Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | RICARDO COSTA | ||
Descritores: | RECURSO DE REVISTA ADMISSIBILIDADE DE RECURSO DECISÃO INTERLOCUTÓRIA INCIDENTES DA INSTÂNCIA INVENTÁRIO PARTILHA DOS BENS DO CASAL RELAÇÃO DE BENS RECLAMAÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 06/28/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NÃO CONHECIMENTO DO OBJECTO DO RECURSO. | ||
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Sumário : | A decisão final tomada em incidente de “reclamação contra a relação de bens” em processo de inventário judicial para partilha de bens comuns após dissolução de casamento por divórcio constitui decisão interlocutória com natureza processual (arts. 1082º, d), 1083º, 1, b), 1091º (com aplicação dos arts. 292º a 295º para os incidentes da instância), CPC; 1104º, 1, d), e 2, 1105º e ss, ex vi art. 1084º, 2, CPC), que, uma vez reapreciada pela Relação, apenas pode ser objecto de revista com base nos fundamentos previstos no regime das als. a) e b) do art. 671º, 2, do CPC, sob pena de inadmissibilidade da revista. | ||
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Decisão Texto Integral: | Processo n.º 3080/17.6T8BCL-I.G1.S1 Revista – Tribunal recorrido: Relação de Guimarães, ... Secção Cível Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça I. RELATÓRIO A) Neste processo de inventário para partilha dos bens comuns do ex-casal, figurando como Requerente AA e cabeça-de casal BB, este apresentou Relação de Bens junto do Cartório Notarial .... B) O casamento celebrado entre AA e BB foi dissolvido por sentença transitada em julgado, proferida a .../.../2019, no âmbito do processo de divórcio por mútuo consentimento (com fixação do valor da causa em € 30.000,01) a que estes autos vão apensos (“E”), tendo sido o casamento celebrado no regime de comunhão geral de bens. C) A Requerente AA deduziu Reclamação contra a Relação de Bens, alegando, em especial, a impugnação de verbas e valores atribuídos, a omissão de bens (automóveis, máquinas e outros bens móveis) e de benfeitorias nos imóveis relacionados, e requerendo que fosse ordenado o aditamento e a rectificação em conformidade. O cabeça-de-casal apresentou Resposta, alegando em particular que os automóveis e as máquinas pertencem à sociedade «S..., Lda.». D) Após realização de audiência prévia, o Notário proferiu despacho (17/6/2020) de remessa definitiva do processo para o Tribunal competente, nos termos do art. 12º, 3, da Lei 117/2019, de 13 de Setembro, o que se cumpriu em face do Juízo de Família e Menores ... do Tribunal Judicial da Comarca de Braga. E) Tramitada a instância, com nova audiência prévia, e produzidas as diligências probatórias, o Juiz ... do Juízo de Família e Menores ... proferiu decisão final do incidente (12/7/2022: arts. 1091º, 1, 295º, CPC), com o seguinte dispositivo (sublinhado nosso): - julgar improcedente a reclamação apresentada no que tange às verbas n.os 1 e 5 e à alegada omissão de bens móveis, com exceção dos relacionados e os aceites pelo cabeça-de-casal na resposta à reclamação da relação de bens; - determinar que os bens propriedade da sociedade constituem parte das quotas sociais e assim devem ser relacionados; - determinar que o valor dos bens móveis constantes das verbas 6 a 18 é [a] que resulta da avaliação efetuada; - determinar, nos termos e ao abrigo do disposto nos artigos 1092.º e 1093.º ambos do Código de Processo Civil, a remessa das partes para os meios comuns a fim de ser apreciada a questão relativa às benfeitorias e respectivo valor. Para o segundo e quarto dos anteriores segmentos decisórios, sustentou-se em termos argumentativos: “Sustentou, ainda, a reclamante que o cabeça de casal não relacionou os seguintes veículos: veículo automóvel de marca Ford, modelo Transit, do ano de 1996, matrícula ..-..-HP e veículo automóvel, marca Citroen, modelo Berlingo, do ano de 2001, matrícula ..-..-RQ e os demais bens móveis. Vejamos então. A propósito dos identificados bens constata-se que na douta decisão singular proferida pelo Venerando Tribunal da Relação de Guimarães, no âmbito do recurso instaurado da providência cautelar de arrolamento decretada, que correu por apenso aos autos principais refere-se entre o mais: “O arrolamento instaurado como preliminar ou incidente da acção de divórcio só pode incidir sobre os bens comuns do casal ou sobre os bens próprios que estejam sob a administração do outro cônjuge, nunca sobre bens de terceiros. Não é o facto de Requerente e Requerido serem os únicos sócios da sociedade “S..., Lda”, que transforma o património da sociedade em bens comuns do casal. Como bem refere a própria recorrida os bens são da sociedade. E a sociedade é, efectivamente, um terceiro, pois que tem personalidade jurídica própria, autónoma. A personalidade jurídica é concedida a todas as pessoas singulares (art. 66º, do Código Civil) e também às pessoas colectivas, nos termos do art. 158º, do Código Civil, bem como às sociedades comerciais, como é o caso – cfr. art. 5º, do Código das Sociedades Comerciais. A