Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
74/1999.P1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: SERRA BAPTISTA
Descritores: REGISTO PREDIAL
PRESUNÇÃO DE PROPRIEDADE
FÉ PÚBLICA
VENDA DE BENS ALHEIOS
POSSE
DIREITO DE PROPRIEDADE
Apenso:
Data do Acordão: 01/12/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :            

1. Devido à especial eficácia dos direitos reais perante terceiros, torna-se necessário dar publicidade aos mesmos, existindo para tal, no caso dos prédios rústicos e urbanos, o registo predial.

            2. Tal publicidade, a cargo do registo predial, é uma publicidade jurídica, no sentido de que garante a legalidade da situação jurídica que dá a conhecer.

            Face à fé pública do registo, deve o mesmo estar em conformidade com a situação jurídica substantiva do imóvel, permitindo conhecê-la.

            Podendo haver casos em que se verifique desconformidade entre a situação substantiva e a situação registal (inexactidão do registo), o que afecta a sua fé pública.

            3. Face à duplicação dos registos prediais sobre o mesmo prédio, não valem, desde logo, quer as regras da eficácia do registo em relação a terceiros (art. 5.º do CdRP), quer as da presunção da titularidade do direito (art. 7.º do mesmo diploma legal).

            Ficando, com tal duplicação, inutilizada a função publicitária do registo.

            4. Sob pena de se frustrarem os princípios estruturantes do registo predial, como a publicidade e a segurança estática e dinâmica também dele derivada, não pode qualquer dos titulares do registo predial sobre o mesmo prédio beneficiar de inscrições lavradas sobre distintas realidades jurídicas, mas que, afinal, se reportam a uma única. Devendo, então, prevalecer, não as normas registais, mas as de direito substantivo.

            5. A venda efectuada pelo non dominus constitui, em relação ao verdadeiro titular da coisa, res inter alios, sendo, como tal, quanto a ele, ineficaz.

            6. Presume-se, face ao disposto no art. 1268.º do CC, que quem está na posse de uma coisa é titular do direito correspondente aos actos que sobre ela pratica.

            Assim, com base na posse, pode o possuidor, em princípio, invocar o direito a cuja imagem possui e defendê-lo em acção petitória.

            E, em caso de dúvida, sobre o direito de propriedade, o impasse é resolvido em termos favoráveis ao possuidor.

Decisão Texto Integral:

                ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

               

               AA veio intentar acção, com processo ordinário, contra           BB e mulher CC, pedindo a condenação destes:

a) a reconhecerem à A. o direito de propriedade sobre a parcela de terreno para construção urbana identificada no artigo 1° da p. i. (com área de 1.250 m2, sita no lugar da ........., também conhecido por Açougue, freguesia de Ervedosa do Douro, concelho de São João da Pesqueira, a confrontar a norte com DD, sul com EE, nascente com FF e poente com caminho público), inscrita na respectiva matriz predial sob o art. 1261.

b) a procederem à demolição da edificação indicada nos artigos 17° e 25° da p. i. (com os sinais de medição constantes do auto de embargo), por forma a reporem o terreno ocupado pela mesma no estado anterior à sua implantação;

c) a pagarem à A. a indemnização adequada aos prejuízos decorrentes da devassa e ocupação abusiva do seu identificado prédio, originados com a edificação que construíram, conforme liquidação a efectuar em execução de sentença.

Alegando, para tanto e em suma:

É dona e legitima possuidora do prédio acima referido, descrito na C.R. Predial de S. João da Pesqueira, sob o nº 000000000, com inscrição de aquisição a seu favor, sob a cota G-2;

Esse prédio foi adquirido pela A., por compra efectuada, a GG e mulher, através de escritura pública outorgada em 15/07/1991;

Antes de formalizar a compra e venda da aludida parcela de terreno, a A. já a vinha possuindo desde finais de 1980, granjeando os pés de videira aí existentes e limpando o terreno das silvas, o que fez, durante mais de 30 anos, continuadamente, à vista de toda a gente e sem oposição de ninguém, convicta de ser a verdadeira e exclusiva proprietária desse prédio;

Sucede que no dia 23/08/1993, a A., vinda de França, onde está emigrada, chegada ao seu referido prédio, deu conta de que nele os RR. andavam a edificar uma casa de habitação, o que foi feito sem o seu conhecimento e contra a sua vontade, tendo, perante a descrita situação, requerido, judicialmente, o embargo da mesma obra, o qual foi decretado.

Os RR., devidamente citados, vieram requerer o chamamento à autoria do Banco Português do Atlântico, S.A., que foi admitido, e contestaram, defendendo-se por excepção, invocando a ilegitimidade da A. para a presente demanda e, por impugnação, alegando que:

A parcela de terreno onde os réus construíram a sua casa tem a área somente de 1000 m2 e confronta de norte com caminho, do sul com EE, de nascente com HH e do poente com rua ou caminho;

Tal parcela de terreno foi adquirida pelos RR. ao anterior proprietário, Banco Português do Atlântico, S.A., tendo a respectiva escritura pública de compra e venda sido outorgada no dia 21/12/1992, estando o prédio registado a favor dos RR., na C.R. Predial de S. João da Pesqueira sob o nº 000000000000, o que constitui presunção do direito de propriedade;

O Banco Português do Atlântico, por sua vez, havia adquirido a dita parcela de terreno por arrematação em hasta pública, realizada no Tribunal de S. João da Pesqueira, em 23/02/1989, registando posteriormente essa aquisição em 23/03/1990;

A mesma parcela de terreno fora penhorada, em 12/04/1988, no âmbito de execução em que era exequente o B.P.A. e executados GG e mulher II, tendo tal penhora sido registada em 06/07/1988;

Por si e seus antecessores os RR. há mais de 40 anos vêm fruindo o aludido prédio, à vista de todos, sem qualquer oposição ou interrupção, ocupando-o e pagando as respectivas contribuições e impostos, por todos sendo reconhecidos como legítimos donos desse prédio, na convicção de que só a eles pertencia;

A compra e venda que a A. diz ter efectuado a GG e mulher, foi simulada, sendo a respectiva escritura pública de compra e venda celebrada depois da penhora efectuada e registada, para prejudicar eventuais credores, arrematantes ou compradores do prédio inscrito na matriz sob o art. 542, pelo que tal negócio é nulo, porque contrário à lei e ordem pública e consequentemente terá de ser nulo o registo efectuado pela A., até por que foi requerido depois de 14/07/1992, data da venda do mesmo prédio em hasta pública;

