Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
342/12.4TBFAF.G2.S2
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: FONSECA RAMOS
Descritores: PRINCÍPIO DA INTANGIBILIDADE DA OBRA PÚBLICA
DIREITO DE PROPRIEDADE
RESTITUIÇÃO DE IMÓVEL
PRESSUPOSTOS
VIOLAÇÃO DA LEI
DOLO
EMBARGO DE OBRA NOVA
DECISÃO JUDICIAL
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
VIA DE FACTO
MUNICÍPIO
EXPROPRIAÇÃO
DISPOSIÇÃO DE BENS ALHEIOS
ACTO ADMINISTRATIVO
ATO ADMINISTRATIVO
ILEGALIDADE
SANAÇÃO
CULPA
ABUSO DO DIREITO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 09/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – DIREITO DAS COISAS / DIREITO DE PROPRIEDADE / DEFESA DA PROPRIEDADE / ACÇÃO DE REIVINDICAÇÃO.
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS E DEVERES ECONÓMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS / DIREITO DE PROPRIEDADE PRIVADA.
Doutrina:
- Alves Correia, Manual do Direito do Urbanismo, volume II, 4ª edição, Coimbra 2008, p. 807-808;
- Ana Raquel Gonçalves Moniz, O Domínio Público - O Critério e o Regime Jurídico da Dominialidade, Almedina, 2006, Arrêt Robin de la Grimaudière, de 07-07-1853;
- Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7ª edição, p. 536;
- Fernando Alves Correia, Manual do Direito do Urbanismo, volume II, Almedina, 2010, p. 353;
- Fernando Cunha e Sá, Abuso do Direito, p. 640;
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4ª edição, Coimbra, 2007, p. 801;
- Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, p. 454 a 456 e 466;
- Raquel Filipa da Silva Ferreira, A justa indemnização no contexto da expropriação de terrenos, Universidade Lusófona do Porto – Faculdade de Direito, Porto, 2012, p. 268 e ss.;
- Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, volume II, p. 268.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1311.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 62.º.
Referências Internacionais:
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM (DUDH): - ARTIGO 17.º, N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 05-02-21015, PROCESSO N.º 742/10.2TBSJM.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 29-04-2010, PROCESSO N.º1857/05.4TBMAI.S1;
- DE 18-02-2014, PROCESSO N.º 934/11.7TBOAZ.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 29-04-2010, PROCESSO N.º 1857/05.4TBMAI.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 15-04-2015, PROCESSO N.º 100/10.0TBVCD.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 05-02-2015, PROCESSO N.º 2125/10, IN WWW.DGSI.PT;

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ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL ADMINISTRATIVO:

- DE 06-02-2001, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 16-01-2008, ACÓRDÃO N.º 0853/07.
Jurisprudência Internacional:
TRIBUNAL EUROPEU DOS DIREITOS HUMANOS (TEDH):

- 30-05-2000, CASO BELVEDERE ALBERGHIERA S.R.L. VS. ITÁLIA;
- DE 08-03-2006, CASO GUISO-GALLISAY VS ITALY […];
- 03-06-2014, CASO ROSSI AND VARIALE VS. ITÁLIA.
Sumário :

I. O princípio da intangibilidade da obra pública encerra, conceitualmente, a ponderação das consequências da violação do princípio da legalidade da Administração Pública, quando apesar da sua actuação à margem da lei, redunda na prossecução do interesse público.

II. No direito francês o princípio da intangibilidade da obra pública e a teoria da via de facto são conhecidos desde o século XIX: “L´ouvrage public mal planté ne se détruit pas”: foi criação da jurisprudência francesa, concretamente, a partir do Arrêt Robin de la Grimaudière, de 7.7.1853.

III. A via de facto, traduz clara violação do direito de propriedade, como afloração de um direito fundamental – art. 62º da Constituição da República e art. 17, nº1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

IV. No caso, não pode ser atendida a pretensão do Réu Município, porquanto a sua actuação ilegal não assenta em procedimento afectado por erro desculpável; bem ao invés, o Réu actuou de forma dolosa, em deliberada atitude ofensiva do direito de propriedade dos Autores que, apesar de ter sido defendido em juízo e aí reconhecido no expedito meio cautelar de que lançaram mão, não o impediu de dispor sem indemnização dos bens imóveis de que se apossou.

V. Por aplicação do principio referido em 2., não consagrado em lei escrita, a restituição do bem objecto da expropriação de facto só dá lugar à indemnização aos lesados e não à restituição do bem, se existir, apesar da violação da lei, clara desproporção entre o beneficio público da obra ou afectação do bem pela entidade pública que cometeu a ilegalidade, e o custo e as consequências de tal restituição, devendo esta ser decretada em casos de grosseira violação da lei.

VI. Há violação grosseira do direito de propriedade dos autores, lesados pela actuação do Réu, se tendo este procedido a expropriação de facto, nem sequer acatou a decisão judicial proferida em procedimento cautelar de embargo de obra nova que sancionou a ilegalidade da sua continuada actuação.

Decisão Texto Integral:
Proc.324/12.4TBFAF.G2.S2

R-675[1]

Revista


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA e BB, instauraram, no Tribunal Judicial da Comarca de Fafe, agora Comarca de Braga Fafe – Inst. Local – Secção Cível – J1, em 9.2.2012, acção declarativa, com processo comum e sob a forma ordinária, contra:

  Município de CC, representado pela Câmara Municipal de CC.

 Pedindo que:

a) Se reconheça que os autores são donos e possuidores do prédio correspondente a terreno com área de 60 m2, onde se encontrou edificado o pretérito “Uma casa com área coberta de 60m2 com quatro divisões com o número de Policia …, sito na ...”, prédio não registado na Conservatória do Registo Predial, correspondente ao artigo matricial ... da freguesia de CC, as confrontações seria sul Praça da …, nascente ... e poente ...;

b) Se determine a desocupação e a devolução do prédio à sua configuração à data da demolição, com a área livre e desimpedida das construções que nele foram implantadas, e a sua entrega aos autores;

c) Se condene o Réu a pagar aos AA. indemnização por todas as quantias que recebeu a título de licenças passadas para o local, quer a título de ocupação para venda de pão, quer a título de publicidade, as quais devem ser liquidadas em execução de sentença, após informação do seu valor pelo Réu.

Para o efeito e em síntese, os autores alegaram que são donos e legítimos possuidores de um prédio urbano com 60 m2, com o número de polícia 29, sito na ..., inscrito a favor da A. mulher, na matriz predial urbana de CC, sob o artigo …° da freguesia de CC, tendo a eles advindo por escritura de habilitação de herdeiros e doação de 11 de Julho de 1985, onde a mulher o recebeu em doação de seu tio ..., e que lhes pertence, quanto mais não seja, por força do instituto da usucapião.

Em Outubro de 1987, o Réu demoliu abusivamente o edifício daquele prédio, apropriando-se dos respectivos materiais, mas, por acórdão de 16.09.1992, proferido na acção n.º 103/87, do Tribunal de CC, foi reconhecido o direito de propriedade dos aqui AA. relativamente à casa de habitação que possuíam no prédio e, posteriormente, na acção n.º 145/93 do mesmo tribunal, por Acórdão de 18.05.2001, o Réu foi condenado a indemnizar a Autora por danos patrimoniais relativos à demolição daquele edifício, na quantia de esc. 3.290.420$00 e por danos não patrimoniais na quantia de esc. 1.000.000$00, decisões que transitaram em julgado.

No local ficou o terreno, com a área de 60 m2, onde se encontrava a edificação demolida, na intersecção da Praça ... com a Rua ... e a Travessa ..., da freguesia de CC, sendo que parte desse terreno está agora ocupada pela Praça ..., de onde o Réu retirou terras, pedras e guias de passeios que se encontravam em toda a extensão da sua frente, invadindo-o em cerca de 5 metros de profundidade e prejudicando a sua delimitação. Para além disso, abriu ali vala e colocou argolas para o saneamento de águas pluviais e respectivas tampas.

Na fase de execução dessas obras de construção, os autores instauraram procedimento para embrago de obra nova, prevenindo maiores danos.

Entendem que o prédio deve ser desocupado e devolvido à configuração que tinha à data da demolição do edifício, com a área livre e desimpedida das construções que nele foram implantadas e assim seja entregue aos autores.

O R., durante anos, cobrou rendas e licenças pela utilização do terreno para aplicação de publicidade estática e venda de pão, devendo indemnizar os autores por essa utilização não consentida, nem que seja por enriquecimento ilegítimo do R.

Regularmente citado, o Réu contestou a acção, defendendo-se por impugnação e por excepção (cfr. fls. 25 a 30), invocando, em síntese, que em 15 de Abril de 1985 o Município comprou o prédio contíguo convencido que o prédio identificado pelos autores dele fazia parte, mas os demandantes, apercebendo-se de que se tratava de um artigo matricial autónomo, lograram depois obter, em Julho de 1985, por doação do vendedor daquele prédio, a transmissão da propriedade do prédio do nº…, reclamando de seguida os direitos decorrentes da demolição e ocupação do seu prédio.

