Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
10864/15.8T8LSB.L1.S1-A
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: FÁTIMA GOMES
Descritores: RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
EXAME PRELIMINAR
JUIZ RELATOR
CONFERÊNCIA
IMPEDIMENTOS
CONSTITUCIONALIDADE
Data do Acordão: 12/19/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: RECLAMAÇÃO IMPROCEDENTE
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – ACÇÃO, PARTES E TRIBUNAL / TRIBUNAL / GARANTIAS DE COMPETÊNCIA / CONFLITOS DE JURISDIÇÃO E COMPETÊNCIA – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 115.º, N.º 1, ALÍNEA E) E 692.º, N.OS. 1 E 2.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 18.º, 20.º, N.OS 1 E 4 E 203.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 07-06-2011, PROCESSO N.º 7005/06.6TBMAI.P1.S;
- DE 06-12-2012, PROCESSO N.º 373/06.1TBARC-A.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT.;
- PROCESSO N.º 24412/02.6TVLSB.LL.SL-A.

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:


- ACÓRDÃO N.º 403/2008;
- ACÓRDÃO N.º 281/2011.

Sumário :

I - Compete ao primitivo Relator, a quem o Recurso para Uniformização de Jurisprudência é distribuído para exame liminar, e, em caso de rejeição e reclamação, à Conferência, analisar os pressupostos de admissibilidade do recurso, incluindo a invocada oposição jurisprudencial - art. 692.º, n.os. 1 e 2, do CPC.
II - Sendo a própria lei que determina a competência do Relator e da Conferência para os efeitos referidos em I, é destituído de sentido invocar o impedimento previsto no art. 115.º, n.º 1, al. e), do CPC.
III - A interpretação referida em I não viola o disposto nos arts. 18.º, 20.º, n.os 1 e 4, 203.º, todos da CRP.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. Não conformado com o despacho da relatora que não admitiu o recurso para Uniformização de Jurisprudência, o recorrente apresentou reclamação e pedido de intervenção da conferência.

Foram apresentadas contra-alegações.

2. No seu pedido/reclamação, o reclamante suscita três questões: i) impedimento da relatora e do colectivo que decidiu o recurso de revista para intervir na decisão de admissão/não admissão do recurso para UJ, e eventual inconstitucionalidade das normas do CPC que regulam a intervenção da relatora e do colectivo (art.º692.º, n.º1 CPC), por violação dos art.ºs 20.º, n.º1 e 4 e 203.º da CRP; ii) invoca a nulidade do despacho individual de não admissão do RUJ; iii) pede a revogação da decisão individual, através de intervenção da conferência

2.1. Face ao teor da reclamação apresentada, são as seguintes as queses suscitadas que cumpre decidir:

a) Saber se verifica uma situação de impedimento do Relator (que proferiu a decisão singular que é objecto da presente reclamação), bem como do colectivo (isto é, dos Conselheiros que integram a Conferência e que conheceram da revista), para conhecerem agora da fase liminar do recurso para uniformização de jurisprudência, nos termos dos artigos 115.°, n.º1, alínea e), e 116.°, n.º 1, 2ª parte, do Código de Processo Civil;

b) Saber se se verifica a invocada inconstitucionalidade do art.º 692.°, n.º1, 3 e 4 do digo de Processo Civil, por alegada violação dos artigos 18.º, 20.°, n.º 1 e 4 e  203.° da Constituição da Reblica Portuguesa;

c) Saber se se verificam os requisitos do recurso para uniformização de jurisprudência justificativa da sua admissibilidade, maxime a invocada oposição de julgados.


II. Fundamentação

3. Como já foi expresso por este STJ em decisões em que se suscitavam as mesmas questões colocadas na presente reclamação para a conferência, muito em especial no Acórdão de Revista n.º 24412/02.6TVLSB.Ll.Sl-A, posição que aqui se segue e em parte se reproduz,  resulta do regime contido no artigo 688.° e seguintes do Código de Processo Civil, que o recurso para uniformização de jurisprudência comporta dois momentos distintos:

(i) um primeiro que se traduz na apresentação do recurso extraordinário, com obserncia dos requisitos ínsitos nos artigos 688.° a 690.°, cabendo ao Relator do acórdão recorrido a sua apreciação liminar e o correspondente saneamento (tanto mais que o recurso, uma vez interposto, é autuado por apenso aos autos no qual o referido aresto foi proferido); e

 (ii) um segundo momento, que apenas se verificará se o recurso for admitido pelo Relator ou, eventualmente, pela conferência (na hipótese de ter havido reclamação da decisão singular daquele e de esta assim o ter determinado), caso em que o processo será enviado à distribuição, nos termos do n.º 5 do citado normativo, a fim de, então, ser apreciado pelo Pleno das Secções Cíveis.

Será, pois, esta nova distribuição que permitirá assegurar, quanto ao acórdão de uniformização, o factor de aleatoriedade no que concerne ao seu relato para um colectivo diferente[1].

Esta nova distribuição constitui, de resto, uma inovação do novo digo de Processo Civil de 2013, já que no regime pretérito, mesmo depois de admitido o recurso, o primitivo Relator (isto é, o do acórdão recorrido) se mantinha.

Regressou-se, assim, com o novo Código de Processo Civil (sobretudo por força do aditamento do n.º 5 ao artigo 692.°, feito pela Comissão) à solução do antigo recurso para o Tribunal Pleno porquanto, como se disse, uma vez admitido o recurso (e não antes), o relator envia o processo à distribuição, havendo,então, um novo relator.

Eliminaram-se, desta forma, as críticas por parte de alguma doutrina à solução introduzida em 2007 que parecia pôr em causa a garantia de imparcialidade do relator[2] já que, nesse caso, o mesmo não se limitava a aferir da verificação dos pressupostos da admissibilidade do recurso, cabendo-lhe igualmente a apreciação da questão de mérito.

Tendo presente este quadro normativo, dúvidas não restam que é ao primitivo Relator, ao qual o processo é concluso para exame liminar, que compete analisar os pressupostos de admissibilidade do recurso, impondo-se a sua rejeição sempre que se verifiquem as situações enunciadas no artigo 692.°, n.° 1, do Código de Processo Civil, caso em que a parte poderá reclamar para a Conferência e em que competirá, então, a esta decidir da verificação dos ditos pressupostos, incluindo a invocada oposição jurisprudencial.

Se é a própria lei que determina que a competência para aferir desses pressupostos pertence ao Relator do acórdão recorrido ou, eventualmente, em caso de reclamação, à Conferência (isto é, ao Colectivo que proferiu a decisão posta em crise), é mais do que evidente que não existe qualquer impedimento por parte daqueles para fazerem essa apreciação, sendo, por conseguinte, destituído de sentido convocar para o caso o disposto no artigo 115.°, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil. É, por isso, inequívoco que o caso vertente não é subsumível à previsão legal. Na verdade, mal se compreenderia que pudessem estar impedidos para o exercício das suas funções precisamente o juiz ou os juízes aos quais, por expressa determinação da lei, compete proceder ao exame liminar do recurso a que se vem fazendo referência.

