Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P912
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NEVES RIBEIRO
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
ACTO MÉDICO
NEXO DE CAUSALIDADE
CULPA
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
ÓNUS DA PROVA
MÉDICO
Nº do Documento: SJ200305220009123
Data do Acordão: 05/22/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL PORTO
Processo no Tribunal Recurso: 961/02
Data: 10/15/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário :
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I
Razão da revista

1. No 6º Juízo Cível do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, A intentou contra B acção, com processo ordinário, pedindo a condenação deste a pagar-lhe a quantia de 14.242.190$00, acrescida de juros legais, desde a citação, com o fundamento de que, tendo contratado com o Réu a prestação de serviços de saúde, que indica, este não cumpriu a obrigação que sobre ele impendia de actuar com perícia, prudência e atenção e ter sido negligente na sua actuação, assim lhe causando danos, que quantifica, e cujo pagamento reclama.

2. O Réu contestou.
Na replica, o Autor requereu a intervenção principal do Hospital de S. João do Porto, a qual foi admitida.

3. A sentença absolveu do pedido, quer o Réu, quer o interveniente Hospital S. João.

4. Após algum percurso processual que não releva agora e que determinou a baixa do processo à primeira instância para devida fundamentação da matéria de facto - fls. 262 a 267 verso - veio a Autora recorrer, pedindo a revogação da sentença, batendo-se para que a acção ser julgada procedente.

5. A Relação, para o que aqui é útil, decidiu julgar improcedente a apelação, por, no essencial, não se ter feito prova de culpa do médico, quanto ao incumprimento defeituoso da sua obrigação, nem da relação de causalidade entre a conduta ( ou a omissão) e o dano (fls. 295/296).
II
Objecto da revista

