrada e de saída da discoteca e no respectivo parque de estacionamento, a confirmação do acórdão da Relação, na parte em que condenou os RR. a intervirem em tais locais no sentido de serem evitados barulhos perturbadores do sossego e do descanso dos AA. traduzidos em vozearias e em manobras efectuadas por clientes com veículos automóveis, maxime com motociclos, não prescinde da segura caracterização desses locais.

3.6. A tal respeito apurou-se apenas o seguinte:

- Quando os clientes saem do estabelecimento, se falam mais alto, ouvem-se as vozes no interior da casa do A. e, essencialmente no silêncio da noite, também se ouvem no interior da casa da A., nos compartimentos voltados para a parte exterior da discoteca;

- Após o seu encerramento, os clientes dirigem-se para o parque de estacionamento, produzindo conversas, risos e, às vezes, gritos que são audíveis no interior dos prédios onde habitam os AA.;

- Por vezes, os referidos clientes, já no parque de estacionamento da discoteca, produzem ruídos com acelerações de veículos automóveis e ciclomotores com os quais executam “piões” e “cavalinhos”.

Ora, quanto ao espaço correspondente à entrada do estabelecimento, nada nos permite concluir que se trate de local do domínio privado, pois que, quando se estabelece a comparação entre o teor da base instrutória e a decisão da matéria de facto (resposta ao ponto 9º), verifica-se que nesta não foi incluída qualquer referência ao local onde se situa a “porta” de entrada do estabelecimento.

A matéria de facto apenas permite asseverar que os ruídos de vozes ocorrem numa parte indistinta do “exterior”, envolvendo também o trajecto que os clientes percorrem até ao parque de estacionamento, o que se supõe constituir via pública excluída da esfera de intervenção directa dos titulares do estabelecimento.

Tão pouco são fornecidos elementos seguros sobre o parque onde os clientes deixam estacionados os seus veículos, de modo a que se possa afirmar, com segurança, que constitui um local submetido ao domínio do estabelecimento.

Relativamente a tal local, alegaram os AA. que se encontra “junto à Estrada Nacional nº 13, em frente à casa dos AA” (art. 20º da petição). E aludindo a decisão da matéria de facto tão só ao “parque de estacionamento”, na respectiva motivação refere-se a existência não de um mas de “dois parques de estacionamento” (fls. 1.078).

Enfim, cabendo aos AA. descrever com clareza os referidos locais e alegar factos reveladores da sua inserção na esfera jurídica ou no domínio dos RR., a matéria de facto apurada não permite que, de forma segura, se possa sustentar a afirmação da existência de deveres legais que lhes imponham a adopção de condutas relacionadas com os comportamentos dos clientes ou de outros indivíduos.

3.7. Confrontado porventura com tais dificuldades, o Tribunal da Relação, no acórdão recorrido, deixou expresso que “o estabelecimento tem um espaço largo na entrada, como se pode verificar pela análise das fotografias juntas a fls. 221 a 225 do II vol. do procedimento cautelar. E tem, como ponto de apoio, um estacionamento para viaturas. E é nestes dois locais, à entrada do estabelecimento e no estacionamento que são provocados os maiores barulhos, como se descortina dos pontos de facto 14., 15. e 16. da decisão impugnada”.

Mas, além desta descrição extravasar o conteúdo da decisão da matéria de facto que foi considerada provada e que efectivamente serve para descrever a realidade, nem assim se consegue alcançar a segura afirmação dos pressupostos de que depende a manutenção da condenação dos RR. na mencionada obrigação de agir.

Aliás, considerando o que já se encontra definido relativamente ao horário de funcionamento da discoteca (sendo vedado aos RR. exceder o estabelecido para as épocas de Verão e de Inverno), o cumprimento de tal injunção judicial é que verdadeiramente será relevante para a efectiva tutela dos direitos de personalidade reconhecidos aos AA.

Nessa medida, procede em parte o recurso de revista, importando que se revogue o acórdão recorrido na parte em que condenou os RR. “a intervirem na entrada e saída do estabelecimento e no parque de estacionamento de apoio no sentido de serem evitados barulhos que possam perturbar o sossego e descanso dos AA.”

IV – Face ao exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a revista, revogando-se o acórdão recorrido na parte em que condenou os RR. na prestação de facto, mantendo-se, no mais, o que foi decidido pelas instâncias.

Custas da revista e nas instâncias a cargo dos RR. e dos AA. na proporção de 2/3 e de 1/3, respectivamente.

Notifique.

Lisboa, 29-11-12


Abrantes Geraldes

Bettencourt de Faria

Pereira da Silva


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[1] Assim se confirma o dado que consta do “Inquérito aos Municípios sobre a prevenção e controlo do ruído”, efectuado pela Provedoria de Justiça e acessível através do respectivo site (www.provedor-jus.pt/relatoriosesp.php), no qual se refere que “das múltiplas recomendações e relatórios anuais apresentados à Assembleia da República pelo Provedor de Justiça fica claro que o ruído não é levado a sério por muitos órgãos e serviços públicos que, não raro, contemporizam com o interesse económico das actividades ruidosas, ou simplesmente consideram que, na ordem pública ambiental, a actividade ruidosa tem um lugar muito modesto” (pág. 2).