Por razões indicadas, inexiste qualquer impedimento - quer por parte do Relator, quer por parte Colectivo (isto é, da Conferência) - para proceder ao exame liminar do recurso para uniformização de jurisprudência, impondo-se, em consequência, o indeferimento da requerida reclamação nesse sentido.

4.  Da invocada inconstitucionalidade  - do artigo 692.°, n.ºs 1, 3 e 4, e 688.°, n.º 1, todos do Código de Processo Civil.

Conforme este STJ já teve oportunidade de decidir (cf. acórdão supra indicado, que se continua a seguir), do princípio do Estado de Direito democrático, consagrado no artigo 2.° da Constituição da República Portuguesa, decorre o princípio da protecção jurídica, deduzindo-se do mesmo, a exigência de um procedimento justo e adequado de acesso ao direito e de realização do direito.

O direito a um processo equitativo, ínsito no artigo 20.°, n.ºs 1 e 4, da Constituição, impõe que todo o processo deva estar informado pelo princípio da equitatividade em sentido amplo, o que significa que o processo deve ser justo não apenas na sua conformação legislativa, mas também estar informado, nos vários momentos processuais, pelos princípios materiais da justiça.

A garantia da imparcialidade do juiz constitui um corolário do direito a um processo equitativo (importando que o juiz que julga o faça com isenção e imparcialidade), é certo, mas não se vislumbra que, in casu, se verifiquem quaisquer das inconstitucionalidades que o reclamante suscitou.

A garantia de imparcialidade dos juízes está estabelecida no artigo 216.° da Constituição da República Portuguesa e traduz-se essencialmente em o cidadão poder confiar em que os seus assuntos submetidos à apreciação dos tribunais merecerão uma decisão imparcial, mantendo-se os juízes equidistantes em relação aos interesses particulares, devendo os juízes precaverem-se que perante a hipótese de conflito de interesses a sua decisão seja considerada como violadora dos seus deveres pessoais e funcionais.

Em relação à formação da conferência, nos termos acima assinalados, não se vê como essa garantia pode ser considerada violada.

Na verdade, não é pressuposto que quaisquer dos juízes que a compõem tenham qualquer interesse particular na questão a apreciar.

Nomeadamente, o facto de já ter havido uma decisão do relator, não significa que a decisão da conferência tenha de ser tida como parcial, uma vez que, sendo aquela constituída por três juízes, ela é tomada por maioria, após discussão - n.º 3 do artigo 659.° do Código de Processo Civil. Ou seja, a decisão tomada em conferência não é proferida da mesma forma da decisão tomada pelo relator. Ali trata-se de uma decisão colegial, antecedida de discussão. Aqui, de uma decisão singular, obviamente sem discussão anterior. Acresce que, in casu, a conferência nem tem a mesma composição, em virtude da nova composição do tribunal, com dois novos adjuntos.

Concluímos, pois, não haver violação de qualquer princípio ou preceito constitucional.

Adicionalmente, ainda se poderia acrescentar: é um facto que a decisão do relator de não admissão do recurso apenas é passível de reclamação para a conferência; porém, não é menos verdade que tal opção legislativa - de atribuir ao próprio tribunal recorrido a actividade judiciária de verificação dos pressupostos de admissão do recurso - não constitui uma solução que afecte, de modo desproporcionado ou excessivo, o direito de acesso aos tribunais previsto no artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, tanto mais que, conforme se vem afirmando repetidamente, é reconhecida ao legislador uma ampla margem de conformação na definição do regime procedimental que devem seguir os meios específicos para dirimir litígios e a reclamação para a conferência já oferece suficientes garantias de controlo jurisdicional da legalidade da decisão.

Repare-se que a reclamação para a conferência é o meio normal de reacção contra os despachos do relator, sendo corolário da ideia de que o verdadeiro titular do poder jurisdicional nos tribunais superiores é o órgão colegial. E, entre nós, o juiz designado como relator é sempre membro da formação de julgamento e intervém no acórdão em que a conferência aprecia a reclamação de decisões por si proferidas, quer a decisão singular que é objecto desse pedido de reapreciação resulte dos tradicionais poderes de preparar o processo para julgamento, quer consista no exercício dos mais alargados poderes que, após a reforma de 1995-1996 do Código de Processo Civil, se lhe reconhecem de decidir quaisquer questões prévias ou incidentais, bem como o próprio julgamento do recurso quando este seja manifestamente infundado ou verse sobre questões simples ou repetitivas. Assim não pode afirmar-se que a atribuição aos juízes recorridos da decisão de admissibilidade do recurso constitua uma restrição a esse direito, desnecessária ou desproporcionada, já que o que está em causa é somente uma escolha legislativa quanto aos juízes competentes para proceder à referida apreciação: os mesmos ou outros.

O facto de a escolha ter recaído nos primeiros não traduz a consagração de pressupostos processuais adicionais ou mais intensos; os pressupostos são exactamente os mesmos, quer a apreciação seja feita pelos mesmos juízes ou por outros. Por isso, a convocação destes parâmetros constitucionais é absolutamente impertinente para a conformidade da norma.

E nem se diga que o tribunal recorrido se está a pronunciar em "causa própria” ao tomar posição sobre a admissibilidade do recurso contra uma sua anterior decisão, já que, tal como acima se deixou dito, nessa fase procedimental o que está em causa é tão só e apenas a aferição acerca da verificação (ou não) dos requisitos de admissibilidade do recurso o que, como é evidente, não envolve a aplicação de quaisquer conceitos indeterminados, antes correspondendo a um exercício vinculado de avaliação de elementos objectivos, como sejam a legitimidade do recorrente, a tempestividade do recurso e, em concreto, a identidade da questão fundamental de direito sobre que existe divergência jurisprudencial, que pressupõe, naturalmente, a identidade dos respectivos pressupostos de facto (cf. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 403/2008).

Estando os tribunais sujeitos a critérios de isenção, objectividade e imparcialidade no exercício da sua actividade, não deixam de agir, em cada caso, de acordo com o direito, sob pena de, não o fazendo, poderem ficar sujeitos a sanções disciplinares ou incorrer em responsabilidade civil e criminal.

Não existem razões objectivas para considerar que o Relator não procede, na preparação da decisão liminar do recurso para uniformização de jurisprudência e na subsequente deliberação, com a mesma disposição de aplicar o direito ao caso concreto que teria se estivesse a exercer a sua competência de apresentar um projecto para decisão primária pelo órgão colegial. De igual forma, também não existem razões para concluir que os demais juízes que intervêm no Colectivo não tenham a disposição ou a capacidade necessárias para proceder a um exame autónomo das razões aduzidas pelo reclamante.

