Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1467/17.3T8LRA.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: INTERMEDIAÇÃO FINANCEIRA
ILICITUDE
RATIFICAÇÃO
CONSENTIMENTO
PRESCRIÇÃO
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL
FORÇA PROBATÓRIA
ÓNUS DA PROVA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Data do Acordão: 01/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Sumário :
I. As regras de apreciação da prova são aquelas que definem a força mais ou menos vinculativa (a força probatória) dos diversos tipos de prova, e, naquelas que estão sujeitas à livre convicção do julgador, determinam qual o estalão que deve ser utilizado na formação daquela convicção.

II. As regras do ónus da prova são regras de julgamento, de afastamento de situações de ‘non liquet’, determinativas de a quem deve ser imputado o insucesso da falta de demonstração de determinados factos

III. A apreciação da prova resolve-se na dicotomia ‘provado’ ou ‘não provado’ enquanto que o ónus da prova se resolve na decisão do litígio em sentido desfavorável à parte que não logrou desincumbir-se daquele ónus.

IV. A licitude da actuação em nome de outrem bem como a movimentação das quantias depositadas numa conta bancária pressupõe a prévia habilitação para o efeito por parte daquele em nome de quem se age ou do titular da conta. Pelo que, não se tendo o Réu desincumbido do seu ónus de demonstrar aquela prévia habilitação, a actuação do Réu se haverá de ter por ilícita.

V. Ocorre, porém, que essa ilicitude pode ser sanada pela posterior ratificação ou consentimento daquele em nome do qual se agiu ou do titular da conta (artigos 268º, 405º e 406º do CCiv).

VI. O comportamento do Autor (pedreiro com a 4ª classe), que tendo tomado conhecimento, pelo menos em finais de 2008, de que lhe haviam sido debitados na conta 100.000,00 € para aquisição de obrigações SLN 2004 em seu nome (sem caracterização desse instrumento financeiro), não só não tomou qualquer atitude no sentido de reverter a situação como se manteve ao longo de vários anos a receber o pagamento dos juros dessas obrigações, não consubstancia ratificação dos actos praticados pelo Réu.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA



NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE ACÇÃO DECLARARTIVA

ENTRE

AA

(aqui patrocinado por ..., adv.)

Autor / Apelante / Recorrente

CONTRA

BANCO BIC PORTUGUÊS, SA

(aqui patrocinado por ..., adv.)

Réu / Apelado / Recorrido



I – Relatório

O Autor intentou a presente acção pedindo a condenação do Réu a restituir-lhe a quantia de 100.000,00 € acrescida de juros desde a citação.

Alegou para fundamentar tal pretensão que o Réu, em 25OUT2004, sem autorização, consentimento e conhecimento do Autor, aplicou 100.000,00 € que tinha depositado em 22OUT2004 em depósito a prazo de 366 dias na subscrição de duas obrigações SLN-2004, as quais não foram pagas na sua maturidade. Quando mais tarde deu conta desse facto foi tranquilizado pelos funcionários do Réu que lhe afirmaram que se tratava de um produto seguro, garantido, sem riscos, igual a um depósito a prazo. Só entregou aquele dinheiro ao banco para que pudesse receber juros do capital, com total garantia da sua devolução.

O Réu contestou invocando a incompetência territorial e a prescrição e alegando que tudo foi feito com o conhecimento e segundo instruções expressas do Autor, a quem foram total e exaustivamente as características do produto financeiro.

Julgada procedente a excepção de incompetência territorial foi o processo remetido ao tribunal territorialmente competente.

A final foi proferida sentença que, considerando que ainda que se não tenha determinado a autorização ou consentimento do Autor para o movimento a débito no valor de 100,000,00 € na sua conta para subscrição de obrigações SLN-2004 o certo é que este quando teve conhecimento em 2008 dessa subscrição não exprimiu qualquer oposição à mesma, mantendo-se a receber os juros que semestralmente lhe eram pagos, pelo que ao vir em 2017 propor a presente acção age em abuso de direito, julgou a acção improcedente.

Inconformado, apelou o Autor concluindo, em síntese, por erro na decisão de facto, ser o Réu responsável por ter agido à sua revelia e não ocorrer abuso de direito uma vez que não houve da parte do Autor uma vontade esclarecida em face do incumprimento do dever de informação por banda do Réu.