Reconhecendo a existência dos processos identificados pelos autores e a sua obrigação no pagamento de indemnizações nos termos das condenações neles proferidas, conclui que “dúvidas não há que, quer pela aquisição inicial, quer pela condenação judicial, o Município Réu adquiriu a totalidade dos direitos de propriedade dos prédios que foram do referido ..., demolidos e ocupados pelo Município Réu, quer para o alargamento da Praça ..., quer para beneficiação das concordâncias da mesma com a Rua e Travessa ..., quer para a construção de passeios e para a instalação de mobiliário urbano de publicidade, de que cobra as respectivas taxas de ocupação do domínio público municipal; (...) Passando ambos os prédios a integrar o domínio público desde que foram demolidos". Entende o Município que indemnizou o valor do prédio por si ocupado e integrado no domínio público, in totum, incluindo a construção que aí havia.

Replicaram os Autores, negando a má-fé que o réu lhes imputa e a inclusão do prédio no domínio público, argumentando ainda que a indemnização que receberam dele respeitou apenas à demolição abusiva que fez da construção então existente no terreno dos autores (cfr. fls. 32 a 38).

Realizou-se audiência preliminar, iniciada com uma tentativa de conciliação, que se frustrou, tendo de seguida sido elaborado despacho saneador, no qual se afirmou a validade e regularidade da instância; procedeu-se, ainda, à selecção da matéria fáctica admitida por acordo (factos assentes) e controvertida (base instrutória), que não mereceu reclamação de qualquer uma das partes (cfr. fls. 70 a 76).

Posteriormente, teve lugar a audiência de discussão e julgamento, em cujo início as partes acordaram em aditar determinados novos factos aos factos assentes (cfr. actas de fls. 119 a 123).

De seguida, foi proferida sentença, datada de 22/11/2013, que julgou parcialmente procedente a acção (cfr. fs. 124 a 134):

«a) Reconhecendo que os AA. são donos e possuidores do prédio correspondente a terreno com área de 56 m2, onde se encontrou edificado o pretérito “Uma casa com área coberta de 60m2 com quatro divisões com o número de polícia 29, sito na ...”, prédio não registado na Conservatória do Registo Predial, correspondente ao artigo matricial …º da freguesia de CC, confrontando a sul com a Praça ..., nascente ... e poente ...;

b) Condenando o Réu a desocupar e a devolver o prédio à sua configuração anterior às obras levadas a efeito pelo Réu no ano de 2011, com a área livre e desimpedida das construções feitas durante e posteriormente esse período, bem como a entregá-lo aos AA;

c) Condenando o Réu a pagar aos AA. a quantia de € 4.419,22, acrescida de juros vencidos e vincendos, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento».

Interposto recurso pelo Réu Município (cfr. fls. 138 a 172), o Tribunal da Relação de Guimarães proferiu o Acórdão de 13.10.2014 (cfr. fls. 234 a 280), que julgou totalmente improcedente a apelação, mantendo a decisão recorrida, alterando, embora, os pontos 9 e 17 da matéria de facto provada da sentença da 1ª instância, nos seguintes termos:

“9. Os AA., por si e seus antecessores, construíram o prédio identificado em B), habitaram-no, vigiaram-no, pagaram os impostos devidos e neles fizeram obras, ou consentiram que as fizessem.

17. Invadindo o prédio em alguns metros de profundidade”.

Desse Acórdão recorreu o Réu Município para o Supremo Tribunal de Justiça, por revista excepcional, invocando como fundamento da sua admissibilidade os requisitos das alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 672º do Código de Processo Civil - (cfr. fls. 286 a 311).

Sustentou o Réu que o terreno em apreço deve ser considerado integrado no domínio público, visto que, em parte dele se situa a Praça ... e, por outro lado, a Ré está a efectuar na parte restante obras públicas de saneamento e alargamento da via pública.

Invocou que a decisão recorrida é contraditória com a jurisprudência do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24.08.2008.

Após ter sido admitida a revista excepcional intentada pelo Réu Município (cfr. fls. 354 a 357), por Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28.05.2015 (cfr. fls. 368 a 375) foi decidido ter havido omissão de pronúncia do acórdão do Tribunal desta Relação, nulidade prevista pela 1ª parte da alínea d), do n.º 1 do artigo 615º do Código de Processo Civil, relativamente à questão colocada pela recorrente na alínea GG) das conclusões de recurso – atinente ao “ (…) princípio da intangibilidade da obra pública, segundo o qual, em casos de inexistência de violação grosseira das regras da expropriação, a restituição deve ser substituída pela indemnização, atento o dano que causaria ao interesse público a restituição (…) ” –, pelo que, na procedência da revista, ordenou a baixa dos autos a fim de ser reformada a decisão recorrida, com a apreciação da identificada questão.

Na sequência e por determinação do referido Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, o Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão de 17.09.2015, procedeu à reforma do acórdão de 13.10.2014, tendo considerado nula a sentença proferida na primeira instância e, bem assim, o acórdão produzido em 2ª instância, determinando a baixa dos autos à 1ª instância a fim de ser ampliada a matéria de facto nos termos referidos, sem prejuízo da apreciação de outros pontos da matéria de facto, a fim de evitar contradições, e a apreciação do vício da omissão de pronúncia reconhecido pelo Supremo Tribunal de Justiça, retirando as necessárias consequências jurídicas em sede de sentença (cfr. fls. 394 a 400).

Em obediência ao citado acórdão, a 13.11.2015 foi proferido em 1ª instância despacho que acrescentou à base instrutória quatro quesitos (cfr. fls. 410), o qual foi objecto de reclamação pelo réu, desatendida por despacho de 17/12/2015 (cfr. fls. 415, 416 e 418).

Posteriormente, teve lugar a realização da audiência de discussão e julgamento (cfr. actas de fls. 449 a 452).


***

 

O Mmº. Julgador a quo proferiu de seguida sentença (cfr. fls. 477 a 489), datada de 27.10. 2016, que culminou com o seguinte dispositivo:

“Pelo exposto, julgo:

A.

Parcialmente procedente a acção:

a) Reconhecendo que os AA. são donos e possuidores do prédio correspondente a terreno com área de 56 m2, onde se encontrou edificado o pretérito “Uma casa com área coberta de 60m2 com quatro divisões com o número de polícia 29, sito na ...”, prédio não registado na Conservatória do Registo Predial, correspondente ao artigo matricial …º da freguesia de CC, confrontando a sul com a Praça ..., nascente ... e poente ...; 

b) Condenando o Réu a desocupar e a devolver o prédio à sua configuração anterior às obras levadas a efeito pelo Réu no ano de 2011, com a área livre e desimpedida das construções feitas durante e posteriormente esse período, bem como a entregá-lo aos AA;

c) Condenando o Réu a pagar aos AA. a quantia de € 4.419,22, acrescida de juros vencidos e vincendos, contados desde a citação até efectivo e integral pagamento.

B

Parcialmente improcedente a acção, absolvendo o Réu da parte restante dos pedidos formulados pelos Autores”.


***

Inconformado, o Réu interpôs recurso de apelação (cfr. fls. 494 a 507) para o Tribunal da Relação de Guimarães, que, por Acórdão de 11.1.2018 – fls. 526 a 567 –, negou provimento ao recurso confirmando a sentença recorrida.


***

Inconformado, ainda, o Réu interpôs recurso de revista excepcional para este Supremo Tribunal de Justiça, recurso que foi admitido pela Formação, por Acórdão de 14.6.2018, com fundamento nas alíneas a) e b) do nº1 do art. 671º do Código de Processo Civil.

Alegando formulou as seguintes conclusões:

A. O presente recurso é de revista excepcional e baseia-se nas als. a), b) e c) do n.º 1 do art.° 672° do N.C.P.C., por estar em causa questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito – al. a), por estar, também, em causa interesse de particular relevância social – al. b), e por o Acórdão da Relação recorrido estar em contradição com outro, já transitado em julgado, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito al. c).

B. Estão em causa questões cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, são claramente necessárias para uma melhor aplicação do direito, designadamente, no que toca à apreciação do conhecimento da aquisição para o domínio público, sendo esta aquisição um meio de impedir a restituição de uma parcela de terreno que se encontra afecta ao domínio público e está a ser utilizada para alargamento de uma via e colocação de infra-estruturas, tais como canalização de águas pluviais e passeios.

C. Por outro lado, estando a parcela de terreno reivindicada integrada no domínio público, passou a estar fora do comércio jurídico, já não sendo assim possível a sua subtracção a este estatuto, por via da acção de reivindicação, havendo assim uma expropriação de facto.

D. Tal questão, como foi avançado pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão proferido, em 24/08/2008, no recurso de revista n° 1929/08, 1ª Secção, nos autos da Acção de Processo Ordinário, n° 1786/03.6TB0ER, do lº Juízo de Competência Cível de Oeiras (anterior 5° Juízo Cível), em que é Relator o Ex.mo Conselheiro Moreira Camilo, cuja certidão se encontra junta, é de difícil resolução.

E. Tais questões são de essencial relevo jurídico, pois requerem um estudo aprofundado e um especial esforço interpretativo, cuja apreciação Supremo se mostra necessária para uma melhor aplicação do direito.

F. Por outro lado, estão em causa, também, interesses de particular relevância social, pois a acção proposta contra o recorrente é uma acção de reivindicação de uma parcela de terreno que se encontra afecta ao domínio público e, que, segundo o recorrente, já foi paga aos recorridos no âmbito de uma outra acção já transitada em julgado.