O objecto da revista é traçado pelas conclusões da recorrente/autora que se desenvolvem do modo que segue:
1. O acórdão recorrido não conheceu da questão que lhe foi suscitada, da desconformidade da prova produzida com as respostas aos quesitos postos à sua reapreciação.
2. Tal facto constitui nulidade, nos termos do 668°, n° 1, al. d), do Cód.
Proc. Civil. Porém:
3. Tal nulidade já não se verificará se se entender que a omissão de pronúncia resulta do facto do Tribunal a quo considerar que o sentido reclamado para a resposta aos quesitos resulta da globalidade da matéria assente.
4. Deverá ter-se como desenvolvimento permitido ao Tribunal da Relação (e vinculante para o STJ), da matéria de facto dada como assente, o nexo de causalidade entre os danos e as intervenções cirúrgicas, nos seguintes termos:
- «podendo embora presumir-se mesmo que as lesões sofridas pela autora/apelante resultaram das intervenções cirúrgicas a que foi submetida" (fls. 15 v do acórdão recorrido) e - apenas se terá provado a relação entre as intervenções cirúrgicas e o dano» (fls. 16 do acórdão recorrido) e
«Isto posto:
a) na perspectiva dos danos causados por uma actividade de risco:
- a intervenção cirúrgica à coluna cervical é, pela natureza dos meios utilizados, uma actividade de risco;
- nos termos do art. 493°, n° 2, do Código Civil.
quem causar dano a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir»..
b) na perspectiva da responsabilidade contratual:
- tendo o réu aconselhado a A. a ser operada (com prognóstico sem restrições) e tendo esta aceite fazê-lo sobre a direcção do réu, estabeleceu-se um contrato de prestação de serviços clínicos, incumbindo ao réu, nos termos do art. 799° do Cód. Civil " provar que o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua";
5. Num e noutro caso, o recorrido não provou ter empregado todas Assunto: providências exigidas pelas circunstâncias, com o fim de prevenir o resultado, nem a ausência de culpa.
6. As intervenções cirúrgicas (a direcção delas pelo Réu e pela chamada), os danos (a hemiplegia e a fístula esofágica e as suas decorrências) e o nexo de causalidade entre ambos, estão provados, nos termos sobreditos.
Concluindo:
Deve o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que julgue a acção provada por procedente, tudo porque:
a) o acórdão recorrido violou o art.º. 668°, n° 1, al. d), do C.P.C. ao não conhecer da impugnação da decisão de facto nos termos suscitados;
b) bem como os artigos 798°, 799° e 800°, n° 1, do Código Civil, ao assimilar cumprimento defeituoso a cumprimento culposo; e
c) não considerou o disposto no art.º 493°, n° 1, do Cód. Civil.
III
Os factos
Vamos indicar apenas os factos (e seu enquadramento) que relevam de efeito útil para o conhecimento das questões jurídicas, tal como adiante vão ser delimitadas ( Parte IV, ponto 1.1.).
1 - Em determinado período da sua vida, a A. sentiu dores na coluna ao nível das cervicais, acompanhadas de tonturas, que se manifestavam, umas e outras de tempos a tempos.
2 - Por indicação do seu médico assistente de Aveiro, B (homónimo do R.), a A. consultou o R., em 25.03.91, que é médico especialista em ortopedia, no Porto, e Professor da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.
3- Nessa consulta, a A. queixou-se de dores no ombro e no braço esquerdo, contínuas, irradiadas até ao punho, de intensidade variável, e de parestesias, nomeadamente formigueiro e adormecimento da mão, e de situação idêntica no lado direito, embora menos violenta.
4 - A A. tinha feito vários tratamentos, com medicação e fisioterapia, sem que apresentasse melhoras sensíveis.
5 - Sofria de gastrite nervosa, que piorava com medicação anti-inflamatória.
6 - Ao exame clínico, a A. mostrava discreta rigidez cervical, com compressão axial positiva, para a região omo-vertebral esquerda, discretas alterações da sensibilidade, irregulares, dor na região do ombro esquerdo (tendão do supra-espinhoso ), sem sinais de paralisia motora.
7 - O RX mostrava sinais de discartrose e sinais evidentes de canal estreito ( sinal de Torg 7.1 em C4-C5).
8 - O TAC revelava sinais intensos de discartrose, particularmente em C4-C5 e C6-C7, com aperto do canal muito acentuado (7.1 em C4-C5 e 7.5 em C6-C7).
9 - Foi então alertada para a necessidade de uma intervenção cirúrgica, dependendo da evolução da doença, a decidir em consultas a realizar duas vezes por ano.
10 - A A. compareceu a consultas nos dias 10.05.91, 29.12.91, 13.08.92 e, por tratamentos, foi apresentando melhorias diversas.
11 - Após um interregno de cerca de 2 anos, a A. voltou à consulta do R. em 04.07.94.
12 - A A. tinha piorado da coluna cervical e mostrava agora sinais evidentes de compressão medulo-radicular, dor omo-vertebral, com irradiação para o punho esquerdo, discretas parestesias, mais persistentes e alargadas, e a esboçar clonus rotuliano à esquerda.
13 - Na consulta seguinte, com o R., em 8 de Maio de 1995, no consultório, no Porto, o R. verificou que a A. tinha piorado progressivamente: Sinais piramidais evidentes (clonus rotuliano esquerdo evidente, com hiper-reflexia nos membros inferiores), notória falta de força do membro superior esquerdo, perturbações parestésicas múltiplas, generalizadas, e o TAC que efectuou confinava o canal estreito cervical, pior do que há 4 anos.
14 - O R., com base na sintomatologia e no relatório de uma tomografia axial computorizada, realizada em 22 de Janeiro de 1991, diagnosticou um estreitamento do canal cervical.
15 - Tendo aconselhado a A. a ser operada, uma vez que, quer pela sua idade, quer pela fase em que a doença se encontrava, a operação proporcionaria um fácil e eficaz restabelecimento.
16 - O R. não pôs qualquer restrição na prognose sobre o resultado dessa intervenção.