Está-se, pois, na presença do mesmo prédio, pelo que depois da penhora efectuada pelo B.P.A. nunca o anterior proprietário, GG, poderia vender ou inscrever na matriz um prédio que já não existia na sua esfera patrimonial, porque fora objecto de apreensão judicial e venda em hasta pública, como fez, tendo, em 24/08/1990, participado à matriz tal prédio e registando-o depois na Conservatória em 28/08/1990, pelo que tem de considerar-se inexistente essa participação à matriz, quanto ao artigo 1261 da freguesia de Ervedosa do Douro, levada a efeito pelo GG em 24/08/90, por falta de correspondência com a realidade e ainda por que contrária à ordem pública, já que o terreno que pretendeu inscrever já se encontrava inscrito sob o art. 542 rústico da freguesia de Ervedosa do Douro e já fora penhorado e vendido em hasta pública, sendo, pelas mesmas razões também nulo o respectivo registo;

Por que ninguém pode vender o que lhe não pertence é também nula e ineficaz em relação aos réus a escritura pública outorgada por aqueles em 15/07/1991, bem como o registo que com base nela foi efectuado pela A.;

Os RR. encontram-se na ocupação e detenção da parcela de terreno que adquiriram ao BPA de forma válida e legítima, sendo tal ocupação lícita e que prevalece sobre a da A., como seu proprietário exclusivo, nunca tendo a A. exercido posse real e efectiva sobre essa parcela de terreno;

Os RR. mandaram fazer um projecto para edificação de uma casa no prédio referido, no que despenderam dinheiro, tendo já gasto com o projecto, materiais de construção e mão-de-obra mais de 6.000.000$00;

Os RR. contraíram empréstimos junto da C.C.A.M. de São João da Pesqueira e C.G.D., na ordem dos 6.500.000$00;

Os RR. pararam a construção da obra em 23/09/1993;

Desde essa data os RR. vêm sofrendo incómodos, dores de cabeça, nervos, cansaço e esgotamento.

Concluíram pela improcedência da acção e pediram, em reconvenção, que seja a A./reconvinda condenada:

a) a reconhecer que os RR./reconvintes são donos e legítimos possuidores da identificada parcela de terreno inscrita na matriz rústica da freguesia de Ervedosa do Douro sob o art. 542 e descrita na CR. Predial de S. João da Pesqueira sob o nº 000000000000;

b) a indemnizar os RR./reconvintes de todos os prejuízos patrimoniais e não patrimoniais a que a sua actuação deu causa, presentemente de 6.000.000$00, e no montante a liquidar em execução de sentença.

A A./reconvinda replicou, impugnando os factos alegados pelos RR., designadamente, para fundamentar o pedido reconvencional, sustentando que a penhora, arrematação pelo B.P.A. e posterior venda por esta instituição aos RR./reconvintes são actos nulos e ineficazes, ainda que do mesmo prédio se tratasse, o que a A. não aceita, incapazes de produzir efeitos jurídicos e insusceptíveis de operarem a transmissão de um imóvel cuja identidade não se conforma com a daquele que efectivamente a A. peticiona, sendo tal nulidade de conhecimento oficioso.

Concluiu como na p. i. e pela improcedência da reconvenção.

O chamado Banco Português do Atlântico, tendo sido citado, requereu o chamamento à autoria de GG e mulher II, que foi admitido, tendo estes chamados sido citados e não oferecendo contestação.

Perante a falta de contestação dos chamados GG e mulher, o chamado BPA contestou alegando que agiu de boa-fé, tendo instaurado contra GG e mulher II, execução para pagamento de quantia certa, que correu termos no 3° Juízo Cível do Porto, sob o n° 0000 e, após lhe ter sido devolvido o direito de nomear bens à penhora, o BPA nomeou à penhora o prédio que se encontrava inscrito a favor do executado, vindo o BPA, na praça, a arrematar o imóvel por 50.000$00 e procedido ao registo da aquisição a seu favor na CRP de S. João da Pesqueira, em 23/03/1990. Por escritura pública outorgada em 21/12/1992 o BPA vendeu o mencionado prédio ao ora R. BB, impugnando, por desconhecimento, os demais factos invocados pela A. e RR. relativamente ao dito imóvel, nomeadamente a partir da data da celebração daquela escritura.

Foi proferido o despacho saneador, no qual foi julgada improcedente a excepção da ilegitimidade da A. invocada pelos RR. Tendo sido elaborada a especificação, bem como o questionário.

Realizou-se a audiência de discussão e julgamento e, no decurso desta, a A.:

- Requereu a rectificação das als. G) e H) da Especificação no sentido de que a referência ao prédio mencionado na al. F) se devesse ter por efectuada para o prédio mencionado na al. N), o que foi indeferido, nos termos que constam do ponto III do despacho de fls. 679 e seguintes;

- Requereu a rectificação do lapso constante do art°. 4° da p. i., no sentido de constar que a parcela de terreno com a área de 1250 m2 se mostra descrita na C.R. Predial de S. João da Pesqueira sob o nº 00000000000 e não sob o nº 00000000000, o que foi deferido, determinando-se, nessa sequência, a correcção da al. D) da Especificação por forma que onde consta o nº 00000000000 passasse a constar o n° 00000000000 - cfr. fls 683 a 685;

- Requereu, ainda, a A. o que designou por ampliação do pedido - e que se considerou ser uma alteração -, em termos de melhor identificar o prédio cujo reconhecimento do direito de propriedade é peticionado pela A, com a menção ao número da respectiva descrição na Conservatória do Registo Predial, passando o teor da al. a) do petitório a ser a seguinte: «A reconhecerem à autora o direito de propriedade sobre a parcela de terreno para construção urbana identificada no antecedente artigo 1°, inscrita na respectiva matriz predial sob o art. 1261° e descrita na Conservatória do Registo Predial de S. João da Pesqueira sob o nº 00000000000.» - cfr. fls 685.

Foi decidida a matéria de facto do questionário, tendo sido eliminada a alínea A) da especificação, pela forma que do despacho junto de fls 706 a 715 consta.