G. Torna-se, portanto, socialmente determinante apurar se no caso existe aquisição para o domínio público, mesmo que essa aquisição não tenha sido precedida de qualquer formalidade ou processo de expropriação, já que tal situação pode envolver, como envolve efeitos futuros, alterações na configuração da via alargada em virtude da ocupação da parcela reivindicada, parcela esta que se encontra a ser utilizada pela colectividade, seja como passeio, seja nas infra-estruturas públicas de águas pluviais e, ainda, na utilização de outdoors.

H. Como se defende nas presentes alegações de recurso, os Autores, recorridos, já se encontram indemnizados pela ocupação da parcela reivindicada, o que poderá consubstanciar uma situação de abuso de direito.

I. Pelo que, no presente recurso, não estão em causa meros interesses das partes, antes estando em causa um interesse comunitário significativo, que ultrapassa a dimensão inter partes.

J. A relevância social da questão decorre, ademais, de estar em causa uma parcela de terreno integrada no domínio público, que, por isso, passou a estar fora do comércio jurídico, já não sendo possível a sua subtracção a este estatuto por via da acção de reivindicação.

K. Pois, a propriedade privada desempenha, também, um fim social que, quando necessário, deve ceder perante interesses públicos, designadamente, utilização para o domínio público, como seja a construção ou alargamento de infra-estruturas.

L. O Tribunal recorrido, ao não reconhecer a questão da integração da parcela no domínio público, e, consequentemente, a aceitação e qualificação de tal facto como uma expropriação de facto, o que acarreta a impossibilidade de a mesma ser objecto de uma acção de reivindicação, por não poder voltar à propriedade dos Autores, decidiu de forma oposta e contraditória à decisão proferida no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão do no recurso de revista n° 1929/08 – 1ª Secção, nos autos da Acção de Processo Ordinário, n°1786/03.6TBOER, do 1° Juízo de Competência Cível de Oeiras (anterior 5° Juízo Cível).

M. Pois, naquele Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, já transitado em julgado, numa questão semelhante, em que se apreciava uma acção de reivindicação do direito de propriedade relativo a uma parcela de terreno ocupada pelo Município de DD, o douto tribunal deste Supremo entendeu que, apesar de o Município não ter provado os factos que alegou, conducentes à aquisição originária, e que, por isso, não poderia adquirir a propriedade, o problema a equacionar – e que as instâncias desprezaram – é bem diferente, seria de uma “expropriação de facto”.

N. Numa situação em tudo semelhante à dos presentes autos, este douto Supremo Tribunal de Justiça, chamado a decidir, decidiu que na prática havia uma expropriação de facto e que esta impedia que a parcela de terreno já afecta ao domínio público fosse restituída aos proprietários, uma vez que, após a sua afectação ao domínio público, não poderia regressar ao domínio privado, através de uma simples acção de reivindicação.

O. Ao contrário do que decidiu o Acórdão recorrido, resulta inequivocamente do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido a 5 de Dezembro de 2002, junto sob o doc.1 com a oposição ao procedimento cautelar apenso, que a indemnização recebida pelos Autores na acção que correu termos sob n.°145/93 não respeitou apenas ao edifício e aos materiais que o Réu se apoderou mas respeitou, também, ao terreno onde o edifício se encontrava construído, e não apenas à edificação.

P. De igual modo, resulta que, aquando da liquidação em execução da sentença que correu termos sob o processo nº564/07, o Supremo Tribunal de Justiça, mais uma vez, foi chamado a pronunciar-se sobre o valor a fixar a título de indemnização pelos prejuízos patrimoniais, e veio esclarecer que “O que aqui se verifica é exactamente a situação idêntica a que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça enfrentou. E tal como então se decidiu, também aqui se decidirá que o que interessa ter em conta é a pergunta contida no quesito e a resposta que lhe foi dada, e esta não distingue entre o valor do solo e o valor da construção. O que dele resulta é o valor do prédio em questão, e é esse o valor que interessa para o efeito da presente liquidação”.

Q. Estabelece o art°. 334° do C. Civil que “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.

R. Tendo em conta a matéria de facto provada, não podiam os Autores desconhecer que o Réu já os indemnizou, encontrando-se, nessa medida, ressarcidos por todos os prejuízos causados, não só pela demolição do prédio, como também pela perda do terreno respectivo.

S. Mesmo que se verificasse o reconhecimento do direito de propriedade sobre a parcela de terreno em causa nos autos, tal reconhecimento não acarretaria a restituição da mesma aos Autores, na medida em que a mesma foi paga pelo Réu, que se encontra na posse dela.

T. A condenação do Réu em desocupar e devolver o prédio aos Autores, repondo-o no estado anterior em que se encontrava antes da actuação levada a cabo entre finais de Outubro e inícios de Novembro de 2011, é manifestamente injusta e abusiva e ilegítima.

U. Tanto mais que não se provou nos presentes autos qual era o estado do terreno anterior às referidas obras;

V. Ao não ter apreciado e concluído pela verificação do abuso de direito, violou o douto acórdão apelado o artigo 334.° do Código Civil;

W. Como consta dos factos provados, o Réu, após a demolição do edifício, integrou no domínio público o terreno onde o mesmo se encontrava implantado, tendo colocado argolas para saneamento público, águas pluviais e respectivas tampas (ponto 18) e o terreno foi durante anos ocupado por placas de publicidade tipo “outdoors” e, em período de festas vendedores de pão, tendo o Município beneficiado dessa utilização, o que consubstancia afectação de um bem aos fins do domínio público do Réu.

X. A atribuição (formação) do carácter dominial (ou seja, a aquisição ou submissão de um bem aos fins do domínio público (utilidade pública) de uma coisa não está sujeita à disciplina fixada no Código Civil para a transmissão de bens imóveis, designadamente a nível de forma.

Y. In casu acto de afectação da coisa cedida aos fins da utilidade pública representou por si só a aquisição do respectivo domínio, por parte do Réu da parcela de terreno em causa.

Z. Assim, a tradição material do terreno para o domínio público caracterizou-se pela demolição do prédio e afectação do terreno a equipamentos públicos como sendo passeios e via pública.

AA. Da factualidade dada como provada resulta que a parcela reivindicada pelos Autores, como sendo sua propriedade, na prática consubstancia uma expropriação de facto, passando a parcela de terreno após a demolição a integrar o domínio público.

BB. E, integrando a parcela o domínio público, a mesma passou a estar fora do comércio jurídico, não sendo possível a sua subtracção a este estatuto por via da acção de reivindicação.

CC. O Tribunal recorrido, ao não reconhecer a questão da integração da parcela no domínio público e, consequentemente, a aceitação e qualificação de tal facto como uma expropriação de facto, o que acarreta a impossibilidade de a mesma ser objecto de uma acção de reivindicação, por não poder voltar a propriedade dos autores, decidiu contrariamente à decisão proferida no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça já transitado em julgado que, de seguida, se identifica.

DD. Assim, o Acórdão recorrido está em manifesta contradição/oposição com o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 24/08/2008, no recurso de revista n°1929/08 – 1ª Secção, nos autos da Acção de Processo Ordinário, n° 1786/03.6TB0ER, do 1° Juízo de Competência Cível de Oeiras (anterior 5° Juízo Cível), em que é Relator o Ex.mo Conselheiro Moreira Camilo.

EE. Pois, naquele Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, já transitado em julgado, numa questão semelhante, em que se apreciava uma acção de revindicação do direito de propriedade relativo a uma parcela de terreno ocupada pelo Município de DD, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que, apesar de o Município não ter provado os factos que alegou, conducentes à aquisição originária e que, por isso, não poderia adquirir a propriedade, o problema a equacionar – e que as instâncias desprezaram – é bem diferente.

FF.    O Tribunal apreciou assim a questão, no domínio de uma acção de reivindicação, mas à qual o recorrente, Município, poderia opor uma “expropriação de facto”, fundamentando a sua decisão no facto de: segundo o artigo 202.° do Código Civil “Diz-se coisa, tudo aquilo que pode ser objecto de relações jurídicas”.

GG. Acrescentando que: “ Consideram-se, porém, fora do comércio todas as coisas que não podem ser objecto de direitos privados. Tais como as que se encontram no domínio público e as que são, por sua natureza, insusceptíveis de apropriação individual”, n.°2 do mesmo artigo.

HH. Conforme alegado pelo Réu, resultou provado, nos pontos 12 e 13 dos factos provados, que os dois prédios foram totalmente demolidos mesmos antes da realização das escrituras públicas de compra e venda e doação, mencionadas nos pontos 4 e 7 dos factos provados.

II. Mais resultou provado que parte do terreno dos prédios identificados nos pontos 1 e 2 encontra-se ocupada pela actualmente designada Praça ... e que no mesmo foram construídos passeios, encontrando-se assim a parcela afecta ao domínio público.

JJ. Assim, salvo melhor entendimento, o recorrido Tribunal da Relação de Guimarães podia e devia ter apreciado o recurso, tendo em conta que a parcela se encontra afecta ao domínio público e no âmbito de uma expropriação de facto e não de direito, desde a sua demolição em 1987, o que consubstancia a sua imediata aquisição por “dicatio ad patriam”.

