Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
14281/21.2T8LSB.P1-A.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
DECISÃO SURPRESA
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
RECLAMAÇÃO
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 07/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ARTº 643 CPC
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Não cabendo, em regra, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação proferido no âmbito de procedimentos cautelares, a não ser que se verifique qualquer uma das situações referidas nas alíneas a) a d) do nº 2 do art. 629º, do CPC, nas quais o recurso é sempre admissível, não tendo o recorrente invocado, expressamente, como condição de admissibilidade da revista que interpôs, qualquer um desses fundamentos, não é admissível o recurso de revista.

II. Decisão-surpresa não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito ou com a expectativa que possam ter criado quanto à decisão, quer de facto, quer de direito, do Tribunal, a quem tais julgamentos continuam a pertencer em exclusividade. Não se podendo falar de surpresa quando os mesmos devam ser conhecidos como viáveis, como possíveis.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, SEGUNDA SECÇÃO CÍVEL


I – RELATÓRIO


Redicom – Sistemas Informáticos, Lda. intentou contra Ubiquity Technology, Lda. procedimento cautelar não especificado requerendo que seja ser ordenado à requerida:

a) a entrega, de imediato, à requerente, quer em formato físico, quer em formato digital, toda a documentação técnica relativamente às plataformas MEDI-SIOP, SIISPA/BIOSSISPA, JURISDATA e SIGEP/ANI, que incluiu os códigos fonte;

b) a entrega neste tribunal e à ordem dos presentes autos do suporte digital de toda a documentação referida na alínea anterior;

c) que efectue todas as operações que sejam necessárias para que a requerente passe a ter o controlo total e integral das plataformas informáticas MEDI-SIOP, JURISDATA, SIISPA/BIOSIISPA E SIGEP/ANI;

d) a entrega à requerente da cópia das bases de dados constantes das aludidas plataformas que tenha em seu poder;

e) que se abstenha de praticar qualquer conduta que possa causar danos à requerente e aos clientes da mesma, nomeadamente através da suspensão, alteração, utilização ou comercialização das plataformas MEDI-SIOP, JURISDATA, SIISPA/BIOSIISPA E SIGEP/ANI;

f) a condenação da requerida a pagar uma sanção pecuniária compulsória nunca inferior a € 30.000,00 diários, pelo não cumprimento das providências que vierem a ser decretadas;


Produzida a prova foi proferida decisão a julgar parcialmente procedente o procedimento cautelar e, em consequência:

a) determinar que a requerida proceda à entrega à requerente. quer em formato físico, quer em formato digital, toda a documentação técnica relativamente às plataformas MEDI-SIOP, SIISPA/BIOSSISPA, JURISDATA e SIGEP/ANI, o que incluiu os códigos fonte, a que alude no facto 13º da presente decisão, com exclusão dos elementos identificados no facto 14º;

b) determinar a entrega, pela requerida e à ordem dos presentes autos, do suporte digital de toda a documentação referida na alínea anterior;

c) Determinar que tal entrega terá lugar na condição de a requerente prestar caução, no valor de € 610.833,62, no prazo de dez dias, e pelo meio que no respectivo apenso venha a ser considerado idóneo;

d) determinar que a entrega ordenada nas alíneas a) e b) tenha lugar após a efectiva prestação da caução identificada na alínea anterior;

e) determinar que a requerida entregue à requerente cópia das bases de dados constantes das aludidas plataformas que tenha em seu poder;

f) ordenar à requerida que se abstenha de praticar qualquer conduta que possa causar danos à requerente e aos clientes da mesma, nomeadamente através da suspensão, alteração, utilização ou comercialização das plataformas MEDI-SIOP, JURISDATA, SIISPA/BIOSIISPA E SIGEP/ANI;

g) condenar a requerida no pagamento de uma sanção pecuniária compulsória no valor de € 1.500,00 diários, pelo não cumprimento das providências decretadas.


*


Inconformada com a sentença, na parte em que foi condicionada a entrega do requerido no presente procedimento cautelar à prestação de uma caução no valor de € 610.833,62, recorre a Requerente, rematando as alegações com as respectivas conclusões.