A Relação, depois de realçar a indefinição do Autor ao longo do processo ao não concretizar a responsabilidade que pretende invocar ao Réu (inexistência de autorização ou autorização não esclarecida), considerou indemonstrado que o Autor tenha ordenado a subscrição das obrigações mas que o comportamento do mesmo Autor posterior ao conhecimento dessa subscrição constituiu uma ratificação tácita do negócio celebrado em nome do Autor pelo Réu; de qualquer forma dado o tempo decorrido entre o conhecimento da subscrição (2008) e a interposição da acção (2017) o direito do autor a qualquer indemnização encontrava-se já prescrito. Pelo que julgou o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida.

Ainda irresignado veio o Autor interpor recurso de revista nos termos gerais (subsidiariamente revista excepcional, invocando a al. c) do nº 1 do artigo 672º do CPC) concluindo, em síntese, por violação do direito probatório material, haver responsabilidade contratual do Réu e não ter ocorrido prescrição.

Houve contra-alegação onde se propugnou pela manutenção do decidido.

Os autos foram remetidos à formação a que alude o artigo 672º, nº 3, do CPC, a qual remeteu os mesmos ao Relator, a fim de verificar a ocorrência de ‘dupla conforme’, tendo este entendido que podendo vir a estar em causa, se admitido o recurso, a apreciação da responsabilidade bancária por intermediação financeira e estando pendentes recursos de uniformização de jurisprudência relativamente aos pressupostos dessa responsabilidade ser de suspender a instância até à decisão daqueles recursos para uniformização de jurisprudência.

Foi, entretanto, levantada a suspensão da instância.


II – Da admissibilidade e objecto do recurso

A situação tributária mostra-se regularizada.

O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC).

Tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC (artigo 637º do CPC).

Ainda que ambas as instâncias tenham afirmado a ilicitude do comportamento Réu ambas concluíram pela improcedência da acção; uma por o Autor ter excedido os limites do seu direito (abuso de direito), a outra por ter prescrito o seu direito. Ocorre, assim, que a razão de ser da improcedência da acção se funda em institutos jurídicos diferenciados que surgem como essencialmente diferentes. Ao que acresce ter a Relação ter, ainda, considerado sanado o carácter ilícito da conduta do Réu. Não se verifica, portanto, ‘dupla conforme’, impeditiva da revista nos termos gerais.

O acórdão impugnado é, pela sua natureza, pelo seu conteúdo, pelo valor da causa e da respectiva sucumbência, recorrível (artigos 629º e 671º do CPC).

Mostra-se, em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, correctamente fixado o seu modo de subida (nos próprios autos) e o seu efeito (meramente devolutivo).

Destarte, o recurso merece conhecimento como revista nos termos gerais (ficando prejudicada a apreciação da admissibilidade da subsidiária revista excepcional).

Vejamos se merece provimento.

           


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Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.

Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:

- da violação do direito probatório material;

- da caracterização da eventual responsabilidade do Réu;

- da prescrição;

- e na eventualidade de procedência do recurso, da verificação dos pressupostos da responsabilidade do Réu e da sua repercussão na apreciação do pedido do Autor.


III – Os factos

Das instâncias vêm fixada a seguinte factualidade:

Factos provados:

1. O R. é um Banco comercial que girava anteriormente sob a denominação “BPN-Banco Português de Negócios, S.A.”; Cfr. doc. junto a fls.20 e ss;

2. Até à entrada em vigor da Lei nº62-A/2008, de 2/2 o Banco R. era uma sociedade comercial dotada de personalidade jurídica, havia adoptado o tipo de sociedade anónima e tinha o contrato pelo qual foi constituída definitivamente registado na Conservatória do Registo Comercial sob o nº de matrícula e pessoa colectiva nº503 159 093;

3. Era também uma instituição de crédito da espécie Banco, estando para tanto obrigada a exercer a sua actividade pelo Banco de Portugal;

4. No dia 12 de Novembro de 2008 foram nacionalizadas todas as acções representativas do capital social do BPN e aprovado o regime da sua apropriação pública por via de nacionalização;

5-Até essa data, o capital social do BPN era detido, na sua totalidade, pela sociedade SLN – Sociedade Lusa de Negócios, SGPS, S.A. (SNL), actualmente denominada Galilei, SGPS, S.A. (Galilei);

6. Após a referida nacionalização, o capital social do BPN foi adquirido pelo Banco BIC Português, S.A., e em seguida incorporado, por fusão, neste Banco;

7. A “SLN- Sociedade Lusa de Negócios, SGPS, S.A.” e o “BPN-Banco Português de Negócios, S.A.” à data dos factos em causa, tinham por Presidente do Conselho de Administração a mesma pessoa: José de Oliveira e Costa; Cfr. doc. de fls.38 e ss.;