17 - Pelo que a A. aceitou o que assim lhe era aconselhado; e as partes acordaram então, em que a intervenção cirúrgica seria feita pelo R. e pela sua equipa, no Hospital da Celestial Ordem Terceira da Trindade, no dia 13 de Junho de 1995.
18 - Na sequência do assim acordado, o R. acordou com os serviços desse Hospital a estadia, assistência e utilização do bloco operatório, bem como as condições de intervenção da sua equipa clínica (instrumentistas, anestesista e outros).
19 - No dia 12 de Junho de 1995 a A. deu entrada no referido Hospital, onde o R. e a sua equipa executaram a aludida intervenção cirúrgica, no dia imediato.
20 - Nessa intervenção, o R. efectuou uma corporectomia parcial entre as vértebras C4/C5 e C5/C6, tendo colocado na parte anterior de CS a C7 material de osteosíntese composto por enxerto, placa e respectivos parafusos.
21 - Oito dias depois de realizada a intervenção cirúrgica, sem que a situação clínica da A. se alterasse, o réu aconselhou a autora transferir-se para o serviço de ortopedia do Hospital de S.João, o que aconteceu em vinte dois de Junho de 1995.
22 - Dois dias após a intervenção cirúrgica efectuada à A., em 13 de Junho de 1995, no Hospital de S. João, foi verificada a existência de uma fístula esofágica na A., depois de ter sido retirado o dreno que lhe havia sido colocado no esófago.
23 - Em consequência disso, a A. foi entubada, para permitir a cicatrização da fístula, situação em que se manteve durante 4 semanas.
24- A A. teve alta em 9 de Abril de 1996, altura em que ainda tinha acentuadas dificuldades de marcha, apesar do treino a que fora submetida nos serviços de fisioterapia do Hospital de S. João.
25 - Quando a A. readquiriu a consciência constatou que se
encontrava paralisada do lado esquerdo, com impossibilidade total de accionar e coordenar movimentos no braço e perna do lado esquerdo.
26 - Bem como "adormecimento"- com ausência de sensibilidade - nas extremidades dos dedos da mão direita.
27 - Em face do sucedido, o R. promoveu a observação da A. por diversos médicos, designadamente um neurologista, que constatou a hemiplegia esquerda.
28 - Aí internada, por iniciativa do R. foram-lhe feitos diversos exames complementares de diagnóstico e treino de marcha em fisioterapia.
29- Em data imprecisa do mês de Outubro de 1995, o R., para poder obter novo exame complementar de diagnóstico (ressonância magnética), decidiu retirar o material de osteossíntese que tinha colocado na intervenção inicial.
- A realização da ressonância magnética na pessoa da A. não constituía um acto de diagnóstico intencionado a implementar qualquer terapêutica que reduzisse o padecimento da A., mas apenas um acto de natureza científica, destinado a conhecer a relação entre a causa da doença que ocorreu e as consequências observadas.
30 - No decurso dessa intervenção, sobreveio à A. uma fístula esofágica ao nível das vertebras C4/C7 da coluna cervical, referida em 22 supra.
31 - A A., em data posterior a 09.04.96 - sentiu uma acentuada dificuldade em deglutir os alimentos, o que a levou a que tivesse sido previamente assistida no Serviço de Urgência do Hospital de Aveiro e, depois, internada no Serviço de Otorrinolaringologia daquele Hospital, durante 8 dias, período durante o qual foi alimentada a apenas a soro.
32 - Em 2.07.96, a A. foi transferida para o Serviço de Cirurgia 2 do Hospital da Universidade de Coimbra, em virtude do agravamento das inflamações da fístula esofágica.
33- Tendo de novo sido entubada para alimentação, situação que se manteve até 16 de Julho, data em que teve alta daquele Hospital.
34 - A partir de então a A. passou a ser assistida em serviço
ambulatório naquele Hospital.
35 - Onde o respectivo corpo clínico prognosticou a necessidade de revestir o esófago com um enxerto do intestino da própria Autora.
36- A A. não acedeu a tal.
37 - A A. tem hoje, e de forma irreversível:
- Perda funcional total dos membros superiores e inferiores do lado esquerdo.
- Rigidez do joelho esquerdo, devido a espascidade.
- Inacção do pé esquerdo, o que obriga ao uso permanente de uma tala para manter a posição de apoio.
Ausência total de sensibilidade técnica nos membros do lado direito.
- Dores recorrentes ao nível do joelho direito.
- Formigueiro recorrente na mão direita.
- Dificuldades permanentes de deglutição e ingestão de alimentos.
38. A A. ficou incapacitada para qualquer tipo de trabalho, desde a data da primeira intervenção, acabando por ter de reformar-se por invalidez total permanente, a partir de 1997.
39. Enfim, em síntese, sofreu danos patrimoniais e não patrimoniais que o processo identifica devidamente.
IV
Direito aplicável
1. A questão que vem colocada pela revista é complexa.
Traduz-se num dos pontos mais difíceis de tratar da teoria geral da responsabilidade pelo exercício das profissões liberais, e, dentro destas, ainda mais problemática se torna, a responsabilidade civil, por acto médico.
Há um exame cientifico do caso, nas suas múltiplas variantes patológicas, que precede e condiciona o exame jurídico, o primeiro com medição aferida a critérios das ciências experimentais, o segundo relevando de critérios das ciências humanas, parâmetros esses, que podem não se cruzar por caminhos e resultados comuns.
É pois uma nota de resguardo preambular a que se segue uma outra, agora relativa ao método de exame de direito, que vai fazer-se, sobre as duas questões abaixo a enunciar.
É a seguinte, como já anteriormente se sublinhou
( Parte I, ponto 1.).
A acção foi estruturada e desenvolvida a partir da afirmação de uma responsabilidade civil, com fonte contratual, contrato que está demonstrado pela leitura, especialmente, dos pontos 2 a 20, da matéria de facto. (Parte III).