Foi proferida a sentença que julgou a acção improcedente e parcialmente procedente a reconvenção, nela se decidindo:

a) Absolver os R. dos pedidos formulados pela A.

b) Condenar a A./reconvinda a reconhecer que os RR./reconvintes são proprietários e legítimos possuidores do prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Ervedosa do Douro sob o art. 542º e descrito na CRP de S. João da Pesqueira sob o nº 000000000000;

c) Determinar o cancelamento na CR Predial de S. João da Pesqueira da descrição predial nº 00000000000 e a inscrição a favor da A. resultante da Ap. 01, de 24/08/93;

d) Absolver a A./reconvinda do demais pedido pelos RR./reconvintes.

Inconformada, veio a autora interpor, sem êxito, recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto.

De novo irresignada, veio pedir revista para este Supremo Tribunal de Justiça, formulando, na sua alegação, as seguintes conclusões:

                1ª - A A./Apelante, por escritura de compra e venda celebrada em 15.07.1991, adquiriu a GG e mulher um imóvel descrito na Conservatória o Registo Predial de São João da Pesqueira sob o nº 00000000000, como sendo um prédio composto de parcela de terreno para construção urbana, com a área de 1250 m2, sito no Lugar da ........., freguesia de Ervedosa do Douro, concelho de São João da Pesqueira, que confronta de norte com AA, do sul com EE, do nascente com FF, mostrando-se ai inscrita a sua aquisição a seu favor sob a cota G 2, ap. 01, de 24/08/93;

                2ª – A apelante a partir de 1995, vem pagando os impostos e contribuições respeitantes aos prédios inscritos na matriz predial urbana da freguesia de Ervedosa do Douro, sob o artigo 1261;

                3ª - Os RR/Apelados, por escritura pública outorgada em 21.12.1992, adquiriram ao Banco Português do Atlântico, S.A. um prédio inscrito na matriz predial rústica de São João da Pesqueira sob o artigo 542°, composto de terra de pastagem sito no lugar da ........, freguesia de Ervedosa do Douro, com a área de 1000 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial de São João da Pesqueira sob o n°. 000000000000, mostrando-se inscrita a sua aquisição a seu favor pela cota G -00000000 de 4/2/93;

                4ª - O prédio referido em 2ª fora penhorado em 12/4/88, no âmbito do processo de execução ordinária nº 126, da 1ª Secção do 3° Juízo Cível do Porto, em que figuravam como exequente o Banco Português do Atlântico e como executados GG e mulher II, penhora que foi notificada aos aí executados, e registada em 6 de Julho de 1988;

                5ª - Resultou provado que o artigo matricial 1261 (com inscrição registral a favor da A. por via de aquisição derivada) e o artigo matricial 542 (com inscrição registral a favor dos RR. por via de aquisição derivada) duplicam uma mesma realidade física, ou seja, uma parcela de terreno com cerca de 1.000 m2, sito no lugar da ......... ou Bairro de São Vicente, na freguesia de Ervedosa do Douro, concelho de São João da Pesqueira;

                6ª - Peticionava a A/apelante o reconhecimento do direito de propriedade sobre o urbano identificado sob o antecedente ponto 1° e, consequentemente, que os RR. procedessem à demolição da edificação aí implantada, indemnizando-a pelos prejuízos decorrentes da devassa e ocupação abusiva do seu identificado prédio;

                7ª - Os RR/Reconvintes, peticionavam a improcedência dos pedidos formulados pela A/Apelante e, no essencial, que lhes fosse reconhecido o direito de propriedade do prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Ervedosa do Douro sob o art. 542°e descrito na C.R.P. de São João da Pesqueira sob o nº. 000000000000;

                8ª - O douto acórdão entendeu que a A/Recorrente, por um lado, não pode beneficiar da presunção registal (art. 7° do C.R.P.) e da eficácia do registo em relação a terceiros (art. 5° do C.R.P.) e, por outro, que efectuou uma aquisição "a non domino" (art. 892°, C.C.);

                9ª - Considera o douto acórdão, a tal respeito, que à data em que foi efectuada à A. a venda do prédio reclamado (art. 1261) - 15.07.1991 - já o mesmo não era pertença do vendedor (GG), uma vez que havia sido adquirido, enquanto inscrito na matriz sob o art. 542, pelo B.P.A. por adjudicação em venda judicial, com prévia penhora, em 23.02.1989;

                10ª- Assim, o negócio celebrado pela A. configura uma venda de coisa alheia (art. 892° do C.C.), ineficaz face aos RR. que, por sua vez, o adquiriram (art. 542) em 21.12.1992 ao B.PA;

                11ª- Razão, pela qual, embora assente em fundamento diverso, manteve a douta decisão de 1ª instância, que julgou totalmente improcedente a acção e parcialmente provada a reconvenção, isto nos termos aduzidos no antecedente ponto 7°, e ordenou o cancelamento na C.R. Predial de São da Pesqueira, da descrição predial n° 00000000000 e a inscrição a favor da A. resultante da Ap. 01, de 24/08/93;

                12ª- Afigura-se-nos, salvo o devido respeito, que dos factos provados resulta que o "domínio" da realidade física transmitida (parcela de terreno para construção) à A. verificava-se à data dos sucessivos actos de desanexação e tradição, ou seja, operou­-se a "traditio" (tradição material) da parcela de terreno para construção do II para o GG e deste para a A.AA;

                13ª- Ou seja, a transmissão foi acompanhada da tradição material da parcela de terreno, no âmbito da aquisição derivada (compra e venda), pelo que se consubstancia numa venda "a dominum"- cf. art. 1263°, alínea b) do C.C.;

                14ª- No entanto, aquando da venda do BPA aos RR/Reconvintes (21.12.1992) das terras de pastagens não resulta provado, nem sequer foi alegado pelos demandados, que a realidade física existia na titularidade do transmitente, ou seja, não resulta a "traditio";

                15ª- Ora, a simples aquisição derivada invocada pelos RR. não é cabalmente certificativa da recepção do direito alienado, visto o princípio nemo plus iuris in alium transferre potest quam ipse habet;

                16ª- Logo, apenas é possível falar de uma venda no âmbito dos presentes autos, e essa foi a efectuada à A. AA (aquisição derivada, sendo que o direito transmitido existia no transferente à data da "traditio", que deixou de o ser, transmitindo materialmente a parcela de terra para construção - 00000000000/GG/AA - e que a A. AA fez registar na competente Conservatória sob a cota G-2, isto em 24 de Agosto de 1993;

                17ª- Beneficia, assim, a A. da presunção derivada do registo (art. 7° CRP), ou seja o registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, neste caso a A. AA;

                18ª- Tal presunção não é inutilizada pela duplicação matricial e registal provocada pelas terras de pastagem (art. 542 descrito na Conservatória do Registo Predial de São João da Pesqueira sob o n° 000000000);

                19ª- Provada a compra (aquisição derivada) e beneficiando da presunção do registo, impunha-se que à A. fosse reconhecido o direito de propriedade peticionado, e, consequentemente, fosse ordenada a demolição da construção edificada pelos RR/Reconvintes.