8. O Banco R. para além de ser, até à data da nacionalização do seu capital, uma instituição de crédito, era também um intermediário financeiro em instrumentos financeiros, estando como tal registado na Comissão de Mercado de Valores Mobiliários desde, pelo menos, o ano de 1993;

9. O A. exerce a profissão de pedreiro e tem a escolaridade obrigatória (4ª classe);

10. O A. é desde sempre categorizado pelo R. como investidor não qualificado;

11. A. é por natureza avesso a qualquer tipo de risco;

12. O A. era aforrador que tinha no Banco R. um depósito a prazo no valor de €100.000,00, pelo período de 366 dias, com juros semestrais, à taxa bruta de 4,5%; Cfr. fls.53 v.

13. O A. é, há mais de 15 anos cliente do R., onde é titular da conta nº...01;

14. No início do ano de 2004, a “SLN-Sociedade Lusa de Negócios, SGPS, S.A.” decidiu emitir um empréstimo obrigacionista, denominado “SLN, Rendimento Mais 2004” por “emissão de 1.000 obrigações subordinadas, sob forma escritural e ao portador, com o valor nominal de €50.000,00, cada”; Cfr. docs. de fls.41 v e ss;

15. Na nota interna emitida pela SLN consta “o Conselho de Administração decidiu lançar uma emissão de obrigações subordinadas a dez anos, denominada “SLN-Rendimento Mais 2004” (…). A total subscrição desta emissão é, assim, de importância estratégica para o Grupo.” Cfr. doc. de fls.41 v. e ss.

16. Na pág. 2 de tal documento consta: “Capital garantido:100% do capital investido”;

17. Os funcionários do Banco R. estavam instruídos para não entregarem aos clientes, potenciais ou efectivos subscritores das obrigações, a ficha técnica ou nota informativa que constitui o doc. de fls.44 e ss.

18. No dia 25/10/2004, o Banco Réu debitou na conta à ordem do A. a quantia de € 100.000,00 para a compra de título “SLN Mais 2004”;

19. Era na altura gerente do balcão de ... do BPN, BB;

20. O A., pelo menos em final de 2008, deu conta da aplicação referida em 18, quando comunicou ao Banco que necessitava de dinheiro e que pretendia que o colocassem à ordem.

21. Os referidos títulos encontram-se ainda hoje, depositados na carteira de títulos do A., junto do Banco Réu;

22. A “SLN” actual “Galilei SGPS”, não pagou as obrigações na data do seu vencimento, em 24 de Outubro de 2014;

23. O A. foi recebendo periodicamente (semestralmente) os juros do seu dinheiro;

24. Foram dadas instruções aos funcionários do Banco no sentido de venderem o produto, referindo aos clientes tratarem-se de aplicações equiparadas a depósito a prazo, podendo ser resgatadas.

Factos Não Provados:

1. O A. não subscreveu qualquer boletim de subscrição de tal produto;

2. Só em finais de 2008 o A. constatou que o seu dinheiro havia sido utilizado pelo Banco R. na compra de títulos SLN Rendimento Mais 2004, que desconhecia o que tal poderia significar;

3. O produto dado à subscrição era seguro;

4. O A. foi contactado pelo seu gestor para oferta da possibilidade de subscrever o produto aqui em causa…;

5. …tendo-lhe explicado que tal produto constituía valores mobiliários em representação de dívida da sociedade emitente, tendo igualmente explicado de que se tratava de sociedade mãe do Banco, pelo que se tratava de um produto seguro;

6. Apresentou ao A. as condições do produto e a sua remuneração, vantajosa relativamente aos depósitos a prazo, o prazo de dez anos, condições de reembolso e de obtenção de liquidez ao longo do prazo de 10 anos, que apenas seria possível por via de endosso…;

7. …sendo que sempre que solicitado o endosso de tais obrigações, era uma questão de minutos até obter um comprador;

8. O A. foi total e exaustivamente esclarecido sobre as condições do produto, acompanhado com a respectiva nota técnica tendo cumprido instruções expressas dadas pelo A.;

9. O A. sabia que não tinha um depósito a prazo.

10. Nunca foi entregue ao A. qualquer documento de onde constassem condições ou informações sobre o produto financeiro em causa;

11. Ao A. não foram entregues quaisquer documentos de tal operação;

12. O A. só colocou aquele dinheiro no Banco R. para que pudesse receber juros do capital, com total garantia de devolução pelo Banco Réu;