Por seu lado, a Requerida também interpôs recurso (no mesmo arguindo a nulidade da decisão recorrida, nos termos do artigo 615.º/1 alínea c) CPCivil, a qual foi conhecida pela Relação), rematando as alegações com as respectivas conclusões.


*


A Relação, em acórdão, proferiu a seguinte

“Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em,

1. Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela Requerente, revogando a decisão nos segmentos contidos nas alíneas:

“c) determinar que tal entrega terá lugar na condição de a requerente prestar caução, no valor de € 610.833,62, no prazo de dez dias, e pelo meio que no respectivo apenso venha a ser considerado idóneo;

d) determinar que a entrega ordenada nas alíneas a) e b) tenha lugar após a efectiva prestação da caução identificada na alínea anterior;”;


2. Negar provimento ao recurso interposto pela Requerida.


**


De novo inconformada, vem a Requerida UBIQUITY TECHNOLOGY, LDA., “interpor recurso para o SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA, o qual é de revista (artigo 671.º CPC)”, apresentando as respectivas alegações.

A Requerente contra-alegou, tendo ali suscitado a “questão prévia da inadmissibilidade do recurso apresentado”.


O Exmº Relator proferiu, então, o seguinte despacho:

“Vem a requerida requerida interpor recurso de revista para o STJ.

Nos termos do artigo 370.º/2 CPCivil não cabe, em regra, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação proferido no âmbito de procedimentos cautelares.

Salvo se se verificar qualquer uma das situações elencadas nas alíneas a) a d) do n.º 2 do artigo 629.º do mesmo diploma.

Norma que prevê ser o recurso admissível, quando estejam em causa violação das regras de competência absoluta, ofensa de caso julgado, decisão respeitante ao valor da causa, com o fundamento de que o mesmo excede a alçada do tribunal recorrido, decisão proferida contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça e contradição de julgados.

Ora se o n.º 2 do artigo 637.º CPCivil exige que no requerimento de interposição do recurso, o recorrente indique o fundamento específico de recorribilidade, então, basta atentar nas razões aduzidas pela requerida para, facilmente, se constatar que não invoca como condição de admissibilidade do seu recurso qualquer um dos fundamentos que, excepcionalmente, consagram a possibilidade de interposição do recurso.

Donde, decide-se,

- dado que o Acórdão proferido por este tribunal é irrecorrível, não admitir o recurso.

Notifique.”.


*


Notificada deste despacho que não admitiu a revista, a Requerida UBIQUITY TECHNOLOGY, LDA., apresentou reclamação, “nos termos e para os efeitos previstos no número 1 do artigo 643º do C.P.C.”, pedindo seja o recurso admitido (até porque considera que “a interpretação do 370.º, número 2 no sentido de impedir o recurso a este Supremo Tribunal de Justiça e limitando tal possibilidade aos casos em que é sempre admissível recurso viola o direito de defesa e o direito a um processo equitativo orientado para a prossecução e uma justiça material, constitucionalmente consagrados no artigo 20.º da CRP.”).

Respondeu a Reclamada, pugnando pela improcedência da reclamação.

Cumpre apreciar e decidir.


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II. DA (IN)ADMISSIBILIDADE DA REVISTA


1. RECURSO NO ÂMBITO DE PROCEDIMENTOS CAUTELARES

De acordo com o estatuído no art. 370, nº 2, do CPC, não cabe, em regra, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão do Tribunal da Relação proferido no âmbito de procedimentos cautelares, a não ser que se verifique qualquer uma das situações referidas nas alíneas a) a d) do nº 2 do art. 629º, do CPC, nas quais o recurso é sempre admissível, quais sejam, quando esteja em causa violação das regras de competência absoluta, ofensa de caso julgado, decisão respeitante ao valor da causa, com o fundamento de que o mesmo excede a alçada do tribunal recorrido, decisão proferida contra jurisprudência uniformizada do Supremo Tribunal de Justiça e contradição de julgados.


Por sua vez, o n.º 2 do art.º 637.º do CPC exige que, no requerimento de interposição do recurso, o recorrente indique o fundamento específico de recorribilidade.


Ora, em causa está, precisamente, uma decisão prolatada em procedimento cautelar.