                20ª- Finalmente, pelos razões vertidas nas presentes conclusões, impunha-se que a reconvenção fosse julgada improcedente e, além do mais, não é devido o cancelamento na C.R. Predial de São da Pesqueira, da descrição predial nº 000000000 e a inscrição a favor da A/Apelante resultante da Ap. 01, de 24/08/93;

                21ª- Ao não decidir no sentido pugnado, o douto acórdão em mérito fez uma incorrecta interpretação dos factos e consequente aplicação da lei, resultando violado, por erro de interpretação e aplicação, o preceituado nos arts 874°, 879°, 892°, 1256°, 1263°, al. b), todas as citadas disposições do C.C. e, ainda, os arts 5° e 7° do C.R.P.;

                22ª- Concluindo, na procedência do presente recurso, deve a acção ser julgada integralmente procedente, por provada, com todas as consequências legais;

                23ª- E, improcedente, por não provada, a reconvenção, tudo com as demais consequências legais.

Os recorridos BB e mulher contra-alegaram, pugnando, caso o recuso da autora seja admitido, pela manutenção do decidido.

Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

Vem dado com PROVADO:

                a) Correspondia à al. A) dos Factos Assentes, entretanto eliminada.

                b) Encontra-se inscrita na matriz predial urbana de São João da Pesqueira, sob o artigo 1261, uma parcela de terreno destinada a construção urbana, sita no Lugar da ......... ou Bairro de S. Vicente da freguesia de Ervedosa do Douro, a confrontar de Norte com AA, de Sul com EE, de Nascente com FF e de Poente com rua pública - alínea B) da especificação;

                c) Por escritura pública outorgada no dia 15/7/91, no Primeiro Cartório Notarial de Matosinhos, GG e mulher II declararam vender à Autora, nesse acto representada por KK - que declarou aceitar a venda, os seguintes prédios:

                - Uma parcela de terreno para construção urbana, com a área de 1250 m2, sita no Lugar da ........., freguesia de Ervedosa do Douro, concelho de São João da Pesqueira, que confronta de norte com AA, do sul com EE, do nascente com FF, omissa à matriz, descrita na Conservatória do Registo Predial de São João da Pesqueira sob o nº 00000000000.

                - Uma parcela de terreno para construção urbana, com 400 m2, sita no lugar da ........., freguesia de Ervedosa do Douro, que confronta de norte com caminho, do sul com AA, do nascente com FF e do poente com caminho, omissa à matriz, descrita na Conservatória do Registo Predial de São João da Pesqueira sob o nº 0000000000 - alínea C) da Especificação;

                d) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de São João da Pesqueira sob o n° 00000000000, um prédio composto de parcela de terreno para construção urbana, com a área de 1250 m2, sita no Lugar da ........., freguesia de Ervedosa do Douro, concelho de São João da Pesqueira, que confronta de norte com AA, do sul com EE, do nascente com FF, mostrando-se aí inscrita a sua aquisição a favor da Autora sob a cota G - 2, ap. 01, de 24/08/93 - alínea D) da Especificação, com a rectificação determinada no despacho de fls. 683 a 685;

                e) Por escritura pública outorgada no dia 16/10/71, no Cartório Notarial de São João da Pesqueira, JJ e mulher LL declararam: "Ser donos de um prédio rústico composto de terra com vinha, sito no Açougue ou ........., limite da freguesia de Ervedosa do Douro, a confrontar de nascente com MM, de Poente com herdeiros de NN e Outros, de nascente com caminho público e de sul com OO e herdeiros de PP, inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo 1972 e não descrito na Conservatória do Registo Predial.

                Que deste prédio destacam duas parcelas de terreno que se destinam a construção urbana, assim identificadas:

                - Uma parcela com a área de 1250 m2, situada a norte do referido prédio, que fica a confrontar de nascente com Sebastião Branco, medindo deste lado quarenta metros, de poente com caminho particular, medindo deste lado quarenta e quatro metros em linha recta, de norte com caminho público e de sul com o restante prédio dos vendedores;

                - Outra parcela com a área de 400 m2, situada a sul do mencionado prédio, a confrontar de nascente com Sebastião Branco, medindo deste lado vinte metros, de poente com caminho particular, de norte com terreno dos vendedores, medindo deste lado vinte e dois metros, e de sul com OO".

                Mais declararam vender essas parcelas, pelo preço de sete mil escudos, a GG, que declarou aceitar a venda. - alínea E) da Especificação;

                f) Encontra-se inscrito na matriz predial rústica de São João da Pesqueira sob o artigo 542 um prédio composto de terra de pastagem, sito no Bairro de S. Vicente, freguesia de Ervedosa do Douro, com a área de 1000 m2, a confrontar de norte e poente com caminho, de nascente com HH e de sul com QQ - alínea F) da Especificação;

                g) Por escritura pública outorgada em 21/12/1992 no Primeiro Cartório Notarial do Porto, RR e SS, na qualidade de procuradores, em representação do Banco Português do Atlântico, S.A., declararam vender ao Réu/Reconvinte BB, pelo preço de 400.000$00, o prédio referido em f), tendo este declarado aceitar a venda. - alínea G) da Especificação;

                h) O prédio referido em f) e g) encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de São João da Pesqueira sob o nº 000000000000, mostrando-se inscrita a sua aquisição a favor do Réu Reconvinte BB, pela cota G - 0000000 de 4/2/93 - alínea H) da Especificação;

                i) O prédio referido em f) e g) fora penhorado em 12/4/88, no âmbito do processo de execução ordinária nº 126, da 1ª Secção do 3° Juízo Cível do Porto, em que figuravam como exequente o Banco Português do Atlântico e como executados GG e mulher II, penhora que foi notificada aos aí executados, e registada em 6 de Julho de 1988 - alínea I) da Especificação;

                j) O Banco Português do Atlântico arrematou o prédio referido em f) e g), em hasta pública realizada no dia 23/2/1989, no Tribunal Judicial de São João da Pesqueira, registando posteriormente essa aquisição a seu favor em 23 de Março de 1990 - alínea J) da Especificação;

                l) No âmbito do processo de execução ordinária que correu termos pela 1ª Secção do 5° Juízo Cível do Porto sob o n°. 7730, em que figuraram como exequente a União de Bancos Portugueses e como executados GG e mulher, foram penhorados em 4 de Fevereiro de 1991 os prédios referidos em c) e f), penhoras essas que foram posteriormente registadas em 23/5/91 – al. L) da especificação;