1.1. Donde, resulta que a análise jurídica do problema se situa em duas coisas fundamentais:
Se houve culpa efectiva ou presumida do réu com a sua conduta (diagnóstico, tratamento e intervenção cirúrgica, em relação à autora).
Se existe nexo de causalidade normativa, entre a conduta do réu e os danos pessoais e patrimoniais cujo ressarcimento ela vem pedir.
As questões quase se sobrepõem dado que o suporte de análise (de factos ou ausência deles, para essa mesma análise) segue uma direcção transversal de ambas as questões.
Tentemos examiná-las em separado.

2. A obrigação de indemnizar decorrente do acto médico pode ter por fonte uma relação contratual, uma relação extra-contratual, ou a ofensa
um direito de personalidade. (1)
Pela matéria de facto que suporta a acção, estamos tipicamente perante um contrato de prestação de serviços médico/cirúrgicos.
A matéria de facto apurada não parece susceptível de convolação (artigo 664º, do Código de Processo Civil) - embora isso seja reclamado pela conclusão 4ª. (Conclusões, Parte II).
Mas ainda que admitamos que o seja, são-lhe também aplicáveis as considerações jurídicas que vão seguir-se, a propósito da culpa e do nexo causal.
Ponderemos, então, a responsabilidade civil, no quadro configurado à obrigação de indemnizar com fonte contratual. ( Referido ponto 1, Parte I).
Mas antes, salientemos ainda um outro aspecto cautelar: Trata-se de usar um esforço de contenção que evite entrar pela discussão científica, considerando apenas a relevância de factos indiciários de juízos normativos inequívocos.
Por limitações de acesso científico - porventura legítimas - o direito não consegue atingir, e daí não poder considerar necessariamente culpado, o médico que não cura, ou que não tenha evitado a morte do doente.
Mas dessa limitação, não pode concluir-se que o médico não tenha assegurado um grau normal ou mesmo elevado de diligência própria da "arte, da prática médica ".
Particularmente, em relação ao exercício da medicina curativa e da cirurgia convencional, estamos confrontados com um espaço natural de interdição ao direito - espaço boa parte das vezes fechado pelas dificuldades da chamada "conspiração do silêncio" dos profissionais, como obstáculo de vulto à procedência das acções de responsabilidade civil (e penal) dos médicos. (2) É um obstáculo reportado a todas as artes, em maior ou menor escala.
Mas não é por aqui que desejamos encaminhar o exercício (3), embora a postura intelectual do desenvolvimento judicativo recomende o anúncio da transparência do caminho e da prudência do passo.