Como facilmente se constata, pela leitura das alegações de recurso, a Reclamante não indicou (de todo), no recurso que interpôs, qualquer dos fundamentos de recorribilidade aludidos nas referidas alíneas a) a d) do nº 2 do art. 629º, do CPC, maxime qualquer contradição de julgados – sendo certo que esta contradição, a existir, sempre teria de ser frontal e não apenas implícita ou pressuposta[1], da mesma forma não bastando uma qualquer contradição relativamente a questões laterais ou secundárias. A questão de direito deve apresentar-se, sempre, com natureza essencial para o resultado que foi alcançado em ambas as decisões, sendo irrelevante a que respeitar apenas a alguns argumentos sem valor decisivo ou obter dicta[2]. E essa oposição de julgados só é relevante se se inscrever no plano das próprias decisões em confronto e não apenas entre uma decisão e a fundamentação de outra, ainda que as respetivas fundamentações sejam pertinentes para ajuizar sobre o alcance do julgado[3].


Assim, portanto, sendo, embora, certo que a norma do artº 629º nº2 al. d) CPCiv rege para hipóteses em que se incluem as providências cautelares[4], a verdade, incontornável, é que a recorrente não invocou como condição de admissibilidade da revista que interpôs qualquer um dos fundamentos que, excepcionalmente, consagram a possibilidade de interposição do recurso.

Pelo que o mesmo não podia – como não foi – ser admitido.


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2. DA INVOCADA INCONSTITUCIONALIDADE

Em defesa da sua pretensão de admissibilidade da revista interposta, a reclamante alega que a limitação do recurso ínsita no artº 370.º, nº2 CPC (limitando o recurso, nos procedimentos cautelares, aos casos em que é sempre admissível recurso), viola o direito de defesa e o direito a um processo equitativo (ut artigo 20.º da CRP) e o princípio do contraditório.

Não o cremos.


*


§ Começando pelo alegado princípio do contraditório, o artigo 3.º, n.º 3 do CPC dispõe que o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

E igualmente se prescreve no Preâmbulo do DL 329-A/95 de 12.12, como dimensão do princípio do contraditório, que ele envolve a proibição da prolação de decisões surpresa, não sendo lícito aos tribunais decidir questões de facto ou de direito, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que previamente haja sido facultada às partes a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.

Como salienta ABRANTES GERALDES[5], a alteração do artigo 3.º e, principalmente, o aditamento do nº. 3 teve em vista permitir que a contraditoriedade não seja uma mera referência programática e constitua, efectivamente, uma via tendente a melhor satisfazer os interesses que gravitam na órbita dos tribunais: a boa administração da justiça, a justa composição dos litígios, a eficácia do sistema, a satisfação dos interesses dos cidadãos.

Segundo ABÍLIO NETO[6], o efeito surpresa é inadmissível porque apanha a parte desprevenida, atentando contra o dever de lealdade que deve informar a actividade judiciária.

Porém, a decisão-surpresa não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito ou com a expectativa que possam ter criado quanto à decisão, quer de facto, quer de direito, do Tribunal, a quem tais julgamentos continuam a pertencer em exclusividade. Não se podendo falar de surpresa quando os mesmos devam ser conhecidos como viáveis, como possíveis[7].

Em consonância com o acima exposto, a jurisprudência tem considerado que há decisão-surpresa se o juiz, de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico, envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, surgindo, pois, a sua imprevisibilidade como marca definidora[8].


Ora, in casu, não se vislumbra a prolação de qualquer decisão surpresa, com violação do contraditório. Não se vê, de facto, que em altura alguma dos autos tivesse sido omitido às partes o direito de se pronunciarem sobre o que quer que fosse que nos mesmos tenha sido requerido ou suscitado – o que é extensivo à decisão da Relação que não admitiu a ampliação do âmbito do recurso suscitada pela Requerida nas suas alegações, ampliação essa relativamente à qual – como se fez constar do acórdão da Relação – (igualmente) foi “cumprido o contraditório[9] .

E, como dito, se a ora reclamante não contava com a decisão (de facto e de direito) que veio a ser proferida pelo tribunal no procedimento cautelar, contrariando a mesma as expectativas eventualmente criadas, obviamente que tal nada tem de decisão surpresa nem traduz qualquer violação do contraditório (contraditório este que, como dito, sempre foi assegurado às partes).