          

                m) Nesse mesmo processo, os prédios referidos em b) e c) foram arrematados em hasta pública, realizada em 14 de Julho de 1992, pelo gestor de negócios da exequente União de Bancos Portugueses, apresentando-se nesse acto a remir os ditos prédios TT - na qualidade de filho dos aí executados - os quais, também nesse acto, lhe foram adjudicados - alínea M) da Especificação;

                n) No ano de 1984, a Repartição de Finanças de São João da Pesqueira procedeu a uma avaliação geral do concelho, da qual resultou a inscrição no referido artigo 542° na matriz rústica da freguesia de Ervedosa do Douro, como sito no lugar de ........ - alínea N) da Especificação;

                o) GG requereu junto da Repartição de Finanças de São João da Pesqueira, em 24/8/90, a inscrição dos artigos urbanos 1261 ° e 1262° da freguesia de Ervedosa do Douro - ­alínea O) da Especificação;

                p) Pelo menos, a partir de 1995, a A. vem pagando os impostos e contribuições respeitantes aos prédios inscritos na matriz predial urbana da freguesia de Ervedosa do Douro, sob os artigos 1261 ° e 1262° - resposta ao ponto 6° do questionário;

                q) Em 23/08/ 1993 os Réus andavam a construir uma casa de habitação na parcela de terreno correspondente ao prédio inscrito na matriz predial urbana da freguesia de Ervedosa do Douro, sob o artigo 1261°, sendo que tal prédio se encontra também inscrito na matriz predial rústica daquela mesma freguesia sob o artigo 542.º - resposta ao ponto 10° do questionário;

                r) À data indicada na al. q), a referida casa encontrava-se em construção ao nível do rés-do-chão - resposta ao ponto 11 ° do questionário;

                s) Preparando-se os Réus na altura para implantar um primeiro andar na dita construção - resposta ao ponto 12° do questionário;

                t) A parcela de terreno onde os Réus andavam a edificar a aludida casa tem a área de 998,48 m2 - resposta ao ponto 30 do questionário;

                u) A parcela de terreno, onde foi edificada a dita casa, mencionadas na al. q), confronta do norte e poente com caminho, do nascente com HH e do sul com EE - resposta ao ponto 14° do questionário;

                v) Os RR. vêm fruindo o prédio inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Ervedosa do Douro, sob o artigo 542°, desde a data em que o compraram, mediante a escritura pública mencionada na al. g), o que fazem à vista de toda a gente - resposta aos pontos 15° e 16° do questionário;

                x) Ocupando-o e pagando as respectivas contribuições e impostos - ­resposta ao ponto 17º do questionário;

                z) Na convicção de que só a eles lhe pertencia e só a eles - resposta ao ponto 19° do questionário;

                aa) O prédio referido nas als f) e g) derivou do prédio rústico descrito na aI. e), inscrito na matriz predial rústica da freguesia de Ervedosa do Douro sob o artigo 1972°, sendo que o prédio mencionado nas als f) e g), inscrito na matriz predial rústica da referida freguesia sob o artigo 542°, encontra-se também inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia, sob o artigo 1261° - resposta ao ponto 20° do questionário;

                bb) Os RR mandaram fazer um projecto para a edificação de uma casa de habitação no prédio referido nas als f) e g) - resposta ao ponto 22° do questionário;

                cc) Os RR iniciaram a construção da casa no prédio referido nas als f) e g), despendendo em materiais e mão-de-obra quantia não apurada, sendo que tal casa já se mostra construída e que os RR nela habitam - resposta ao ponto 23° do questionário;

                dd) Os RR contraíram empréstimo junto da Caixa Geral de Depósitos, de montante não apurado, para construção da casa mencionada - resposta ao ponto 24° do questionário;

                ee) Os Réus pararam a construção da obra em 23 de Setembro de 1993, sendo que tal se verificou em cumprimento da decisão proferida nos autos de embargo de obra nova apensos e que em 29/03/96 foi levantado o embargo decretado, tendo os RR prosseguido com a construção da casa, que viriam a concluir - resposta ao ponto 25° do questionário;

                ff) Durante o tempo em que a obra esteve parada o R. marido sofreu incómodos e preocupações - resposta ao ponto 26° do questionário.

                As conclusões da alegação dos recorrentes, como é bem sabido, delimitam o objecto do recurso – arts 684º, nº 3 e 690º, nº 1 e 4 do CPC, bem como jurisprudência firme deste Supremo Tribunal.

Sendo, pois, as questões atrás enunciadas e que pela recorrente nos são colocadas que cumpre apreciar e decidir.

As quais se podem resumir às seguintes:

1ª – A da transmissão para a autora da parcela de terreno para construção, acompanhada da tradição material da mesma, no âmbito da aquisição derivada (compra e venda), consubstanciar uma venda a dominum (art. 1263.º, al. b) do CC).

2ª – A presunção, por via do registo a favor da autora, de que o direito existe e pertence ao titular inscrito.

3ª – A do reconhecimento do direito de propriedade peticionado, com a improcedência do pedido reconvencional.

                Vejamos:

                Entendeu o acórdão recorrido que, tendo ficado amplamente demonstrado que estamos perante a mesma realidade física, sendo um mesmo o prédio de que autora e réus se arrogam donos, apesar da duplicação de inscrições matriciais e de registos prediais – artigos 1261.º e 542.º da matriz e inscrições prediais de aquisição sob ap. de 24/8/93 e de 4/2/93, a favor da autora e réus, respectivamente – e sendo certo que os invocados direitos de propriedade, por banda de cada uma das partes, provêm, no fundo do mesmo titular – a autora adquiriu o prédio, por compra, a GG e os réus adquiriram o prédio por compra ao BPA que, por seu turno o havia arrematado em execução instaurada contra aqueles vendedores -  não pode ser invocada a presunção derivada dos respectivos registos, que, sendo formalmente distintos, retratam, como se vem dizendo, a mesma realidade física. Registos esses que conduziriam a um resultado incompatível: autora e réus seriam titulares exclusivos do direito de propriedade sobre o mesmo prédio. E dai que se considerasse que as presunções derivadas do registo por ambas as partes se anulassem uma à outra. Prevalecendo, para a decisão da questão, as regras de direito substantivo.