3. Assentemos assim na alegada responsabilidade contratual do médico.
Naturalmente que a natureza contratual da obrigação de indemnizar há-de influenciar a repartição do ónus de prova da culpa, se a ela houver lugar.
Por conseguinte, sendo como é entendida a culpa, enquanto juízo normativo de censura ético-jurídica, referida, não a uma deficiente formação de vontade, mas referida a uma deficiente conduta, há que apurar onde esteve, ou não esteve, a deficiente conduta profissional do médico/réu, no diagonóstico das queixas doentias da autora, no aconselhamento da operação, na execução desta, ou no post operatório.
A afirmação possibilita avançar um pouco, formulando uma pergunta: (?) A quem cabe fazer a prova da prestação contratual e profissional deficiente?
Ao médico, conforme ao artigo 799º-1, do Código Civil, cabe provar que não teve culpa - responde-se! (4)
O médico provará que não houve erro técnico profissional, com recurso às leis da arte e meios da ciência médica, prevalentes em certa época e local e de que razoavelmente dispunha.
Trata-se de observar um ónus para cuja demonstração está melhor colocado, sendo justo que o encargo lhe pertença, sob pena de, não o observando, se presumir culpado; ou seja, nas palavras de há pouco, se pode concluir-se que teve uma conduta profissional deficiente.
Deficiência que pode relevar do diagnóstico; da terapêutica, da intervenção cirúrgica, etc.
No limite, não significa isto que qualquer diagnóstico errado possa conduzir fatalmente, à responsabilização jurídica.
Pode suceder que o diagnóstico, a terapêutica a modalidade de intervenção correspondam a diferendos científicos frequentes; e pode mesmo o acto médico em causa ter sido errado, mas o seu autor ter observado todos os meios possíveis para o conseguir, segundo a lei da sua arte e o conhecimento disponível na época, e ainda assim errou: não obteve a cura, não evitou a morte. Os mais sábios erram! (5).
Obriga-se a tratar, não a curar, ou prevenir a morte; a fazer o que razoavelmente é exigível, em termos de padrão médio de comportamento profissional responsável, de forma que outros profissionais colocados perante a mesma situação, não fariam (ou não deixariam de fazer) diferentemente.
O ponto de partida essencial para qualquer acção de responsabilidade médica é, por conseguinte, a desconformidade da concreta actuação do agente, no confronto com aquele padrão de conduta profissional que um médico medianamente competente, prudente e sensato, com os mesmos graus académicos e profissionais, teria tido em circunstâncias semelhantes na altura Citado Álvaro Dias, revista, páginas 29..
No fundo, também aqui estamos relegados para o padrão de avaliação de culpa jurídica, através do critério de referência estabelecido pelo artigo 487º-2, para a responsabilidade extracontratual, e acolhido no 799º-2, do Código Civil, para a responsabilidade contratual.
Mas exigir ao médico fazer a prova da inexistência de culpa, não significa que ao doente se baste fazer a prova de que não lhe foram prestados outros cuidados possíveis, residindo aí o incumprimento do médico, porque piorou a sua situação patológica, em relação ao passado que precedeu o acto médico.

3. Fixemos agora alguns princípios gerais relativos à causalidade.
A prova do nexo causal, como um dos pressupostos da obrigação de indemnizar, cabe ao credor da obrigação de indemnizar, independentemente da sua fonte.
É um dos pressupostos do direito que acciona, com vista ao ressarcimento do dano, que pretende com a acção.
O doente tem que provar que um certo diagnóstico, tratamento ou intervenção foi omitido, e, por assim ser, conduziu ao dano, pois se outro acto médico tivesse sido (ou não tivesse sido) praticado teria levado à cura, atenuado a doença, evitado o seu agravamento, ou mesmo a morte.
É necessário haver um nexo causal entre a acção (ou omissão) e o dano provocado. Mas não pode ser uma qualquer causa/efeito.