sociedade, de que as partes são sócios, possui personalidade jurídica, possui património social distinto do dos respectivos sócios, conferindo-lhe a lei autonomia em relação ao património pessoal destes, não podendo ser arrolados bens da mesma, que não são bens comuns do casal. O património individual, pessoal, do sócio (de que faz parte a quota social) não se confunde com o património autónomo da sociedade”. No seguimento dos fundamentos expostos foi julgada procedente a apelação e revogada a decisão recorrida no que dizia respeito ao arrolamento dos bens da sociedade S..., Lda. Ora, in casu, apurou-se que parte dos bens constantes da relação de bens são parte dos elencados no ponto F) do requerimento inicial da providência cautelar que foram considerados bens da dita sociedade. Se são bens da sociedade integram o acervo pertencente à respectiva quota da sociedade, sendo certo que conforme acima se referiu no regime de comunhão geral todos os bens dos cônjuges adquiridos antes ou depois da celebração do casamento integram a comunhão conjugal, ou seja: são bens comuns do casal (art. 1732.º do CC). Pelo que, neste regime, após a celebração do casamento, os cônjuges deixam de ter bens e patrimónios próprios separados dos bens e património próprios do outro cônjuge. Logo resulta com clareza que todos os bens arrolados desde que adquiridos por um dos cônjuges são bens comuns do casal. Com efeito, a plena comunhão de vida a que a união matrimonial aspira leva a que a generalidade das relações obrigacionais e reais dos cônjuges sejam disciplinadas, no sistema jurídico português, por regras legais particulares, enunciadas no Capítulo IX, Título II, do Livro IV, do Código Civil. No entanto, os bens constantes da relação de bens que sejam bens da sociedade estão contidos nas quotas sociais. Logo, apesar de relacionados autonomamente, a nosso ver tem de ser tidos em consideração como constituindo parte das quotas sociais e assim relacionados. No que tange às benfeitorias na falta de consenso não se torna possível em sede de incidente de inventário aquilatar a sua extensão para efeitos de avaliação. Com efeito os depoimentos das testemunhas inquiridas foram vagos e imprecisos sobre as eventuais obras realizadas nos imóveis constantes das verbas 24 e 27. Não foram juntos documentos que permitissem arrimar as respectivas pretensões das partes no que tange às mencionadas benfeitorias. Tal colide impressivamente com o apuramento do passivo constante da alínea F) da reclamação apresentada. Quid Iuris? Dispõe o art. 1092.º do Código de Processo Civil (CPC) que: (…). O citado art. consagra a regra segundo a qual a suspensão da instância do processo de inventário tem lugar nos casos em que esteja pendente uma causa prejudicial, ou seja, suscitada alguma questão com relevância para a admissibilidade do processo ou para a definição de direitos de interessados directos na partilha. Por outro lado, a título excepcional, o art. 1093.º do CPC prevê igualmente a possibilidade de, oficiosamente ou a requerimento, o processo de inventário ser suspenso – com a consequente remessa dos interessados para os meios comuns –, na eventualidade de se verificar alguma questão que não diga respeito à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados directos na partilha, mas cuja complexidade da matéria de facto torne inconveniente que a mesma seja apreciada no processo de inventário, por implicar redução das garantias das partes, e o juiz entenda que essa questão é susceptível de afectar, de forma significativa, a utilidade prática da partilha. Ora, no caso concreto, as questões suscitadas a propósito das benfeitorias alegadamente realizados nos referidos bens imóveis, tornam a nosso ver, inconveniente, face à sua complexidade, sob pena de redução das garantias das partes e ao abrigo do princípio da gestão processual e da adequação formal que tal questão seja decidida a título incidental em sede de inventário. Por tal, afigura-se-nos conveniente a remessa dos interessados para os meios comuns quanto a essa matéria”. F) Inconformado, o cabeça-de-casal BB interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, uma vez identificadas as questões decidendas nos segundo e quarto segmentos impugnados do dispositivo da decisão recorrida – saber “a) se os bens propriedade da sociedade devem ser relacionados neste inventário; b) se foi correcta a decisão de remeter a questão das benfeitorias para os meios comuns” –, conduziu a ser proferido acórdão (9/2/2023) que julgou o recurso totalmente procedente, revogando a decisão recorrida e determinando que: “a) os bens propriedade da sociedade S..., Lda não devem ser relacionados nestes autos; b) a questão relativa às benfeitorias e respectivo valor não deve ser remetida para os meios comuns, antes será apreciada nos presentes autos de inventário.” G) Agora inconformada, a Requerente AA interpôs recurso de revista para o STJ, finalizando as suas alegações com as seguintes Conclusões: “1. O douto despacho de admissão do recurso de apelação violou as normas dos artigos 644.