KK. É manifesto que existe contradição de julgados, contradição entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento vindo de mencionar.

LL. Aplicando os ensinamentos do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, vindo de referir, “perante uma situação como esta, de facto consumado, em que a parcela passou a integrar o domínio público, a estar fora do comércio jurídico, … não é possível a subtracção a este estatuto por via da acção de reivindicação.”

MM. Assim, embora, o tribunal recorrido reconhecesse que os Autores são donos e legítimos proprietários da parcela de terreno reivindicada, não podia, assim como a primeira instância, ter ordenado a restituição da mesma aos Autores.

NN. A condenação do Réu a pagar aos autores a quantia de € 4.419,22, a título de responsabilidade civil relativa aos benefícios com licenciamentos concedidos para uso não autorizado do prédio reivindicado, a título de enriquecimento sem causa, não tem qualquer fundamento, reconhecendo-se a afectação da parcela de terreno (prédio) ao domínio público e, consequentemente, não operando qualquer restituição.

OO. Ao considerar os Autores como donos e legítimos possuidores do prédio objecto de reivindicação e ao ordenar a restituição do mesmo, violou o douto Acórdão recorrido, entre outros, o disposto nos artigos 202.°, 334.°, 1268.°, 1287.°e 1311.°, n.°2 (a contrario), todos do Código Civil.

PP.    De igual modo, ao condenar o Réu, recorrente, a restituir aos Autores a parcela de terreno, o Acórdão recorrido está em manifesta oposição com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido em 24/08/2008, no recurso de revista n° 1929/08 – 1ª Secção, nos autos da Acção de Processo Ordinário, n°1786/03.6TB0ER, do 1° Juízo de Competência Cível de Oeiras anterior 5° Juízo Cível, em que é Relator o Exmo. Conselheiro Moreira Camilo.

Nestes termos, e nos demais de direito que por Vossas Excelências, Venerandos Conselheiros, serão supridos, deve o presente recurso ser admitido e julgado procedente, e, por via disso, ser revogado o douto Acórdão recorrido, julgando-se totalmente improcedente a acção intentada pelos Autores, assim se fazendo inteira JUSTIÇA.

Não houve contra-alegações.


***

Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos:

1. Encontra-se inscrito a favor da Autora mulher, na matriz predial urbana de CC, sob o artigo ...º da freguesia de CC, com a seguinte descrição matricial: "Uma casa com área coberta de 150 m2 com seis divisões com os números de polícia 30 a 36, da Travessa ... – ... – (situada na Praça ...), prédio esse não registado na Conservatória do Registo Predial" (cfr. alínea A) dos factos assentes);

2. Encontrou-se inscrito na matriz predial urbana de CC, sob o artigo 481º da freguesia de CC, com a seguinte descrição matricial: “ Uma casa com área coberta de 60 m2 com quatro divisões com o número de Policia 29, sito na ...”, prédio não registado na Conservatória do Registo Predial (cfr. alínea B) dos factos assentes);

3. Ambos os prédios referidos nos números anteriores pertenceram a ... Neto, tio da A. (cfr. alínea C) dos factos assentes);

4. O prédio identificado no facto provado número 2., adveio ao domínio dos Autores por escritura de habilitação de herdeiros e doação de 11 de Julho de 1985, lavrada no Livro de Escrituras Diversas n.º … de fls. 88 vs/ a 99 do Notário desta cidade, onde a mulher os recebeu em doação do referido tio ... (cfr. alínea D) dos factos assentes);

5. Por escritura de habilitação de herdeiros e doação de 11 de Julho de 1985, lavrada no Livro de Escrituras Diversas n.º … de fls. 88 vs/ a 99 do Notário desta cidade, a A. mulher ficou proprietária de uma casa de habitação situada na Rua ... e Praça ... nesta cidade, com o n.º … de polícia, ali identificado como inscrito na matriz urbana sob o artigo ...º da freguesia de Fafe (cfr. alínea H) dos factos assentes);

6. A escritura de habilitação de herdeiros e doação referida nos números 4. e 5. anteriores, padece de lapso na identificação do prédio aí mencionado como objecto de doação, por não tratar da casa identificada no facto provado número 1., mas sim da “casa com quatro divisões, com o número de polícia 29, sita na ...”, inscrita na matriz urbana predial de CC, sob o art.º 481º urbano da freguesia de Fafe (cfr. alínea Q) dos factos assentes);

7. O prédio identificado no facto provado número 1., adveio ao domínio da Câmara Municipal de CC por escritura de compra e venda de 15 de Abril de 1985, lavrada no Livro de Notas n.º 31 do Cartório Privativo da Câmara Municipal de CCC a fls. 4 a 5 vs, onde a Câmara Municipal de CC o recebeu por compra e venda do referido ... (cfr. alínea E) dos factos assentes);

8. A escritura pública de compra e venda outorgada a 15 de Abril de 1985, referida no facto provado anterior, padece de lapso na identificação do número do artigo matricial objecto da compra e venda, porquanto à casa aí descrita “…com área coberta de 150 m2, com seis divisões e com número de polícia de 30 a 36 (…), sita na ..., inscrita na matriz sob o artigo …º…”, corresponde o artigo ...º da matriz urbana de CC, e não o …º referido (cfr. alínea R) dos factos assentes);

9. Os AA., por si e seus antecessores, construíram o prédio identificado no facto provado número 2, habitaram-no, vigiaram-no, pagaram os impostos devidos e neles fizeram obras, ou consentiram que as fizessem (redacção introduzida pelo acórdão do TRG de 13.10.2014 – artigo 1º da base instrutória);

10. O que sucedeu durante mais de 30 anos anteriores à demolição referida nos factos provados números 12. e 13., continuando, depois dessa data a pagar os impostos (cfr. artigo 2º da base instrutória);

11. Os actos referidos nos números anteriores foram praticados à vista de todas as pessoas, de forma ininterrupta, na convicção e intenção de que o mesmo lhes pertencia (cfr. artigos 3º a 5º da base instrutória);

12. O prédio que a Câmara Municipal adquiriu para demolir, que já havia sido demolido na data referida, foi a casa térrea, com 6 divisões e 150 m2, sito onde actualmente se situa a Praça ..., correspondente à descrição que consta do facto provado número 1. (cfr. alínea F) dos factos assentes);

13. A Câmara Municipal de CC procedeu à completa destruição e demolição dos dois prédios identificados nos factos provados números 1. e 2. (cfr. alínea G) dos factos assentes); 

14. Parte da área de terreno dos prédios identificados nos factos provados números 1. e 2., encontra-se ocupada pela actualmente designada Praça ... desta freguesia de Fafe (cfr. alínea I) dos factos assentes);

15. No local onde se encontrava o prédio urbano demolido, correspondente ao artigo urbano 481º da freguesia de CC, ficou o terreno com área total de 56,00 m2, contido na planta junta a fls. 52 dos autos de procedimento cautelar apensos pela representação a tracejado na intercepção da Praça ... com a Rua ... e a Travessa ... (cfr. artigo 6º da base instrutória);

16. Entre finais de Outubro e inícios de Novembro de 2011, foram realizadas, a mando da Câmara Municipal de CC, obras por empresa de construção que, através de máquinas retroescavadoras, retirou terra, pedras e guias de passeio que se encontravam em toda a extensão do prédio urbano demolido identificado no número anterior, levando-as em camiões, retirando grande quantidade dos referidos materiais (cfr. artigo 7º da base instrutória);

17. Invadindo o prédio em alguns metros de profundidade (redacção introduzida pelo acórdão do TRG de 13.10.2014 – artigo 8º da base instrutória);

18. Para além disso, começou a abrir vala, em parte do terreno identificado no número 15. provado, onde vieram a ser colocadas argolas para o saneamento, águas pluviais e respectivas tampas (cfr. artigo 9º da base instrutória);

19. A obra referida nos números 16. a 18. provados, foi objecto de procedimento cautelar de embargo de obra nova quando se encontrava inacabada, mantendo-se no local materiais e máquinas destinados a continuar a invasão e construção da estrada (cfr. alínea J) dos factos assentes);

20. Por acórdão datado de 16.09.1992, proferido no processo n.º 103/87 da 2ª Secção do Tribunal Judicial de CC, foi reconhecido o direito de propriedade dos Autores relativamente à casa de habitação que possuíam no local onde os trabalhos do presente embargo se encontram (cfr. alínea K) dos factos assentes);

21. Por acórdão de 18.05.2001, proferido no processo n.º 145/93, que correu termos no 2º Juízo do Tribunal Judicial de CC, foi o Município de CC condenado a pagar, por danos patrimoniais relativos à demolição daquele prédio da Autora (artigo 481º da matriz predial e número polícia), a quantia de 3.290.420$00 e por danos não patrimoniais a quantia de 1.000.000$00 (cfr. alínea L) dos factos assentes);

22. O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 5 de Dezembro de 2002, junto aos autos do procedimento cautelar a fls. 106 a 120, cujo teor se dá por integralmente reproduzido, confirmou o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, o qual alterou parcialmente a sentença recorrida identificada no número anterior, nos seguintes termos: 

Condenando o réu no pagamento de uma indemnização por danos patrimoniais, cuja liquidação relegou para execução de sentença no que exceder o mínimo já determinado de 3.290.420$00.