4. Elaboradas as ideias gerais de enquadramento, convocadas para o caso em apreço, relativas à culpa e à adequação causal da acção (ou omissão) a um resultado danoso, recuperemos o caso concreto para o submeter ao que foi exposto.
Primeiro, quanto à culpa do médico; depois, quanto ao nexo causal do resultado da sua conduta.
Já se sinalizou que, a haver culpa, ela será apreciada em função de uma conduta deficiente do médico.
Sendo assim, no aspecto em ponderação, pergunta-se: o que fez o médico?
O médico aconselhou a operação e dirigiu-a.
Em seu critério profissional, como professor, como ortopedista, como director do hospital, afigurou-se-lhe que o caminho mais adequado para a doença da autora, após dois anos de observação, seria a intervenção cirúrgica.
A assim se fez, com o acordo de ambos. Nada indica que devesse fazer diferente, ou não devesse fazer!
Só que não resultou! Resultou para pior, e tanto pior com o decurso do tempo, com se revela pela descrição que aqui se considera resgatada (Parte III).
Como se conduziu o réu, para empregar palavras do texto de enquadramento, em todo o essencial do trajecto?
Assim:
- Ao exame clínico inicial, a autora mostrava discreta rigidez cervical, com compressão axial positiva, para a região omo-vertebral esquerda, discretas alterações da sensibilidade, irregulares, dor na região do ombro esquerdo (tendão do supra-espinhoso ), sem sinais de paralisia motora.
- O RX mostrava sinais de discartrose e sinais evidentes de canal estreito (sinal de Torg 7.1 em C4-C5).
- O TAC revelava sinais intensos de discartrose, particularmente em C4-C5 e C6-C7, com aperto do canal muito acentuado (7.1 em C4-C5 e 7.5 em C6-C7).
- Foi então alertada para a necessidade de uma intervenção cirúrgica, dependendo da evolução da doença, a decidir em consultas a realizar duas vezes por ano.
- A doente compareceu às consultas nos dias: 10 de Maio de 1991, 29 de Dezembro seguinte, e 13 de Agosto de 1992 e, pelos tratamentos, foi apresentando melhorias diversas.
- Após um interregno de cerca de 2 anos, a autora voltou à consulta do R. em 4 de Julho de 1994.
- Tinha piorado da coluna cervical e mostrava agora sinais evidentes de compressão medulo-radicular, dor omo-vertebral, com irradiação para o punho esquerdo, discretas parestesias, mais persistentes e alargadas, e a esboçar clonus rotuliano à esquerda.
- Sucedeu que, na consulta seguinte, em 8 de Maio de 1995, no consultório do réu, no Porto, ele verificou que a doente tinha piorado progressivamente: Sinais piramidais evidentes
(clonus rotuliano esquerdo evidente, com hiper-reflexia nos membros inferiores ), notória falta de força do membro superior esquerdo, perturbações parestésicas múltiplas, generalizadas, e o TAC que efectuou confinava o canal estreito cervical, pior do que há 4 anos.
- O R., com base na sintomatologia e no relatório de uma tomografia axial computorizada, realizada em 22 de Janeiro de 1991, diagnosticou um estreitamento do canal cervical.
- Por isso aconselhou a doente a ser operada, uma vez que, quer pela sua idade, quer pela fase em que a doença se encontrava, a operação proporcionaria um fácil e eficaz restabelecimento.
- O médico e operador, não pôs qualquer restrição na prognose sobre o resultado dessa intervenção.
- Pelo que a Autora aceitou o que assim lhe era aconselhado; e as partes acordaram então, em que a intervenção cirúrgica seria feita pelo R. e pela sua equipa, no Hospital da Celestial Ordem Terceira da Trindade, no dia 13 de Junho de 1995.
- Na sequência do assim acordado, o R. combinou com os serviços desse Hospital, a estadia, assistência e utilização do bloco operatório, bem como as condições de intervenção da sua equipa clínica (instrumentistas, anestesista e outros ).
- No dia 12 de Junho de 1995 a A. deu entrada no referido Hospital, onde o R. e a sua equipa executaram a aludida intervenção cirúrgica, no dia imediato - 13 de Junho.
- Nessa intervenção, o R. efectuou uma corporectomia parcial entre as vértebras C4/C5 e C5/C6, tendo colocado na parte anterior de CS a C7 material de osteosíntese composto por enxerto, placa e respectivos parafusos.
- Oito dias depois de realizada a intervenção cirúrgica, sem que a situação clínica da A. se alterasse, o réu aconselhou a autora transferir-se para o serviço de ortopedia do Hospital de S. João, o que aconteceu em vinte dois de Junho de 1995.
- Dois dias após a intervenção cirúrgica efectuada à A., no Hospital de S. João, foi verificada a existência de uma fístula esofágica na A., depois de ter sido retirado o dreno que lhe havia sido colocado no esófago.
- Em consequência disso, a A. foi entubada, para permitir a cicatrização da fístula, situação em que se manteve durante 4 semanas.
- A A. teve alta, em 9 de Abril de 1996, altura em que ainda tinha acentuadas dificuldades de marcha, apesar do treino a que fora submetida nos serviços de fisioterapia do Hospital de S. João.
- Quando a A. readquiriu a consciência constatou que se
encontrava paralisada do lado esquerdo, com impossibilidade total de accionar e coordenar movimentos no braço e perna do lado esquerdo.
- Bem como "adormecimento"- com ausência de sensibilidade - nas extremidades dos dedos da mão direita.
- Em face do sucedido, o R. promoveu a observação da A. por diversos médicos, designadamente um neurologista, que constatou a hemiplegia esquerda.
- Aí internada, por iniciativa do R. foram-lhe feitos diversos exames complementares de diagnóstico e treino de marcha em fisioterapia.
- Em data imprecisa do mês de Outubro de 1995, o R., para poder obter novo exame complementar de diagnóstico (ressonância magnética), decidiu retirar o material de osteossíntese que tinha colocado na intervenção inicial.
- A realização da ressonância magnética na pessoa da A. não constituía um acto de diagnóstico intencionado a implementar qualquer terapêutica que reduzisse o padecimento da A., mas apenas um acto de natureza científica, destinado a conhecer a relação entre a causa da doença que ocorreu e as consequências observadas.
- No decurso dessa intervenção, sobreveio à A. uma fístula esofágica ao nível das vértebras C4/C7 da coluna cervical, referida em 22 supra.