Como todos os pedidos de reponderação, ( ... ) a reclamação para a conferência repousa no pressuposto, indispensável ao funcionamento dos tribunais num Estado de Direito em que o estatuto dos juízes está dotado das necessárias garantias de independência e organização, de que o juiz possui em permanência a humildade e fortaleza de ânimo necessárias para examinar novos argumentos ou argumentos apresentados de modo mais convincente (cf. Acórdão n.º 281/2011) .

Pelas razões aduzidas, forçoso é concluir, na senda do que tem sido decidido pelo Tribunal Constitucional que, na situação que se vem analisando e face ao tipo de intervenção do juiz e às questões analisadas na primeira fase do processo, não há qualquer ofensa das normas e princípios constitucionais invocados por, na realidade, não estar em causa uma diminuição das garantias formais do processo, mas antes uma hipotética suspeição sobre os juízes a quem a lei atribui a competência legal para decidir.

Nesta conformidade, afigura-se que, não existindo violação de quaisquer das normas e dos princípios constitucionais que o reclamante invoca (dado que a Constituição não impede os juízes membros do colégio, autores do acórdão recorrido, de participarem na decisão de saber se tal acórdão se encontra em oposição com outro proferido anteriormente), os argumentos do reclamante em defesa da inconstitucionalidade têm necessariamente de naufragar.

5. Quanto à nulidade do despacho de não admissão do recurso por falta de invocação do impedimento do relator: a nulidade invocada apenas fazia sentido se o relator, ou a conferência, estivessem numa situação de impedimento.

Tendo-se afastado a questão do impedimento, tal como vem requerida pelo reclamante, tem de improceder a nulidade invocada.

6. A título subsidiário, para o caso de não procederem as questões que havia suscitado, solicita o reclamante um acórdão da conferência que se pronuncie sobre a admissão do recurso para uniformização de jurisprudência.

6.1. Anteriormente a Relatora do processo havia proferido despacho no sentido de não admissão do recurso, que veio justificado nos seguintes termos:

(transcrição parcial)
“3.3. Centrando-nos agora no recurso dos autos:
Sustenta a recorrida (neste recurso) que a falta de cumprimento, pelo recorrente, do ónus de formular conclusões sintéticas deve ser sancionado com a rejeição do presente recurso para uniformização de jurisprudência.
  O n.º 1 do artigo 639. º (que constitui uma norma geral, aplicável a qualquer recurso) formula a exigência de que as conclusões devem ser sintéticas. Tal exigência está em estreita conexão com a função delimitadora do objecto do recurso que àquelas é comummente reconhecida. Deve-se, por outro lado, notar que o ónus da concisão das conclusões deve ser perspectivado de acordo com “(…) um critério funcionalmente adequado, que tenha em consideração, não apenas a extensão material da peça apresentada (…) mas também a complexidade da causa e a idoneidade das conclusões para delimitar de forma clara, inteligível e concludente o objecto do recurso (…)”[3].
  No caso, atenta a extensão das conclusões que enformam o recurso para uniformização de jurisprudência (e que supra se acham transcritas) é possível afirmar que o recorrente não cumpriu, na íntegra, a exigência constante do n.º 1 do artigo 639.º a que faz menção a recorrida.
  Porém, no caso dos autos e apesar da evidente prolixidade das conclusões, é perfeitamente viável identificar a pretensão do recorrente e as questões por ela suscitadas, sendo de aceitar o recurso.
3.4. Vejamos então se existe a apontada contradição decisória.
Resulta das conclusões H) a K) acima transcritas que o dissenso apontado entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento se localiza num aspecto fundamental – a valoração dos factos susceptíveis de evidenciar a perda objectiva de interesse do credor, à luz do disposto no artigo 808.º do Código Civil – e, num aspecto lateral, a desnecessidade do recurso à interpelação admonitória.
Argumenta-se que, no que toca àqueles dois aspectos, o Acórdão deste Supremo de 7 de Junho de 2011, tirado no processo n.º 7005/06.6TBMAI.P1.S1, se decidiu, perante um quadro fáctico em tudo similar, em sentido distinto daquele que foi adoptado no acórdão recorrido.
3.4.1. Atentemos, em primeiro lugar, nos elencos factuais sobre os quais laboraram os dois acórdãos cotejados.
3.4.1.1. No acórdão recorrido as instâncias haviam dado como provado os seguintes factos:
  “1) O Réu é um fundo de investimento fechado de oferta particular por subscrição, representado, gerido e administrado pela Sociedade gestora GEF - Gestão de Fundos Imobiliários, S.A.
2) A 12 de Março de 2007, a Autora e a GEF - Gestão de Fundos Imobiliários, S.A., em representação do Réu, celebraram um acordo denominado "Contrato promessa de compra e venda" junto a fls. 35 a 43 do procedimento cautelar, cujo teor se dá por reproduzido, no qual o Réu prometeu vender à Autora a fração autónoma então em construção identificada pela letra "R", correspondente ao 2.° andar direito, do Bloco B - com dois lugares de estacionamento com os n.ºs ......no piso menos 1 -, do empreendimento designado "P...", sito na Rua ........... n.? ......e Rua ...... n.º...., em Lisboa, prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa com o n.º ..., da freguesia de ...., inscrito na respetiva matriz sob o artigo 2624, da freguesia de Santa Maria Maior.
3) O preço global da compra e venda da fração prometida foi fixado em € 1.500.000.00 (um milhão e quinhentos mil euros), a pagar nas seguintes condições (cf. Cláusula Segunda, n.º 1, do Doc. n.º 2):
- Na data da assinatura do contrato a Autora pagaria a quantia de € 150.000 (cento e cinquenta mil euros), correspondente a 10% do preço, a título de sinal e princípio de pagamento;
- No prazo de 3 meses a quantia de € 75.000 (setenta e cinco mil euros), correspondentes a 5% do preço;
- No prazo de 6 meses a quantia de € 75.000 (setenta e cinco mil euros), correspondentes a 5% do preço;
- No prazo de 9 meses a quantia de € 75.000 (setenta e cinco mil euros), correspondentes a 5% do preço;
- Na data da outorga da escritura pública de compra e venda, a quantia de 1.125.0000 (um milhão cento e vinte cinco mil euros), correspondente a 75% do preço.
4) Com o acordo da representante do Réu, e dado que entretanto se tinham verificado atrasos nas obras de construção do empreendimento, a Autora pagou, através de três cheques bancários, os seguintes montantes:
- € 150.000, a 9 de Março de 2007;
- € 150.000, a 16 de Outubro de 2007;
- € 75.000, a 18 de Março de 2008.
5) Pelo que a Autora entregou à representante do Réu o montante de € 375.000,00 correspondente à totalidade da quantia que deveria ser paga antes da realização da escritura pública de compra e venda.
6) No contrato referido em 2 ficou acordado entre as partes que caberia à Promitente Vendedora a marcação da escritura pública de compra e venda que deveria ser outorgada no prazo de 12 meses a contar da data do primeiro pagamento, sendo que a Promitente Compradora aceitava que tal prazo pudesse ser estendido até 90 dias após emissão da licença de utilização relativa à fração prometida vender, caso a emissão de tal licença só viesse a ocorrer depois de findo o prazo inicial de 12 meses (Cláusula Quinta).
7) A licença de utilização em causa só veio a ser emitida em 29/12/2009, conforme Alvará de utilização n.º000000.
8) A Autora pretendia, como era do conhecimento dos representantes do Réu, utilizar a fracção objecto do contrato promessa para nela estabelecer o lar da sua família, isto é para nela residir com carácter de permanência com o seu marido e com os seus filhos.
9) Durante todo este período (desde meados de 2010 até maio de 2014), o Réu nunca contactou a Autora com vista à formalização do contrato prometido.
10) Com data de 14.5.2014, a Autora enviou à sociedade gestora do Réu uma carta, recebida a 16 de Maio de 2014, através da qual declarou designadamente que «(...) atendendo ao tempo decorrido e aos prejuízos emergentes, serve a presente para solicitar a devolução do sinal, acrescido de juros calculados à taxa EURIBOR a 6 meses, acrescida de I%, desde Abril de 2010, no prazo razoável de 50 dias a contar da receção da presente» (documento de fls. 90-93 do procedimento, cujo teor se dá por reproduzido).
11) Com data aposta de 15.5.2014, o Réu dirigiu à Autora a carta de fls. 100-101 do apenso, cujo teor se dá por reproduzido, nos termos da qual declara que «vimos pela presente marcar a realização da escritura para o próximo dia 2 de junho de 2014, pelas 16 horas no Cartório Notarial Dra. .....(. . .)». Essa carta foi acompanhada por Caderneta Predial Urbana obtida via internet em 2014-05-16. Tal carta foi entregue no correio no dia 16.5.2014 (documento de fls. 109 do procedimento, cujo teor se dá por reproduzido).
12) Com data de 26.5.2014, a Autora dirigiu ao Réu a carta de fls. 94 do apenso, cujo teor se dá por reproduzido, recebida em 28.5.2014, nos termos da qual afirma «Tive conhecimento na passada sexta-feira, dia 23/5, da existência de um aviso postal para levantamento de um envio m e, que V Exas. Eram os remetentes, que foi remetido para uma morada que não corresponde ao meu domicílio (Tr........, nºs (...) / Não me foi possível proceder ao seu levantamento, pelo que peço o seu envio, caso o pretendam, para a minha morada correta, identificada acima.»
13) O Réu respondeu por carta datada de 18 de Junho de 2014 junta a fls. 98-103 do procedimento, cujo teor se dá por reproduzido, com a qual junta cópia da carta referida em 10.
14) A Autora respondeu à carta referida em 11 por carta datada de 27.6.2014 junta a fls. 104-106 do procedimento, cujo teor se dá por reproduzido, recebida em 30.6.2014, concluindo que «(…) não reconheço qualquer incumprimento do contrato que me possa ser imputável, pelo que caso não seja restituído o sinal, nos termos e condições acordadas, reservo-me o direito de agir na defesa dos meus direitos (...)».
15) Atenta a delonga na marcação da escritura e subsequente entrega da fração prometida vender, a Autora, juntamente com o seu marido, encontraram uma outra solução para estabelecerem a residência da família, tendo optado por recuperar uma antiga casa de família, sita na T.........., imóvel em que realizou obras de recuperação e modernização e onde reside com a sua família desde junho de 2010.
16) Por escritura pública outorgada em 8.9.2014, o Réu vendeu a fração autónoma referida em 2 a um terceiro pelo preço declarado de um milhão e trezentos mil euros (documento de fls. 47-49, cujo teor se dá por reproduzido).
17) Foram introduzidas as seguintes alterações na fisionomia do apartamento, a pedido da Autora:
i) A área da sala de jantar foi reduzida e, consequentemente, aumentada a área da sala;
ii) O "quarto da empregada", com entrada junto à cozinha, foi eliminado, passando a existir uma passagem/porta entre esse quarto e a suite principal; iii) A casa de banho com 3,48m2, que servia a zona da cozinha e o quarto da empregada, foi convertida em zona de arrumas;
iv) O pavimento inicialmente previsto foi substituído pelo soalho "tauári".
18) A alteração do soalho, que foi efetivamente executada, teve um custo de € 17.705,93.”.