Ordenou que os juros de mora incidentes sobre o montante dos danos patrimoniais já liquidados (3.290.420$00) sejam contados desde 31.12.1999 (cfr. alínea N) dos factos assentes);

23. As decisões judiciais a que se reportam os factos provados números 16. e 17., têm como objecto o prédio em discussão nos presentes autos, cuja propriedade vem pela aqui Autora reclamada, identificado sob o artigo matricial 481º urbano de CC (cfr. alínea S) dos factos assentes);

24. Os requerentes receberam da Câmara Municipal de CC, no ano de 2008, o montante de 47.062,09 € (quarenta e sete mil e sessenta e dois euros e nove cêntimos) para pagamento da indemnização arbitrada no âmbito do Processo n.º 145/93, através do Processo de Execução e liquidação de sentença n.º 145-A/93 do 2º Juízo do Tribunal de Fafe que intentaram (cfr. alíneas M), O) e P) dos factos assentes);

25. O terreno foi durante anos ocupado com placas de publicidade estática tipo “outdoors” e, em períodos de festa, vendedores de pão e, sem autorização dos AA e contra a sua vontade, tendo o Município beneficiado dessa utilização (cfr. artigo 10º da base instrutória);

26. O Réu passou licenças para o local a título de ocupação para publicidade, pelas quais cobrou o valor total de € 4.419,22 (cfr. artigo 11º da base instrutória);

27. O Réu outorgou a escritura de compra e venda referida no facto provado número 7 no convencimento de que estava a adquirir a totalidade do prédio do vendedor, incluindo o número 29, referido no facto provado número 2 (artigo 12º da base instrutória – aditado por despacho de 13.11.2015);

28. E realojou no Bairro da ... o inquilino que morava lá, demolindo a totalidade do prédio, para alargamento e beneficiação da actual Praça ... (artigo 13º da base instrutória – aditado por despacho de 13.11.2015);

29. Posteriormente à outorga da escritura pública de doação a que se reportam os factos provados números 4 e 5 e à demolição referida nos factos provados números 12 e 13, os Autores vieram reclamar do Réu Município os direitos decorrentes da demolição e ocupação do prédio número 29, referido no facto provado número 2 (artigo 15º da base instrutória – aditado por despacho de 13.11.2015).

E deu como não provados os seguintes factos:

1. Os AA. habitaram e deram de arrendamento, receberam rendas, pagaram os respectivos impostos, fizeram obras, ou consentiram que o fizessem, relativamente ao prédio referido no facto provado número 1., posteriormente à celebração da escritura pública de compra e venda outorgada em 15.04.1985;

2. Os AA. habitaram e deram de arrendamento, receberam rendas, fizeram obras, ou consentiram que o fizessem, relativamente ao prédio referido no facto provado número 2., posteriormente à demolição referida no facto provado número 10;

3. O terreno do artigo urbano ...º da freguesia de CC, tem área total de 60,00 m2;

4. As obras realizadas entre finais de Outubro e inícios de Novembro de 2011 eliminaram todos os sinais de demarcação e invadiram 5 metros de profundidade do prédio referido no facto provado número 3;

5. O Réu passou licenças para o local a título de ocupação para venda de pão;

6. Como, entretanto, os Autores se aperceberam que o número 29 não estava incluído na escritura e lhe correspondia um artigo matricial autónomo, em 11 de Julho de 1985, lograram que o mesmo fosse doado à requerente mulher pelo seu anteproprietário (artigo 14º da base instrutória – aditado por despacho de 13.11.2015).

Não foi considerado o teor da 1ª parte da redacção do artigo 11º da base instrutória, por conter formulação conclusiva, insusceptível de resposta em sede de decisão da matéria de facto.

Fundamentação:

Sendo pelo teor das conclusões das alegações do recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:

- Se os AA. não podem reivindicar o terreno onde esteve implantada a construção demolida pelo Réu, dado que este o integrou no domínio público, operando assim o denominado “princípio da intangibilidade da coisa pública”, apenas tendo direito a ser indemnizados do valor do terreno e não à restituição;

- Se abusam do direito na sua pretensão, também por já se acharem indemnizados;

- Se deve ser revogada a condenação no pagamento de € 4 491,22.

Vejamos:

A acção intentada pelos Autores é, indiscutivelmente, uma acção de revindicação – art. 1311º dos Código Civil – que cumulam com pretensão indemnizatória.

Apenas está em causa o pedido de reconhecimento do direito de propriedade do prédio correspondente a terreno com área de 60 m2, onde se encontrou edificado no pretérito “Uma casa com área coberta de 60m2 com quatro divisões com o número de polícia 29, sito na ...”, prédio não registado na Conservatória do Registo Predial, correspondente ao artigo matricial ... da freguesia de CC, identificado no processo, pedindo os AA. que seja ordenada a desocupação e a devolução do prédio à sua configuração à data da demolição, com a área livre e desimpedida das construções que nele foram implantadas, e a sua entrega.

No histórico do litígio que, desde há anos opõe os AA. e o Réu Município de CC, está provado que os Autores adquiriram, mediante escritura de habilitação de herdeiros e doação, de 11 de Julho de 1985, aquele prédio no qual estava edificada uma casa de habitação com área coberta de 60 m2.

Está também provado que os AA., por si e seus antecessores, construíram o identificado prédio, habitaram-no, vigiaram-no, pagaram os impostos devidos e neles fizeram obras, ou consentiram que as fizessem, o que sucedeu durante mais de 30 anos anteriores à demolição referida nos pontos 12 e 13 dos factos provados, continuando, depois dessa data a pagar os impostos, actos esses que foram praticados à vista de todas as pessoas, de forma ininterrupta, na convicção e intenção de que o mesmo lhes pertencia.

Em 1986/1987, a Câmara Municipal de CC procedeu à completa destruição e demolição do identificado prédio (correspondente ao artigo urbano 481° da freguesia de Fafe), sendo que nesse local, onde se encontrava o prédio urbano demolido, ficou o terreno com uma área total de 56,00 m2.

Por Acórdão datado de 16.09.1992, proferido no processo n.°103/87 da 2ª Secção do Tribunal Judicial de Fafe, foi reconhecido o direito de propriedade dos Autores relativamente à referida casa de habitação.

Demolida a casa implantada no terreno reivindicado, o Réu que ocupou essa área e aí realizou obras afectando-a ao domínio público, sustenta que a restituição não pode ser declarada judicialmente uma vez que na realidade se trata de uma expropriação de facto e a restituição violaria o princípio da intangibilidade da obra pública que, não obstante o meio porque acedeu ao domínio do Réu, é agora coisa fora do comércio.

Efectivamente, apesar dos AA. terem intentado processo cautelar de embargo de obra nova, visando a suspensão das obras alteração do arranjo urbanístico da Praça ... e de colocação de saneamento e de condutas de água, que se encontravam a ser efectuadas pela Câmara Municipal de CC, na zona de intercepção da Praça ... com a Rua ... e a Travessa ... na freguesia de CC, executadas no terreno onde existia a construção demolida, e a providência ter sido decretada por sentença de 3. 1.2012 e mantida, após oposição do ora recorrente, por decisão de 24.12.2012 no apenso cautelar, decisão confirmada por Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11.10.2012, o Réu não deixou de executar as obras que decidira fazer.

 Como se acha provado:

“13. A Câmara Municipal de CC procedeu à completa destruição e demolição dos dois prédios identificados nos factos provados números 1. e 2. (cfr. alínea G) dos factos assentes); 

14. Parte da área de terreno dos prédios identificados nos factos provados números 1. e 2., encontra-se ocupada pela actualmente designada Praça ... desta freguesia de CC (cfr. alínea I) dos factos assentes);

15. No local onde se encontrava o prédio urbano demolido, correspondente ao artigo urbano …º da freguesia de CC, ficou o terreno com área total de 56,00 m2, contido na planta junta a fls. 52 dos autos de procedimento cautelar apensos pela representação a tracejado na intercepção da Praça ... com a Rua ... e a Travessa ... (cfr. artigo 6º da base instrutória);

16. Entre finais de Outubro e inícios de Novembro de 2011, foram realizadas, a mando da Câmara Municipal de CC, obras por empresa de construção que, através de máquinas retroescavadoras, retirou terra, pedras e guias de passeio que se encontravam em toda a extensão do prédio urbano demolido identificado no número anterior, levando-as em camiões, retirando grande quantidade dos referidos materiais (cfr. artigo 7º da base instrutória);

17. Invadindo o prédio em alguns metros de profundidade (redacção introduzida pelo acórdão do TRG de 13.10.2014 – artigo 8º da base instrutória);

18. Para além disso, começou a abrir vala, em parte do terreno identificado no número 15. provado, onde vieram a ser colocadas argolas para o saneamento, águas pluviais e respectivas tampas (cfr. artigo 9º da base instrutória);

19. A obra referida nos números 16. a 18. provados, foi objecto de procedimento cautelar de embargo de obra nova quando se encontrava inacabada, mantendo-se no local materiais e máquinas destinados a continuar a invasão e construção da estrada (cfr. alínea J) dos factos assentes) ”.