4.1. Ainda sob o ângulo da culpa, ponderemos as coisas, olhando-as sobre o possível comportamento deficiente do réu.
Nos artigos 1º a 3º do questionário perguntava-se (fls.157) o seguinte:
Na execução da intervenção, em manobra cirúrgica, o réu provocou sofrimento medular à autora?
Tal deveu-se a falta de cuidado na manipulação por parte do réu?
Tendo provocado de forma directa e necessária para a autora uma hemiplegia esquerda?
Respondeu-se a todas as perguntas: não provado. (Fls. 207).
No julgamento da matéria de facto justificou-se ( e do modo criterioso reclamado pela Relação que, para tanto, mandou baixar o processo - fls. 262 e ponto 4, Parte I). que as respostas se basearam, entre o mais, em declarações médicas de profissionais que lidaram directamente com a autora ( fls. 208/209).

4.2. Em conclusão: a nosso ver, não fica seguramente demonstrado que o réu tivesse tido, objectivamente, um comportamento negligente.
Devemos lembrar, neste contexto, que a acção foi proposta sob o fundamento de que o Réu não cumpriu a obrigação que sobre ele impendia de actuar com perícia, prudência e atenção e ter sido negligente na sua actuação, assim causando danos á autora, que os quantifica, e cujo pagamento reclama. ( Parte I, ponto1).
E não se chegaria a resultado diferente, se a responsabilidade se radicasse em violação de direitos de personalidade ou fosse da natureza extracontratual. [( Conferir conclusão 4ª, alínea a) e ponto 2, Parte IV)].
Ao contrário, e também em termos objectivos, mostra-se que teve um comportamento diligente, ou com certo grau de diligência, como um bom pai da família no sentido profissional, na expressão que anteriormente usámos, e que afasta a ideia de culpa efectiva ou presumida que, de forma garantida, lhe possa ser imputada.
E isto prejudicaria a necessidade e o interesse de avaliar o nexo causal entre a conduta e o resultado danoso verificado.
Ainda assim, não voltaremos costas à tarefa, e ensaiemos a análise, para levarmos a investigação completamente a final.

5. Vejamos, então, o nexo causal, sem deixar de recordar o que já ficou assinalado no ponto 4.1, ao falar- se da culpa.
O calvário impressionante de padecimentos que são descritos na matéria de facto ( Parte III), até a um fim que conduziu à inutilização profissional activa da ré, como técnica de farmácia e a atirou para a incapacidade laboral específica, permanente, à volta dos 50 anos, são sequelas físicas e morais a que o julgador não é indiferente, nem o dinheiro paga!
Mas não pode o juiz, em sua arte de julgar, "atirar" ao caso!
Neste caso, o "tiro" - passe a metáfora, pelo impressionismo que se quer extrair deste recorte de uma vida de uma pessoa - neste caso, dizíamos- não se poderá encontrar, sem mais, uma relação de causa e efeito, entre o antes e o depois da intervenção cirúrgica, de 13 de Junho de 1995, e concluir-se, em juízo eticamente fundado, que o agravamento da situação de deveu a um diagnóstico errado, à intervenção cirúrgica ou (e) toda a intervenção post operatória que, depois longa e penosamente se seguiu, pela forma descrita na parte III.
É um "salto" que não encontra na prova produzida pela autora e adquirida no processo, um suporte suficientemente seguro, reclamado pela verdade judiciária.
No caso, a doente/credora tem que provar que, no diagnóstico, no tratamento ou na intervenção cirúrgica, foi omitido certo ou certos actos médicos que, a serem praticados, teriam levado à cura ou atenuado a doença, e não teriam provocado o agravamento da situação doentia, ou mesmo levado à morte.
Claro, que tanto não está feito. E bem se compreendem as dificuldades de o fazer! ( Ponto 2, Parte IV).
Nem mesmo a forma de agilização da matéria de facto facultada ao Supremo pelo artigo 729º-3, do Código de Processo Civil - que não recusaria usá-la, na preocupação oficiosa do encontro da verdade material - abriria a porta a melhor solução, considerando o quadro de facto em que a petição e a contestação se estruturam e a projecção que ambas conseguem no questionário que veio a consolidar-se.
E, diga-se, finalmente, no espírito daquela preocupação, mesmo que, convolando, se partisse de obrigação de indemnizar, que não fosse de natureza contratual, se conseguiria outro resultado, a benefício da autora, como pretende na 4ª conclusão, e já se lhe explicou porquê, anteriormente. ( Ponto 4.2, Parte IV).
Ainda aqui a "conspiração do silêncio" de que fala a doutrina, e mencionámos ao princípio (ponto 2, Parte IV), pode vir a atingi-la.
Mas o Tribunal não pode fazer diferentemente!