                Sustenta a autora que assim não sucede, que tal duplicação, que o BPA desconhecia – sendo para ele o prédio descrito sob o nº 00000000 e o art. 542.º realidades distintas, não se tendo operado qualquer traditio por via da arrematação judicial – não inutiliza a presunção derivada do registo, não bastando aos réus alegar a aquisição derivada, competindo-lhes, antes, provar que o direito transmitido existia na titularidade do BPA (transmitente) e que este detinha a posse da coisa titulada que por tradição material passou a possuir.

                Ora, como é bem sabido, este Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, “ … cuja função própria e normal é restabelecer o império da lei, corrigindo os erros de interpretação e de aplicação de normas jurídicas cometidos pela Relação ou pelo Tribunal de 1ª instância …”, não conhece em regra de questões de facto, cuja fixação cabe, em princípio, às instâncias.

                Não podendo, assim, o Supremo sindicar a decisão de facto proferida pela Relação, a não ser no caso excepcional do art. 722.º, nº 2 do CPC, isto é, se houver ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (art. 729.º, nºs 1 e 2 do mesmo diploma legal)[1].

                Casos estes que aqui se não verificam.

                Confinando-se, pois, a competência do Supremo à matéria de direito, não podendo o mesmo, em princípio, de se ocupar de matéria de facto (art. 26.º da LOFTJ). Tal correspondendo, de algum modo, à tradição francesa que considera que o Tribunal Supremo não constitui um 3.º grau de jurisdição, competindo-lhe apenas o respeito da lei[2].

                Assim, tem que se dar como assente que o prédio questionado por autora e réus é o mesmo, é a mesma realidade física, tendo recaído sobre ele duplicação de inscrições matriciais e de registos prediais (descrições e inscrições).

                Ora após enumerar as suas afinidades com o decidido no acórdão recorrido, vem a recorrente dizer-nos que discorda do mesmo na parte em que ali se assentou não poder beneficiar da presunção derivada do registo (art. 7.º do CdRP[3]) e da eficácia deste em relação a terceiros (art. 5.º do mesmo diploma legal), bem como da parte em que considerou verificar-se, em relação a ela, uma aquisição a non domino.

                Tendo, na realidade, o acórdão recorrido considerado que o negócio que a autora celebrou, em 15/7/91, quanto ao prédio reclamado, inscrito na matriz sob o art. 1261.º, configura uma venda de coisa alheia (art. 892.º do CC[4]), já que o mesmo não era então pertença do vendedor GG, mas sim, embora enquanto inscrito na matriz sob o art. 542.º, do BPA, a quem tinha sido adjudicado em venda judicial, com prévia penhora em 23/2/89. Tendo os RR adquirido tal prédio (o art. 542.º) do vendedor BPA, em 21/12/92.

                Mas, sustenta a recorrente, da factualidade constante dos autos resulta que o domínio da realidade física transmitida (parcela de terreno para construção) à A. verificava-se à data dos sucessivos actos de desanexação e tradição (que melhor descreve), coincidindo a aquisição derivada com a recepção do direito alienado, ou seja, tendo-se operado a tradição material da parcela de terreno para construção do JJ para o GG – através da venda que aquele, em 16/10/71 fez a este – e deste mesmo para a autora, que lhe adquiriu a dita parcela em 15/7/91.

                Tendo-se dado a aquisição da sua posse, no âmbito da aquisição derivada, por via da tradição material da parcela (art. 1263.º, al. b)).

                Ora, temos também como acertado que, face à duplicação de registos prediais sobre o mesmo prédio, não valem, desde logo, quer as regras da eficácia do registo em relação a terceiros (art. 5.º do CdRP), quer as de presunção da titularidade do direito (art. 7.º do mesmo diploma legal). Nenhuma das partes podendo delas beneficiar.

                Com efeito, devido à especial eficácia dos direitos reais perante terceiros, torna-se necessário dar publicidade aos mesmos, existindo para tal, no caso dos prédios rústicos e urbanos, o registo predial.

                Destinando-se o mesmo, nos termos do art. 1.º do aludido CdRP, “essencialmente a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário”[5]/[6].

                Daqui resultando a fé pública do registo, devendo o mesmo estar em conformidade com a situação jurídica substantiva do imóvel, permitindo dar a conhecer tal situação.

                Podendo haver casos em que se verifique desconformidade entre a situação substantiva e a situação registal, o que afecta a dita fé pública do registo.

                Tal sucedendo, designadamente, na situação de inexactidão do registo.

                Sucedendo que, relativamente ao conteúdo do registo, há que considerar, em primeiro lugar, a descrição regulada nos arts 79.º e ss do CdRP, que tem por fim a identificação física, económica e fiscal dos prédios, sendo efectuada uma descrição distinta para cada prédio[7].

                Sendo certo que um dos efeitos mais importantes do registo é a atribuição ao seu titular da presunção da titularidade do direito, a qual se corporiza em duas presunções: (i) a de que o direito existe, tal como consta do registo; (ii) a de que pertence, nesses precisos termos, ao titular inscrito (art. 7.º do CdRP)[8].

                Sendo tais presunções ilidíveis (arts 350.º, nº 2 e 3.º, nº 1, al. b), 8.º a contrario e 13.º do CdRP)[9].

                Destinando-se, pois, o registo a facilitar e a conferir segurança ao tráfico imobiliário, garantindo aos interessados que, sobre os bens a que aquele instituto se aplica, não existem outros direitos senão aqueles que o registo documenta e publicita.

                Ora, a falada duplicação dos registos sobre o mesmo prédio, sobre a mesma realidade física, mas incidentes sobre diferentes realidades registais[10], inutilizou a função publicitária daqueles.

                Tendo ambas as partes, dado cumprimento às suas obrigações registais, reportando-se, contudo, a prédios diferentes, mas que, afinal, do mesmo não passavam.