 

Quando à afectação da área em questão provou-se:

“25. O terreno foi durante anos ocupado com placas de publicidade estática tipo “outdoors” e, em períodos de festa, vendedores de pão e, sem autorização dos AA. e contra a sua vontade, tendo o Município beneficiado dessa utilização (cfr. artigo 10º da base instrutória);

26. O Réu passou licenças para o local a título de ocupação para publicidade, pelas quais cobrou o valor total de € 4.419,22 (cfr. artigo 11º da base instrutória);

27. O Réu outorgou a escritura de compra e venda referida no facto provado número 7 no convencimento de que estava a adquirir a totalidade do prédio do vendedor, incluindo o número 29, referido no facto provado número 2 (artigo 12º da base instrutória – aditado por despacho de 13.11.2015);

28. E realojou no Bairro da ... o inquilino que morava lá, demolindo a totalidade do prédio, para alargamento e beneficiação da actual Praça ... (artigo 13º da base instrutória – aditado por despacho de 13.11.2015) ”.

A Recorrente pretende que o Tribunal, atenta a factualidade referida, recuse a restituição, com base na expropriação de facto que reconhece ter praticado, porquanto a ablação do direito de propriedade não foi contemporânea do pagamento da “justa indemnização”, como decorre da Lei Fundamental e da garantia do direito de propriedade e do princípio da legalidade inerente à sua privação por via expropriativa não amigável, o que invoca o princípio da intangibilidade da obra pública, que a seu ver é aqui convocável e opera, paralisando a pretensão dos Recorridos.

O princípio da intangibilidade da obra pública constitui, conceitualmente, a ponderação das consequências da violação do princípio da legalidade da Administração Pública quando, apesar da sua actuação à margem da lei, redunda na prossecução do interesse público.

No direito francês o princípio da intangibilidade da obra pública e a teoria da “via de facto” são conhecidos desde o século XIX: “L´ouvrage public mal planté ne se détruit pas” foi criação da jurisprudência francesa, concretamente, a partir do Arrêt Robin de la Grimaudière, de 7.7.1853[2].

A via de facto, segundo os autores franceses Laubadére, Venezia e Gaudemet, acarretava a “desnaturalização” do acto administrativo, ou seja, o mesmo perdia essa natureza.

A via de facto, traduz clara violação do direito de propriedade, como afloração de um direito fundamental – art. 62º da Constituição da República e art. 17, nº1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem – ademais assenta em clara violação de procedimento.

A figura não é desconhecida do da doutrina portuguesa, sendo que Fernando Alves Correia, in “Manual do Direito do Urbanismo”, pág. 353, (2010), Volume II, Almedina, a considera “…um ataque grosseiro à propriedade do particular por meio de factos através dos quais nada se encontra que corresponda ao conceito de expropriação, distinguindo por isso esta figura da prática de um ato expropriatório a que faltam alguns requisitos legais de validade”.    

No Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 5.2.21015 – Proc. 742/10.2TBSJM.P1.S1 – in www.dgsi.pt de que foi Relator ... da Fonseca, questão de contornos semelhantes foi sentenciada, tendo sido revogada a decisão da 2ª Instância, tendo-se ponderado, doutamente:

 “O princípio da intangibilidade da obra pública:

  E é da consideração deste interesse público, ponderado e valorado na expropriação indirecta, que a jurisprudência francesa criou o princípio tradicional da intangibilidade da obra pública.

O princípio da intangibilidade da obra pública – princípio geral do direito das expropriações – traduz-se na manutenção da posse por parte da administração quando, apesar de a posse assentar em título ilegal, não representando um atentado grosseiro ao direito de propriedade, deva ser mantida, sob pena de resultarem danos graves para o interesse público - [Neste sentido ver Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29.04.2010, Processo n.º1857/05.4TBMAI.S1, Relator Cons. Alves Velho].

 Segundo este princípio, devido à importância que apresenta a obra pública para o interesse geral, nem o juiz do tribunal comum, nem o juiz do tribunal administrativo podem ordenar a destruição da obra pública, mas apenas conceder ao proprietário uma indemnização.

O particular fica, assim, impedido de intentar uma acção de restituição da posse do seu bem, tendo de contentar-se com uma indemnização a arbitrar pelo tribunal comum.

 E assim, através deste princípio, se convolam autênticos atentados ao direito de propriedade em verdadeiras expropriações, ainda que ilegais.

Antes de mais, e ainda no campo da conceptualização, urge referir que o princípio da intangibilidade das obras públicas é um princípio não escrito.

Daí que, na esteira do Ac. do STA n.º 0853/07, de 16-01-2008, se afirme que, “Num Estado de Direito, assente na soberania popular e no primado da lei (artigo 2º da CRP), os princípios jurídicos não escritos se tenham de inferir a partir das soluções legais e não ao arrepio delas”.

Saliente-se que estas figuras da apropriação irregular e da expropriação indirecta são em si mesmas um atentado ao direito fundamental da propriedade privada e, por isso, as mesmas têm sido colocadas em causa pelo TEDH.

Exemplo disso é o Acórdão proferido em 08-03-2006, no caso Guiso-Gallisay vs Italy […] - cfr. outros Acs. do TEDH caso Belvedere Alberghiera S.R.L. vs. Itália, de 30-05-2000, caso Rossi and Variale vs. Itália, 03-06-2014.”

Mais adiante o Acórdão, afirma:

“Com efeito, uma coisa é a Câmara em representação do Município ocupar uma parcela de terreno com vista à execução no mesmo de obras públicas, por si previstas para o local, em satisfação do interesse público, actuando de boa - fé na prossecução desses fins; outra coisa, bem diferente, é o Município proceder à ocupação do solo, sem o proprietário ser “tido ou achado”, em actuação marginal ao dever de cumprimento da legalidade a que está sujeita a Administração. Aqui a ilicitude é manifesta.

A expropriação é o sacrifício imposto ao direito de propriedade pelos interesses de ordem pública ou social. Ou, dito de outro modo: só pela expropriação se pode sacrificar o direito de propriedade em termos de se alterar a titularidade do mesmo, de uma forma impositiva, autoritária, e sempre mediante o pagamento de uma indemnização.

É por se reconhecer um fim social à propriedade que a expropriação está constitucional e legalmente prevista. Aliás, como acima se referiu, o direito de propriedade “não é garantido em termos absolutos, mas sim dentro dos limites e com as restrições previstas e definidas noutros lugares da Constituição (e na lei, quando a Constituição possa para ela remeter ou quando se trate de revelar limitações constitucionalmente implícitas) por razões ambientais, de ordenamento territorial e urbanístico, económicas, de segurança, de defesa nacional - Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, 4ª edição, Coimbra, 2007, página 801”.

Não se põe em causa tal entendimento. E, tal como Alves Correia –“Manual do Direito do Urbanismo”, volume II, 4ª edição, Coimbra 2008, páginas 807-808 -, admite-se que “de uma forma geral, o próprio projecto económico, social e político da constituição implica um estreitamento do âmbito dos poderes tradicionalmente associados à propriedade privada e a admissão de restrições (quer a favor do Estado e da colectividade, quer a favor de terceiros), das liberdades de uso, fruição e disposição”.

Mas, sendo esse mesmo direito de propriedade tutelado como direito fundamental, essas mesmas restrições supra referidas hão-de encontrar apoio na previsão legal e na legalidade do seu procedimento, não se compadecendo com “vias de facto”, semelhantes a ocupações a que, outrora, assistimos no nosso país.

Ultrapassados os limites do poder jurídico da potestas expropriandi, não mais podemos falar de um poder jurídico, mas sim de um despojo ilegal.

A via de facto – como forma de expropriar “de facto” sem processo de expropriação – não é um dos casos fixados na lei e que permitem, de acordo com o artigo 1308º do Código Civil, que alguém seja privado, no todo ou em parte, da sua propriedade.

É um facto que a propriedade privada pode ser limitada pela função social que a propriedade reveste. Mas essa limitação há-de ser levada a cabo quer por medidas legislativas e administrativas, quer por actos do poder público que ferem o núcleo essencial do direito de propriedade, os chamados actos expropriativos - Neste sentido ver Raquel Filipa da Silva Ferreira, in “A justa indemnização no contexto da expropriação de terrenos” - Universidade Lusófona do Porto – Faculdade de Direito, Porto, 2012, páginas 268 e seguintes.”

No caso, não pode ser atendida a pretensão do Réu, porquanto a sua actuação não assenta em procedimento afectado por erro desculpável; bem ao invés, o Réu actuou de forma dolosa, em deliberada atitude ofensiva dos direitos dos Autores violando o seu direito de propriedade, apesar de ter sido defendido em juízo e aí reconhecido no expedito meio cautelar de que lançaram mão.

A afectação do terreno a fins de utilidade pública, com o devido respeito, de não muito premente e proveitosa utilidade pública, se deve, razoavelmente, considerar a ocupação de uma faixa de terreno para colocar outdoors, em período de festas utilizada por vendedores de pão, (tendo o Município beneficiado dessa utilização), não “sana” a ilegalidade do acto público-administrativo que esteve na origem do apossamento, pelo que, no caso, ante a violação grosseira do direito de propriedade não merece a posição do Réu a protecção que impetra ao abrigo da intangibilidade da obra pública, para impedir a restituição e fazer quedar as consequências da violação com o remédio da indemnização.