3.4.1.2. No acórdão fundamento foi, por sua vez, tido em consideração o seguinte quadro fáctico:
“1. Por contrato promessa de compra e venda e venda, outorgado em 07/07/2002, os A prometeram comprar à Ré, que lhes prometeu vender, uma moradia tipo T5, provisoriamente designada pela Moradia ....., a edificar no prédio sito na Rua.........., n° ......, e Rua ......., na freguesia de Nogueira, concelho da Maia, descrito na Conservatória do Registo Predial da Maia sob o n°000000, com o alvará de licença de construção n° ...., emitida pela Câmara Municipal da Maia, conforme melhor consta do documento junto aos autos,  a fis. 14 a 16, cujo teor aqui é dado como reproduzido (Alínea A)).
2. A moradia prometida adquirir seria construída de acordo com a memória descritiva anexa ao contrato promessa e que constitui o documento junto aos autos a fls. 17 e 18, cujo teor aqui é dado como reproduzido (Alínea B)).
3. Na mesma data, os Autores celebraram com a Ré um aditamento ao contrato promessa atrás referido, nos termos do qual, pelo preço adicional de € 62.500,00, mandaram executar os trabalhos e melhorias de acabamentos vários, melhor descritos no documento junto aos autos a fls. 20 e 21, cujo teor aqui é dado como reproduzido (Alínea C)).
4. O preço convencionado no contrato promessa foi de € 187.500,00, a que acresce o preço previsto no mencionado aditamento, no montante de € 62.500,00 (Alínea D)).
5. Os Autores procederam, nas respectivas datas de vencimento, ao pagamento do sinal e reforços de sinal, previstos na cláusula terceira do contrato promessa, tendo entregue à Ré, até ao momento, a quantia global de € 100.000,00 (Alínea E)).
6. De acordo com a cláusula quinta do referido contrato promessa, a escritura de compra e venda deve ser outorgada até 30 dias após a emissão da licença de habitabilidade, prevendo-se a outorga da mesma até Junho de 2004, e devendo a Ré informar os Autores, por escrito, aquando da obtenção da referida licença (Alínea F)).
7. De acordo com a cláusula sétima do referido contrato promessa, os Autores terão de informar a Ré do dia, hora e Cartório Notarial onde se realizará a referida escritura, com antecedência mínima de 15 dias, por carta registada com aviso de recepção (Alínea G)).
8. De acordo com a cláusula oitava do referido contrato promessa, a moradia prometida vender será entregue no acto da escritura de compra e venda, devoluta de pessoas e coisas e em perfeitas condições de utilização (Alínea H)).
9. Em Setembro de 2004, a obra não estava concluída, não podendo ser marcada a escritura da moradia (Alínea I)).
10.  A partir desta data, os Autores passaram a interpelar a Ré, na pessoa da sua gerente, de quinze em quinze dias, exigindo o acabamento da moradia e a marcação da escritura (Alínea J)).
11.  A Ré, na pessoa da sua gerente, ia sempre informando os Autores que o acabamento da obra e a escritura estariam para breve, o que não sucedia (Alínea L)).
12.  A Ré enviou aos Autores, que a receberam, a carta que está junta aos autos a fls. 27, datada de 22/11/2004, cujo teor aqui é dado como reproduzido (Alínea M)).
13.  Os Autores estavam de tal forma desesperados que, em 14/11/2005, a Autora remeteu à gerente da Ré o e-mail que constitui o documento juntos aos autos a  fls. 32 a 34, cujo teor aqui é dado como reproduzido (Alínea N)).
14.  Em 19/10/2006, a moradia continuava por acabar (Alínea O)).
15.  Por escritura pública celebrada em 20/07/2005, a Ré declarou vender à sociedade Vale....... – Gestão e Empreendimentos Imobiliários, Lda., que declarou 13/30 indivisos do prédio urbano identificado em A) (Alínea P)).
16.  Por escritura pública celebrada em 20/07/2005 a Ré e a sociedade Vale Gordo - Gestão e Empreendimentos Imobiliários, Lda procederam à constituição da propriedade horizontal do edifício construído no prédio identificado em A), composto por trinta fracções autónomas distintas, independentes e isoladas entre si, destinadas a futuras vendas, descritas com a indicação dos respectivos destinos, percentagens e valores no documento complementar que integra a referida escritura (Alínea Q)).
17.  Na mesma escritura, a Ré e a sociedade V...... – Gestão e Empreendimentos Imobiliários, Lda procederam à divisão da compropriedade, adjudicando as fracções autónomas “C”, “D”, “E”, “F”, “G”, “H”, “I”, “J”, “N”, “O”, “P”, “Q”, “R”, “S”, “T”, “U’” e “V à primeira e adjudicando as fracções autónomas “A”, “B “ , “K”, “L”, “M”, “W”, ;’X”, “Y”, “Z”, “AA”, “AB”, “AC” e “AD” à segunda (Alínea R)).
18.  A licença de habitabilidade relativa ao edifício construído no prédio identificado em I) ainda não foi emitida pela Câmara Municipal da Maia (Alínea S)).
19.  Em Abril de 2004, a sociedade Norasil – Sociedade de Construção Civil S.A. propôs contra a Ré um procedimento cautelar de arresto, que correu termos sob o nº 4441/04.6TBMAI-A no 5° Juízo deste Tribunal e que terminou com a transacção, celebrada em 15/07/2004, constante do documento junto aos altos a fis. 60 a 62, cujo teor aqui é dado como reproduzido (Alínea T)).
20.  A mesma sociedade propôs contra a Ré uma acção ordinária, que correu termos sob o n° 4441/04.6TBMAI no 5° Juízo deste Tribunal e que terminou com a transacção, celebrada em 15/07/2004, constante do documento junto aos autos a fls. 55 a 59, cujo teor aqui é dado como reproduzido (Alínea U)).
21.  A Ré garantiu aos Autores que teria pronta a moradia no prazo indicado no contrato promessa (Item 4°).
22.  Em 23/04/2004, os Autores celebraram com a sociedade “.........– Mediação Imobiliária Lda, o contrato que constitui o documento junto aos autos a fls. 22, aqui dado como reproduzido (Item 5°),
23.  Os Autores celebraram o referido contrato na convicção de que teriam de outorgar a escritura da moradia prometida comprar até ao final do mês de Junho de 2004 (Item 6°).
24.  Essa convicção teve, pelo menos, por base o teor da Cláusula 5ª do contrato-promessa descrito nos autos (Item 7°).
25.  Porque convictos de que a escritura de compra e venda seria celebrada brevemente, e porque lhes apareceu um comprador, os Autores procederam à venda do seu apartamento em 27/08/2004 (Item 11).
26.  Os Autores mudaram-se provisoriamente para uma pequena casa, propriedade do pai da Autora mulher, sita na Rua ........ n°...., rés do chão em Leça do Balio, na convicção de que em Setembro iriam habitar a moradia prometida comprar (Item 12°).
27.  A casa para onde mudaram era mais pequena do que a anterior e do que aquela objecto do contrato-promessa, dificultando a recepção de visitas (Item 13°).
28.  Os Autores procederam à compra e montagem dos electrodomésticos na moradia prometida comprar (Item 17°).
29.  Em Agosto de 2005, pelo menos os arranjos exteriores à moradia não se encontravam prontos (Item 18°).
30.  Durante o ano de 2006, os Autores viram-se compelidos a procurar uma outra casa, pois não conseguiam manter a família a viver na casa em que provisoriamente se instalaram (Item 27°).
31.  Os seus dois filhos menores queixavam-se continuamente da falta de espaço a que estavam sujeitos (Item 28°).
32.  Desde a data da venda do seu apartamento, os Autores passaram a receber a família e amigos menos vezes em sua casa do que acontecia anteriormente (Item 29°).
33.  Em Junho de 2006, os Autores procederam à compra de uma moradia, onde hoje moram (Item 30°).
34. A moradia prometida vender aos AA corresponde à fracção autónoma identificada pela letra “V” na escritura pública referida nos itens 16) e 17) (Item 31). 
3.4.2. Tendo presentes estes quadros fácticos, vejamos agora como o acórdão recorrido e o acórdão fundamento resolveram a questão jurídica da perda de interesse na prestação. 
3.4.2.1. A respeito da valoração dos factos provados como sendo evidenciadores da perda objectiva de interesse, escreveu-se no acórdão recorrido:
 “No presente processo está em causa saber se existiu ou não incumprimento do contrato-promessa que justificasse a respectiva resolução (ou rescisão) pela A., ou mais amplamente, quem incumpriu o contrato, a Autora ou o Réu. A questão relativa à imputação da responsabilidade pelo incumprimento do contrato conduzirá à resposta de saber se o valor pago a título de sinal fica a pertencer ao Réu, ou tem de ser devolvido à Autora.
Considerando, no entanto, que são as conclusões que delimitam o âmbito do recurso, as questões suscitadas pela A., ora recorrente são as seguintes:
1) Saber se dos factos provados se pode retirar a conclusão de que a autora havia perdido objectivamente o interesse na celebração do contrato definitivo, ou se apenas se poderia considerar demonstrado um interesse subjectivo; (…)
16. No que respeita à questão da determinação da natureza - objectiva ou subjectiva - da perda do interesse da promitente compradora, dos autos consta:
1. A A. celebrou o contrato promessa com vista a adquirir uma casa para nela estabelecer o seu lar, residindo em permanência com a família (marido e filhos) - facto 8
2. O contrato foi outorgado em 2007 - facto 2;
3. A licença de utilização é de 29/12/2009, devendo a escritura ser feita até 90 dias após a mesma - facto 6 e 7;