                E, assim, como já se diz no acórdão deste STJ de 21/4/2009[11], a propósito de uma situação semelhante, embora não se coloque uma questão de nulidades de registo, não poderá, sob pena de se frustrarem os princípios estruturantes do registo predial, como a publicidade e a segurança estática e dinâmica[12], qualquer deles beneficiar de inscrições lavradas sobre distintas realidades jurídicas, mas que afinal se reportam à mesma e única (a realidade respeitante ao mesmo prédio e não a prédios diferentes).

                Devendo prevalecer, não as normas registais, mas as de direito substantivo.

                Pois, como também se diz no acórdão recorrido, os registos em apreço, sendo formalmente distintos, retratam uma mesma realidade física, pelo que conduziriam a um resultado incompatível: a autora e o réu marido seriam titulares exclusivos do direito de propriedade sobre esse mesmo prédio.

                                Sendo até ainda certo que, acaso se tratasse de direitos inscritos sobre o mesmo bem, prevaleceria o dos réus, inscrito em primeiro lugar – art. 6.º, nº 1 do CdRP[13].

                Mas, sustenta, ainda, a recorrente: não se tendo operado qualquer “traditio” por via da arrematação judicial, desconhecendo o BPA qualquer duplicação matricial e/ou registal, sendo para ele o prédio descrito sob o nº 000000000 e o art. 542.º realidades distintas, não sendo a simples aquisição derivada pelos réus invocada, certificativa da recepção do direito alienado[14], é apenas possível falar de uma venda no âmbito destes autos, a efectuada à autora (aquisição derivada, existindo o direito transmitido no transferente à data da traditio) pelo dito GG (que havia adquirido o prédio ao JJ), que a mesma autora fez registar na conservatória em 24/8/93.

                Constando na fundamentação do acórdão recorrido, considerando-se que se está perante o mesmo prédio, que havia pertencido ao GG e mulher, e que, na execução contra eles instaurada, foi penhorado[15] e vendido ao BPA[16], em 23/2/89[17], que, à data da venda por aqueles mesmos GG e mulher à autora, em 15/7/91, já aqueles não eram seus donos. Pelo que tal negócio configura uma venda de coisa alheia, que a lei comina com nulidade. Vício este que os réus invocam na sua contestação, bem como o da sua ineficácia.

                E é, na verdade, assim.

                À data em que o GG e mulher declararam vender o prédio – o prédio em questão é o mesmo, tal como decidiram as instâncias – à autora (15/7/91), já o mesmo havia sido arrematado pelo BPA[18] (23/2/89), em execução movida contra o dito GG e mulher.

                Pelo que, pertencendo o terreno ao BPA, o GG e mulher efectuaram uma venda de coisa alheia[19], que o art. 892.º considera nula[20].

                Sendo entendido que, em relação ao verdadeiro titular da coisa, a venda efectuada pelo non dominus constitui res inter alios, sendo, como tal, ineficaz[21].

                Vigorando o preceituado nos arts 892.º e ss se a coisa alheia é vendida como própria[22].

                Não se verificando aqui, como já vimos, uma aquisição tabular a favor da autora, nem beneficiando esta, por outro lado, dos pressupostos da usucapião.

                Sendo certo que, não se pondo aqui em causa o direito de propriedade dos anteriores titulares, GG e mulher, sobre o questionado prédio, dos quais, como se diz no acórdão recorrido, ambas as partes adquiriram – autora, directamente e os réus, mediatamente, por compra efectuada ao BPA que, por seu turno, o havia adquirido, se bem que por arrematação judicial, em execução contra aqueles movida – os réus vêm possuindo o prédio desde que o adquiriram (21/12/92), gozando, assim, da presunção da titularidade do direito (já que não existe a favor de outrem presunção fundada em registo anterior ao início da posse) – art. 1268.º.

                Com efeito, segundo o nosso direito, o facto de alguém – caso não exista outrem que tenha registado a aquisição do direito com data anterior ao início da posse – estar na posse[23] de uma coisa implica que a lei presuma que ele é igualmente titular do direito sobre a mesma, dispensando-o de ter que provar essa titularidade[24].

                Presumindo-se, assim, que, quem está na posse de uma coisa é titular do direito correspondente aos actos que sobre ela pratica.

                Escrevendo, a propósito, Mota Pinto[25]:

                “Esta presunção significa, portanto, que numa acção de reivindicação – uma acção em que se pretende obter a declaração de propriedade de uma coisa e a restituição da coisa ao proprietário – posta pelo proprietário contra o possuidor, este não tem o ónus da prova, cabendo, assim, ao reivindicante esse encargo.

                (…)

                Ora, isto – esta presunção legal estabelecida no art. 1268.º - pode ser muito importante, porque pode ser atribuída a propriedade ao possuidor (…), não propriamente porque o possuidor conseguiu provar que era proprietário, mas antes porque não foi provado que ele o não era.

                Decorre daqui que, numa situação de dúvida, o impasse que esta suscita é superado em termos favoráveis ao possuidor.

                É, aliás, esta doutrina que se exprime na velha máxima latina in pari causa melhor est condictio possidentis (em igualdade de circunstâncias é melhor a posição de possuidor)”.

                                Pelo que, com base na posse, pode o possuidor, em princípio, invocar o direito a cuja imagem possui e defendê-lo em acção petitória do direito.

                Tanto mais que a contraparte não comprovou, pela positiva, os factos concludentes da sua aquisição do direito (art. 342.º).

                Sendo certo que, quem tem a seu favor uma presunção legal, ainda que esta possa ser ilidida por prova em contrário, escusa de provar o facto que a ela conduz (arts 344.º e 350.º)[26].

                Não podendo, assim, por tudo isto, crendo-se que sem necessidade de mais, proceder a pretensão da autora.

                Face a todo o exposto, acorda-se neste Supremo Tribunal de Justiça em se negar a revista, mantendo-se a decisão recorrida.

                Custas pela recorrente.