Concorda-se com a ponderação feita no Acórdão recorrido a fls. 554:

“…Como bem foi salientado na sentença recorrida, não obstante o Réu ter inicialmente procedido à ocupação parcial do solo do prédio onde erradamente realizou a demolição, com a actualmente designada Praça ..., a verdade é que, mais recentemente, em finais de Outubro e inícios de Novembro de 2011, foram realizadas, a mando da Câmara Municipal de CC, obras por empresa de construção que, através de máquinas retroescavadoras, retirou terra, pedras e guias de passeio que se encontravam em toda a extensão do prédio urbano demolido, levando-as em camiões, retirando grande quantidade dos referidos materiais, invadindo o prédio em alguns metros de profundidade e, para além disso, começou a abrir vala, em parte do mesmo terreno, onde colocou argolas para o saneamento, águas pluviais e respectivas tampas. 

A referida obra realizada entre finais de Outubro e inícios de Novembro de 2011 foi, inclusivamente, objecto de procedimento cautelar de embargo de obra nova quando se encontrava inacabada, mantendo-se no local materiais e máquinas destinados a continuar a invasão e construção da estrada.

Ora, “[toda] esta conduta do Réu Município, por intermédio da C.M.CC., ocorreu enquanto os Autores, reiteradamente reagiram em defesa do seu direito de propriedade, contra a demolição em apreço, em sucessivas demandas judiciais de que a primeira remonta a 1987.

Afigura-se assim incontornável que a ocupação do terreno dos Autores, com as infra-estruturas públicas reportadas na matéria de facto provada, que o Réu Município entendeu ali colocar, aconteceu quando este já tinha conhecimento de que tal terreno não lhe pertencia, mas sim aos Autores, e que nenhum acto aquisitivo válido do mesmo tinha ocorrido, pois não se encontrava abrangido pela compra e venda outorgada por escritura pública de 1985, nem por expropriação.

A sucessão de acontecimentos descritos aponta, salvo melhor opinião, para uma conduta gravemente culposa, até mesmo dolosa, na prática de actos de ocupação pública pela Câmara Municipal de CC, do terreno pertencente aos Autores».

Subscrevem-se por inteiro tais considerações e, nessa medida, é de rejeitar a alegação de que, ao realizar as ditas obras levadas a cabo em 2011 e ao proceder à implementação das referidas infra-estruturas nessa parcela, o réu agiu no pressuposto «de que não estava a lesar interesses de terceiros, designadamente dos autores, e fê-lo de boa-fé». Pelo contrário, os factos provados revelam precisamente o contrário, ou seja, que o réu tinha perfeito conhecimento que estava a ocupar um parcela que era pertença dos autores, não detendo nenhum título aquisitivo sobre esse terreno, actuando de má fé ao decidir realizar tais obras no contexto fáctico demonstrado.

Segundo o artigo 1308º do Código Civil, “ninguém pode ser privado, no todo ou em parte, do seu direito de propriedade senão nos casos fixados na lei”, determinando o n.º 2 do artigo 1311º do mesmo diploma legal que “havendo reconhecimento do direito de propriedade, a restituição só pode ser recusada nos casos previstos na lei”.

Também a Lei Fundamental, no seu artigo 62º, reconhece e garante o direito à propriedade privada, dispondo o seu n.º 2 que “a requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efectuadas com base na lei e mediante o pagamento de justa indemnização”.

Aqui se reconhece o direito à propriedade privada, e a sua forma de transmissão, em vida ou por morte, negando-se, contudo, a possibilidade de desapropriação arbitrária, efectuada à margem da lei.” (destaque nosso).

No Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 18.2.2014 – Proc. 934/11.7TBOAZ.S1- in www.dgsi.pt., de que foi Relator Pinto de Almeida – ora 2º Adjunto – considerou-se, posto que num quadro factual diverso, já que houve um prolongado processo negocial entre um Município e particulares, qualificado como negociações pré-contratuais com vista à construção de uma via rodoviária: “Se, no termo de prolongadas negociações, na resposta positiva à proposta apresentada, se alerta o proponente de que, para a sua concretização, o negócio teria de ser submetido à aprovação e deliberação dos órgãos competentes, só com a intervenção destes ocorreria, no fundo, a definitiva aceitação dos termos do acordo antes negociado, que não pode, por isso, ser qualificado como um contrato vinculativo (contrato-promessa).

Por via do princípio da “intangibilidade da obra pública”, não cabe fazer cessar a ocupação de facto por parte da Administração, mas apenas conceder ao proprietário uma indemnização pela privação do gozo da coisa, indemnização que deve ser encontrada, não através do puro cálculo baseado na ocupação indevida, mas sim tendo por base os critérios dos arts. 23.º e segs. do CExp.”.

            No Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 29.4.2010 – Proc. 1857/05.4TBMAI.S1 – in www.dgsi.pt., - Relator Alves Velho – ponderou-se:

            “O denominado princípio da “intangibilidade da obra pública”, princípio geral do direito das expropriações, a operar, nomeadamente, quando tendo havido um princípio de actuação legal expropriativa não ocorra um atentado grosseiro ao direito de propriedade, conduz a que o julgador já não deverá colocar a Administração numa posição idêntica à de um qualquer particular, determinando a restituição do bem ou demolição da obra como meios de fazer cessar uma “via de facto”, mas, atendendo ao interesse geral que a obra pública representa, abster-se de ordenar a restituição e limitar-se a conceder ao proprietário uma indemnização pela privação do gozo da coisa, enquanto ela se verificar.”

            No Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 15.4.2015 – Proc. 100/10.0TBVCD.P1.S1 – in www.dgsi.pt – Relator Abrantes Geraldes – lê-se:

           “Já num outro aresto deste Supremo Tribunal de Justiça, de 5-2-2015 (Rel. Abrantes Geraldes), proferido no âmbito da revista nº 2125/10 (acessível através de www.dgsi.pt), se deixou expresso, em torno do referido princípio, o seguinte:

                “A apropriação ou ocupação de prédios alheios por entidades públicas pode apresentar-se sob vários gradientes que vão desde o desrespeito flagrante das regras sobre a expropriação por utilidade pública até situações em que a violação objectiva do direito de propriedade é resultado de comportamentos que se inscrevem na mera culpa ou é traduzida em situações que se manifestam através da violação dos limites objectivos do prédio expropriado, por vezes, em resultado de um mero erro ou de excesso na execução do acto expropriativo. Enfim, casos existem em que a violação objectiva do direito de propriedade é precedida ou acompanhada de uma aparência de legitimidade quanto à ocupação ou apropriação de prédio alheio que, no entanto, é infirmada pela análise mais cuidada dos respectivos contornos legais.

               Em determinadas circunstâncias que se pautam pela verificação de culpa leve ou mesmo pela ausência de culpa, a aplicação dos efeitos típicos da acção de reivindicação poderia revelar-se excessiva, designadamente quando, na sequência da ocupação ou apropriação, a entidade pública aplicou o imóvel a fins de utilidade pública ou à realização de obra pública, envolvendo vultuosos investimentos.

                Em tais situações, o reconhecimento puro e simples do direito de propriedade, com a consequente condenação da entidade ocupante na restituição do prédio nas condições em que o mesmo se encontrava pode revelar-se desproporcionado e gravemente lesivo dos interesses de ordem pública, tendo em consideração os investimentos ou as despesas entretanto realizadas.

               Para situações como esta tem sido desenvolvida uma tese intermediada pelos tribunais em face dos casos concretos que legitima uma limitação ao exercício do direito de reivindicação, substituindo-o pela atribuição de uma indemnização correspondente ao valor expropriativo do prédio, ponderando o princípio da intangibilidade da obra pública que mais não é do que uma versão administrativista das figuras do abuso de direito ou da colisão de direitos previstas nos arts. 334º e 335º do Código Civil. Princípio que conquanto não esteja expressamente consagrado pode encontrar sustentação no disposto nos arts. 159º e segs. do CPTA, normas que permitem afastar a execução de julgado em casos em que esta provoque grave lesão do interesse público.

               Com recurso a tal princípio geral, em casos em que a condenação na restituição do prédio livre e desocupado constituiria um resultado manifestamente inadequado, por resultarem gravemente afrontados interesses de ordem pública, é possível sustentar uma solução diversa daquela que resultaria da aplicação das regras exclusivamente extraídas do direito privado.

                Ainda que não esteja expressamente consagrado tal princípio, e embora também não seja pacífica a sua admissibilidade no nosso ordenamento jurídico (negada, por exemplo, no Ac. do STA, de 6.2.01, in www.dgsi.pt), o certo é que a sua intervenção é limitada a casos que verdadeiramente o justifiquem e que se caracterizem por comportamentos adoptados pela entidade a favor de quem foi declarada a utilidade pública expropriativa e que não ultrapassem subjectivamente os limites da culpa leve.” (destaque nosso)

Não havendo fundamento para seguir linha diversa da perfilhada por este Supremo Tribunal de Justiça, e ponderando a violação grosseira do direito dos AA. sem aparência sequer de procedimento expropriativo, por um lado, e o facto da obra executada pela Ré no terreno reivindicado não ser de grande magnitude, nem estar comprovado o dispêndio do erário público, por outro lado, em confirmação do Acórdão recorrido, decreta-se a restituição.