13. O A. pretendia que a aplicação não comportasse qualquer risco e que a recuperação dos valores fosse segura a 100%, pretendia que tal aplicação pudesse ser resgatada a qualquer altura;

14. Nunca o A. seria tentado a aceitar subscrever as obrigações que o R. subscreveu por si, se lhe tivessem sido explicadas as características do produto que estava a ser vendido;

15. Em finais de 2008, aquando do referido em 20, o Banco comunicou ao A. que não era possível proceder ao levantamento do capital investido porque estava aplicado em obrigações a dez anos;

16. O A. ao receber os juros do seu dinheiro estava convencido que o mesmo estava aplicado em depósito a prazo;

17. Em 2004 vigorava a instrução de serviço nº19/01, de 5.2.2003 cujo tema era Mercado de Capitais e Papel Comercial, a qual determinava que a entidade que garantia a solvabilidade do papel comercial emitido era o Banco R..


IV – O direito

As instâncias verberaram ao Autor a não concretização da responsabilidade que pretendiam assacar ao Réu porquanto ora invoca a falta de autorização ora invoca a autorização não esclarecida, consubstanciando uma «dualidade e falta de concretização que é transversal a toda a acção, que determina também a ambiguidade da prova, pois que não logrou provar de que forma foi feita a venda, mas pretende-se valer desta para assacar a responsabilidade contratual à Ré». Perspectiva essa que, manifestamente, influenciou a forma como foi apreciada a problemática, de facto e de direito, em causa.

Não temos essa crítica como certeira pois apenas vemos na alegação do Autor a discriminação das circunstâncias factuais que envolveram dois momentos essenciais da situação litigiosa que poderiam vir a ser relevantes para a solução jurídica do litígio que tinha com o Réu: um primeiro momento em que, segundo a sua convicção, não quis , ordenou ou autorizou a subscrição de obrigações; um segundo momento em que tomou conhecimento da efectiva subscrição daquelas obrigações e agiu em função das informações que lhe foram prestadas pelo Réu.

Vem isto a propósito da invocada violação do direito probatório material.

Alega o Recorrente que o acórdão recorrido violou as regras do ónus da prova ao considerar competir ao Autor a prova de que a subscrição das obrigações ocorreu sem a sua autorização ou consentimento.

Com efeito apreciando a impugnação da matéria de facto, a Relação não julgou procedente a pretensão do Autor de que se aditasse que o débito referido no facto provado 18 foi efectuado sem a sua autorização ou consentimento, bem como desse facto expurgou a referência ao resgate do depósito a prazo, referindo: «(…) dos documentos dúvidas não há que tal compra foi feita, mas desconhecendo-se em concreto se foi ou não com autorização e consentimento do A., pois a prova não é suficiente para concluir dessa forma, e a dúvida da realidade de um facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita, ou seja ao autor – art.º 417º do CPC)».

Tal enunciação revela, por um lado, uma confusão entre as regras de apreciação da prova (o estalão probatório) e as regras do ónus da prova; por outro lado, que o que está em causa são as regras da apreciação da prova.

As regras de apreciação da prova são aquelas que definem a força mais ou menos vinculativa (a força probatória) dos diversos tipos de prova, e, naquelas que estão sujeitas à livre convicção do julgador, determinam qual o estalão que deve ser utilizado na formação daquela convicção. A apreciação dos factos não se resolve, como afirmado no acórdão recorrido, contra a parte a quem o facto aproveita, mas sim na dicotomia ‘provado’ (com os diversos gradientes que aí são admitidos) ou ‘não provado’; a dúvida da realidade de um facto resolve-se na não afirmação dessa realidade e não na decisão da causa. Por seu turno as regras do ónus da prova são regras de julgamento, de afastamento de situações de ‘non liquet’, determinativas de a quem deve ser imputado o insucesso da falta de demonstração de determinados factos; o litígio deve ser resolvido contra o onerado com o ónus da prova que não logrou dele se desincumbir.

O que estava em causa era a apreciação da realidade de um facto (a (in)existência de autorização ou consentimento para a subscrição), e não a apreciação da (i)licitude da conduta do Réu ao proceder à subscrição de obrigações em nome do Autor, pelo que, não obstante os termos equívocos utilizados, não ocorreu a aplicação das regras do ónus da prova; não podendo haver violação regras que não foram aplicadas.