º e 1123.º do CPC. 2. A decisão apelada não é recorrível na presente fase ou momento processual, sendo apenas recorrível nos termos do n.º 3 do art. 644.º do CPC e/ou do n.º 4 do art. 1123.º do CPC, se vier a ser proferido recurso de uma das quaisquer decisões previstas na alínea b) do n.º 2, do citado artigo 1123.º. 3. Sendo o escopo ou função do processo de inventário permitir a realização de uma partilha ou divisão de bens justa e equitativa (cfr. art. 1082.º e seguintes do CPC), a Meritissima Senhora Juiz apelada ao decidir no sentido do cabeça de casal fazer constar sob as verbas onde relaciona as quotas relativas á sociedade “S..., Lda.”, a relação dos bens que pertenciam, integravam ou faziam parte da referida sociedade à data da instauração da ação de divórcio (cfr. art. 1789.º/1 do CPC), julgou corretamente, não tendo violado qualquer norma legal. 4. Ao censurar a decisão referenciada na conclusão anterior deste recurso, o Tribunal recorrido não está a possibilitar a realização de uma partilha justa e equitativa, pois está a impedir a obtenção, no processo de inventário, do valor real dessas quotas, em virtude do senhor perito que vier a realizar essa avaliação necessitar de saber quais são os bens que integravam o património da sociedade na referida data, sendo ainda necessário, para tal efeito, a junção nos autos dos balanços, balancetes e demais documentos contabilisticos da sociedade. 5. O Tribunal da 1.ª Instância ao decidir remeter os interessados para os meios comuns quanto à existência e extensão das benfeitorias em causa nos autos, pretendeu atingir aquele escopo ou função do inventário que é realizar um partilha justa e equitativa do património comum do casal. 6. Também esta decisão não violou qualquer norma legal e antes foi proferida em conformidade com o Direito. 7. O TRG, quanto às benfeitorias, em vez de ter decidido do modo como decidiu deveria, quando muito, fazer baixar o processo a fim do Tribunal da 1.ª Instância justificar e esclarecer o seu entendimento de ter considerado complexa a decisão quanto á sua extensão e valor das benfeitorias. Não tendo o TRG ouvido os depoimentos das testemunhas, não se compreende como é que julga não ser complexa a decisão relativa á extensão e ao valor das referidas benfeitorias. 9. Ao julgar do modo como julgou, o TRG incorreu em erro de julgamento e violou, entre outras, as normas dos artigos 1082.º e seguintes do CPC.” O cabeça-de-casal apresentou contra-alegações, pugnando pela inadmissibilidade da revista à luz do art. 671º, 1, do CPC e, sem conceder, pela sua improcedência. H) Foi proferido despacho pelo aqui Relator no âmbito e para os efeitos previstos no art. 655º, 1, ex vi art. 679º, do CPC, atenta a questão da inadmissibilidade do recurso à luz do regime do art. 671º do CPC. Tal mereceu pronúncia da Requerente e Recorrente, que sustentou a admissibilidade da revista no âmbito do n.º 1 do art. 671º e, se assim não se entendesse, de acordo com o regime do n.º 4 desse mesmo art. 671º do CPC. Por sua vez, o Recorrido também respondeu para sustentar a não admissão da revista. * Foram colhidos os vistos nos termos legais. Cumpre apreciar e decidir em conferência, enfrentando como questão prévia a admissibilidade do recurso. II. APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS Questão prévia da admissibilidade do recurso I) As decisões finais proferidas no incidente de “reclamação à relação de bens” (assim qualificado, desde logo, no despacho de 10/12/2019, ref.ª CITIUS ...94, ainda em sede de tramitação notarial pré-judicial), tramitado no processo judicial de inventário destinado a partilha de bens comuns após divórcio, convertido (neste caso) ou instaurado no âmbito do art. 1133º do CPC, configuram objectivamente decisões interlocutórias com incidência sobre a relação processual (arts. 1082º, d), 1083º, 1, b), 1091º (com aplicação dos arts. 292º a 295º para os incidentes da instância), CPC; 1104º, 1, d), e 2, 1105º e ss, ex vi art. 1084º, 2, CPC). Assim deve ser qualificado enquanto decisão tomada num incidente legalmente previsto como inserido na causa principal sem estar configurado com a estrutura e a natureza de uma verdadeira acção, apesar de constituir dependência de outro processo, mas diluindo-se como questão acessória ou instrumental, ainda que com certo grau de autonomia, na tramitação da causa principal de inventário conducente à partilha de bens comuns – assim tem sido entendido, como regra, para os incidentes da instância pela jurisprudência deste STJ[1] e pela doutrina[2], aplicando-se aqui tal configuração e sua consequência em sede recursiva. J) Após ser proferido acórdão em sede de Apelação, a impugnação recursiva nestes casos para o 3.º grau de jurisdição segue em exclusivo o regime de admissibilidade do art. 671º, 2, do CPC, que determina que tais acórdãos «só podem ser objecto de revista»: «a) Nos casos em que o recurso é sempre admissível; b) Quanto esteja em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.»
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