*


§ Já relativamente à alegada violação do direito de defesa e direito a um processo equitativo – decorrente da restrição do direito de recurso ínsita no artº 370º, nº2 CPC – , em violação do artº 20º da CRP, diremos, apenas, o seguinte:

Como se diz no Ac. do STJ de 24.5.2022 (Catarina Serra - proc. 20464/95.1TVLSB.L1-A.S1), “o direito ao recurso não é um direito absoluto ou irrestrito, sendo objecto de diversas restrições justificadas. É o próprio Tribunal Constitucional que o afirma, esclarecendo que “a Constituição, maxime, o direito de acesso aos tribunais, não impõe ao legislador ordinário que garanta sempre aos interessados o acesso a diferentes graus de jurisdição para defesa dos seus direitos[10], e que “o legislador ordinário tem liberdade para alterar as regras sobre a recorribilidade das decisões judiciais, aí se incluindo a consagração, ou não, da existência dos recursos, conquanto, como tem sustentado parte da doutrina […] não suprima em bloco ou limite de tal sorte o direito de recorrer de modo a, na prática, inviabilizar a totalidade ou grande maioria das impugnações das decisões judiciais, ou, ainda, que proceda a uma intolerável e arbitrária redução do direito ao recurso […][11].


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III. DECISÃO

Pelo exposto, indefere-se a reclamação, confirmando-se a decisão reclamada.


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Custas do incidente pela Reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 2 UC.

Lisboa, 13 de julho de 2022


Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)

Vieira e Cunha (Juiz Conselheiro - 1º adjunto)

Ana Paula Lobo (Juíza Conselheira - 2º Adjunto)

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[1] Cfr. Acórdãos do STJ, de 20.07.2017 (processo nº 755/13.2TVLSB.L1.S1-A), acessível em www.dgsi.pt; de 25.05.2017 (processo nº 1738/04.PTBO.P1.S1-A); 28.01.2016 (processo nº 291/1995.L1.S1); de 13.10.2016 (processo nº 2276/10.6TVLSB.L1.S1-A); de 26.05.2015 ( processo nº 227/07.OTBOFR.C2-S1-A); de 20.3.2014 (processo nº 1933/09.4TBPFR.P1.S1), todos com sumário em www.stj.pt); e de 4.07.2013 (processo nº 2625/09.0TVLSB.L1.S1-A), acessível em www.dgsi.pt.
[2] Cfr. Abrantes Geraldes, in, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., pág. 59.
[3] AC. do STJ, de 17/02/2009 (processo nº 08A3761 JSTJ000), in CJSTJ, Tomo I, p. 102 e disponível na Internet http://www.dgsi. pt/jstj.
[4] Ver Ac. S.T.J. 11/2/2020 Col.I/68 (Manso Raínho).
[5] Temas da Reforma do Processo Civil, I, 2ª ed., pág. 79.
[6] CPC Anotado, 22ª ed., pág. 60.
[7] Ac. do STJ de 29.09.98, BMJ-479-412.
[8] Neste sentido, ver, por todos, os Acs. do STJ de 04.06.09 e de 27.09.11, em www.dgsi.pt.
[9] Como bem diz a Reclamada, a ampliação do objeto de recurso suscitada pela recorrente, ora reclamante, traduz-se, assim, como decidido numa mera impugnação autónoma e intempestiva da matéria de facto não admitida por lei
Diz-se, e bem, no Ac. da Relação do Porto, de 26-04-2021 (Proc. n.º 8512/17.0T8VNG.P1 – Jorge Seabra), in www.dgi.pt.: “V - A parte vencida na sentença (ainda que apenas parcialmente) apenas pode obter a alteração da sentença na parte em que a mesma lhe é desfavorável através da interposição de recurso (autónomo ou subordinado) e não através do expediente de ampliação do objecto do recurso, sendo que essa ampliação, tal como configurada no artigo 636º, n.ºs 1 e 2 do CPC, não se destina ao atingimento daquele resultado.”.
[10] Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 431/02, de 22.10.2002.
[11] Cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 100/99, de 10.02.1999, cuja doutrina foi confirmada, mais recentemente, por exemplo, pelo Acórdão n.º 657/2013, de 8.10.2013.