De outra parte, estava em apreciação prova da livre convicção do julgador (prova testemunhal, referenciada no acórdão recorrido), afirmando o julgador nela não poder fundar um adequado juízo de certeza tendente a afirmar a realidade do facto em apreço. Situação que se tem por conforme ao direito probatório material, não se vislumbrando qualquer mau uso dos poderes da Relação que permita e justifique a intervenção do Supremo Tribunal na determinação da matéria de facto.

Pelo que improcede, nessa parte, o recurso.

Resulta dos factos provados e não provados (em particular os factos provados 8, 14, 18, 21 e 23) que o Banco Réu no exercício da sua actividade de intermediário financeiro subscreveu em nome do Autor obrigações SLN 2004 debitando na conta do mesmo a quantia de 100.000,00 €. A licitude da actuação em nome de outrem bem como a movimentação das quantias depositadas numa conta bancária pressupõe a prévia habilitação para o efeito por parte daquele em nome de quem se age ou do titular da conta. Pelo que, não se tendo o Réu desincumbido do seu ónus de demonstrar aquela prévia habilitação, a actuação do Réu se haverá de ter (como foi tida no acórdão recorrido) por ilícita, não tendo qualquer eficácia relativamente ao Autor, conforme o disposto nos artigos 268º (no que tange à subscrição) e 798º (no que tange ao débito na conta) do CCiv.

Ocorre, porém, que essa ilicitude pode ser sanada pela posterior ratificação ou consentimento daquele em nome do qual se agiu ou do titular da conta (artigos 268º, 405º e 406º do CCiv).

A declaração dessa ratificação ou consentimento, na ausência de estipulação legal específica, está sujeita ao regime geral estabelecido no artigo 217º do CCiv: pode ser expressa ou tácita.

Não está estabelecida nenhuma exigência formal para as ordens de subscrição ou de movimentação de contas bancárias, pelo que nada obsta à relevância no caso de uma declaração tácita; ou seja, da adopção de uma conduta de onde se deduza, com toda a probabilidade, a anuência à subscrição das obrigações e à movimentação dos correspectivos valores.

A Relação considerou que o comportamento do Autor que, mesmo depois de ter, em 2008, tomado conhecimento da subscrição em seu nome das obrigações, continuou ao longo de vários anos a aceitar o pagamento dos juros dessas obrigações, correspondia a uma ratificação tácita da actuação do Réu.

Não cremos, porém, que tal comportamento, quer em face da exiguidade circunstancial apurada (mero conhecimento de que havia subscrito obrigações SNL, sem qualquer caracterização deste concreto instrumento financeiro) quer em face das circunstâncias pessoais do Autor (pedreiro com a 4ª classe), possa conduzir à dedução, com toda a probabilidade, da anuência à conduta levada a cabo pelo Réu. O que vemos aí é antes uma inércia decorrente da consideração de uma situação de impotência para se contrapor à actuação do banco; uma mera resignação e não uma ratificação.

Nesse sentido já se pronunciou o acórdão deste Supremo Tribunal de 30NOV2022 (proc. 10513/19.5T8PRT.P1.S1).

E visto nesta perspectiva o comportamento do Autor afasta igualmente a possibilidade de consideração da verificação de uma situação de abuso de direito pois nele não se vislumbra qualquer atentado à boa-fé ou susceptibilidade de geração de confiança.

Em face do que haverá de concluir, desde logo, que o Réu incumpriu as obrigações decorrentes do contrato de abertura de conta ao movimentar a débito a conta à ordem do Autor, sem que este tenha ordenado ou autorizado tal movimento. O que por si só é suficiente para constituir o Réu na obrigação de indemnizar o Autor no montante equivalente (artigo 798º do CCiv).

Por outro lado, tratando-se de responsabilidade contratual, não ocorre prescrição do direito à indemnização por o prazo aplicável ser o geral de 20 anos.

Ao montante correspondente ao capital ilicitamente retirado da conta do Autor haverá de abater o que nessa mesma conta foi creditado a título de juros das obrigações; bem como haverão de acrescer os correspondentes juros moratórios.


V – Decisão

Termos em que concedendo a revista, se revoga o acórdão recorrido e se condena o Réu a pagar ao Autor a quantia de 100.000,00 € (cem mil euros), deduzida do valor, a liquidar, dos juros referentes às obrigações SLN creditados na conta do Autor e acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

Custas, aqui e nas instâncias, pelo Réu.

Lisboa, 19JAN2023

Rijo Ferreira (Relatora)

Cura Mariano

Fernando Baptista