4. Em 2014 ainda não fora outorgada a escritura, nem tinha sido feita qualquer tentativa de marcação da data entre meados de 2010 e maio de 2014 - facto 9;
5. A marcação da escritura era da responsabilidade do R;
6. A R. vendeu o imóvel por escritura outorgada a 8 de Setembro de 2014 a terceiro;
7. A A. e o marido encontraram outra solução para a residência da família - devido à delonga na marcação da escritura e subsequente entrega da fracção, onde reside desde Junho de 2010 - facto 15.
Dos autos também consta que foi considerado não provado o facto 25 dos temas da prova.
Neste tema dizia-se: "Por essa razão unicamente, a A. fez saber que não tinha intenção de cumprir o contrato promessa", sendo que a expressão "essa razão" se reportava ao recebimento de outra casa por herança.
Não tendo sido provado este facto, está por demonstrar que a A. tenha declarado rescindir o contrato apenas porque recebeu uma casa alternativa - o que significa que não se pode concluir que o recebimento de uma nova casa tenha sido o motivo único e determinante da atitude da A. para com a R.
A quem competia provar este facto? Em regra os factos devem ser provados por aquele dos sujeitos a quem o facto aproveita. Naturalmente que sendo um facto impeditivo do direito da A., em regra, o ónus da prova competia ao R. (art.º 342.°, n.º 2 CC). No caso concreto, a demonstração de que a A. perdeu o interesse na compra da casa porque recebeu outra que para si constituiu uma alternativa de habitação, impendia sobre o R., não tendo este logrado convencer o tribunal de que perda do interesse na aquisição resultara (apenas ou principalmente) da solução encontrada através de uma casa alternativa.
Não tendo sido feita essa prova, deve o tribunal aplicar o direito aos factos provados e nessa aplicação tomar em consideração as regras sobre a repartição do ónus da prova, relativamente aos factos não provados. Estando suscitada a questão de saber se a perda do interesse foi determinada - única ou fundamentalmente - pela obtenção de casa de habitação alternativa, e não tendo sido provado esse facto, ter-se-á de considerar que a prova do mesmo aproveitaria ao R., que assim via facilitada a demonstração da falta de objectividade da perda do interesse da A.
Não sendo o caso, e atendendo ao que seria a atitude do homem médio perante a situação descrita e provada nos autos - sem a prova do carácter determinante da mudança de ideias se fundar no encontrar de habitação alternativa - é de considerar que a celebração do contrato definitivo se arrastou por muito tempo e para além do razoável (também para além do expectável em termos de normalidade na aquisição de casas para habitação de famílias): desde a entrega da primeira prestação do sinal (2007) até Junho de 2010 passou muito tempo sem que o contrato definitivo fosse outorgado; desde a entrega da primeira prestação do sinal até Maio de 2014, data da resolução, passaram mais de 6 anos sem que o contrato definitivo fosse outorgado, e sem que a escritura fosse sequer marcada, não obstante a A. já se encontrar a morar noutra casa que cumpria, para si, os requisitos necessário à instalação da sua família.
Que promitente-comprador poderia objectivamente ser considerado como interessado numa casa para morar com a sua família nestas circunstâncias, sobretudo nas temporais?
No entender deste tribunal os factos provados são suficientes para justificar que a A. tinha motivos válidos para "perder objectivamente o interesse no contrato" e, em consequência, lhe reconhecer o direito à sua rescisão/resolução.”
3.4.2.2. Sobre aquele mesmo aspecto, expendeu-se no acórdão fundamento:
“Ora, no caso dos autos, os AA visavam com o contrato-promessa, em 07-07-2002, a futura, até 30-06-2004, aquisição de uma habitação; logo, por via da declaração negocial de alienação do direito de propriedade pela Ré, promitente-vendedora (prestação-acção), a satisfação para futuro da necessidade de habitação familiar (prestação-resultado).
E, convencidos de que (e confiando em que) o contrato-promessa seria cumprido, celebraram contrato de mediação imobiliária com vista à alienação da fracção autónoma que então habitavam.       
Venderam essa fracção em 24-08-2004, apesar de nesta data, a Ré já se encontrar em mora, sempre confiando no cumprimento em breve do contrato-promessa.
Mudaram-se então para uma casa mais pequena que aquela que habitavam e alienaram e que a que tinham prometido comprar e que não satisfazia as suas necessidades de espaço, passando a receber a família e os amigos menos vezes que na casa que alienaram.
Entretanto, a partir de Setembro de 2004, não estando a obra concluída, passaram a interpelar a Ré, na pessoa da sua gerente, de 15 em 15 dias para concluir a moradia e marcar a escritura, respondendo esta sempre que o acabamento e a escritura estavam para breve e, em 22-11-2004, depois da missiva remetida pela Autora, em 14-11-2004, via email - e cujo teor a fls. 32-34 aqui se dá por reproduzido - à Ré, esta comunicou aos AA, em 22-11-2004 designadamente, que, caso pretendessem efectuar alteração de mobiliário de cozinha, o deveriam fazer no prazo de 30 dias, sob pena de ser instalado o idêntico na “Casa Modelo”.
No entanto, em 19-10-2006 – data da instauração desta acção - a moradia continuava inacabada e sem licença de habitabilidade.
Em Junho de 2006, porém, os AA adquiriram uma moradia onde actualmente habitam.
Quer dizer: os factos mostram que mais de dois anos depois, a Ré continuava em mora…,
Dificilmente deixará de se configurar para qualquer pessoa de elementar e razoável bom senso (bonus pater familiae) a inexigibilidade de subsistência da vinculação a um contrato – para cuja concretização e nela acreditando programou um investimento que envolvia (como, de facto, envolveu) a alienação da fracção autónoma que habitava, passando a habitar em casa emprestada que não dispunha das comodidades da que alienara – depois de sucessivas e infrutíferas interpelações para a outorga da escritura.
Mas a exigência de um critério objectivo de apreciação do interesse na prestação e da respectiva perda restringe esta aos casos de frustração do fim da prestação – a aquisição da moradia prometida vender - e de realização do fim da prestação por via diversa do cumprimento – transferência da propriedade da moradia por outro meio que não o cumprimento do contrato-promessa.
Quer dizer: a conversão da mora em incumprimento definitivo pela via da perda de interesse na prestação pressupõe a frustração do fim desta ou a realização do seu fim por outra via que não a do cumprimento.
Como é óbvio, nenhum destes casos se verifica no caso em apreço: nem o cumprimento do contrato-promessa, por causa da mora, se tornou objectivamente impossível, nem os AA adquiriram, por qualquer outra forma jurídica, a propriedade daquela concreta moradia prometida vender, impossibilitando também por essa via, aquele cumprimento.
Se a prestação é um meio para satisfazer o interesse do credor, só interessa a este enquanto meio para atingir esse resultado; logo, enquanto for possível obter o resultado, não há - objectivamente, entenda-se - perda de interesse.
É certo que os AA alegam que, com a compra que fizeram em Junho de 2006 – quase dois anos após a constituição em mora – terem perdido o interesse no contrato-promessa.
Mas aí o interesse desapareceu, não por causa da mora, mas directa e imediatamente por causa de uma outra decisão negocial dos AA com vista a substituir a aquisição visada com o contrato prometido.
O art.º 808.º, n.º1 CC, porém, é explícito: “Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação…”
Logo, a mora só determina a perda objectiva de interesse no cumprimento do contrato-promessa quando a celebração do contrato prometido já não tenha qualquer valor para o credor por este haver deixado de ter qualquer vantagem ou utilidade (interesse) na declaração negocial prometida do devedor moroso. (…)
Não basta a simples diminuição do interesse do credor, exigindo-se, antes, uma perda efectiva desse interesse, isto é, uma perda subjectiva com justificação objectiva. Tem de ser, pois, uma perda absoluta e completa, traduzida, via de regra, no desaparecimento da necessidade que a prestação visava satisfazer.
Saliente-se, entretanto, que a perda do interesse tem de resultar da mora no cumprimento e não de qualquer outra circunstância” (itálico nosso).
Não há, portanto, desaparecimento do interesse dos AA no cumprimento do contrato-promessa.
E a demonstrá-lo está o negócio de substituição que eles realizaram com vista a satisfazer a sua necessidade de habitação; quer dizer, não obstante a persistência do incumprimento temporário da Ré, a necessidade de habitação dos AA subsistia e só por via de tal negócio (efectuado em Junho de 2006) foi ou terá sido satisfeita.