       Lisboa, 12 de Janeiro de 2012

Serra Baptista (Relator)

Álvaro Rodrigues

Fernando Bento        

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[1] Entre outros, acs do STJ de 15/2/2005 (Sousa Peixoto), Pº 04S3037, de 9/2/06 (Salvador da Costa), Pº 06B152, de 5/12/07 (Mário Pereira), Pº 06S29631 e de 10/11/2011 (Nuno Cameira), Pº 245/08.7TBOHP.C1.S1, in www.dgsi.pt, onde se encontrarão os demais citados sem referência expressa.
[2] Lebre de Freitas, CPC Anotado, vol 3.º, p. 118.
[3] Código do Registo Predial.
[4] Sendo deste diploma legal todas as disposições a seguir citadas sem referência expressa.
[5] Trata-se de uma publicidade jurídica no sentido de que garante a verdade e a legalidade da situação jurídica que dá a conhecer – Seabra Lopes, Direito dos Registos e do Notariado, p. 161
[6] A função geral da publicidade situa-se ao nível da cognoscibilidade, ou seja, dar a conhecer para evitar a clandestinidade. Sendo a mesma um pressuposto da oponibilidade a terceiros. Garantindo o registo a possibilidade, para a pessoa a quem respeita o facto registável, a possibilidade de invocar os efeitos desse facto (que não sejam puramente inter partes), perante terceiros – José Alberto González, A Realidade Registal Predial para Terceiros, p. 87.
[7] É com a descrição que se inicia a história tabular do bem imobiliário, constituindo cada um destes uma unidade registal, sendo o elemento básico sobre o qual se centram todos os direitos susceptíveis de serem inscritos - Seabra Lopes, ob. cit., p. 191.
[8] É a consagração do princípio da presunção da verdade registal ou da exactidão do registo, também chamado da fé pública registal, significando que o que consta do registo é juridicamente existente e consequentemente quem aparece no registo como titular de um direito real sobre um bem imóvel é o seu verdadeiro titular, dele podendo dispor - Seabra Lopes, ob. cit., p. 173.
[9] Menezes Leitão, Direitos Reais, p. 269 e ss, que temos vindo a seguir de perto.
[10] A parcela vendida à A., em 15/7/91, descrita na Conservatória do Registo Predial sob o nº 00000000000, inscrita na matriz sob o art. 1261.º, cuja aquisição foi inscrita em nome da mesma autora, em 24/8/93 é a mesma parcela vendida pelo BPA ao réu marido, em 21/12/92, estando, por seu turno descrita na mesma conservatória sob o nº 000000000000, inscrita na matriz sob o art. 542.º, cuja aquisição foi inscrita a favor do mesmo réu em 4/2/93.
[11] Cons. Sebastião Póvoas (Pº 5/09.6YFLSB.
[12] A segurança estática tem em vista garantir aos respectivos titulares a defesa dos seus direitos, quer através da observância rigorosa dos trâmites legalmente exigidos para sua constituição, transmissão, modificação, oneração ou extinção, quer através do emprego de meios coercivos para repor a legalidade e forçar ao reconhecimento dos mesmos direitos legitimamente titulados. Devendo a segurança registal ser muito mais do que mera segurança estática, na medida em que o registo visa a certeza do tráfico jurídico. Tendo o registo jurídico de bens imobiliários, por objectivo a protecção da aparência jurídica, ou seja, uma segurança dinâmica que se radica e apoia na segurança estática e que consiste em que o subadquirente que, de boa fé, adquira um direito inscrito no registo e que por sua vez o inscreva a seu favor, deve ficar imunizado contra qualquer forma de impugnação do registo anterior a favor do transmitente - Isabel Pereira Mendes, Estudos sobre Registo Predial, p. 47 e 48.
[13] Sendo possível a concorrência de direitos similares, e não sendo admissível que sobre o mesmo prédio possam coexistir direitos da mesma natureza e extensão pertencentes a pessoas diferentes, é necessário definir entre eles a ordem de prioridade. Tendo sido legalmente estabelecido o da prevalência do direito primeiramente inscrito no registo, independentemente da antiguidade do título – Seabra Lopes, ob. cit., p. 175/176.
[14] Não bastando aos réus, diz ainda, invocar a aquisição derivada, cabendo-lhes antes provar que o direito existia na titularidade do BPA e que este detinha a posse da coisa titulada que por tradição material passou a possuir.
[15] O prédio em questão foi penhorado aos executados GG e mulher em 12/4/88, tendo tal penhora sido notificada aos mesmos executados em 6/7/88 – alínea I). Sendo certo que o dito GG, em 24/8/90, requereu a inscrição do art. 1261.º na Repartição de Finanças de S. João da Pesqueira – al. O).
[16] A arrematação era então a forma normal de venda executiva – art. 889.º do CPC à data em vigor e Lebre de Freitas, Acção Executiva (1993), p. 268, reproduzindo a lição de Castro Mendes.
[17] Que registou tal aquisição em 23/3/90 (alínea J)).
[18] A venda em execução constitui uma verdadeira venda, mesmo que o vendedor seja o Estado, embora a aquisição pelo comprador não seja uma aquisição originária, mas derivada em que a propriedade da coisa passa directamente do executado para o comprador – ac. do STJ de 16/11/88, Bol. 381, p. 651.
[19] Existe venda de bens alheios sempre que o vendedor não tenha legitimidade para realizar a venda, como sucede no caso de a coisa lhe não pertencer ou do direito que possuir sobre ela não lhe permitir a sua alienação – Menezes Leitão, Direito das Obrigações, III, p. 104.
[20] Embora se institua uma categoria de nulidade sujeita a um regime especial, que se afasta das regras gerais, não apenas quanto à legitimidade para a sua arguição (art. 286.º do CC), mas também quanto ao regime da obrigação de restituição (art. 289.º do mesmo diploma legal). Sendo profundamente restringida a legitimidade para arguir a nulidade da venda de bens alheios, já que é proibida a sua invocação pela parte que estiver de má fé contra a outra de boa fé, sendo mesmo vedada, em qualquer caso, ao vendedor a sua invocação sempre que o comprador esteja de boa fé – Menezes Leitão, ob. cit., p. 109 e 110.
[21] A. Varela, RLJ Ano 116.º, p. 16.
[22] A. Costa, Direito das Obrigações, p. 474 (2).
[23] Esta posse não será aquela que já produziu a usucapião, mas sim aquela que se reveste dos requisitos inerentes ao seu conceito (titulada, de boa fé, pacífica, contínua, pública e exercida em nome próprio) – assento de 18/5/99, Bol. 487, p. 20.
[24] Menezes Leitão, Direitos Reais, p. 152.
[25] Direitos Reais, p. 204 e 205.
[26] Durval Ferreira, Posse e Usucapião, p. 292 e ss.