Da segunda questão:

Se os Recorridos agem com abuso do direito, também pelo facto de já terem sido indemnizados. O recorrente persiste, afirmando que não só indemnizou os AA. pela demolição do imóvel implantado no questionado terreno – o que estes não discutem –, mas também que a indemnização paga contemplava o valor da aérea que reivindicam.


Dispõe o art. 334º do Código Civil:

É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”

O instituto do abuso do direito visa obtemperar situações em que a invocação ou exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça dominante.

A parte que abusa do direito, actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito.

 Uma das vertentes em que se exprime tal actuação, manifesta-se, quando tal conduta viola o princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou –  “venire contra factum proprium”.

“Há abuso do direito, segundo a concepção objec­tiva aceite no artigo 334º sempre que o titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social desse direito.

Não é necessária a consciência, por parte do agente, de se excederem com o exercício do direito os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito; basta que, objectivamente, se excedam tais limites”. – “Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, pág. 536, Antunes Varela.

Como ensina Fernando Cunha e Sá, in “Abuso do Direito “ – pág. 640:

“O abuso prescinde quer da causação de danos (pode haver um acto abusivo não danoso) quer, quando os haja, qualquer elemento subjectivo, na forma de dolo ou de mera culpa; ora sendo assim, a exigência de culpa requisito da responsabilidade civil por actos abusivos, depende da possibilidade de emitir um juízo de reprovação sobre a conduta do agente, pois nisso mesmo é que consiste a culpa.

 Dito por outras palavras, depende da existência de um dever que impenda sobre o titular do direito subjectivo ou da diversa prerrogativa jurídica e que este tenha violado voluntariamente.”.

 Para que se possa considerar abusiva pretensão dos AA., importaria demonstrar factos através dos quais se pudesse considerar que, ao exercerem o direito excedem, manifestamente, clamorosamente, o fim social ou económico do direito exercido, ou que, com a sua actuação, violaram sérias expectativas do Réu, assim traindo o seu investimento na confiança, desconsiderando a actuação de boa-fé – art. 762º,nº2, do Código Civil.

            O art. 334º do Código Civil, acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito. A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção, bastando que a actuação do abusante, objectivamente, contrarie aqueles valores.

Como ensina o Professor Antunes Varela, obra citada, pág. 536:

“Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.

É preciso, como acentuava M. de Andrade, que o direito seja exercido, “em termos clamorosamente ofensivos da justiça”.


 Importa, à luz dos factos provados e não de lucubrações subjectivas, aferir do comportamento dos Autores: se, porventura, já tivessem sido indemnizados pela Ré estariam a actuar em censurável venire contra factum proprium.
Sustenta a Recorrente que existe ainda abuso do direito pelos Recorridos pelo facto de não ser possível, por não se saber, qual o estado em que deve ser resposto o prédio no caso de se decretar a reposição.
Com o devido respeito, a tese do Recorrente não tem qualquer correspondência com os factos. Resulta da matéria de facto provada que: “24. Os requerentes [os Autores/recorridos] receberam da Câmara Municipal de CC, no ano de 2008, o montante de 47.062,09 € (quarenta e sete mil e sessenta e dois euros e nove cêntimos) para pagamento da indemnização arbitrada no âmbito do Processo n.º145/93, através do Processo de Execução e liquidação de sentença n.º145-A/93 do 2º Juízo do Tribunal de Fafe que intentaram - (cfr. alíneas M), O) e P) dos factos assentes) ”.

Como a Relação considerou provado no Acórdão recorrido, citando o Acórdão prolatado neste processo de 13.10.2014, não consta qualquer prova do pagamento de indemnização referente ao terreno. A pretensão indemnizatória dos AA. corresponde a duas actuações do Réu localizadas no tempo e factualmente distintas: a demolição da casa em 1986/87, e a ocupação abusiva do terreno após a demolição em 2011 e que persiste.

A indemnização paga reporta-se à demolição do imóvel. O pagamento é uma excepção peremptória cujo ónus da prova cabe ao devedor que a alega – art. 342º, nº2, do Código Civil; o Réu não alega ter procedido ao pagamento da indemnização pelo dano da ilícita ocupação do terreno. Caso tivesse havido tal pagamento não teria fundamento legal a restituição que os recorridos peticionam.

Não tendo havido tal pagamento e sendo caso de restituição, como antes se considerou, importa concluir que os Recorridos não agem em abuso do direito.

O valor indemnizatório arbitrado no processo ordinário n.°145/93 do 2º Juízo do Tribunal apelado, “destinou-se a reparar um dano do direito de propriedade dos Autores, ao abrigo da responsabilidade extracontratual do Réu, mas não constituiu contrapartida, ou preço, da transmissão do direito de propriedade sobre o mesmo imóvel”  

Finalmente, importa saber se se deve manter a condenação do Recorrente a pagar aos Recorridos a quantia de € 4.419,22, relativa aos benefícios com licenciamentos concedidos para uso não autorizado do prédio reivindicado, a título de enriquecimento sem causa. Dos factos provados 25. e 26 colhe-se que à custa da abusiva utilização do terreno dos Recorridos o Réu avantajou o seu património na medida em que cobrou, pela emissão de licenças, o valor de € 4 419,22, obtendo assim um ganho que de outro modo não auferiria.

Dispõe o art. 473º do Código Civil:

“1. Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.

2. A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa tem por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou”.

             O nº2 daquele normativo integra três situações:

- o que foi indevidamente recebido (condictio indebiti);

- o que foi recebido em virtude de causa que deixou de existir (condictio ob causam finitam);

- o que foi recebido com base em efeito que não se verificou (condictio causa data causa non secuta, também chamada condictio ob rem).

Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, vol. I, págs. 454 a 456, ensinam:

 “A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa ou locupletamento à custa alheia pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos:

 É necessário, em primeiro lugar, que haja um enriquecimento.

 Em segundo lugar, que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de causa justificativa — ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido.

 Finalmente, que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição”.

Os três requisitos convergem no caso dos autos: há enriquecimento do Réu, à custa dos Autores, sem causa que o justifique, já que nunca existiu, porque não podia utilizar e, consequentemente, colher benefício patrimonial da fruição do terreno.

Não existe qualquer fundamento negocial, ou outro, para a deslocação patrimonial que beneficiou o Réu e prejudicou a Autora.

Como ensina Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código Civil” – vol. II – pág. 268.

“Integram o enriquecimento sem causa:

 a) uma vantagem patrimonial, isto é, susceptível de avaliação económica, para uma pessoa;

 b)  um empobrecimento, correlativo ao enriquecimento, que incida sobre o património de outra pessoa;

 c) a falta de uma justa causa do enriquecimento do primeiro e do correlativo empobrecimento do segundo […].

[…] Para que o enriquecimento dê origem a um direito de restituição é preciso que ocorra à custa do património de outra pessoa e que, além disso, não haja razão legal que o justifique.

 Esse enriquecimento pode ter resultado do aumento verificado no património do enriquecido (aumento quantitativo ou qualitativo dos valores do activo, ou diminuição do passivo patrimonial), ou desse património não ter diminuído quando tal diminuição deveria, em condições normais, ter ocorrido.

A correlação entre o enriquecimento e o empobrecimento devem derivar de um único facto produtivo”.

            O art. 479º do Código Civil estabelece:

           

1. A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.

2. A obrigação de restituir não pode exceder a medida do locupletamento à data da verificação de algum dos factos referidos nas duas alíneas do artigo seguinte”.

Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, pág. 466, escrevem:

“ […] O objecto da obrigação de restituir é determinado em função de dois limites: em primeiro lugar, o beneficiado não é obrigado a restituir todo o objecto da deslocação patrimonial operada (ou o valor correspondente, quando a restituição em espécie não seja possível).

Deve restituir apenas aquilo com que efectivamente se acha enriquecido, podendo haver diferença — e diferença sensível — entre o enriquecimento do beneficiado à data da deslocação patrimonial e o enriquecimento actual […].

[…] O enriquecimento assim delimitado corresponderá à diferença entre a situação real e actual do beneficiado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria, se não fosse a deslocação patrimonial operada […]

[…] Em segundo lugar, o objecto da obrigação de restituir deve compreender “tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido”.

 […] Além do limite baseado no enriquecimento (efectivo e actual), a doutrina corrente tem aludido a um outro limite da obrigação de restituir, que consistiria no empobrecimento do lesado”.

      O Réu não pode alegar fundamento para a não restituição da quantia que ingressou no seu património (enriquecimento), que tem directa e imediata correspondência com a perda patrimonial da Autora (empobrecimento), sendo que tal deslocação não assenta em qualquer fundamento legal ou contratual.

            Pelo quanto se disse o recurso soçobra.

            Sumário – art. 663º, nº7, do Código de Processo Civil

           

            Decisão:

            Nega-se a revista.

            Custas pelo Recorrente.

            Supremo Tribunal de Justiça, 11 de setembro 2018

Fonseca Ramos (Relator)

Ana Paula Boularot

Pinto de Almeida
 

_______________
[1] Relator- Fonseca Ramos.
Ex.mos Adjuntos:
Conselheira Ana Paula Boularot
Conselheiro Pinto de Almeida
[2] Ana Raquel Gonçalves Moniz (2006), “O Domínio Público - O Critério e o Regime Jurídico da Dominialidade”, Almedina.