Por outras palavras: a necessidade de habitação - na qual radicam os motivos típicos dos AA que os determinaram a celebrar o contrato-promessa e os fins por eles visados com o contrato de compra e venda prometido - continuava por satisfazer adequadamente; logo, presidindo à apreciação da perda de interesse na prestação uma perspectiva objectivista (com as características de generalidade e de abstracção que a afastam da subjectividade), forçoso é reconhecer que, não obstante a duração da mora e a daí decorrente razão de queixa dos AA, o interesse no cumprimento do contrato-promessa subsistia.
Como, sem margem para dúvidas, o demonstra a comunicação de fls. 12-13, remetida pela Autora, reveladora do seu interesse (subjectivo) no contrato prometido.
O que se verifica é, pois, uma mora de duração prolongada da Ré, à qual os AA foram anuindo. (…) Por conseguinte, celebrado contrato-promessa de compra e venda de bem destinado a satisfazer necessidade permanente e duradoura – como é a de habitação - e incurso em mora o promitente vendedor, tal incumprimento temporário, só por si e independentemente da sua duração, não determina a perda objectiva de interesse no cumprimento daquele contrato e a sua consequente resolução.”.
3.4.3. Conhecidos os quadros fácticos e o conteúdo das orientações sustentadas num e noutro aresto, é de considerar que o que se inscreveu nas conclusões N) a O) a respeito das contradições detectadas não encontra ali integral correspondência.
 Importa, sobretudo, destacar que as alegações ali contidas não permitem evidenciar o particular circunstancialismo de cada um dos casos – o que, estando em causa uma apreciação casuística como aquela que é comandada pelo artigo 808.º do Código Civil, se revela dificilmente compreensível – e ainda a delimitação dos objectos de cada uma das revistas.
E essas diferenças mostram-se particularmente relevantes para os resultados deliberativos postos em confronto.
No caso apreciado no acórdão fundamento, os autores (promitentes-compradores) fundavam a alegação da perda de interesse no cumprimento do contrato-promessa de compra e venda no facto de terem adquirido uma outra habitação cerca de dois anos após a constituição da promitente-vendedora em mora. Em face disso o mesmo aresto concluiu no sentido de que o desinteresse por eles evidenciado pelo cumprimento do contrato promessa de compra e venda ajuizado assentava na decisão aquisitiva e não na mora da contraparte, sendo, como tal, desinteressante para desencadear o efeito por eles preconizado.
Diferentemente, no caso dos autos, era o ora recorrente (promitente-vendedor) que sustentava que a perda de interesse da recorrida (promitente-compradora) no cumprimento do contrato-promessa de compra e venda derivava, única ou fundamentalmente, da obtenção de uma casa de habitação alternativa. Não se apurou, contudo, que fosse essa a razão pela qual a recorrida manifestou ao recorrente a intenção de não cumprir o acordado (relembre-se o que se escreveu acerca da  não demonstração dos factos inseridos no tema da prova n.º 25).
Daí que, perante a não demonstração desse facto, o acórdão recorrido tenha valorado factos eminentemente objectivos. Considerou-se, muito em súmula, que o decurso do período de seis após a primeira entrega da primeira prestação do sinal e o decurso de quatro anos após a data acordada para o recorrente marcar a escritura do contrato prometido eram, independentemente do facto de a recorrida ter obtido uma outra habitação, suficientes para, numa perspectiva objectiva, caracterizar uma perda de interesse na celebração do contrato definitivo que se teve como juridicamente relevante.
Estamos, pois, perante decisões que, embora tenham abordado a questão da perda objectiva de interesse na prestação no âmbito do contrato promessa de compra e venda, fizeram-no sob diferentes pontos de vista e em face de enquadramentos fácticos diversos, o que, logicamente, conduziu a resultados dissemelhantes. O único ponto de identidade – o facto de, em ambos os casos, os promitentes-compradores terem adquirido uma habitação durante o período em que perdurou a mora das respectivas contrapartes – é, neste contexto e devidamente enquadrado, manifestamente insuficiente para concluir no sentido pretendido pelo recorrente.
3.5. Ao contrário do que refere o recorrente, o acórdão fundamento, para avaliar o cariz objectivo da perda de interesse na prestação, não procedeu a uma apreciação valorativa dos concretos lapsos do tempo que resultam da factualidade tida nesses autos como provada. Na verdade, as considerações que, à margem do thema decidendum delineado pelos recorrentes, tece sobre a questão possuem uma índole meramente genérica e não atendem à facticidade provada.
Extrai-se, pois, a conclusão de que, quanto àquele aspecto essencial, não existe qualquer contradição decisória que sustente a pretensa oposição de julgados. Por outras palavras, não nos deparamos com arestos que, pela aplicação díspar dos mesmos preceitos ou institutos jurídicos, hajam resolvido em sentido diverso e de forma explícita a mesma questão jurídica: o acórdão fundamento não debateu a questão de saber se o decurso de lapsos prolongados de tempo ou que, pelo menos, ostentassem alguma similitude com aqueles que resultam da factualidade provada nestes autos é, por si só, suficiente para desencadear o efeito jurídico a que alude o n.º 1 do artigo 808.º do Código Civil; o acórdão recorrido não abordou a questão da necessidade da interpelação admonitória.
3.6. Quanto a esta última questão, vejamos, ainda, se a contradição invocada se manifesta.
Sobre a necessidade de recurso à interpelação admonitória para converter a mora do recorrente em incumprimento definitivo, afirmou-se no acórdão fundamento:
“E com isso entramos na apreciação da outra via de conversão do incumprimento temporário em incumprimento definitivo: a fixação de prazo final e peremptório para cumprimento.
Tem lugar através da chamada notificação admonitória, porque o credor pode ter “legítimo interesse em libertar-se do vínculo que recai sobre ele, na hipótese de o devedor não cumprir em tempo oportuno” (…)
O que se compreende: se uma das partes não cumpre a outra não tem que ficar vinculada…e, por isso, tem todo o interesse em se retirar do contrato, através da resolução deste.
Para isso, o art.º 808.º, n.º1 confere-lhe o poder de fixar ao devedor em mora um derradeiro prazo suplementar no qual este ainda pode efectuar a prestação sob pena de, não o não o fazendo, já não lhe interessar a prestação originariamente convencionada, o que significará a exclusão, a partir do termo desse prazo, do direito ao cumprimento. (…)
É a chamada conversão do incumprimento temporário (mora) em incumprimento definitivo através da notificação admonitória.  (…)
Mas não foi esse o caminho seguido pelos AA, recorrentes que, depois de tolerarem durante cerca de dois anos o atraso na celebração da escritura, enveredarem pela aquisição de outra casa (negócio de substituição) sem previamente terem desencadeado, por esta via da interpelação admonitória, a resolução do contrato-promessa.
As sucessivas interpelações quinzenais, porque não fixavam um prazo final, terminante e categórico, decorrido o qual, eles deixavam de estar interessados no cumprimento do contrato-promessa, não eram idóneas para operar tal resultado. (…)”.
O acórdão recorrido, contudo, não se debruçou sobre a premência de a promitente-compradora se socorrer da interpelação admonitória para converter a mora em incumprimento definitivo. Aliás, os próprios termos em que o recorrente enuncia a pretensa contradição evidenciam isso mesmo (cfr. a parte final da conclusão K.) – é que tal questão foi apenas abordada e tratada na perspectiva do recorrente/promitente-vendedor, em termos que aqui não relevam.
3.7. Pode ainda dizer o seguinte: tendo os arestos em causa concluído em sentido diverso quanto à verificação da perda objectiva de interesse, a abordagem da necessidade de formulação de uma interpelação admonitória por parte do promitente-comprador sempre seria necessariamente distinta. Com efeito, a solução dada àquela primeira questão sempre contenderia com a resposta a dar à segunda questão, pois, em face da lei substantiva, estamos perante temas indissocialvelmente ligados entre si.
Desse modo, afigura-se ser inevitável a conclusão de que, também quanto a este aspecto lateral, não existe qualquer contradição decisória entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento.
4. Não se verificam, por isso, os pressupostos em que, nos termos acima expostos, assenta a existência de uma verdadeira oposição de julgados que determine a afectação da força de caso julgado formado pelo acórdão recorrido.
Pelos motivos indicados, somos levados a concluir que, por intermédio do presente recurso, a recorrente pretende voltar a discutir o mérito do acórdão recorrido (neste sentido, cf. o teor da parte final da conclusão Q. e da conclusão R. acima transcritas)
Verifica-se, pois, que não existe a oposição de julgados que, nos termos legais antes expostos, fundamenta o presente recurso extraordinário (cfr. n.º 1 do artigo 688.º), impondo-se sua rejeição liminar (n.º 1 do artigo 692.º CPC).
Pelo exposto, não se admite o recurso extraordinário de uniformização de jurisprudência apresentado.
Custas pelo ora recorrente, outrora recorrido.”