V
Decisão
Termos em que, acordam no Supremo Tribunal de Justiça, em negar provimento à revista, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 22 de Maio de 2003.
Neves Ribeiro
Araújo Barros
Oliveira Barros
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(1) - Fontes da obrigação de indemnizar por parte dos médicos: Professor João Álvaro Dias , na Revista Portuguesa do Dano Corporal n.º5, ano se 1995, páginas 30 e seguintes, aspectos que depois, retoma na sua tese de doutoramento - Dano corporal, quadro epistemológico e aspectos ressarcitórios - paginas 434. ( Ponto 74, dedicado aos danos corporais ocorridos com intervenções cirúrgicas).
Os Professores Figueiredo Dias e Sinde Monteiro também trataram o mesmo problema a responsabilidade médica em Portugal, no B.M.J. n.º332, páginas 21 a 79.

(2) - Citada revista, do Dano Corporal, páginas 18, nota 4, socorrendo-se da doutrina estrangeira mais significativa sobre a matéria.

(3) - Como observa a doutrina são poucas em Portugal as acções relativas a responsabilidade médica, dada a dificuldade de prova da culpa do agente e de nexo de causalidade entre a conduta e o resultado. Sobe a redução destas acções em Portugal, ver as referências feitas pelo Dr. Esperança Pina, em A Responsabilidade dos Médicos, páginas 19 - Edições técnicas.
A Universidade de la Laguna, organizou em 1993, um congresso europeu sobre a matéria da responsabilidade civil e penal relativa às profissões médicas e outras, tendo sido sublinhado a dificuldade da prova mencionada, como explicativa da fraca estatística destas acções em alguns países. As intervenções do Congresso estão organizadas em Livro Próprio da autoria do Professor Casabona, então reitor daquela Universidade Espanhola. Entretanto, a Comunidade europeia também avançou com uma proposta de directiva horizontal sobre a matéria da responsabilidade civil do prestador de serviços ( proposta de 9 de Novembro de 1990- Com. 482, final, em que prevê uma presunção de culpa sobre o prestador de serviços, mas entretanto, ao que se sabe por pressão dos profissionais, a proposta não avançou, pelo menos na extensão do âmbito horizontal a que dirigia ( artigo 1º).
Também o Professor Lebre de Freitas apresentou uma comunicação sobre responsabilidade dos profissionais liberais, publicada nos Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil ( 2002), páginas 819 a 826, expondo posições sobre a culpa médica ( páginas 823/825) que coincidem com as ideias enunciados no texto, a propósito da obrigação de prestação meios ( meios médicos diligentes).

(4) - Conferir estes aspectos relativos ao ónus da prova da culpa e do nexo de causalidade no indicado B.M.J. - autores citados - páginas 45 /46..

(5) - No mais recente acórdão deste tribunal sobre a mesma matéria, pode ler-se: « Se depois de uma intervenção cirúrgica simples as condições do doente são piores do que as anteriores, presume-se que houve uma terapêutica inadequada ou negligente execução profissional, cabendo ao médico o ónus da prova de que a execução operatória foi diligente». ( Acórdão de 17 de Dezembro de 2002, na revista n.º 495/02, 6ª secção, Conselheiro Afonso de Melo).

(6) - Citado Álvaro Dias, revista, páginas 29.