6.2. O reclamante não se conforma com a decisão, apelidando-a de “bastante formalista” e indicando no seu requerimento as razões da sua discordância ( à luz de uma análise crítica da decisão reclamada).

Considerando que os fundamentos do recurso já haviam sido analisados e considerados no despacho da relatora, e sem que as afirmações e conclusões indicadas na reclamação tenham logrado um convencimento do tribunal em sentido diverso, considerando ainda que o entendimento deste STJ tem acolhimento na decisão singular proferida[4], nada mais havendo a acrescentar, quer relativamente aos pressupostos gerais de admissão do RUJ, quer à analise da situação concreta de alegada oposição de acórdão, entende-se ser de manter o despacho de não admissão do recurso, que assim se confirma.

De acordo com o entendimento dos requisitos e pressupostos do RUJ, à luz do acórdão recorrido e do acórdão fundamento, nos termos das alegações e conclusões do recurso oportunamente apresentado, não estão reunidos os requisitos do recurso para uniformização de jurisprudência justificativos da sua admissibilidade, maxime a invocada oposição de julgados.


III. Decisão

Termos em que improcede a reclamação, confirmando-se o despacho reclamado.

Custas pelo reclamante (3 UC).

Lisboa, 19 de Dezembro de 2018

Fátima Gomes

Acácio Neves

Maria João Vaz Tomé

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[1] vide, neste sentido, António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 3a edição, Almedina, Coimbra, 2016, p. 442 e ss
[2] cfr. Armindo Ribeiro Mendes, Recursos em Processo Civil - A Reforma de 2007, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 201 e 202.
[3] Cita-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Dezembro de 2012, proferido no processo n.º 373/06.1TBARC-A.P1.S1 e acessível em www.dgsi.pt.
[4] Cf. os aresto de UJ proferidos por este STJ (in www.stj.pt) e as condições da admissão dos recursos extraordinários, a fim de se compreender os motivos que conduzem a uma interpretação restritiva (ou formalista, como indica o reclamante) deste tipo de recursos.